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Instigação farmacodinâmica do subconsciente. Contribuição ao estudo da narcose, do narcodiagnóstico e da narcoanálise, do ponto de vista médico-legal

Catedrático (interino) de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Univ. do Paraná

O tema não é original. Escreveram a respeito, ao que sabemos, no Brasil, além de outros, Afrânio Peixoto, Flamínio Fávero, Hélio Gomes, Leonídio Ribeiro, Almeida Junior, Oliveira Bastos-Joy Arruda, Soares Pires, Heronides Coelho Filho. Fora do país, entre muitos, Vissie, House, Lorenz, Goddard, Horsley, Richet-Desoille, Schiff, Bobon-Poignard-Delmas Marsalet, Logre, Ey, Brantway, Delay, Lhermitte, Heuyer, Laignel-Lavastine. E' possível hajamos omitido nomes, nacionais ou estrangeiros. De falta assim, sem dúvida existente, desde já nos penitenciamos.

O caso ocorreu em França. Tentando fugir à polícia, foi o indivíduo de nome C. E. N. S. alvejado a tiros e ferido por projétil de arma de fogo na região frontoparietal, com lesão craniocerebral e comprometimento do hemisfério esquerdo, de que resultou hemiplegia direita com afasia, além de - segundo informes de enfermeiro e dos companheiros de prisão - crises epileptiformes com perda da consciência. A 26 de setembro de 1946 foram, pelo Tribunal de Toulouse, designados os drs. Laignel-Lavastine, Heuyer e Genil-Perrin para, como peritos, opinarem sobre a "gravidade da doença de que o acusado é portador, sua origem e evolução e se, nas atuais condições, poderá ser transferido para Toulouse, em virtude de mandato de prisão... e se poderá ou não responder a interrogatório".

Depois de exames e pesquisas julgados necessários, concluíram os peritos, a 19 de dezembro daquele ano, que C. E. N. S. apresentava hemiplegia direita com afasia, em conseqüência à lesão craniocerebral sofrida, tendo o projétil penetrado na região frontoparietal esquerda e saído na região medioparietal, no seu terço anterior. Era intransponível, à época da perícia e incapaz de responder a interrogatório. Afirmaram os peritos, também, que os distúrbios referidos poderiam complicar-se de crises epileptiformes.

A 11 de setembro do ano seguinte, foi requerida nova perícia àqueles profissionais, "com a missão de reexaminarem o acusado, opinar sobre se apresenta melhoras ou se apresenta estacionário seu estado; se está ou não em condições de responder ao interrogatório, tendo em vista numerosas e graves acusações que sobre o mesmo pesavam". Fêz-se a perícia. Perdurava a hemiplegia. No tocante à afasia, julgaram os peritos acertado levar a efeito narcose pelo pentotal, para melhor lhe esclarecerem a. natureza.

Explicado, detalhadamente, a C. E. N. S. o que se pretendia fazer, pôs-se êste inteiramente de acôrdo. Cumpre lembrar que, conquanto não falasse, podia o acusado compreender o que se lhe dizia e mais, responder, por escrito, a perguntas feitas, usando a mão esquerda. Frisa, aqui, Laignel-Lavastine - de cujo trabalho12 de muito nos valemos na elaboração do presente ensaio - hão haver "nenhuma alteração da memória, nem do julgamento", tudo fazendo crer se tratasse de "afasia motora pura, sem enfraquecimento intelectual". Consensiente, pois, submeteu-se o acusado ao teste, que decorreu normalmente. No "estado segundo" do período póssoporoso, adotado o despertar progressivo, foi C. E. N. S. interrogado e... respondeu. Mais tarde, completamente desperto, ciente do ocorrido, seguiu falando - lenta, laboriosa, dificilmente, como afásico que se reeduca, mas de maneira assaz compreensível. Relatou, então, que havia oito meses lhe voltara a fala, aos poucos. Como não se sentisse seguro de poder expressar-se perfeitamente bem, temia que, no interrogatório, o tomassem por simulador. Razão de haver preferido manter-se em silêncio.

Opinaram, em conseqüência, os peritos, pela realidade da hemiplegia direita, nitidamente orgânica. Pela possibilidade da existência da afasia, de início, devendo, porém, ser considerada curada à ocasião do segundo exame. Em caso de repetição da mesma, tratar-se-ia de pura simulação. E que estava o acusado em condições de responder a interrogatório.

Tendo C. E. N. S. passado a apresentar, a partir disso, crises "epilépticas", não foi difícil à perícia, após observação acurada, concluir que se tratava de crises voluntárias, de modo algum legítimas. Concluíram, portanto: 1) era C. E. N. S. plenamente responsável por seus atos, ao momento do crime; 2) embora apresente hemiplegia direita em relação ao ferimento sofrido, não é, ou não é mais, afásico e pode responder a interrogatório; 3) sua hemiplegia não é incompatível com a detenção.

Desmascarado, C. E. N. S. acionou os três médicos, pedindo sua condenação, além de indenização de 100.000 francos "en reparation des délits de coups et blessures et violation du secret professionel, que ces médicins-experts auraient commis en pratiquant sur lui un injection de pentothal et en indiquant dans leur rapport que le-dit C. E. N. S. était un simulateur". Alegando "violação do foro interior", "vias de fato exercidas sobre sua pessoa", "constrangimento ilegal de que teria sido vítima", ia além dizendo que o perito (no caso, o Dr. Heuyer, que foi que praticou a injeção), "agindo de surpresa, o havia levado a pronunciar algumas palavras quando realmente desejava permanecer calado". Destarte, teria o dr. Heuyer "extorqué sa volonté ou escroque ses pensées en penetrant abusivement dans son subconscient".

Foi uma questão ruidosa, que agitou os meios científicos do mundo inteiro. Opinaram sôbre o assunto, na França, a Academia de Medicina (tendo esta nomeado Comissão de Narcoanálise, da qual foi Lhermitte o relator), a Sociedade de Medicina Legal, o Conselho da Ordem dos Médicos, o Conselho da Ordem dos Advogados e a Associação dos Médicos Deportados e Internados políticos.

Desnecessário dizer não haver C. E. N. S. logrado seus objetivos, tendo sido os três médicos considerados isentos de culpa e o autor da ação, condenado nas custas.

Não poderia ter sido mais acertada a decisão. Efetivamente, a injeção de pentotal havia sido aplicada, ficou bem claro, com finalidade exclusivamente diagnostica (saber se a afasia que C. E. N. S. apresentava era, à época do exame, real ou simulada), com o que C. E. N. S. havia, aliás, concordado, dando pleno consentimento; não havia, finalmente, segredo profissional violado, de vez que os três médicos, funcionando como peritos, não estavam sujeitos à regra do segredo em relação ao examinando.

MEIOS QUÍMICOS EMPREGADOS

Caminhemos do passado para nossos dias, fazendo referência a alguns meios outrora usados, detendo-nos um pouco mais naqueles que, mesmo obsoletos, ainda merecem preferência da parte de alguns.

A) Álcool - A inconfidência é uma das conseqüências da embriaguez. O álcool não põe o indivíduo apenas loquaz, incontido, leviano. Faz mais: "desaçaima impulsões sexuais recalcadas" (Almeida Junior1); dá lugar à regressão da libido a manifestações do erotismo infantil; libera impulsos agressivos. Adormecendo a censura, propicia "descomprimir recal-camentos" (Afrânio Peixoto15). Segundo conhecida agência telegráfica, a notícia das explosões atômicas na Rússia, que, recentemente, agitou o mundo, teria vindo ao conhecimento de ingleses e americanos "graças a vastas libações alcoólicas, em Praga, de seis ministros tchecoslovacos recém-chegados de Moscou". Aí está ilustrativo exemplo a demonstrar que nem mesmo segredos de Estado são guardados quando "a paralisia" alcoólica se faz sentir sôbre centros e funções cerebrais elevados, daí resultando: atenção voluntária difícil, afrouxamento no curso das idéias e diminuição considerável do poder inibitório que caracteriza a vontade.

B) Certos vegetais - a) Haschisch (Cannabis indica), referido por O'Schaugnessy, Schrenk-Notzing; b) diamba ou maconha (Cannabis saliva), já de triste notoriedade entre nós; c) ceapi e jurema, do sumo da qual - é José de Alencar quem o conta, em "Iracema" - se valiam pagés indígenas para alcançar sonhos proféticos; d) beladona, que tornaria sem resistência aquêle que a ingerisse em altas doses, o que se acompanharia de perda momentânea da voz e dos sentidos (Souza Lima20). Razão de, a este título, haver entrado na composição de alguns filtros amorosos de outrora. Usaram-na, igualmente, em tempos idos, salteadores, conhecidos por "endormeurs", que infestavam certos países da Europa e que, graças a ela, tornavam mudas e passivas suas vítimas; e) mescal (ou feiotel), de cujo derivado (mescalina), teriam lançado mão os alemães, para interrogatório, em Dachau (Divry e Bobon); f) marijuana, planta com característicos da maconha; usada no México, em outros países ibero-americanos e, ultimamente, nos Estados Unidos, para onde seria contrabandeada. Ao que se noticiou, não faz muito, teriam sido surpreendidos e presos, em Hollywood, astros e estrelas famosos quando fumavam a erva; g) iageína, planta sul-americana, cuja infusão, se ingerida, dá lugar a profundo sono, entrecor-tado de alucinações, em particular telepáticas (Garcia); h) kawa-kawa (Piper methisticwm), originária da Polinésia, usada no fabrico de bebida inebriante; i) bétel ou noz de areca, que traz estímulo geral com euforia; j) amanita ou muchamor dos russos, que dá lugar a embriaguez com alucinaçÕes; k) paricá, da zona do Rio Madeira, que traz grande super-excitação (Roxo).

C) Outros meios - Éter (Claude), com o qual é fácil obter "confidências" à custa de eterização ligeira. Diga-se o mesmo do clorofórmio (Herrera), do cloral (Moll), do paraldeído (Ash), da morfina (Chrichton-Muller).

D) Referência especial merecem os casos desta "química psicológica" (como a denominou Afrânio Peixoto), em que a instigação subconsciente é obtida por:

1) Sôro da verdade (truth serum, de House11), mistura de solução de cloridrato de morfina a 2%, com solução de bromidrato de escopolamina a 1:1000. É injetada, por via intramuscular, na dose de 1 a 2 cm3, cada meia hora, até obtenção de estado de semi-inconsciência (automatismo onírico). Não obstante as esperanças de House, apesar do alarde que, em alguns meios, ainda hoje se faz em relação ao famoso sôro, manda a justiça lembrar severas críticas de que o mesmo tem sido alvo. Assevera Larson haver visto criminosos "mentirem sob sua ação". Segundo Lavastine, a afirmativa de que "par le sommeil obtenu par la scopolamine le sujet devient incapable de tromper", constitui "lourde erreur qui a été le point de depart du bobard: sérum de la verité". Recorde-se, dentro da mesma ordem de idéias, que o Tribunal de Nova York, a Côrte Suprema de Michigan, a Côrte de Wisconsin e os tribunais britânicos houveram por acertado concluir serem "muito incertos para que tenham valor probatório" resultados obtidos por intermédio de detetores da mentira, ou drogas "falsamente denominadas soros da verdade" (Ashworth Underwood, apud Schiff18).

2) Determinados barbitúricos, tais como: a) Pentotal sódico, com difusibilidade pronta e produzindo estado hipnagógico imediato, embora de pouca duração; b) Amital sódico, de menor difusibilidade, com destruição e eliminação mais prontas; c) Tionembutal e narcomunal, sobremodo usados, de par com o Pentotal, nos Serviços Psiquiátricos, na dose de 0,50 g. dissolvidos em 20 cm3 de água bidestilada (nos casos resistentes à narcose, uma grama para 20 cm3 do solvente); d) Evipan sódico e Privenal, desa-conselháveis, mercê da brutalidade da sua ação e fenômenos de excitação a que podem dar lugar.

3) Cardiazolização, insulinização - Recursos lembrados por alguns autores, pois é possível obter-se, por intermédio dos mesmos, "liberação de complexos por transitória debilidade da autocrítica" (Mira y Lopez13).

NARCOSE, NARCODIAGNÓSTICO, NARCOANÁLISE

A) Narcose

1. Na prática judiciária - No que diz respeito à narcose como meio de instrução judiciária, relativa à materialidade dos fatos incriminados, muito foi dito, sendo de lembrar, por mais recente, o que escreveu Heuyer, encarregado de defêsa - sua e dos seus dois colegas - no caso CENS, resumido linhas atrás. Meyer-Salomon foi, ao que parece, dos primeiros a protestar contra o emprêgo da narcose na prática judiciária. Vimos, em capítulo anterior, que tribunais americanos e ingleses opinam serem "incertos para terem valor probatório", resultados obtidos com os detetores da mentira, ou drogas "falsamente denominadas soros da verdade".

Ao ver dos muitos que rejeitam a narcose na prática judiciária, deve ser rigorosamente interdito seu uso, na perícia médico-legal, por "contrário ao direito e às garantias elementares da defêsa" (Conseil de l'Ordre des Avocats à la Cour de Paris). E mais: por constituir "atentado à integridade física do indivíduo e privá-lo do controle da vontade livre" (palavras de Lhermitte, no relatório da Comissão de Narcoanálise da Academia Nacional de Medicina da França, ao responder, esta à consulta dos poderes públicos sôbre o valor e legitimidade dos recursos de exploração farmacodinâmica da personalidade). Por mandato da Assembléia Geral da Associação Nacional dos Médicos Deportados e Internados Políticos, entre outras afirmativas, assim se expressaram Charles Richet e Henri Desoille: "é inadmissível privar um acusado do seu livre arbítrio, por método químico"... "o perito não tem o direito de empregar semelhante método"... "tememos que essa violação da integridade mental do indivíduo leve a futuros abusos".

Efetivamente - opinião nossa, calcada na dos que estudaram o assunto - a noção que importa guardar é a de que o interrogatório, feito com a ajuda de meios farmacodinâmicos, nenhum valor jurídico terá. E' o que acentua parecer da Sociedade de Medicina Legal Francêsa, a respeito: "... l'expert ne pourra faire état des revelations obtenues sui là materialité des faits sous l'influence de ces substances. De cette façon, l'établissement de la responsabilité ne pourra, en aucun cas, être fait sur cette seule épreuve, dont l'interprétation exige une étude critique de la part du médecin expert".

Oportuno lembrar, aqui, lição que, a respeito, nos traz Hélio Gomes8, a cujo ver, devem meios assim ser tidos à conta de verdadeira "violência química". Passa, a seguir, em revista restrições e impugnações a essa violência química: 1) Como poderá o Estado autorizar o uso de tóxicos para obter confissões judiciais, se o mesmo Estado combate as toxicomanias? 2) Se, em geral, não se dá valor a depoimento de intoxicados que produza efeito em relação a terceiros, como dar crédito a tais depoimentos em prejuízo próprio? 3) Se a lei proibe, em qualquer perícia, uso de substância capaz de prejudicar a saúde da parte, como intoxicar-se, deliberadamente, indivíduos suspeitos de faltarem à verdade, perturbando-lhes a higidez? 4) Se, finalmente, não se pode coagir pessoa alguma a confessar, como lançar mão de drogas para êsse fim?

2. Retôrno da tortura? Assim pensam muitos dos que combatem o emprêgo da narcose na prática judiciária. Como, acertadamente, escreveram Richet e Desoille, fôsse assim aceila e tornar-se-iam possíveis abusos futuros. Poderia tornar-se método policial tão sedutor que é difícil prever quanto tempo seria preciso para restrições serem postas de lado, por. . incômodas. Ora, sabido que, com os atuais "recursos" coercitivos e outros, as polícias cometem abusos inomináveis, que não fariam contando - como contam as de alguns países.. . além e àquem da cortina-de-ferro - com processo tão "interessante"?

Em instrutivo artigo recorda Tristão de Ataíde2 que, há 30 ou 40 anos passados, ensinavam os mestres serem torturas e suplícios "qualquer coisa de totalmente ultrapassado". Frisa, com tristeza, mais além, que os julgamentos soviéticos e balcânicos (só estes? - perguntamos nós, face ao que ocorre, aqui e em outros países, em circunstâncias mais ou menos semelhantes), com suas formosas "confissões", são "alguma coisa de inédito e de horrivelmente misterioso, na história da restauração da tortura, no século XX". Como não se poderia ter, no tempo de hoje, tortura primitiva, idêntica à do século XIII, é de opinião que "os suplícios também progridem". Focalizando o conhecido caso do Cardeal Mindszenty, cuja confissão teria sido arrancada à custa de um soro da verdade qualquer, mostra que a tortura evoluiu cientificamente. Demos-lhe a palavra: "O mundo marchou. A civilização progrediu. A arte de torturar passou do empirismo à perfeição. É, hoje, o orgulho do século, o sustentáculo dos Estados fortes e das "democracias populares". Ao motor silencioso, corresponde a tortura silenciosa. As "golinhas", os "troncos", os "anjinhos" foram substituídos pelas injeções, pelos gases inodoros, pelas hipnotizações secretas. É o artigo mais moderno no gênero, a última palavra em matéria de tortura: a tortura sem dor... Anestesia-se o paciente para que a operação se faça sem sentir. Quando acorda, está livre de tudo: livre da consciência, livre do remorso, livre da honra. Está confessado, jurado, confiscado, numerado para todo o sempre. Entra um homem e sai uma "coisa". Não se sabe, ainda, se o processo é transitório ou permanente. Para os que morrem, deve ser permanente. Para os condenados à tortura de viver, ninguém sabe. Ainda é cedo para saber. O símbolo do século XX não é o santo, nem o herói, nem o gênio; é o carrasco. Mas, o carrasco de fala mansa, flor na lapela, "croisé" irrepreensível, de óculos. E de luvas!..."

Rubem Braga3 escreveu, a respeito, crônica da qual extraímos os seguintes trechos: "Os acusados têm a palavra. São um ex-ministro, um ex-general, um ex-diplomata, um ex-chefe partidário, um ex-coronel de polícia, um ex-deputado. São todos homens maduros, tiveram, quase sempre, uma vida especialmente agitada e dura, com altos e baixos. Cada um, certamente, tem seu temperamento e sua experiência, mas, quando êsses homens começam a falar, são como pobres meninos de escola repetindo a mesma lição. O que há de impressionante e constrangedor nesse processo de Budapest, perfeitamente igual aos de Moscou, é a monotonia dessa simplificação do homem. Depois de passados pela máquina da organização policial, êles são exibidos à luz do dia em condições perfeitas. Não são mais indivíduos, perderam tudo o que diferencia um ser humano de outros: são pequenas e patéticas máquinas de humilhação, que funcionam do modo mais simples. Êsses processados de Moscou e Budapest não são homens que esperam ser condenados e executados: antes de terminar o processo, êles não existem mais, já foram executados, não são mais homens! Um a um, os bonecos trêmulos recitam seu monótono papel. Acusam-se: e louvam os que vão matá-los; e acusam os inimigos dêstes; e terminam pedindo a própria punição. Êsses tribunais implacáveis fazem então seu primeiro e último gesto de humanidade: mandam liqüidar aqueles monstruosos trapos de gente!"

B) Narcodiagnóstico

É lícito o emprêgo de meios de instigação do subconsciente na prática psiquiátrico-legal? Vimos, no item anterior, alguns argumentos na questão referente ao seu uso na instrução judiciária. Veremos, mais além, algo a respeito da exploração farmacodinâmica da personalidade, com intuito terapêutico. Trataremos, aqui, da questão referente à sua aplicação, visando estabelecer ou esclarecer diagnóstico nebuloso e que, de outra forma, dificilmente será deslindado.

Passemos em revista eventualidades em que poderá ser o recurso lembrado. Fique aqui lembrete de Mestre: a lista abaixo de modo algum é taxativa, mas exemplificativa; servirá, isso, a justificar possível omissão da nossa parte. Exemplifiquemos, pois:

1. No diagnóstico de uma simulação - Provocado estado hipnagógico no indivíduo que se diz portador de determinada doença, tornar-se-á possível verificar a realidade desta, ou concluir por simulação da mesma. Na segunda guerra mundial, valeram-se médicos militares americanos e ingleses dêsse recurso, não só como tratamento de neuroses e psicoses, como, principalmente, para despistar simuladores. Igual emprêgo lhe deram Heuyer, Le Bovici e Dico, por duas vêzes, em 1947, para desmascarar simuladores nos acidentes de trabalho. Diga-se o mesmo dos simuladores da loucura - se é que há simulação da loucura, pura, em normais (e se é que há "normais" cem por cento...).

2. Para esclarecer se amnésia, afasia (caso CENS), mutismo, surdez, amaurose, anestesia ou parestesia - para citar alguns exemplos - são de natureza psicógena ou fisiógena. O mesmo se diga em relação a alterações da motricidade: tiques, tremores, movimentos coreiformes, espasmos e contraturas, paresias e paralisias, convulsões ("ataque histérico"), estupor, agitação, excitação e desordens da palavra (afonia, dislalias, disartria). Lembrem-se, a propósito - por habituais em trabalhadores e militares, nestes com freqüência maior em tempo de guerra - as seguintes alterações psico-motoras (neuroses motoras) : astasia-abasia pisocógenas, camptocormia, tor-cicolo mental ou psicógeno, contraturas psicógenas de músculos diversos (abdominais, extensores do pescoço, etc). A esta lista, acrescentam Torgowla e Feder o "diagnóstico diferencial das crises excitomotoras pela narcose barbitúrica liminar".

3. Psicoses latentes - Esta hipótese é lembrada por Laignel-Lavastine, naqueles casos, raros mas incontestáveis, em que psicose em início (período médico-legal), "encore inapparente à la clinique courante et à la psycholo-gie plane, peuvent être détectées par la narco-analyse".

Os contrários ao emprêgo de recursos assim seguem, ainda aqui, desenvolvendo conhecidos argumentos que, a seu ver, tornam aquêles ilícitos. Não lhes damos razão, em que pese o nenhum valor da nossa opinião, reflexo, também nisto, da de outros, mais credenciados que nós. Fale-se em "retôrno da tortura" naqueles casos em que a narcose é usada para arrancar confissões "espontâneas" a presos (presos políticos, em particular). Fale-se - e é justo! No presente caso - não! Lembre-se, a propósito, palavras de Ey5: "Quand un expert conscient de ses devoirs et de ces responsabilités recourt à ces procedes d'exploration pour atayer d'un argument de plus son diagnostic, il est honteux de Passimiler à un tortionnaire de la Gestapo!"

Se deve a narcose ser, sem dúvida alguma, proscrita da técnica da instrução judiciária relativa à materialidade dos fatos incriminados, é lícito, plausível e até aconselhável, o emprego da mesma como meio diagnóstico (narcodiagnóstico) e terapêutico (narcoanálise). A ninguém esclarecido acudirá a idéia de negar, a qualquer dos ramos da Medicina, modernos recursos de investigação semiológica que, com o progresso, dia a dia, vêm surgindo. Fizesse-o, e seria, com razão, taxado de retrógrado. Por que recusar, então, à Medicina Legal o mesmo privilégio? Seja para aclarar diagnóstico, seja no tratamento de doenças por médico especialista - não há negar lugar ao sol à nova arma com que foi enriquecido o arsenal psiquiátrico-legal.

Lícita, pois, nos casos acima, a narcose por produtos farmacológicos, como o são exames de laboratório, a punção lombar, a radiografia, a eletrocardiografia, a eletrencefalografia, a ventriculografia, ou quaisquer meios outros de investigação julgados úteis ao diagnóstico. "Pour éclairer la dynamique des conduites se priver de la narco-analyse" doutrina, com perfeição, Laignel-Lavastine, "c'est un peu comme en astronomie se contenter de l'oeil nu pour étudier les étoiles et en biologie limitei les études morphologiques en deçà du microscope".

Quer para fins diagnósticos, ou terapêuticos, deverá a prova ser precedida de consentimento do paciente, que será cientificado, com palavras ao alcance do seu entendimento, do que se vai fazer, de como será feito e do nenhum previsível perigo (isso, não havendo qualquer das conhecidas contra-indicações) da droga que lhe será injetada. De modo algum será enganado a respeito, nem lhe poderá ser o teste imposto - sabido não ser possível obrigar quem quer que seja a sujeitar-se a exame pericial, desde que ao mesmo se recuse, seja por se lhe afigurar prejudicial à saúde, seja por razões outras que invoque.

C) Narcoanálise

A narcoanálise - ou melhor, narcopsicanálise ou "análise sob narcose" - nada mais é que modificação, com o objetivo de ganhar tempo, introduzida pelos americanos na psicanálise freudiana clássica. Método terapêutico lançado por Stephen Horsley, assinala, sem dúvida, conquista valiosa da moderna Psiquiatria. Assim a sintetiza Horsley10: "técnica eclética, baseada na observação de que uma combinação da narcose com a psicoterapia é, por vezes, mais eficiente do que os métodos formais da psicologia analítica".

Consiste em produzir narcose pela lenta e gradual administração de barbitúrico de curta duração (tionembutal, pentotal, amital, narcomunal) e, durante a fase de leve narcose, induzir, por sugestão, estado hipnóide no decorrer do qual se faz análise psicológica e a subseqüente síntese psico-dinâmica. E' preciso distinguí-la do método de Klaesi narcose sonifrênica), no qual se provoca profunda inconsciência, em período de, pelo menos, 5 dias, com escassa utilização psicoterápica.

Comporta a narcoanálise as seguintes fases: 1) indução de leve narcose; 2) indução de hipnose; 3) análise propriamente dita; 4) síntese; 5) narcose profunda; 6) repetição do tratamento, no dia seguinte, em dias sucessivos, etc; 7) reeducação14.

À pergunta - "é aconselhável a narcose química feita com o fim psicanalítico de sondagem do subconsciente?" - responda-se sim! Pouco há acrescentar aos argumentos lembrados a propósito das críticas que se fazem à mesma narcose como recurso diagnóstico, visto serem críticas e argumentos idênticos aqui.

Lembre-se apenas, de passagem, o que foi já dito a respeito: de que notórias objeções filosóficas e religiosas argüidas contra a psicanálise se levantarem, aqui, com força maior, por isso que "o emprego de injeção narcótica" para haver materializado, na imaginação do público, o que se convencionou chamar "le viol du for interieur" (Lavastine).

CONCLUSÕES

1 - É, em princípio, lícito na prática psiquiátrico-legal, o emprêgo dos testes químicos para instigação do subconsciente, com finalidade diagnóstica e terapêutica.

2 - Só devem ser utilizados, entretanto, depois de esgotados os meios correntes de observação.

3 - Sempre indispensável é o prévio consentimento do paciente, que será plenamente cientificado do que se vai fazer, de como será feito, do nenhum perigo da prova e do que, com ela, se pretende obter.

4 - Cumpre ao perito agir "com ciência e consciência" para que, dos referidos testes, não advenha prejuízo à saúde - física ou psíquica - do periciado.

5 - É preciso levar em consideração (para focalizar apenas um aspecto da questão) que se, mesmo normalmente, se observam, no decurso da prova, manifestações de ordem neurológica e psicológica transitórias, casos há - raros, é certo - em que ocorrem distúrbios neurológicos permanentes, ligados, quase sempre, a falhas técnicas e, portanto, evitáveis.

6 - Nada justificará o emprêgo dos mencionados testes como meio de instrução judiciária relativa ao conhecimento dos fatos incriminados: barbitúricos, "sôros da verdade" e quejandos funcionariam, aqui, como "violência química", modalidade de tortura - e jamais se compreenderia fosse a Medicina chamada a ajudar "gestapos" e "gepeús" em qualquer latitude!

BIBLIOGRAFIA

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    Napoleão Teixeira
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1950
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