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Psicogênese das úlceras pépticas

ICatedrático de Clínica Psiquiátrica da Fac. Med. da Univ. da Bahia

IIAssistente de Clínica Psiquiátrica da Fac. Med. da Univ. da Bahia

IIIDa Secção de Gastroenterologia da Associação Baiana de Medicina

Coube a William Brinton, em 1857, relacionar, pela primeira vez, ansiedade e úlcera gastroduodenal; 60 anos mais tarde, Kaufmann apresentou o "elemento psíquico como um fator importante" no desenvolvimento da referida doença. Mais recentemente, a partir de contribuições diversas - de internistas, gastroenterologistas, psiquiatras e psicanalistas - passou-se a realçar o papel do psíquico, elevando-o às culminâncias de possível agente etiológico da doença ulcerosa.

Estudou-se o considerável acréscimo de úlceras pépticas em estatísticas que partem, mais ou menos, de 1913 e alcançam os ápices de freqüência nas duas guerras mundiais. Mais grave que o aumento do número de doentes mostrava-se, durante a última guerra, a ascensão quase vertical dos acidentes hemorrágicos dos ulcerosos (não raro, mortais), fato verificado em vários países. A elevação da incidência, mesmo em tempo de paz, foi relacionada com a crescente complexidade da cultura, acentuando os estudos de tensão e multiplicando as razões de ansiedade.

Cumpria apresentar demonstrações em sentido inverso: povos primitivos ou de baixo nível cultural estariam indenes à doença. Mesmo do Brasil, dos hospitais da Fordlândia, saiu documentação dessa tese: em 26.000 hospitalizados, apenas dois ulcerosos, ambos alienígenas.

Simultâneamente, trabalhos de setor psiquiátrico assinalavam um fato notável. Os grandes ataques histéricos, as manifestações neuróticas tempestuosas, tão conhecidas na primeira conflagração, quase desapareceram na segunda, quando a psiquiatria de guerra passou a registrar considerável aumento da sintomatologia de linguagem visceral: taquicardias, dispepsias, desordens na cinética intestinal, etc. O comportamento humano mudara sua linguagem. Interiorizava-se esta ou, como querem os behaviouristas, surgia um comportamento interior visceral, nova forma de expressão das emoções. Assim, enquanto os internistas anunciavam o progressivo aumento na freqüência das úlceras, os psiquiatras concluíam que o escoamento das emoções deixara de ter como via principal o sistema motor voluntário e passara à maior utilização do vegetativo.

Essa massa de achados, parecendo confluir para as mesmas conclusões, sugeria que o fator psíquico devia ter intervenção considerável na gênese ou, pelo menos, na evolução da úlcera péptica. Infelizmente, foram os psicanalistas os que, primeiro e mais numerosos, se traçaram o propósito de investigar o modo de ação do psíquico sôbre a úlcera péptica. Entraram neste domínio com todos os seus ritos e hermetismos, inundando-o de explicações não comprovadas e obscurecendo o que se propunham esclarecer.

Até que ponto é autêntica a intervenção do psíquico sôbre o funcionamento gástrico? Modificações do funcionamento gástrico são capazes de produzir úlceras? Por que vias se realiza a intervenção do psíquico? Quais as condições psíquicas que causam ou favorecem o desenvolvimento da úlcera? Que relações existem entre neuroses e doença ulcerosa?

Tais são as questões controvertidas que estão a exigir esclarecimento.

É preciso porém insistir que, neste trabalho, tomaremos a expressão úlcera péptica como sinônimo de úlcera gastroduodenal crônica, recidivante ou doença ulcerosa, foco do problema psicossomático, deixando de lado outras ulcerações nas quais se pode igualmente invocar o fator ácido-péptico.

Fazemos desde já restrições ao têrmo "psicogênese" porque a causalidade suposta não tem cabimento no caso; não basta que um fator colabore na história natural da úlcera para que seja elevado à categoria do genético. Os somaticistas, que haviam levantado várias teorias para explicar a etiologia da úlcera gastroduodenal, eles próprios fizeram sua autocrítica rigorosa e honesta e hoje confessam sua ignorância no assunto: não sabem a etiologia da doença ulcerosa, embora conheçam vários participantes nela. Aconteceu então que os psicanalistas se aproveitaram do campo para fazer florescer uma doutrina psicogeneticista cujo maior mérito é escapar ao método crítico dos somaticistas. A explicação psicanalítica aplicada à doença ulcerosa deve o seu relativo sucesso, por um lado, às dificuldades que têm os gastroenterologistas em repelir argumentos feitos numa linguagem que lhes é estranha, preferindo, por excesso de confiança, aceitá-los, e doutra parte, à condescendência com que os psiquiatras olham a superestimação do elemento psíquico.

O PSÍQUICO INFLUI SOBRE O FUNCIONAMENTO GÁSTRICO

Nos experimentos básicos de Pavlov, estímulos de vária natureza eram condicionadores ou inibidores da secreção gástrica pela apresentação simultânea ou ausência dos alimentos. Com tais verificações, passou a ter demonstração objetiva a influência dos fatores psíquicos sobre o funcionamento do estômago.

Segundo Ivy, o gênero de psíquico atuante nos cães de Pavlov teria certa especificidade, visto que "o ver ou o pensar no alimento (em presença do apetite) é o estímulo". Tratar-se-ia aí de uma acepção fisiológica de "psíquico", que não se deve confundir com os estímulos "emotogênicos", ou sejam, os estados emocionais sem relação direta com o instinto da nutrição. Não percebemos a vantagem trazida por esta sugestão, porque os instintos, como os sentimentos, são manifestações da afetividade, embora sejam os instintos hierarquicamente menos diferenciados.

Nas mãos dos investigadores que se sucederam, as pesquisas em animais revelaram a inibição motora e secretora como resultante única de situações emocionais disfóricas diversas.

No que se refere ao homem, os fatos até soje registrados resultaram da aplicação de variada metodologia. Citaremos apenas os representantes principais de cada linha de pesquisas.

O método mais antigo é a simples observação clínica. Uma notícia desagradável recebida no curso da refeição condiciona rápida perda de apetite. O reflexo do vômito surge com significado de repulsa quando ocorrem percepções ou representações de conteúdo repelente. Sintomas gástricos variados surgem a partir de situações conflitivas.

Outra massa de observações foi feita no curso de hipnose. Heyer verificou que qualquer emoção, eufórica ou disfórica, induzida em hipnotizados, era capaz de causar súbita diminuição da resposta secretora ante alimentos sugeridos. Wittkower, estudando emoções sugeridas em hipnose ou em vigília, chegou a várias conclusões, entre estas a de que os mesmos estados emocionais, se variam os indivíduos, motivam respostas gástricas diferentes.

Mittelmann e Wolff são os representantes atuais mais importantes de outro tipo de pesquisa: o exame do suco gástrico, colhido através de sonda, em pessoas submetidas a situações emocionais agudas. Convém notar porém que as emoções só alteram praticamente a primeira fase da secreção, a chamada "fase cefálica" ou vagai. Restam com autonomia as fases gástrica e intestinal, as que fabricam a secreção noturna e que são da maior importância na ulcogênese.

O estudo do funcionamento do estômago em portadores de fístulas é a outra técnica que se tem utilizado. Conhecida desde o trabalho de Beaumont, em 1833, evoluiu até o presente, alcançando seu ponto alto com os estudos de Wolf e Wolff sôbre o caso Tom. No curso de longo período, os autores procuraram observar as relações entre os diferentes estados emocionais, de uma parte, e, de outra, as reações vasculares, secretoras e motoras do estômago. Medo e tristeza eram acompanhados de isquemia da mucosa, inibição da secreção ácida e contração, ao passo que ansiedade e ressentimento correspondiam a hiperemia, hipersecreção e hipermotilidade. Esta regra porém nem sempre funcionava. Os ulcerosos pioram igualmente tanto em situações de medo e tristeza como de ansiedade e ressentimento. Posteriormente, Wolf e Glass, registrando meticulosamente as reações afetivas e a conduta de Tom, após continuadas pesquisas concluíram que a influência dos conflitos psíquicos sobre a composição química do suco gástrico não apresenta variações relacionáveis com o grau de consciência em que êles se encontram.

A análise de tôdas essas séries de pesquisas permite a afirmação de que realmente fatores psíquicos podem intervir no funcionamento do estômago, condicionando alterações, inclusive hipersecreção. Entretanto, não há elementos para concluir que, na média das pessoas, corresponda a cada situação emocional típica uma resposta gástrica específica.

ALTERAÇÕES DA SECREÇÃO GÁSTRICA INFLUEM NA PRODUÇÃO DA ÚLCERA

O estudo da patogenia da úlcera inclui, há mais de um século, uma discordância permanente entre duas correntes de pensamento.

De uma parte, estão os que julgam essencial para a produção da doença a ocorrência prévia de disfunções locais nervosas e vasculares, estas condicionadas por fatôres vários, carenciais, alérgicos, tóxicos e hormonais. A ação do suco gástrico sobre a parede só se tornaria possível em virtude da diminuição de resistência da mucosa.

Colocam-se noutro ponto de vista os que admitem como possível a constituição da úlcera na decorrência exclusiva do ataque ácido-péptico à mucosa. Bastaria uma secreção hiperativa e duradoura do suco gástrico para condicionar o aparecimento da doença. Conhecida a influência das emoções sobre a secreção estaria facilitada a aceitação da doutrina psico-geneticista. Este raciocínio seria, porém, perigoso. Se toda a teoria psico-geneticista só deseja chegar a que "o psíquico produz ácido", o jejum também o produz, os irritantes gástricos também; de modo mais direto e claro os gastroenterologistas já esmiuçaram tudo isto e confessam sua ignorância quanto à etiologia da doença. O único elemento fixo entre acidez e úlcera é que nos doentes sempre há algum ácido livre. Mas, há normais hiper-clorídricos e ulcerosos hipoclorídricos, embora o freqüente seja a úlcera se acompanhando de hipercloridria e supersecreção.

Deixamos de considerar as ulcerações porventura produzidas em estômagos de animais mercê de artifícios que expõem a mucosa ao contacto prolongado com soluções ácidas. Elas não têm paralelismo com a doença ulcerosa crônica e recidivante, apesar de serem "pépticas". Elas só demonstram que um ácido é capaz de atacar uma mucosa, à proporção que se concentra êsse ácido e se desvitaliza essa mucosa.

Do visto se conclui que a hipersecreção pode ter papel na patogenia da úlcera gastroduodenal. Mas inexistem razões para pensar que, na ausência de certas condições favoráveis, locais e gerais, só com isso se possa gerar a doença ulcerosa. Entre as condições favoráveis incluem-se algumas que, como a hipersecreção, podem decorrer de disfunções do sistema nervoso vegetativo.

O PSÍQUICO INTERVÉM NO FUNCIONAMENTO GÁSTRICO POR VIA VEGETATIVA

Já os cães de Pavlov apresentavam alterações em seus reflexos gástricos condicionados depois da secção dos vagos ao nível do estômago. O fator psíquico - é claro - enlaça-se às disfunções da secreção e da motilidade gástricas, servindo-se das vias vegetativas. A grande maioria dos autores vê na hiperfunção parassimpática o principal responsável pelos fenômenos de que resulta a úlcera gastroduodenal. Mas não há unanimidade nisso, visto que outros notaram certa predominância do simpático a correlacionar com o aparecimento da úlcera.

As incertezas da concepção neurogênica, quanto aos efetores vegetativos, também não se atenuaram após a experimentação clínica e fisiológica, visto que a úlcera pode aparecer em pacientes vagotomizados; os animais vagotomizados não estão indenes à produção experimental da úlcera, pela técnica de Williamson Mann. Observações, como a de Winkelstein, segundo as quais os ulcerosos apresentam uma hiperexcitabilidade parassimpática anormal justificariam, em princípio, a vagotomia seletiva. No entanto, a serem verdadeiras as observações de Bürger, Churchmann, Dalla Vedova, Gundelfinger e Kawamura, que vêem uma hipersimpaticotomia com papel genético nos seus ulcerosos, a recidiva após vagotomia é perfeitamente compreensível. Não se percebe, nas observações publicadas sobre doentes vagotomizados, relato de estudos pré-operatórios detalhados, do ponto de vista vegetativo. E registre-se que autores alemães apresentaram produção experimental de úlceras redondas, graças a excitações elétricas e até farmacológicas, ora do simpático ora do vago. Vai a vagotomia em descrédito progressivo, como método isolado de tratamento, sem que se tenha, ao menos, apurado se coincidem os casos curados com aqueles de suposta causa psíquica. Se é que o parassimpático funciona como elo entre vida mental e estômago, estaria exatamente, nos casos de psicogênese evidente, a perfeita indicação do método. Nos ulcerosos que recidivaram após vagotomia, o fator psíquico é nulo ou quase nulo, como a priori se deve supor? Tais lacunas, francamente criticáveis, talvez decorram das obscuridades inerentes ao sistema nervoso vegetativo mas também podem resultar da falta de trabalho conjugado de fisiologistas, gastroenterologistas e psiquiatras.

Apesar dessas dúvidas, as relações entre via vegetativa e úlcera são, há muito, evidentes, desde que Cushing, e outros depois dele, mostraram que lesões diencefálicas, ao nível dos comutadores vegetativos, eram suscetíveis de se acompanhar de perfurações agudas do estômago. Os estudos posteriores sôbre a anátomo-fisiologia cerebral esclarecem as ligações das vias vegetativas com o hipotálamo e revelaram as conexões dêste com áreas do córtex. Em animais, a excitação farádica das áreas 4 e 6 de Broadman aumenta a atividade peristáltica do estômago. E, segundo Fulton, à ablação bilateral do lobo frontal, se seguem, além de hipermotilidade gástrica, apetite mórbido, com ingestão excessiva de alimentos. Nas experiências idênticas de Mettler, em alguns animais, a necrópsia revelou erosões da mucosa gástrica.

É claro que se tornou um apôio aos adeptos da psicogênese da úlcera o conhecimento dos centros vegetativos corticais. Quaisquer que sejam os mecanismos psíquicos atuantes, reflexos afetivos, não seriam dispensáveis os enlaces entre vida psíquica e vida vegetativa. Se os centros vegetativos se denunciam no córtex as conexões se fazem num nível superior da atividade mental.

Assim, a relação do sistema nervoso vegetativo com o estômago, comprovada anatômica e fisiològicamente, assegura que os fenômenos do tonus, da irrigação, da motilidade e da secreção gástricas, que lhe são subordinados, se podem enlaçar à esfera mental, sendo êle, vegetativo, o intermediário. Daí o sentido da fisiologia córtico-visceral dos autores russos. Envolve problemas muito amplos, como o da demora do trânsito no estômago; abertura e fechamento do piloro; aumento e diminuição do pH do suco gástrico; a conseqüente desproteção da mucosa; distúrbios da vasomotilidade; possibilidade de pequenos enfartos da mucosa e submucosa. Assim, além da hipersecreção e várias outras questões fisiopatológicas invocadas na patogenia da úlcera, se atrela o fator vegetativo e, através dêle, o fator psíquico ganha uma espécie de salvo-conduto que o torna participante admissível de todos os fenômenos que têm por palco o estômago.

A intervenção do vegetativo sôbre o estômago é concreta e provada. A do psíquico sôbre o vegetativo também é provada. A cadeia fisiológica psíquico-vegetativo está, pois, autenticada como existente. Torna-se discutível se por essa cadeia transita, necessàriamente, a patogenia de tôdas as úlceras gastroduodenais ou, ao menos, de algumas.

É aqui o divisor de águas que separa a área de fatos comprovados contidos nas chamadas concepções neurogênicas daquela outra área, das concepções ditas psicogênicas, muito mais movediças, instáveis, subjetivas e flutuantes, tornando o terreno favorável às aventuras das construções psicológicas.

TIPOS DE PERSONALIDADE E CONFLITO

Antes mesmo de se provar de modo incontestável a gênese psíquica das úlceras - de tôdas ou de algumas - já se tem apresentado, tipos de personalidade ou situações conflitivas específicas, como elementos causais eficientes. Draper, que viu, ora na masculinidade ora na feminilidade, o fator psicológico ulcerígeno, acabou por abandonar os dois, sugerindo o papel do mêdo crônico, sem dúvida muito mais plausível. Sullivan e Mc Kell, mais recentemente, aceitando a multiplicidade dos fatôres etiológicos em jogo, admitem, no que se refere à contribuição psicogênica, a existência de quatro possibilidades: nuns, a incapacidade para "'satisfazer uma fome insaciável" de ascensão; noutros, as personalidades tendentes à oposição; noutros, o desejo de afeto; no 4° grupo, a úlcera decorreria de fatôres extra-psicológicos.

Mas, desde 1934, é a hipótese de Alexander a mais difundida, pelo que merece comentário mais extenso. A partir da análise de 9 casos - 6 de úlcera duodenal e 3 da chamada neurose gástrica - esse autor estabeleceu uma situação conflitiva típica, que teria papel patogenético em todos os casos de doença ulcerosa. Tal situação seria a que se segue. O desejo infantil de ser amado é correspondido com a dádiva do leite materno, pelo que se fundem afetividade e função digestiva. Na idade adulta, o ego rejeita o desejo de amor, que implicaria num desejo de dependência. A tendência reprimida empreende a regressão de modo que a vontade de ser amado coincide com os desejos orais e de alimento materno. De tal fato resultam a excitação crônica das funções gástricas e a úlcera como conseqüência.

O celebrado tipo de Alexander - do indivíduo frustrado na infância e que recalca suas relações de dependência, para apresentar-se como auto-suficiente e de iniciativa desenvolvida - êste tipo conflitivo encontrou confirmadores e uns poucos contraditores. A escola gastroenterológica norte-americana quase só bebe nessa fonte e a reputa procedente. Mesmo o grande Ivy, em seu belíssimo capítulo sôbre o assunto, hesita em ferir de face a pretensiosa doutrina. Aliás a tese que a psicanálise defende no estudo do ulcus é a mesmíssima que adota na hipertensão arterial, asma, manifestações alérgicas, etc. O debate do problema psicológico do ulcus poderá, assim, trazer luz sôbre o discutível valor geral das concepções psicanalíticas quanto à gênese de tais doenças.

Erguemo-nos, neste setor, adversários da Psicanálise (com a qual simpatizamos em muitos aspectos), porque a acreditamos eivada de equívocos, alguns dos quais vamos referir.

Investiga-se um ulceroso com as técnicas das associações de idéias, da análise dos sonhos, da devassa da vida. Suponhamos que se encontra um ulceroso em manifesto conflito de dependência com o patrão ou com a espôsa. Suas associações de idéias no divã e em relaxamento, perpassam por acontecimentos sôltos do presente e do passado, repisam situações idênticas de frustração repetidas e afinal alcançam eventos infantis de colorido similar, isto é, de dependência frustrada. Tanto basta aos psicanalistas para increpar aos eventos infantis de frustração um papel genético para a morbidez neurótica consubstanciada aparentemente na frustração atual. Subentende-se uma linha evolutiva contínua de atitudes viciosas a atrair e provocar inevitavelmente frustrações repetidas. A atual frustração é mera decorrência duma atitude viciosa e indelével organizada na infância pela primeira frustração.

Êsse postulado valeria para a úlcera do estômago (ser alimentado na infância = ser alimentado ou amado ou protegido ou dependente da mãe) e para toda investigação de base psicanalítica. Opor-lhe-emos três objeções fundamentais.

a) Quando um indivíduo comete um ato condenável e se arrepende dele e se torna, por exemplo, portador de sentimento de culpa, faça-se a experiência de levá-lo de modo colaborador a associar idéias no diva e ver-se-á que lhe ocorrerão preferencialmente associações que recordam outras culpas, outros atos culposos, outros remorsos, etc, porque - isto é lei de psicologia - o matiz afetivo do paciente facilita as idéias do mesmo matiz e inibe as idéias antagonistas. Surgem, no exemplo dado, as idéias que ressoam afetivamente com o estado afetivo de quem está associando idéias sob a constelação do sentimento de culpa. Mas isto não prova que tais eventos surgidos à associação de idéias sejam genéticos do sentimento de culpa atual. Só pelo fato de haverem surgido à lembrança e de remontarem à infância, só isto lhes assegura a categoria de genéticos dos sentimentos atuais? Mas é isso que a psicanálise proclama. Percebe relações de dependência atuais sem ver que o próprio conhecimento da existência da úlcera aumenta relações de dependência quanto à vida, quanto ao médico, quanto à dieta, quanto às cautelas, quanto às renúncias prescritas, etc., e a isto tudo só concede valor relativo, pois que as matrizes das relações de dependência estariam sempre na infância: o indivíduo seria um imaturo a reeditar inconscientemente traumas e situações fixadas como padrões de um comportamento que lançou âncoras desde cedo.

b) Já o fato do psicanalista investigar doente que se sabe ulceroso suscita esta pergunta: êste homem quando não tinha úlcera vivia tão dramaticamente as mesmas relações de dependência ou elas ganharam Valencia com a situação de estar doente? O fato do psicanalista dizer que suas investigações se reportam a tôda a vida do doente e aí ter encontrado tais dependências dramáticas recalcadas, nada prova. Uma pessoa pode, depois de ter sido pobre, conseguir viver desafogadamente do ponto de vista econômico, vir a sofrer um desastre econômico e então, no "chômage", reviver dramaticamente a antiga situação de penúria que, nas épocas de fartura, não tinha mais Valencia alguma. Quem conferiu Valencia ao passado de penúria foi a atual situação do "chômeur". A penúria dos primeiros tempos estava desvitalizada como vivência. Mais que isso, num simples dia de monotonia e de chuva, acorrem dolorosamente ao espírito ocorrências que quando se estiver numa praia em dia de sol, nada valem vivencialmente. Os doentes de úlcera, vulnerados exatamente nas suas relações de dependência profundas e extensas, doentes que foram à psicanálise só por causa da úlcera, terão forçosamente revitalizadas tais relações de dependência que lhes dão fundo afetivo na associação de idéias e emprestam Valencia - como no rico que empobreceu - a qualquer relação de dependência passada, do mesmo matiz afetivo. Como conceder autonomia de Valencia às vivências do passado se estas - como no caso do ex-rico - só ganham vigor porque a atual situação é dramática?

Os doentes de Alexander eram todos portadores de úlcera ao serem psicanalisados. E foi na base do que foi encontrado então que foram estatuídas as famosas relações de dependência recalcadas ou frustradas e a supercompensação que, evidentemente, se revelaram desde que o indivíduo se tornou doente.

c) As relações de dependência são contingentes à vida moderna. Todo o existir se torna funcional e sofredor exatamente porque são cada vez mais difíceis e cada vez mais numerosas e complexas essas relações de dependência. Seguro de vida, seguro-doença, salário-família, indenizações, estatutos de funcionários, regimentos internos, códigos administrativos, códigos de ética, legislações sobre promoções, posturas, avisos e portarias e leis de assistência e proteção, proliferam nas sociedades modernas e vinculam o indivíduo a dependências onipresentes. Ninguém escapa a tais relações de dependência, no amor ou na profissão, na vida orgânica ou social. Encontrá-las-emos em homens sadios e livres, em superiores e subordinados, casados e solteiros, moços e velhos. A exposição crescente do homem às complexidades crescentes da vida na comunidade abre ao indivíduo superfícies de fricção que os estatutos, legislações e previdências pretendem regular com justiça e sabe-se como isso enseja neuroses de indenização, frustrações e ressentimentos. Contestar a capacidade morbígena psicológica dessas relações de dependência quando são violentadas é despropositado. Mas invocá-las como genéticas da ulcus é mais ou menos como dizer que o respirar oxigênio também é indispensável na gênese da mesma úlcera. Ainda maior é o disparate se se consegue reduzir, com os artifícios dialéticos psicanalíticos, qualquer relação de dependência do adulto, a relações de dependência infantis, mesmo que se introduzam aqueles mecanismos de supercompensação que não são tão mórbidos em si, mas também contingentes a todo humano existir. A ser verdadeira tal relação genética - dependência frustrada e supercompensação gerando úlcera - ulcerosos seríamos todos nós.

Os psicanalistas revelam-se exigentes no identificar a situação conflitiva específica, impugnando a tese da personalidade típica. Mas são eles próprios que, na mesma concepção, estabelecem eqüivalências como: ser amado igual a ser alimentado, dependência afetiva de uma mulher (esposa ou não) igual a dependência da vida infantil, isto é, edipeana. Quem não trepida em apagar diferenças tão evidentes como as que existem entre o ser alimentado e o ser amado mostra-se intolerante no aceitar tipos de personalidade preferencial para úlcera e estabelece prioridades para situações conflitivas, fazendo tabula rasa daquilo que é mais contingente e impressionante na clínica; ou seja que as bases da personalidade psicofísica é que qualificam os aspectos psíquicos e somáticos, e são elas que dão a aptidão a conflitos típicos. As bases da personalidade são dadas pelas infraestruturas instintivo-afetivas e temperamentais que se assestam sobre radicais físicos, nervosos, vegetativos e humorais, com todos os seus elementos estruturais arquitetônicos e bioquímicos. Há uma base "organísmica", que funciona como "registro de um órgão", ou seja, a superestrutura psicológica assenta sobre uma infraestrutura orgânica cuja disposição é mais ou menos fixa. Assim sendo, as "situações conflitivas" geram respostas somáticas que dependem basicamente das estruturas nervosas humorais, hormonais, orgânicas, cuja execução funcional se faz dentro de limitações marcadas pelo temperamento, pela aptidão a conexões, rapidez de condução nervosa e fixidez de vínculos, qualquer que seja o estímulo. Esta infraestrutura neurohumoral é que responde como aparelho efetor às influências psíquicas. Mas é ela também quem dá fundamento ao tipo de personalidade. As qualidades da emoção agem sobre organismos fisiològicamente restritos.

A imensa gama afetiva não tem à sua disposição uma extensa gama fisiopatológica. A famosa doutrina do "stress" e tôdas as similares mostram como são poucos os registros orgânicos - síndrome de alarme, de adaptação - e como as cadeias de eventos químicos e fisiológicos, respondendo ao "stress", se repetem como registros de um órgão - como diria Kraepelin - a despeito de serem diversos os agentes qualificados como "stress" (físicos, químicos, psicológicos, etc). Os postulados de Alexander subentendem que essas relações de dependência do tipo que êle apresentou são específicas para a úlcera gastroduodenal. Isto significa que só o estômago estaria preposto a responder a tal conflito e responderia com uma úlcera ou com uma dispepsia simples. Diga-se, entretanto, que úlcera e dispepsia são condições sem equivalência etiológica estabelecida.

Semelhante tentativa com bem maior latitude, fôra apregoada por Gustav Heyer e mesmo por J. H. Schultze, para os quais poderia adscrever-se um órgão em correlação fixa com determinada emoção: amor e coração, angústia constritora e constrição dos vasos inclusive das coronárias, choro e tireóide; o próprio Freud correlacionara a ambição com a enurese e, portanto, bexiga. A lista de fantasias vai muito mais adiante e alguns desses autores também se propõem estabelecer semelhanças mais do que de vocabulário ou de simbolismo entre determinadas emoções e determinados órgãos. Alexander segue-lhes as pégadas e não vacila em falar numa espécie de fome crônica de amor em eqüivalência tácita à outra fome secretora de suco gástrico. Embora em Alexander tal fome não se dirija a alimento e sim a amor, provoca contínua secreção ácida. Vai mais além e encena uma explicação que duma vez por todas autentica tal equivalência, a saber: que nos seus pacientes essa fome de amor (dependência afetiva) age sobre o estômago como o experimento de Silbermann com o seu cão esofagostomizado, isto é, com fistula esofagiana, a ingerir incessantemente aquele alimento que, do esôfago, era lançado ao exterior, através da fistula, frustrando o estômago que se punha em regime de hiperfunção e hipermotilidade, ocasionando uma úlcera. Alexander quer a gênese da úlcera gástrica para os seus casos com a dinâmica dos de Silbermann, sem mais o sentido metafórico, muito embora fome de amor seja algo diferente de fome de comer. Seus doentes estariam sempre à espera de afeto e de alimento. Mas, ainda que perfeito o simile, a tese não seria inexpugnável, visto que o experimento de Silbermann não produz úlcera fora das mãos de seu ator.

Enfim, a aceitarmos a teoria de Alexander, em qualquer paciente em que se verifique essas relações de dependência recalcadas e supercompensadas daquele modo específico, é para a secreção e motilidade do estômago que se encaminham as respostas. Gerariam ou não úlcera a depender dos demais fatores necessários. Com isso se está a negar o seguinte fato rotineiro. Sabe-se que uns indivíduos atemorizados, digamos, por um exame, empalidecem, outros enrubecem, outros têm náuseas, outros taquicardias, outros diarréias, etc. Aplicado o princípio das correlações de Alexander esta situação típica de dependência do exame só deveria gerar um tipo de resposta, ou então, ao contrário, o empalidecer, por exemplo, só poderia surgir numa determinada situação. Sabemos que indivíduos dados a reações de palor, empalidecem diante de estímulos os mais diversos. Aliás nesse mesmo domínio da úlcera gástrica, Wittkower fêz investigações que clamam exatamente pelo contrário do modo de ver de Alexander: a emoção sugerida ora em hipnose, ora em vigília, desperta respostas à prova de Katsch-Kalk. E Ivy resume assim os achados: ora os mesmos fatos provocam idênticas respostas num dado indivíduo; ora, noutro, emoções diversas são respondidas com alterações idênticas. Isto constitui uma refutação do princípio segundo o qual um tipo de resposta gástrica depende de um tipo de situação conflitiva. Enfim é coisa curial que um estímulo sempre igual possa gerar diferentes respostas em indivíduos diversos. A resposta é individualizada.

Pensamos que o modo de ver de Alexander deriva do afã de excluir o fator dito constitucional, que os psicanalistas não negam na teoria mas aceitam de muito má vontade, excluindo-o na prática. Exatamente um constitucionalista, e o maior dêles na época atual, Kretschmer, nos "Psycho-therapeutischen Studien" faz menor o papel das constituições, concessão feita à escola de Freud, mas não chega a admitir que tipos de situações emocionais desencadeiem em todos os indivíduos as mesmas reações somáticas, porque a clínica o refutaria de pleno. Poderão os psicanalistas argumentar que só conflitos inconscientes é que são capazes de se tornar ulcerígenos. Já aqui as questões resvalam para o domínio da crença, quase diríamos das superstições, e aí deixaremos o caminho aberto. Não é possível segui-los nos seus arrozados senão adotando, por nossa vez, as teses e métodos psicanalíticos, isto é, abraçando a psicanálise para poder entender o dialeto de organismo que só a psicanálise decifraria.

É o próprio Alexander que, admitindo uma situação conflitiva típica para a gênese da úlcera, situação tão individualizada e eficiente que prescinde de constituição pessoal ou a sobrepuja em importância, esse mesmo Alexander invoca essa mesmíssima situação típica de dependência e sua dinâmica específica para explicar a gênese da hipertensão arterial. Acreditamos muito mais nos princípios adotados então, a saber: uma mesma situação conflitiva gera efeitos diversos a depender do indivíduo; as respostas aos estímulos são tão individualizadas quanto os casos investigados.

É verdade que há neuróticos que ignoram que são ulcerosos. Mas não é regra. Mesmo em indivíduos portadores da úlcera, estigmatizados vegetativos, sensíveis e vulneráveis, como se pede para o figurino psicológico do candidato à úlcera, curada esta e vulneradas depois aquelas relações de dependência, a úlcera pode não ressurgir como em caso nosso conhecido. Isto prova que até nesses casos a psicogênese só não basta. Por outro lado surgem afirmações assim: Kirk pensa que o spldado com úlcera não é diferente dos outros sem úlcera. Jairo Ramos, um simpatizante, a seu modo, da psicanálise, mostrou a alta percentagem de ulcerosos na classe pobre, menos diferenciados psiquicamente e, diz êle, "de vida pouco emocional, pouco sujeitos à estafa mental e aos choques psíquicos".

Sabe-se da pujança da Psiquiatria alemã, incontestàvelmente a melhor do mundo. O seu "Zeitschrift für Psychotherapie", nascido em 1950, ocupa-se extensamente da psicoterapia nos mais diversos aspectos da problemática psicossomática e até hoje não feriu o da assistência psicológica aos portadores de úlcera gastroduodenal.

Os alemães, em sua maioria, aceitam a influência do fator psíquico sôbie a úlcera mas não a brutal tese da psicogenia da úlcera gastroduodenal. Embora sejam eles os introdutores e os melhores manipuladores das proposições psicogeneticistas na úlcera gastroduodenal e em outras síndromes (falou-se nisso inseguramente desde Rokitanski, claramente com von Bergmann e com O. Schwartz depois de Freud) e autores de tôda a patologia funcional, não ousaram esse extremismo da psicanálise que, na América do Norte, tomou características regionais, mesclando-se manifestamente ao behaviourismo e, latentemente, à ordem de idéias que já havia mal servido a Weir Mitchell e Beard. O bom senso lapidar de Ivy contesta as três proposições dos psicogeneticistas.

1) A primeira premissa em que assenta a teoria psicossomática da úlcera nem sequer foi claramente estabelecida, a saber: especificidades de tipo de conflito ou de personalidade ou de emoção.

2) É sugestiva, mas de modo algum conclusiva, a premissa de que certas emoções se possam associar a hipermotilidade e hipersecreção, muito embora Ivy tenha elaborado em pessoa a experimentação relativa a tal demonstração e verificado a extrema dificuldade de estabelecer "tipos padrões" individuais de secreção e motilidade do estômago.

3) Tampouco foi jamais estabelecido que excessiva secreção gástrica de jejum pré-existe à lesão ulcerosa ou coexiste com sua cura. Fica pais estabelecida a existência do arco reflexo psiquismo (sistema nervoso central e sistema nervoso vegetativo), secreção e motilidade gástricas. Mas não fica estabelecida se uma qualidade específica desse psíquico atua genética e eficientemente por via vegetativa no* sentido da úlcera. Noutras palavras, o psíquico intervém no estômago mas não se sabe se é capaz de gerar a doença ulcerosa. E o método de sabê-lo não é, necessariamente, o psicanalítico, pois que este se lança à investigação, a nosso ver, com postulados equívocos (situações dadas como típicas são contingentes a todo homem nas sociedades atuais), com problemas mal colocados (relação fixa de certas emoções com certos órgãos); torna velhos preceitos errados como dignos de fé (o que vem da vida infantil é necessariamente genético); procura anular, omitir ou bagatelizar o que é claro em tanto úlcera gastroduodenal (constituição e herança); e, por fim, pressupõe que cumpre apenas provar á interferência do psíquico na secreção e motilidade gástrica, pois isto bastaria para se comprovar a psiccgênese da úlcera gastroduodenal, o que também se tem mostrado falso.

REAÇÕES GERAIS DO ORGANISMO. NEUROSE E ÚLCERA GASTRODUODENAL

São tantos os autores que percebem a ação evidente da emotividade nos seus ulcerosos, que não há contestação para isso. Vêm daí a busca afanosa da personalidade do ulceroso e a tentativa de estabelecer um tipo de predileção. Contraditórios e incomprovados são os tipos apresentados quando se os confronta entre si. A mesma imprecisão apontou Ivy, que acredita nem se tenha bem definido a premissa da situação conflitiva apresentada por Alexander. Aliás, no que se chama "oral receptivity" também tudo é impreciso. Mas não há fugir à impressão geral de que muitos dos ulcerosos têm traços neuróticos, embora igualmente imprecisos.

Oferecemos aqui uma hipótese vasada em moldes gerais e que facilmente pode ser verificada. Trata-se de explicar a possível hipertonia vegetativa que é, parece-nos, o denominador comum que impressiona a todos os observadores como neurose, como hiperemotividade, labilidade de humor ou reatividade caprichosa ou exaltada, visto que essa hipertonia é suspeitada como de relevo nas questões de motricidade e secreção gástricas.

Parece evidente e em ressonância com todo o problema da úlcera, que o vegetativo está forçosamente em cena em tal questão. Rokitanski e Cannon já o haviam vislumbrado. Se o vegetativo pode estar em causa geneticamente na úlcera, é bem possível que, junto com isto, seja o responsável pela acentuação universal das reações viscerais comumente exteriorizadas pelas neuroses (vasoneuroses, trofoneuroses, etc), maximé pelo chamado nervosismo constitucional, conquanto surjam prioridades, conforme o doente, neste ou naquele departamento (vasomotor, secretório, tonus muscular estriado ou liso, etc). Eram conhecidas as chamadas diencefaloses, em que se verificavam amplas e múltiplas reações no organismo, explicáveis pelo fato de estarem no diencéfalo os comutadores vegetativos gerais que alcançam todo o domínio visceral. 0 que se sabia é que esta comutação vegetativa geral, com reações orgânicas até universais, poderia ser desencadeada somente a partir do diencéfalo. A doutrina de Speransky, recentemente exposta (depois da concepção unitária de Selye), mostrou que a comutação diencefálica geral se poderia seguir a uma solicitação da periferia. Ferdinand Hoff objetiva experimentalmente ainda mais a concepção de Speransky e prova que, com ponto de partida neural, hormonal ou humoral, se pode obter franca e ampla intervenção do diencéfalo, abrangendo extensos domínios. Mostrou ainda que as regulações vegetativas têm relações de reciprocidade entre seus diversos membros, que se ligam estreitíssimamente uns aos outros. Entre muitas das funções sob influência diencefálica, obtidas com "stresses" ora locais ora gerais (prolongadas danças noturnas, exercícios de "sky", etc), estava a eliminação da uropepsina, característico teste que indica ativação do córtex suprarrenal; sabe-se que também estão em relação com os valores do suco gástrico. Mas, para a nossa hipótese, o interesse é outro. Existente a úlcera, é bem possível que ela se comporte, graças à ação sobre o retículo terminal vegetativo, como um dos estímulos periféricos capazes de fazer intervir o diencéfalo. Entrando em cena o diencéfalo, já não é misteriosa a aparição da hipertonia vegetativa, pois que lá estão os seus comutadores. Incitações aferentes desse tipo noutros órgãos já foram comprovadas - no coração, no aparelho vestibular. Excitações físicas - frio e calor - também convocam o diencéfalo. Speransky denominou síndromes standard neurodistróficas aos severos distúrbios neurovegetatives nascidos de excitaçÕes nervosas partidas da periferia. Não se trata, é evidente, da teoria da diencefalose, que insistia pelo ponto de partida diencefálico. Se se faz entrar em consideração que um membro da periferia deste retículo vegetativo universal, presente em todas as vísceras, se pode conexionar com outro retículo terminal da mesma ou de outra víscera, constituindo um circuito fechado, então se poderia explicar muita coisa que se passa na úlcera gastroduodenal, como, por exemplo, entre os vários segmentos funcionais do estômago, relações de reciprocidade reguladas e desreguladas. De outra parte, estabelecida a distonia vegetativa em indivíduo mesmo sem úlcera, pode suceder que uma tendência parassimpa-ticotônica primária desencadeie uma reação simpaticotônica e este balanço pode alcançar consideráveis valores e contribuir para a úlcera gastroduodenal, mercê de circuitos fechados e reverberantes locais que, por fim, envolvam o diencéfalo e suas regulações gerais, de acordo com um importante princípio investigado por Wilder e que êle denominou Lei dos valores de partida (Ausgangswertgesetz). Tal concepção, haurida em Speransky e Hoff, talvez comporte o esclarecimento dos segredos da pretensa autonomia da úlcera, da autonomia de sua evolução recidivante e da intervenção do psíquico. Coaduna-se com o conceito de ser a úlcera uma doença geral e admite implicitamente o papel da constituição e herança e a intervenção do fator psíquico. A doutrina de Speransky, ampliada e ainda mais objetivada com Hoff, exposta em sua "Klinische Physiologie und Pathologie" (G. Thieme, 1950), é, no momento, sem dúvida, a que melhor atende aos problemas ainda abertos pela úlcera gastroduodenal, tão cheia de incógnitas gerais e localizatórias; não lhe sendo indiferente a questão do psíquico intervencionista, mas cujo papel preponderante e misterioso não parece causai e sim inscrito no quadro geral de proeminência do vegetativo, este imprimindo traços neuróticos ao indivíduo e mantendo a ação de seus efetores sobre secreção, motilidade e irrigação do estômago.

Relatório oficial apresentado ao I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, São Paulo, 17 a 22 julho 1954.

Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia - Salvador, Bahia

  • Psicogênese das úlceras pépticas

    Nelson PiresI; Alvaro Rubim de PinhoII; Heitor Pinto FilhoIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Set 1955
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