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Sôbre a psicanálise das psicoses

Docente-livre de Psiquiatria na Fac. Med. da Univ. de São Paulo. Psiquiatra do Hospital Pinel

Como é sabido, o campo inicial de investigação e tratamento psicanalítico restringiu-se às chamadas "neuroses de transferência", estendendo-se, depois, para as demais formas neuróticas. De início, as manifestações psicóticas não foram julgadas passíveis de influência pela técnica psicanalítica. Conhece-se, nesse particular, o pessimismo de Freud e de alguns dos seus mais eminentes discípulos, quando assinalaram a falta de capacidade de transferência de tais pacientes e, portanto, sua inacessibilidade aos influxos terapêuticos.

A observação do que se passa em qualquer hospital psiquiátrico mostra o desacêrto de tais postulados, de vez que são freqüentes as atitudes positivas e negativas, manifestações de simpatia, confiança e amor de um lado, e, de outro, explosões de ódio, às vêzes com francas agressões a médicos e pessoal de enfermagem. É errônea a afirmação que esquizofrênicos têm perda completa da afetividade, demência afetiva no sentido em que concebemos a demenciação, por exemplo, de um paralítico geral em fase avançada, ou de um demende senil. As perturbações afetivas de esquizóides, esquizofrênicos e ciclóides e ciclofrênicos são passíveis de modificação e redução, espontaneamente ou sob ação de tal ou qual método terapêutico. Nesse particular, é concludente o que se observa com o uso das técnicas de choque.

De outro lado, a compreensão teórico-psicanalítica não se deteve no campo das neuroses. Abarcou sem demora tôda uma rica variedade de portadores de psicoses, afirmando, cada vez mais sòlidamente, que as diferenças entre normais, neuróticos e psicóticos são meramente quantitativas (e não qualitativas), impondo, por exemplo, na carreira do psicanalista, a exigência das chamadas análises didáticas.

Assim progrediu nossa compreensão das estruturas psicóticas, dos mecanismos defensivos do ego em neuroses e psicoses, postulando Freud, nas primeiras, conflitos com Id, com a infra-estrutura impulsiva, nas segundas havendo lutas, fugas ou amplas roturas com a realidade. A psicologia dinâmica teórica cada vez preenche mais os espaços vazios entre manifestações neuróticas e psicóticas, com a teoria das fixações e regressões de impulsos e do sistema ego-superego, com o melhor conhecimento do que se passa nas idades mais recuadas do desenvolvimento do ego no seu primeiro achado da realidade externa, em ações e reações ante o mundo, com satisfações e frustrações que se repetem desde o início da vida extrauterina. Nesse particular, os trabalhos de Freud e de Karl Abraham muito fizeram progredir nossos conhecimentos dessas primeiras fases em relação com o desenvolvimento ulterior das psicoses; êsses trabalhos foram aprofundados e completados com as investigações e formulações de Melanie Klein e escola inglêsa.

O estudo de mecanismos outros além da repressão, particularmente a introjeção, identificação, negação e projeção, a concepção de objetos introjetados e interiorizados com a compreensão das fantasias inconscientes de pacientes neuróticos e psicóticos, tudo isso veio aprofundar nossos conhecimentos e possibilitar, mesmo, uma compreensão mais profunda e integral da psiquiatria sôbre bases psicodinâmicas. Na análise de neuróticos muitas vezes encontramos tipos de pensamento, fantasias e tendências que contrastam de certa forma com um comportamento mais ou menos ajustado socialmente. Sentimos a conservação do poder de controle do ego, o que os diferencia de psicóticos, onde, mercê de fundas regressões ou dissoluções daquela instância, tais pensamentos e fantasias tendem a ser vividos em atos extravagantes, em sintomatologia psicopatológica mais ou menos ruidosa.

Compreendemos, então, que todos - normais, neuróticos e psicóticos - nos distinguimos uns dos outros pela capacidade do ego em reprimir ou sublimar conflitos e tendências ou em ceder a estas, deformando-se, tornando-se vulnerável aqui ou ali, superando-as hoje e claudicando amanhã, em comportamentos irracionais, extravagantes ou finalmente com franco selo psicótico em sentido estrito. Se a psicanálise é um método de investigação e tratamento, que no campo das neuroses, em que pese o importante trabalho de F. Alexander1 e a escola de Chicago, tem demonstrado certa necessidade dessa simultaneidade metodológica, no campo das psicoses tem-se extremado a dissociação. Progrediu nossa compreensão psicanalítica das psicoses calcada sôbre a riqueza do material de análise de neuroses, mas o que dizer do problema terapêutico no campo das psicoses?

Fôrça é reconhecer, estamos apenas iniciando tal labor e no início da estrada defrontamo-nos com obstáculos difíceis de transpor, infundindo desânimo e pessimismo entre fortes baluartes do movimento psicanalítico. Será essa a posição justa? Poderá a psicanálise oferecer à psiquiatria alguma coisa de positivo e eficiente no campo prático da terapêutica? Assim pensamos, mas é lógico que, em se tratando de um novo campo, com novo tipo de material, entrevê-se a necessidade de fundas modificações técnicas, sem todavia, nos ser possível abandonar os princípios básicos, graças aos quais foi possível à psiquiatria progredir tanto na compreensão e tratamento de pacientes neuróticos.

Damos a seguir a súmula dos relatórios de dois pacientes portadores de grave psicose, um dêles com cura social, o outro com cura definitiva, ambos tendo concluído o tratamento há mais de 3 anos, continuando bem, sem dificuldades quaisquer.

Caso 1 - O. F. J., branco, brasileiro, solteiro, 34 anos, internado no Sanatório Charcot. Tratamento psicanalítico iniciado a 13-10-1943, interrompido após 10 meses com um total de 130 horas analiticas. Psicose instalada em 1927 (havia 16 anos). Internado 3 vêzes no Hospital de Juqueri, onde se submeteu a tratamento de rotina e aos métodos de Meduna e Cerletti e Bini. Submetido, no Sanatório Charcot, ao método de Sakel, abandonou o hospital melhorado. Envolvendo-se em atos repetidos de agressão, foi reinternado para ser tentado o tratamento psicanalítico. Pai falecido há muitos anos; vive com mãe e 2 irmãos. Outro irmão, médico, insistiu para que fosse levada a efeito a psicanálise terapêutica. Estudava na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, quando, em 1927, irromperam os distúrbios psicóticos. A princípio, nervosismo, irritação fácil e, logo depois, idéias de prejuízo e perseguição com fortes tendências agressivas. Envolveu-se em múltiplos atos agressivos, alegando que tal ou qual pessoa (do sexo masculino) o olhava mais demoradamente ou então lhe sorria significativamente, o que de nenhuma forma podia tolerar "porque olha-se e sorri-se para uma mulher e não para um homem" (sic). Teve que abandonar os estudos, mostrou-se incapacitado para qualquer atividade útil, seu estado agravando-se sempre. Inadaptado e agressivo no ambiente familiar, exteriori-zava ódio, sobretudo para mãe e um irmão (o caçula). "Êle é muito chato intragável e não sei porque minha mãe gosta tanto dêle", dizia-nos sempre. Repetidas vezes agrediu esse irmão. Generalizou-se o ódio para os demais familiares, os quais, no dizer do paciente, davam sempre razão ao tal irmão. Embora em internações anteriores fossem registradas desordens sensoperceptivas (alucinações verbais auditivas), atualmente são elas raras, predominando ilusões da audição e, sobretudo, interpretações mórbidas. É egocêntrico, sensitivo, desconfiado, autista, com forte disposição a reações contra o meio. De regra indiferente ao ambiente, tendo para idéias de auto-referência em relação com "uma terrível cisma que as pessoas pensem que eu sou pederasta" (sic). Fisionomia rígida e contraída, olhar esquivo e baixo, mão direita algo contraturada sugerindo gesto de agressão abortada. Do quadro mórbido fazem parte ainda: estereotipias cinéticas, atos compulsivos e atitudes ne-gativistas, fundamental incapacidade de adaptação ao ambiente hospitalar, reflexo de idêntica incapacidade frente à família e à sociedade. O ódio aos familiares aumentou muito com sua atual reinternação. Diagnóstico unânime dos psiquiatras consultados: esquizofrenia, forma paranóide, em fase de cronicidade.

Súmula dos dados obtidos pela investigação psicanalítica - A princípio trouxe às sessões dados referentes aos conflitos familiares. Queixou-se da incompreensão dos seus, injustiças de que vem sendo vítima, preferência da mãe para o irmão mais jovem. Assim, procura explicar atos agressivos como reação ante tais frustrações e por causa deles "todos estão contra mim" (sic). Um dêles, sucedido logo no comêço do tratamento, é bastante expressivo. Certa noite despertou com "aquêle desejo de bater no tal irmão" (sic), não sabendo porque. Abandonou o leito, bateu na porta do quarto em que êle dormia. O irmão, semiconsciente, abriu-a e recebeu tremenda bofetada do paciente que, em seguida, voltou ao leito e dormiu tranqüilamente, enquanto todos permaneciam despertos e surpresos ante tão estranha e mórbida atitude. Nos primeiros 2 meses, trazia sempre pensamentos e sentimentos de ódio para familiares, amigos da casa e, por fim, para desconhecidos que o olhavam na rua e eram pelo paciente agredidos. "Não tolero que êles me olhem porque estão pensando que eu sou uma mulher", era a explicação que sempre dava para as aparentemente imotivadas agressões.

Iniciamos com muita prudência a análise dessa situação. Atraímos sua atenção para seus fortes traços narcísicos: seu amor próprio exagerado, sua preocupação com a própria pessoa, a pensar que o mundo estava prestando atenção a seus problemas. Acentuamos o irracionalismo e morbidez de tal situação, indiferentes à sua não aceitação ou mesmo irritação ante o que dizíamos. Sua vaidade, egocentrismo, solidão íntima eram responsáveis pela sua inadaptação, frisamos então. Tornâmo-lo consciente que pensamentos e sentimentos de desconfiança já estavam surgindo em seu espírito contra o analista, bem como uma preocupação sobre se estávamos do seu ou do lado da odiada família. Tais fantasias e dúvidas expressaram-se por dificuldade em falar em sessões sucessivas? em forte irritabilidade para com o médico.

Dissolvida tal situação, a análise pôde prosseguir. Gradativamente, foi aceitando sua insegurança íntima, sua dependência, sua necessidade de carinho e afeto, e ódio de reação contra tais necessidades que o faziam sentir infantil e feminino. Seguiu-se longo período em que foi discutida a "cisma de que os homens pensam que sou mulher ou pederasta". Admitiu, por fim, que êle próprio é que desconfiava de sua virilidade, da sua potência sexual e projetava tal insegurança sobre os demais. Logo confessou períodos de impotência sexual em que se sentia humilhado ante a parceira, sendo compelido à prática de perversões orais e a coito per anum, para que não fosse julgado um pederasta, uma mulher. Depois aceitou que tal insegurança guardava relação com tendências à inversão sexual e confessou práticas ativo-passi-vas na infância e adolescência. Julgava-se impotente, desconfiava que isso dependia daqueles atos outrora praticados e desejados, tinha medo de desejá-los novamente, julgava-se à beira do homossexualismo, odiava-se por isso. O conflito era precariamente resolvido mercê de mecanismos de projeção.

Depois, o assunto das discussões concentrou-se sôbre o irmão odiado. Disse que tinha raiva dêle, quando, durante as refeições, êle bebia vinho ou cerveja. "Êle faz isso para me causar inveja e me irritar porque sabe que o médico me proibiu"; daí, sua agressividade reativa. Logo ficou demonstrado que beber álcool é prova de virilidade, sentindo-se inferior ao irmão, menos viril que êle. Tal frustração guardou relação com outras tantas radicadas ao seio materno, baseando-se o ódio ao irmão no ciúme porque êle era querido da mãe, possuía seu bom seio nutridor - e não o frustrador, como o que sempre pensou o paciente possuir. A ambivalente atitude para o irmão foi o modelo para suas reações ante os objetos em geral, com fácil reativação e liberação da agressividade. Mostrou forte dependência oral-receptiva da mãe, fixado a ela, querendo seu bom seio, seu carinho e amor, com medo e angústia de ser abandonado em benefício do irmão. Tal período da análise foi discutido e ventilado insistente e consistentemente depois do que foi discutida a situação cdi-piana. Esta era quase consciente ao paciente. Aceitou a fixação à mãe, o caráter sexual de permeio com necessidades de proteção e carinho, a componente hostil para o pai-irmão estando mais intensamente reprimida, em seu sentido de defesa contra impulsos de amor. Esta foi analisada em conexão com sua transferência para o irmão, amado inconscientemente c odiado no plano mais superficial. Este amor ao pai-irmão por identificação materna foi a situação ante a qual denotou maior resistência. Procuramos convencê-lo, assinalando o que se estava passando na transferência, agora com fortes traços de positividade, mas com típico sentido passivo-feminino ante a boa "imago" paterna.

Colaborava conosco, enquanto fora das sessões mostrava-se interiorizado, irritadiço, sem dirigir palavra a quem quer que fôsse. Sua insegurança expressava-se nos atos compulsivos, repetindo-se uma e mais vezes, precisando saber se podia confiar no que dizia ou fazia. Agarrou-se, todavia, mais e mais ao analista como a porta de entrada para o mundo e como a alguém em que pudesse se apoiar e confiar. "Sei que posso confiar no Dr. porque êle está ao meu lado e contra minha mãe e irmão". Sua transferência tinha algo de duro, rígido, obsidente, insistindo para que lhe déssemos conselhos, ordens para que os pudesse seguir ou obedecer. Pôsto lhe desagradassem muitas de nossas interpretações, aceitava-as, dizendo: "Bem, se o Dr. diz, é porque é certo e é para o roeu bem". A princípio dizia não recordar qualquer fragmento dos seus sonhos. Agora, trazia-os, todos com conteúdo manifesto heterossexual: enfermeiras do hospital, antigas vizinhas, namoradas do irmão. "Agora sei que vou ficar bom porque sonho estando com mulher" (sic). Disse que queria ficar bom para se casar e trabalhar em sua profissão de desenhista. Compreendeu cada vez mais lucidamente o caráter mórbido, doentio, de suas reações, embora ainda se comportasse anormalmente ao abandonar o hospital, sem, todavia, manifestar conduta agressiva ou nitidamente antissocial.

O irracionalismo de seu comportamento foi sempre demonstrado, a ponto de, nos últimos tempos do tratamento, antecipar-se nas interpretações. Isso coincidiu com sua maior capacidade de dominar as reações agressivas ou mesmo não sentir tais tendências de forma bastante acentuada. Abandonou o hospital, 10 meses decorridos do tratamento. Seu estado melhorou muito, posto ainda não lhe fosse possível vencer de todo a hostilidade para com o irmão. Espontaneamente resolveu não mais falar com êle como defesa. Durante cêrca de 2 anos, periòdicamente, procurava-nos no consultório para receber orientação e conselho ante situações as mais insignificantes. Sua transferência continuava com laivos de rigidez e obsessão quando insistia que precisava nos obedecer cegamente. Fomos procurando libertá-lo dessa situação, o que por fim plenamente conseguimos. Decorridos cêrca de 4 anos do término do tratamento, continua passando bem. Trabalha em sua profissão, como desenhista, comportando-se satisfatòriamente.

Conclusões - Personalidade paranóide, tendo apresentado grave psicose, desde 16 anos passados. A análise encontrou: narcisismo, regressão ao nível oral com atitudes de dependência e receptividade ante a mãe, acentuados traços anal-sádicos, homossexualismo projetado com fortes reações agressivas para com o meio. A componente do Édipo quase consciente, mas reprimida a atitude passivo-feminina para o pai-irmão por identificação com a mãe, situação esta interferindo dinamicamente na estrutura psicótica e provocando, por mecanismos de projeção, a interpretação mórbida e agressividade para o meio. Sentimos que grande parte da sintomatologia deve ser considerada como fenômenos de restituição (agressividade, auto-referência, conflitos familiares, adesão rígida na situação de transferência, esforços por se readaptar ao meio social e por sublimar no trabalho, etc). É como se, na busca dos objetos, lutasse contra a regressão e recorresse os pontos mais intensamente carregados, onde houve maior detenção libidinosa. A análise, neste caso, ajudou o trabalho espontâneo de cura, apoiando o paciente no esforço por encontrar o mundo externo.

Caso 2 - L. V., branca, brasileira, solteira, 19 anos, examinada em 23-9-1943. Pais sadios, um irmão epiléptico. Primeira "crise nervosa" em 1938, atribuída pela família a esgotamento nervoso por estudar e preocupar-se muito com a doença do irmão. Houve remissão após 3 meses, o quadro tendo tido morfologia de depressão com traços histéricos. Desde 3 meses passados, caiu em funda depressão: invencível tristeza, inibição geral, desinteresse pelo ambiente, elaboração ideativa lenta, arrastada, adinamia geral, sem iniciativa ou ânimo para qualquer atividade. Idéias de suicídio, recusa de alimentos, sendo mister ser ajudada nos mais elementares cuidados do asseio corporal. Tal estado agravou-se no último mês, o pai (médico) trazendo-a do Interior para ser tentado o tratamento psicanalítico. Narrou, logo na primeira sessão, que o noivo lhe perguntara o que faria se êle tivesse um filho. Veio a saber que esse era o caso e, estimulada pelos pais, desfez o noivado. Sobreveio arrependimento, manifestou atitude ambivalente para o noivo ("amo-o muito mas o odeio ainda mais", foi sua expressão), instalando-se a sintomatologia psico-patológica.

Embora associasse escassa e dificilmente e insistisse em seu desinterêsse pela vida com idéias de autoeliminação, estabeleceu-se o contacto afetivo com o médico, o que justificou nosso prognóstico otimista. Decorreu muito dificilmente o primeiro mês, pela associação difícil, pelo desinterêsse quanto ao tratamento, pelo pessimismo geral e desalento da paciente, tão grande inibição quase nos desencorajando a prosseguir. Repetia temas algo estereotipadamente'. Não se conformava com a perda do noivo, não o podia esquecer, não podia viver sem êle, mas afastava a idéia de com êle reconciliar-se pela humilhação recebida. Na casa da tia (irmã do pai) onde estava hospedada, sua atitude revelava sadismo, agressão mais ou menos velada para com esta parenta: intimidava-a falando sôbre seus desejos de morte com ameaças de realizá-los, repetia, uma e mais vêzes, pormenores do noivado, despertava-a altas horas da noite para acentuar a gravidade de seu caso, obrigava-a a exaustivos cere- moniais nas abluções e banhos, no vestir-se, no aiimentar-se, etc. Era de ver-se a fisionomia fatigada e preocupada da tia a fazer estrênuos esforços por sustentar a situação.

No início do 3.° mês de análise, a paciente admitiu ser possível, de sua parte, fazer esforços "para ajudar o tratamento" (sic). E disse: "Dr., eu preciso sarar, sair desta situação, arranjarei um namorado ou noivo para esquecer aquêle que me abandonou". Manifestou, então, acentuada angústia durante as sessões e mêdo à noite, ao recolher-se ao leito, responsável, no seu dizer, pela insônia durante toda a noite, irredutível pelos sedantes de rotina que, à nossa revelia, recebia. Não soube precisar, a princípio, o conteúdo de tais estados emocionais para, com o maior progresso da análise, referir, algumas sessões após, que "estava com mêdo (e não desejo) de morrer enquanto dormia" (sic). Surgiu, então, mêdo de "ficar louca e ir para o Juqueri" o que significava modo do médico (que trabalhava no Hospital de Juqueri) como reação ao início de correntes positivas na situação de transferência. Tal situação foi prudentemente discutida. Sensação de grande pêso na cabeça com fortes cefaléias foram relacionadas pela paciente com o fato de pensar muito, com fantasias que relutava em expressar, atitude racionalizada analisada como impossibilidade de falar mais demoradamente por falta de ânimo e astenia geral. Em sonhos angustiosos sente-se agarrada por alguém, desperta aos gritos. Não dá associações, diz ignorar tudo isso, desinteressa-se pela interpretação, "nada disso tem que ver com meu caso" (sic).

Interrompido o tratamento pelas festas de Natal e Ano Bom, voltou à sua cidade natal e interessou-se por um médico, amigo do pai. Isso possibilitou a análise da transferência. Surgiram as fantasias que dantes tanto relutou em expressar. Desejos de morte para a mãe (que vivia na pessoa da tia) por ciúme em relação ao irmão enfermo, por sua grave doença transformado em centro de interesse por parte da família. A mãe era responsável por seu pai não mais a querer como dantes. A descarga dessa forte agressividade contra a mãe coincidiu com a melhoria do seu comportamento sádico frente à tia. Surgiu, depois, rico material demonstrativo de sua intensa fixação paterna: carinhos, presentes e situações várias da vida recordadas agora, eram prova de que êle a queria muito, não a desprezava em benefício do irmão. Tal situação edipiana interferiu na rotura do noivado, com o qual o pai jamais concordou, resignando-se apenas "para contentar a filha" (sic). A rotura foi prova de que amava o genitor e o preferia ao noivo, mas reagiu com culpa, ambivalência e depressão pelo sentido incestuoso de tal amor. O ódio à mãe voltou agora em relação com tal fixação ao pai e essa situação foi insistente e consistentemente interpretada à paciente. Cada vez mais a adinamia, certa paralisia da vontade e inibição geral foram compreendidas com enérgicas medidas defensivas. Foi-se sentindo mais aliviada e tranqüila como se o ego se fosse libertando da terrível pressão da instância censora e punitiva.

O problema sexual foi discutido a propósito da agravação do seu estado durante o período catamenial, a repressão dos desejos eróticos então incrementados dependendo da radicação à situação edipiana não resolvida. Idéias de ser uma "fracassada na vida, não mais poder ser feliz, de jamais poder satisfazer sua necessidade de amor e carinho" aparentemente relacionada com a perda do noivo, mostraram-se, agora, em relação com o complexo de culpa e necessidades autopunitivas. A perda do objeto ambivalentemente amado foi sentida como abandono pelo bom pai, pela boa mãe, como punição pelas suas intensas fixações intrafamiliares, em parte dependentes de seus impulsos de ódio para a mãe particularmente.

Após 8 meses de análise (110 horas analíticas) remitiu o quadro depressivo. Voltou à companhia dos seus e durante algum tempo passou bem. Mas logo a mãe, preocupada, procurou-nos dizendo do estranho comportamento da filha. Irreverente, desembaraçada em excesso, quiçá demasiado franca nos seus dizeres e comportamento, freqüentando clubes esportivos e reuniões dansantes, com excessiva alegria e superatividade, andando, passeando sempre, com exquisita necessidade de movimentar-se. Tal quadro hipomaníaco traduzia a cura da depressão anterior. Algum tem- po decorrido, recuperou a normalidade psíquica. Ao exame mostrou íntima e humana compreensão dos seus problemas, afirmando-nos que jamais voltaria a adoecer. Dois anos após continuava bem. Contraiu matrimônio e mostrou-se bem ajustada à vida conjugai, até o presente momento (mais de 4 anos decorridos), nada de anormal apresentando.

Interpretação - A perda do objeto (noivo) representou aparentemente o trauma desencadeante da depressão, esta podendo ser considerada como esfôrço falhado do ego por superá-lo. Identificou-se, a princípio, com a mulher de quem o noivo teve o filho, o que foi sentido inconscientemente como tendo tido um filho do próprio pai com quem o noivo, como objeto amoroso, se identificara. Fez uma regressão ao nível narcísico, introjetando o objeto amado e agora odiado, que "não mais podia esquecer" ou "impressão de que só com êle se casaria" (introjeção, identificação). Sentir-se fracassada, incapaz de vencer traduz igualmente tal identificação com o objeto perdido, como assinalou Freud, pois sentia que o pai sempre teve razão em condenar tal matrimônio por ser o noivo rapaz sem valor, sem ânimo para o trabalho, indolente, displicente, "um vencido enfim" (sic). O supereu, regredindo, também tornou-se rígido, mais severo ainda, causticarido, torturando o eu assim identificado com o objeto. O ódio para o noivo voltou-se contra seu próprio eu, ódio do supereu contra o eu. A associação diíícil, retenção de palavras foi interpretada com retenção do conteúdo do grosso intestino na fase anal-sádica para onde a paciente regrediu (difusão de impulsos, ambivalência), as idéias de suicídio e autopunição insuficientemente neutralizadas pela componente libidinal visando neutralizar ou atenuar o sadismo do supereu. Em determinado momento da análise, imediatamente antes de confessar fantasias de ódio para a mãe, disse: "Dr., eu desejo matar alguém, assassinar qualquer pessoa". Depois, fantasiou em matar-se a si mesma, para depois confessar os desejos de morte para a genitora. Retenção de palavras, inapetência e os mecanismos supra-referidos de introjeção revelam a intensa fixação à zona bucal (intestinal), na fase oral-sádica postulada por Karl Abraham2. Isso explica as componentes agressivas, predominância da organização pré-genital e narcísica de sua personalidade a procurar solução psicótica para seus problemas e conflitos. Houve regressão ao nível anal-sádico primário (perda de objeto) e oral secundário ante a frustração no conflito atual. A liberação do eu mostrou-se no episódio hipomaníaco final com transição para a recuperação da higidez. Certa tonalidade compulsiva no quadro está em relação com certa carga da fase anal secundária (retenção) como esforços defensivos contra a posição depressiva. Isso parece confirmar a opinião de Melanie Klein3 sobre a importância dos mecanismos maníaco e obsidentes nas tendências de recuperação contra uma posição depressiva primária na mais remota infância.

Se podemos postular teòricamente a ausência de diferenças essenciais entre o neurótico e o psicótico (Angel Garma * mostrou que também no psicótico há conflitos intensos do ego com o id, a rotura fom a realidade sendo fenômeno simultâneo ou decorrente do conflito com os impulsos), do ponto de vista prático temos que admitir sensíveis diferenças mais que suficientes para a justificação da necessidade de modificações técnicas no tratamento psicanalítico de tais pacientes.

Certos princípios básicos no tratamento dos neuróticos só em casos especiais poderão ser mantidos em se tratando de psicóticos. Dificilmente conseguiremos a posição deitada, a associação livre de idéias, como é clássico na psicanálise de neuróticos. Muitas vezes não há qualquer desejo de colaboração, havendo até impossibilidade dela no início do tratamento. Nesse sentido assinala Fenichel5 a necessidade de um maior ou menor período de preparação do ego, a fim de que possa êle ser confrontado com os produ- tos reprimidos, com os aspectos irracionais do seu comportamento. O psicanalista tem que se orientar no sentido de maior flexibilidade técnica, adaptan-do-se às circunstâncias em que vive o paciente, ao grau maior ou menor da regressão psicótica, à intensidade da rotura com a realidade, o que se refletirá em sua capacidade de colaboração. Precisamos manter um mínimo de contacto afetivo com o paciente, sem o que se tornará inútil qualquer esforço terapêutico.

Psicóticos em fase avançada, fortemente interiorizados em seu mundo autístico, ou com psiquismo cindido em quadros de desagregação mental, perderam de certa forma a capacidade de responder aos influxos do meio externo e, portanto, aos do psicoterapeuta também. Estão em regressão aos períodos mais recuados da infância, ao narcisismo primário, às fases orais do desenvolvimento dos impulsos e até, em certos estados catatônicos, aos períodos da vida intra-uterina. Tudo isso representa, como mostrou Freud 6, intensos movimentos defensivos ante a realidade, "a libido do objeto transformando-se em libido narcísica" com cargas sobre o ego, mas, em maior ou menor grau, surgem os fenômenos de retorno aos objetos, os esforços de cura que se expressam em toda uma gama de sintomatologia psicopatológica (fantasias de reconstrução do mundo, delírios, alucinações, relações com os objetos, linguagem, sexualidade, certos sintomas catatônicos como obediência automática, ecolalia, ecopraxia, etc).

Não se pode mais sustentar a incapacidade dos psicóticos em transferirem problemas e conflitos sôbre o psicanalista. A simples observação, mesmo sem o instrumento psicanalítico, do que se passa em qualquer hospital psiquiátrico, contraria essa primeira e pessimista opinião de Freud. Pacientes estão interessados em abandonar o hospital, procuram os médicos para tal ou qual queixa de ordem somática ou psíquica, reagem com alegria ou tristeza e com cólera e agressividade também, de acordo com a atitude do médico. Suas reações são, dc regra, inadequadas, é certo, mas demonstram, mesmo assim, que na maioria dos casos não há perda da afetividade, senão repressão ou negação dela, transferências e deslocamentos sobre situações e conteúdos intelectuais outros que os buscados por um psiquismo normal, hígido.

Tal fato aparece com muita eloqüência no curso das terapêuticas de choque. O mêdo da morte experimentado violentamente nos casos convulsivos pelo cardiazol venoso e pela corrente elétrica ou, mais lenta e suavemente, durante os comas insulínicos, seguidos pelo retorno à vida, com o prazer do paciente no reencontro dos objetos, é, a nosso ver, uma das maiores forças dinâmicas e eficientes no mecanismo da cura. Temos observado sistematicamente, nos pacientes em tratamento, essa necessidade de apoio sobre o médico, como tanto influenciam o paciente palavras de animação e conforto, influxos persuasivos sobre o paciente, tornado assim receptivo pelos fortes deslocamentos e dinamismos da libido objetai e narcísica, da agressividade satisfeita ou neutralizada durante os acessos e que impelem o paciente à adesão ao mundo, particularmente à pessoa do médico ou enfermeiro. Está aí todo um campo a inspirar adequada assistência psicoterápica aos pacientes e melhor organização dos tratamentos de choque, que aumentarão de muito a eficiência das terapêuticas biológicas e cuja ausência é, a nosso ver, responsável pela pouca eficiência dos tratamentos em massa, sem influxo psíquico favorável por parte de médicos e pessoal de enfermagem.

Têm capacidade de transferência os psicóticos e talvez com maior intensidade que os neuróticos. E isso possibilita o tratamento psicanalítico. Podemos dizer, de um modo geral, que quanto maior fôr a regressão psicótica, tanto mais se afastará a técnica das normas pré-estabelecidas e do formalismo clássico no tratamento de neuróticos, impondo, assim, mais fundas e radicais modificações. Não terá, como é óbvio, qualquer sentido pedirmos a um catatônico que se deite num diva e nos forneça associações, a um delirante excitado que se mantenha tranqüilo e nos diga o que se passa pela sua zona consciente. Tendemos a conseguir essa situação ideal, mas, em prática, na análise de psicóticos, só raramente o conseguimos e, assim mesmo, quando não há fortes regressões ou dissolução do ego, predominando mecanismos neuróticos a matizar a sintomatologia psicótica.

Igualmente, a análise não se afasta tanto das regras clássicas quando predominam os fenômenos de restituição ou de recuperação a expressarem tendências de cura. Assim, nos dois casos relatados, pôde a análise ser conduzida sem modificações essenciais, além de certos expedientes técnicos. O primeiro paciente, por vêzes, recusou a posição deitada, o que significou em determinados momentos defesa contra a passividade feminina. A atitude do psicanalista foi interpretar, analisar tal situação, com o que o paciente aceitou a posição clássica. Adaptamo-nos aos nossos pacientes mas jamais renunciaremos à compreensão das determinantes conscientes e inconscientes do seu comportamento.

A forte inibição da segunda paciente não permitiu, muitas vêzes, que pronunciasse uma so palavra durante tôda a hora. Então iniciávamos a sessão dando interpretações a êsse silêncio, procurando fazer penetrar em sua zona consciente as fantasias inconscientes, reprimidas, responsáveis por tal comportamento. Um dos seus mais prolongados silêncios foi reduzido espetacularmente quando suspeitamos que relutava em nos falar sôbre seu ódio à mãe. Interpretamos diretamente tal situação: a paciente concordou e forneceu uma avalanche de associações com descargas emocionais fortes sôbre as razôes porque a odiava tanto e, com isso, uma delicada e difícil situação analítica foi resolvida e pôde a análise prosseguir.

Compreendemos, assim, certas contradições aparentes entre analistas quando, como Fromm-Reichmann 7, acentuam a necessidade de fundas alterações técnicas e de outros, como Schmideberg8, que não julgam necessárias sensíveis modificações. Opinamos que, em neuróticos e psicóticos, o psicanalista deve ser flexível no sentido de se adaptar às condições do paciente para conservar um mínimo de contacto emocional mas sem perder de vista a necessidade de analisar, interpretar o comportamento total, dinamicamente manipulando as resistências, as situações de transferência que nos levam diretamente à vida instintivo-emocional, sem o que não influenciaremos analiticamente o neurótico ou o psicótico. Diz Alexander9 que, se o psicótico apresenta grandes diferenças em relação ao neurótico, não podemos a êle aplicar técnicas criadas e elaboradas na análise do segundo. Isso é evidente, como assinalamos, parcialmente, isto é, no sentido em que o paciente seja analisável, que haja um ego capaz de receber influxos analíticos, mas, em essência, visando os mesmos fins; a teoria da técnica é a mesma, conscientificação de conteúdos intelectuais e constelações afetivas, levantamento de defesas patogênicas contra impulsos ou realidades repudiadas, para que o ego se reintegre e se readapte e se reajuste ante os impulsos e ante a realidade do mundo. A flexibilidade visa a tornar possível a análise, garantir um mínimo de cooperação e, nesse sentido, as situações são extremamente individualizadas, sendo impossível, no momento, qualquer pretensão a maior sistematização técnica.

Nossa pequena experiência com psicóticos não nos autoriza, assim, a quaisquer considerações de ordem mais geral, mas as melhorias e remissões ou interrupções súbitas por impossibilidade do paciente em continuar colaborando mesmo psicòticamente, possibilitam alguns comentários. O psicanalista não pode manter aquela atmosfera de neutralidade clássica na psicanálise de neuróticos. O psicótico tende a fugir da realidade, isolando-se em seu mundo autista ou sentindo-a hostil, agressiva, de regra pela predominância da organização impulsiva de tipo pré-genital e predomínio de mecanismos de introjeção e projeção. Necessita encontrar gradativãmente no médico, cada vez mais, um bom objeto que lhe dê apoio e confiança, neutralizando os aspectos sádicos e negativos de suas sensações e comportamento. O médico deve desenvolver nos psicóticos sólidos laços positivos, mostran-do-se amigo, interessado na solução dos seus problemas, conscientificando e controlando a transferência negativa, mas permitindo que o paciente descarregue, com a maior liberdade possível, as cargas agressivas frente ao mundo.

Uma falha na análise consistente da transferência negativa em paciente histérica (histeria de angústia) portadora de personalidade paranóide foi causa de interrupção espetacular de um tratamento que vinha sendo levado a efeito desde um ano. Agarrava-se a paciente ansiosamente ao médico como defesa contra a angústia, mas, em camada mais profunda, o ódio, já de si muito intenso, pela regressão, aumentava na medida das frustrações na transferência. Quando surgiu o homossexualismo, na transferência para a enfermeira do analista, defendeu-se com idéias de perseguição que se generalizaram e se concentraram no médico, com reações agressivas tão intensas que se tornou impossível o prosseguimento do tratamento.

As recomendações de Reich10 sôbre a importância dos aspectos negativos nos neuróticos devem ser acentuadas em conexão com a psicanálise dos psicóticos. Haverá liberdade quanto à posição deitada ou sentada e frisada ante o paciente sua liberdade de falar ou não. Em vez de ser formulada a regra fundamental das livres associações, achamos preferível o doente compreender, desde o início, que somos um médico ou amigo que o queremos ajudar; comunicar-nos-á o que quiser e quando quiser, sem esperar de nossa parte outras reações que um comportamento amigo, visando libertá-lo de seus conflitos e problemas. Parece que certos neuróticos e psicóticos conscientes reagem mal, com certa ansiedade e mêdo, ante a formulação muito direta da regra fundamental.

Sentimos que psicóticos mostram boas remissões sem que a análise se aprofunde muito, como o nosso primeiro paciente. Sua melhoria correu paralelamente à sua compreensão do sentido mórbido de suas reações, pelo levantamento de identificações e projeções defensivas e possibilidade de boa identificação com o médico. O tempo em que sentiu necessidade de nos procurar e receber conselhos foi o tempo em que a incorporação do médico como bom objeto perdurou, desligando-se por fim, expulsando-nos como supereu parasita, com a crescente estabilidade do seu próprio ego. Assim, embora com boa remissão, cremos que a análise, por ter sido muito breve, não lançou luz sobre a etiologia profunda da psicose, no sentido, por exemplo, das recentíssimas formulações de Melanie Klein11.

Talvez a razão disso seja que o essencial na cura dos psicóticos é a volta ao mundo e, como tal, o médico, como sua principal porta de entrada, assume grande valor terapêutico na medida em que fôrem possíveis boa transferência positiva, sólidas indicações, nova tomada de contacto com os bons objetos, quaisquer que tenham sido, na mais remeta infância, os motivos causadores da doença. Nesse sentido parecem justas as afirmações de Alexander e Frech1 sôbre a dissociação metodológica em psicoterapia psicanalítica quanto à investigação psicológica e o labor terapêutico. A conscientificação da realidade reprimida, a discussão consistente das sensações ante o meio imediato, amor ou ódio frente a médicos, enfermeiros, antigos amigos ou pessoas da família, tudo isso parece ter maior importância que a análise das fantasias inconscientes, dos objetos introjetados, que vai assumindo papel de grande monta na análise de neuróticos.

Como já referimos é-nos possível sentir a importância de tal situação em psicóticos observando pacientes em tratamento de choque. A melhoria vai correndo paralelamente à conscientificação do ambiente, este sendo absorvido gradativamente com crescente predomínio de sensações e ações positivas. Orientar-nos-emos no mesmo sentido na psicanálise de psicóticos: conscientificação progressiva da realidade reprimida e repudiada, manutenção duma atmosfera de sentimentos positivos entre analisando e analista, evitando, no possível, situações de frustrações por parte do médico além das mínimas necessárias, discussão ampla dos problemas, de acordo, todavia, com o grau de receptividade do paciente, não exteriorizando o médico reações de ansiedade e medo ante o paciente.

Tudo isso põe problemas difíceis se o tratamento fôr realizado em hospital, principalmente em hospitais psiquiátricos mantidos pelo Estado, com excessivo número de leitos. Evidentemente, a organização de um serviço de psicanálise em hospital psiquiátrico requer todo um conjunto de medidas de organização cuja discussão transcenderia os fins e objetivos dêste trabalho. E' todo um vasto e fascinante campo de investigações e labor terapêutico que se vai abrindo e cujos primeiros resultados já vamos vendo em algumas clínicas americanas.

As considerações teórico-práticas aqui expendidas e calcadas sôbre nossa pequena experiência ainda não sistematizada de psicanálise de psicóticos sugerem a necessidade de maior atividade nesse importante setor, quer por uma maior instrução em psicologia profunda de médicos e enfermeiros dos serviços psiquiátricos, quer pela urgente necessidade da criação de serviços de psicoterapia analítica para os doentes mentais. Fora mesmo do labor terapêutico em sentido estrito, muitas das reações dos pacientes serão mais fácil e profundamente compreendidas se o médico ou enfermeiro estiver familiarizado com noções básicas de psicologia dinâmica analítica. Citaremos, a seguir, interessante caso que confirma essa assevção.

M. A. B., solteira, com 29 anos, foi internada no Hospital Psiquiátrico Pinel, em acentuada excitação psicomotora, tendo denotado alta agressividade para com o pai. Em determinado momento penetrou na biblioteca em sua casa e pôs fogo em todos os livros do pai e, quando interceptada, gritou que devia destruir todos os livros porque eram "indecentes e imorais". Ao exame, mostrou-se irritada, agressiva frente ao genitor, acusando-o de abandonar os filhos, de ter feito sofrer a mãe, de não pagar as contas da casa, não fornecer roupas para ela e sua mãe. No ato de internação o psiquiatra assinalou: grande agitação em relação com idéias de perseguição orientadas para o pai, mostrando-se frente a êle altamente agressiva. A anamnese insistente e algo mais profunda revelou o seguinte. A paciente, sente, quase conscientemente, atração sexual para o pai; outrora o amava muito, mas agora o odeia e despreza. Acusa-o de ter amantes e trair sua mãe. Uma serviçal da casa disse-lhe ser o pai perigoso sexualmente por lhe ter feito propostas amorosas. Adquiriu, de repente, a certeza de que o pai tem uma amante: certa moça que passou pela sua casa e sorriu algo significativamente para a paciente (componente homossexual das idéias persecutórias projetadas). Compreendeu que êle entrega iodo o dinheiro a essa mulher, negando-o a ela e a sua mãe. Em serninarcose (narcoaná-lise), disse ter medo de ser agredida sexualmente pelo pai. Se todos saíam, fechava-se em seu quarto com "aquele medo que êle me viesse agarrar" (sic). Todavia, ficava sempre em casa quando êle também ficava, o que mostra os desejos reprimidos e a ambivalência de sua fixação. Não pagar contas é não lhe dar amor, enquanto a queima de livros ("por serem indecentes e imorais") significou ato de castração simbólica com a destruição do pênis. A paciente abandonou o hospital e não pôde ser psicanalisada, mas vemos, claramente, o conflito edipiano influindo nessa irrupção psicótica (esquizofrenia paranóide, foi o diagnóstico do psiquiatra assistente), colorindo o quadro, impelindo para atos simbólicos de agressão, revelando falha das forças repressoras ou outras de natureza defensiva. Sem dúvida, tais achados e conhecimentos orientariam no bom sentido o tratamento e a compreensão dos conflitos e problemas da paciente.

CONCLUSÕES

1. Embora a princípio se concentrasse o labor psicanalítico em pacientes neuróticos apenas, tal orientação modificou-se fundamentalmente, atualmente tomando impulso a psicanálise de psicóticos.

2. Os psicóticos são capazes de exteriorizar afetos de transferência, tal como os encontramos em neuróticos. São eles possíveis graças aos fenômenos de recuperação (e não aos de regressão), que traduzem as tendências de cura nos pacientes. Tal fato pode ser eloqüentemente observado durante as terapêuticas de choque: a regressão extrema nos acessos convulsivos e nos comas insulínicos sucedida pela volta à vida, ao mundo, tendências de restituição com transbordamento emocional sobre o médico e pessoal de enfermagem.

3. Há necessidade de modificações técnicas na análise dos psicóticos. Na maioria dos casos não se adaptam êles à técnica clássica elaborada para os neuróticos. O psicanalista tem que ser flexível a fim de tomar contacto com o paciente e mantê-lo a fim de que possa o tratamento prosseguir. Assim, utilizará expedientes técnicos adequados. O paciente terá liberdade quanto a deitar-se ou não, associar idéias ou permanecer em silêncio, suas reações devendo ser, todavia, interpretadas no momento oportuno.

4. É indispensável a manutenção da transferência positiva. 0 médico se mostrará amigo, cooperador, mostrando que sinceramente deseja ajudar o paciente, permanecendo atento às primeiias manifestações da transferência negativa, embora encorajando o paciente no sentido de descarga da agressividade. O paciente compreenderá gradualmente que ódio, raiva e cólera estão no seu interior e que utiliza mecanismos de projeção, incorporação e identificação. A destruição de tais mecanismos de defesa se acompanha, habitualmente, de grande alívio e francas melhorias.

5. A tarefa fundamental na análise de psicóticos é a conscientificação da realidade repudiada e, para isso, o problema da transferência e contra-transferência é fundamental. Não raro conseguimos francas melhorias sem que a análise tenha alcançado grande profundidade, o que, de regra, não é o caso em se tratando de neuróticos.

6. Pôsto haja necessidade de maior flexibilidade e de expedientes técnicos, a teoria da técnica não difere, em essência, dos conhecimentos adquiridos no labor com neuróticos. Temos que incorporar ao ego os produtos inconscientes reprimidos, livrando-o mais e mais de um supereu severo e arcaico. Com psicóticos assumem grande importância os produtos repudiados da realidade. Quanto menor fôr a regressão psicótica, tanto mais a técnica se aproximará da que é usual com pacientes neuróticos.

7. É urgente a organização de serviços de psicanálise em hospitais psiquiátricos. Médicos e enfermeiros orientados pela psicologia profunda poderão compreender melhor e mais justamente seus pacientes, mesmo quando recebendo outras formas de tratamento. A psicanálise deve, a nosso ver, penetrar nos hospitais psiquiátricos e levar a psicopatas e psicóticos a soma de benefícios e compreensão que ela já trouxe e continua proporcionando a neuróticos e pacientes outros não necessitados de internação.

BIBLIOGRAFIA

Trabalho apresentado, em resumo, ao V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (S. Paulo-Rio de Janeiro, outubro-novembro, 1948).

Rua Araújo 165, 10.º andar - São Paulo.

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  • Sôbre a psicanálise das psicoses

    Darcy Mendonça Uchoa
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1950
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