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Esquizofrenias influenciáveis e não influenciáveis pelas terapêuticas de prova

ILivre-docente de Psiquiatria na Fac. Fluminense de Medicina. Diretor clínico do Sanatório Bahia

IILivre-docente de Psiquiatria na Fac. Med. da Univ. da Bahia

IIIAcadêmico-interno do Sanatório Bahia

SUMÁRIO E CONCLUSÕES

Êste trabalho visou a formulação prognóstica das esquizofrenias tratadas pelos modernos métodos terapêuticos, considerando apenas os resultados imediatos. Os pacientes foram classificados como portadores de formas típicas ou atípicas de acôrdo com a presença ou ausência dos chamados sintomas de primeira classe (Kurt Schneider), principalmente os distúrbios do "eu". Durante três anos foram reunidos 42 casos, dos quais 21 remitiram totalmente e 21 remitiram apenas parcialmente ou não remitiram absolutamente. As conclusões são as seguintes:

1 - As indicações para mau prognóstico são: a) início insidioso; b) alcoolismo como fator desencadeante; c) personalidade anterior nitidamente psicopática; d) pobreza de sinais patoplásticos; e) presença de desordens do pensamento; f) idade abaixo de 25 anos; g) forma esquizofrênica atípica (em relação aos chamados sintomas de primeira classe); h) os tipos simples e hebefrênicos.

2 - Não permitem avaliação prognóstica os seguintes dados: a) início com sinais de confusão mental; b) desencadeamento por choque afetivo; c) desencadeamento por causas orgânicas; d) personalidade anterior normal, esquizóide ou esquizotímica; e) perda da afetividade; f) presença de alucinações cenestésicas, visuais ou auditivas; g) presença de autismo; h) biótipo de tipo leptossomático; i) semelhança clínica com as psicoses maníaco-depressivas ou com as síndromes reativas; h) formas típicas (em relação aos chamados sintomas de primeira classe).

Constituem indicação para bom prognóstico os seguintes fatos: a) início súbito; b) personalidade anterior extrovertida; c) riqueza de sinais patoplásticos; d) perversão da personalidade; e) formas paranóides; f) remissão espontânea de surtos anteriores; g) idade acima de 25 anos.

SUMMARY AND CONCLUSIONS

This paper was made regarding prognostic revision of schizophrenies treated by modern treatments. It deals only with the immediate results. Schizophrenies are classified as typic and atypic according to the presence or absence of the so called first-class symptoms (Kurt Schneider) which are summarized especially into the "ego disturbances". Besides them, other symptoms were taken into account. Observations were made with a group of 42 pacients: 21 cases with complete remission and 21 ones with little or no remission. The conclusions are as follows:

1) The indications for bad prognosis are: a) insidious onset; b) schizophrenia rising from alcoholism; c) prepsychotic personality clearly psychopatic; d) poorness of pathoplastic signs; e) presence of thinking desorders; f) age below 25 years; g) atypic manner of schizophrenia (regarding the first-class symptoms); h) the simple and hebephrenic type.

2) The following data do not permit prognostic avaliation: a) onset with mental confusion signs; b) onset from an affective blow; c) onset from organic causes; d) normal, schizoid or schizothymic early personality; e) affectivity lose; f) presence of sight, hearing and cenesthesic hallucinations; g) presence of autism; h) leptosomatic type; i) clinic resemblance with maniac-depressive psychoses or reactive syndrome; j) typic form of schizophrenia (regarding the first-class symptoms).

3) Are indications for good prognosis the following conditions: a) sudden onset; b) extraverted early personality; c) plenty of pathoplastic signs (it is not a remarkable indication of good prognosis); d) the active personality "perversion" is better than the single lose of it; e) paranoid form; f) spontaneous remission from anterior episodes; g) age above 25 years.

Qualquer trabalho sôbre esquizofrenia constitui um esfôrço a ser feito com poucos pontos de apôio. Não se sabe, ao certo, sequer, se essa síndrome deverá ser grafada no singular ou no plural. Bleuler referia-se ao "grupo das esquizofrenias", comparando-o, em sua heterogeneidade, ao "grupo dos orgânicos"; isso mostra que êste autor pensava que sob tal designação estivessem a juntadas coisas diversas. Só recentemente Luxemburger sentenciou que não se pode presumir pluralidade de esquizofrenias, pois que as pesquisas hereditárias conduzidas pelos dados da psicopatologia não permitem o desmembramento da síndrome: nos ascendentes de probandos esquizofrênicos (diagnosticados psicopatologicamente) encontra-se sempre a mesma esquizofrenia. Noutras palavras: encontra-se sempre a mesma esquizofrenia em busca de síndromes esquizofrênicas na parentela de um esquizofrênico. Luxemburger admite que se possa, um dia, desmembrar a esquizofrenia em subgrupos; apenas não acredita que isso possa ser feito com orientação da psicopatologia e sim da patofisiologia. Prenúncios desta possibilidade começam a aparecer com Jahn, Greving, Scheid, Gjessing, que deram, ao que parece, decisiva orientação hematológica e bioquímica às pesquisas sobre esquizofrenia.

Teremos que, resumindo ao máximo a exposição, abordar o estado atual do problema da esquizofrenia.

Alargando os quadros de demência precoce de Kraepelin, Bleuler agigantou êsse capítulo e propiciou a psicologia da síndrome. Quase passavam despercebidas, na era bleuriana, aquelas componentes somáticas que Bumke nunca consentiu fôssem desprezadas: alteração do metabolismo da água, da curva pletismográfica, da diminuição da cinética pupilar, síndromes aproximadamente estriadas, etc.

Não é de estranhar que os estudos resolutamente somaticistas de Jahn e Greving tenham saído da escola de Bumke. Mas, na época de Bleuler, o que se viu foi o incremento intensíssimo das tentativas de penetrar psicologicamente na esquizofrenia. Os sinais fundamentais que Bleuler estatuiu - as desordens associativas e autismo - bem depressa foram substituídos por outros, sinais também psicopatológicos que outros autores sucessivamente estabeleciam. Citá-los é desnecessário porque só têm valor histórico ou recreativo.

Todavia, os que lograram melhor fortuna foram os de Mauz - vivência de ameaça ao eu e sua unidade, o sentimento de transformação do eu e do mundo - o de Kronfeld (alterações da consciência de atividade), os de Jaspers (idéias delirantes primárias, alterações primárias da percepção, da consciência do eu). Essa época de Bleuler foi, como diria Birnbaum, "psicologizante", isto é, tendia a explicar todos os fenômenos com o auxílio da psicologia normal e patológica. 0 propulsor dessa tendência foi, indiscutivelmente, Freud, que, ainda hoje, inspira os avanços psicológicos. Mesmo os que combateram Freud não se puderam furtar à influência "psicologizante". Bleuler, atacado sob acusação de que admitia esquizofrenias psicogenéticas, replicou admitindo uma base fisiogênica para as esquizofrenias e, assim, toda a sua criação psicológica seria superstrutura.

Aparecera também, um ano antes do livro de Bleuler (incluído no Manual de Aschaffenburg) o conceito de "processo" de Jaspers; neste conceito encontramos, ao lado do processo "físico-psicótico" (paralítico, senil), uma outra noção - muito mais vaga e não anatômica - de "processo psíquico" que teria existência física mas não seria demonstrável, ou melhor, apesar de presumìvelmente físico, só se denunciaria pelas alterações psíquicas que produz. Característicos dêste processo seriam a irreversibilidade e a incurabilidade das alterações produzidas.

Foi procurado, então, o sinal autenticador do "processo" e estabeleceram-se novas noções decorrentes dos trabalhos de Jaspers. Berze e Gruhle trouxeram substancial estudo psicológico à esquizofrenia e, então, falou-se do "processo em atividade", o qual, depois de devastar o psiquismo, silencia mas deixa as cicatrizes e os defeitos esquizofrênicos. Êstes dois autores consideravam como sintoma axial da esquizofrenia aquilo que Berze chamou de "hipotonia da consciência".

A noção de "processo" psíquico trouxe uma conseqüência cujo alcance não tem sido encarecido: passou-se a falar em "esquizofrenias processuais", assinaladas pelo mau prognóstico. Haveria, portanto, outras esquizofrenias, talvez de bom prognóstico, "não processuais". Muitos autores, explícita ou implicitamente aceitaram "esquizofrenias psicogenéticas"; possìvelmente, estas seriam as de bom prognóstico e "não processuais". Outra conseqüência do conceito de "processo" irreversível e incurável foi a busca que se fêz dos sinais autenticadores e que, com o subsídio dado pela escola fenomenológica, enriqueceu o patrimônio sintomático da esquizofrenia, com altas pretensões doutrinárias concernentes ao perfeito diagnóstico. Alterações do "eu", alterações primárias da percepção, idéias delirantes primárias, distúrbios da consciência de atividade, distúrbios da unidade, da identidade e da separação eu-mundo exterior, se transformaram em sintomas quase patognomônicos da esquizofrenia. Se implicitamente os fenômenologistas assinalavam o "processo", implicitamente atestavam o mau prognóstico da síndrome que os encerrava. Como o "processo" era caracterizado pela aparição de condições mentais novas, diferentes da condição mental anterior, como ele trazia uma modificação heterogênea da vida psíquica, graças à sua natureza presumivelmente física, segue-se que os conteúdos da vida psíquica se modificam de maneira incompreensível, inacessível à penetração semiótica psicológica. Poder-se-á admitir que o "processo" gera, na vida mental, alterações qualitativas tais que, uma vez aparecidas estas, somos forçados a aceitar que há um "processo" em causa. Noutras palavras, admitimos relações de causalidade entre o "processo" e a sintomatologia mental, mas esta sintomatologia não é penetrável psicologicamente nem à intuição nem à análise, porque os novos arranjos na vida psíquica se fazem de maneira muito diferente da antiga, anterior ao "processo".

Surgiram vários e graves desmentidos a estas idéias.

Antes de tudo, há mais de 30 anos vasculha-se incessantemente o que seja êste "processo". Uns atrás dos outros se desmoralizam "os sinais autênticos". À medida que se analisam as produções psicopatológicas de não esquizofrênicos, apura-se que, fora da "esquizofrenia processual", elas também aparecem. Trabalhos experimentais feitos com mescalina, por exemplo, reeditam muita fenomenologia "esquizofrênica". Meyer-Gross e Carl Schneider, entre outros, comparam os sucessos psíquicos esquizofrênicos com os sucessos psíquicos do adormecer e da fadiga, Nas reações exógenas muita sintomatologia tida como genuinamente esquizofrênica, pode comparecer. Nós mesmos vimos, em hipertensos e alcoolistas, alterações da consciência de atividade e alterações da consciência do "eu", exatamente iguais às genuínas esquizofrênicas. Nas neuroses, nos astênicos sobretudo, não são raros os fenômenos ditos "de despersonalização", que ocasionam, ao menos semiòticamente, dúvidas diagnosticas com as "esquizofrenias processuais". Nas já apontadas reações exógenas, as síndromes esquizofrênicas são tão comuns que Kurt Schneider não vacila em dizê-las "esquizofrenias sintomáticas", afirmando que só se deverá fazer o diagnóstico de esquizofrenia quando não se encontra etiologia demonstrável, e que isto vale mesmo para a sintomatologia que os fenomenologistas criaram. Mesmo diante dela só devemos dizer que há esquizofrenia quando não houver demonstrável etiologia.

Depois, o que ruiu foi o dogma de irreversibilidade do "processo". Os tratamentos modernos encarregaram-se de fazê-lo sem que jamais ficasse documentado o que fosse "processo". Alguns dos "sinais autênticos" firmados pelos fenomenologistas, parecem de fato indicar mau prognóstico; pelo menos, essa foi a verificação de Langfeldt. Mas nem todos os sinais lançados pelos fenomenologistas resistiram à experiência clínica dos tratamentos; eles são curáveis "em princípio". Caberia também perguntar: que esquizofrenias serão essas que não são "processuais"? Nunca poderiam ser "psicogenéticas", porquanto não há, por definição, psicoses endógenas *'psicogenéticas". Procurou-se tanto esclarecer as "esquizofrenias processuais" e para as "não processuais" ficou uma tal bastardia que ninguém cuidou de* Ias. Falou-se em "psicoses esquizóides" (Poppers, Vela Daulberg, Lange) e que vinham a ser reações esquizofreniformes em esquizóides com parentes esquizofrênicos. Na casuística de Daulberg essas psicoses aparecem, ora sob influxo psicógeno, ora exógeno. Sempre remitiram espontaneamente.

Entre a demência precoce de Kraepelin e as esquizofrenias de Bleuler existem diferenças, pois que entre estas últimas é incluído tudo que Kraepelin chamou de demência precoce, parafrenia, demência paranóide, catatonia tardia e paranoia. Ainda assim restam quadros cabíveis na esquizofrenia. Torna-se difícil enumerá-los, dada a imprecisão psiquiátrica, mas pode-se dizer que o critério da idade que era necessário para o diagnóstico de demência precoce desapareceu com o de esquizofrenia. Algumas psicoses paranoides da involução aí estarão. Se quiséssemos fazer um esforço mais ou menos bizantino para discriminar as síndromes que formam o cerne das esquizofrenias, tenderíamos a dizer que êste cerne é formado pelas "esquizofrenias processuais" e que estas são as antigas síndromes que Kraepelin reuniu sob a denominação de "demência precoce". Porque o resto é nosològicamente muito menos preciso,

Um último esfôrço para o estudo das esquizofrenias veio dos arraiais constitucionalistas. Aqui, é menos destacado o valor do "processo" e muito mais a questão da herança e da estrutura corporal, já se sabe o quanto caminhou o conceito de constituição nas mãos de Kretschmer, que, ultimamente, se vem esmerando em estabelecer a fisiopatologia e a bioquímica dos vários biótipos humanos. As correlações somatopsíquicas estão na ordem do dia e foi por aí que Jahn e Greving começaram; partindo da bioquímica dos astênicos, foram parar na dos esquizofrênicos. Sabe-se como a consti-tucionalística se aproximava da endocrinologia e como vem se emancipando dela, à medida que esta última falta a seus compromissos de desvendar o primum movens da conduta e da personalidade. 0 trabalho da escola de Bumke, e os de Gjessing, são os atuais marcos visíveis do progresso de nossos conhecimentos sobre esquizofrenia. Talvez êles possam, de ora em diante, orientar as pesquisas heredológicas de Luxemburger e sua escola, esclarecendo em definitivo o diagnóstico da esquizofrenia sobre bases objetivas.

Enquanto isso não sucede, vamos diagnosticando precàriamente a esquizofrenia com o auxílio da psicopatologia, cada vez em maior bancarrota, mesmo na Psiquiatria; se não em bancarrota, pelo menos em recuos constantes, como nos faz ver Kurt Schneider, que ainda lhe dá crédito apenas na criminologia e não psicologia do comportamento em geral. Diz-nos, ainda, êste autor, que o diagnóstico diferencial da esquizofrenia, atualmente, defronta-se com as seguintes dificuldades:

A) Com as neuroses, personalidades psicopáticas e psicoses de reação, a distinção há de ser feita com o auxílio dado pela escola fenomenológica.

Neuroses, personalidades psicopáticas e psicoses de reação, são compreensíveis e penetráveis psicologicamente, partem de motivos conhecidos, têm com a personalidade anterior continuidade ininterrupta, são reversíveis e analisáveis, têm bom prognóstico e conteúdo penetrável. As esquizofrenias são incompreensíveis, impenetráveis psicologicamente e não necessitam de motivo desencadeante; desde sua aparição se assinalam porque desviam nitidamente a personalidade anterior do seu modo de ser, são irreversíveis e, portanto, de mau prognóstico.

B) Com as psicoses maníaco-depressivas as distinções são, por vêzes, facílimas. Se fixarmos, em lugar de psicose maníaco-depressiva, um conceito de ciclotimia, teremos dado um passo à frente. As fases ciclotímicas exigem, em princípio, um retorno ao estado anterior, o que não sucede com o surto esquizofrênico. Característicos como alegria e tristeza vital, também assinalariam o ciclotímico maníaco ou depressivo. Como também existem síndromes aparentemente esquizofrênicas com evolução cíclica, isto é, com reversão à cura espontânea, duas ordens de fatos se alinharam para enfrentar as dificuldades: 1) os heredologistas mostraram a concomitância, num só indivíduo, das duas disposições hereditárias; isto explicaria que uma mesma síndrome apresente características de uma e de outra psicose. 2) Não só a cicloidia mas também a estrutura corporal pícnica se vai incluindo em substituição ao velho conceito de psicose maníaco-depressiva. Bumke já fala em "constituições pícnico-timopáticas" como grupo central das antigas psicoses maníaco-depressivas. Teriam até mesmo autonomia bioquímica.

C) Com as reações exógenas, as relações da esquizofrenia são bem mais complexas. Pense-se no seguinte: 1) as esquizofrenias seriam, elas próprias, reações exógenas e, desde muito tempo, Bumke sustenta tal postulado: esquizofrenia é devida a um processo orgânico; as pesquisas da escola de Bumke estão em vias de provar que isto é verdade; 2) inúmeras vêzes a esquizofrenia aparece desencadeada exògenamente: pelo puerpério, pelo alcoolismo, pelas infecções, pelos traumatismos do crânio; 3) não são raras as esquizofrenias com sintomatologia exógena: perplexidade, desorientação, confusão mental, onirismo e até febre (Scheid): a semelhança vai até o desfêcho mortal (catatonia mortal de Stander), comum nas psicoses exógenas e ao edema cerebral visível à necrópsia (Spatz).

Destas dificuldades inferimos que o diagnóstico diferencial se fará da seguinte maneira: uma síndrome psicopatològicamente esquizofrênica que não tem etiologia demonstrável ou que perdura mesmo após o desaparecimento do fator exógeno será chamada de esquizofrenia.

Pelo que foi exposto, percebemos fàcilmente que o diagnóstico de esquizofrenia não é feito simplesmente pela análise dos sintomas, mas também pelo exame das condições de sua aparição, que excluirá a exogenia e pelo exame da ascendência psicopática, do biótipo, e ainda, com o socorro do critério evolutivo, que prestou inestimáveis serviços a Kraepelin.

Quanto às condições de aparição, podemos dizer que a síndrome esquizofrênica não tem etiologia psicógena, nem visivelmente exógena; ela é autônoma, irrompendo espontaneamente. Quando acontece que uma síndrome esquizofreniforme irrompe com motivação psicógena ou acometimento exógeno, diremos, ou que ela é uma "reação esquizofreniforme", no primeiro caso, ou que é uma reação exógena esquizofreniforme ou "esquizofrenia sintomática", no segundo caso (salvo as esquizofrenias febris de Scheid, as catatonias mortais de Stander). Mas se, depois de cessados os fatôres desencadeantes - psicógenos ou exógenos - a síndrome esquizofreniforme perdura e evolui independente da remissão ou desaparição desses fatores, então a síndrome é mesmo esquizofrênica - assim diz o critério evolutivo - mas diremos que seu desencadeamento foi obtido por fatores psicógenos ou exógenos.

A personalidade anterior, pré-psicótica, tem importância no diagnóstico da esquizofrenia. Não raro, antes da psicose o indivíduo já era um retraído, esquizotímico ou esquizóide. Pensou-se mesmo que êsse precedente era tão regular que justificasse a célebre escala - esquizotímico-esquizóide-esquizofrênico - uma gradação puramente quantitativa. Sabe-se, hoje, que a esquizotímia pré-psicótica não é uma contingência regular, visto que a esquizofrenia pode surgir mesmo em extrovertidos. Todavia, fixou-se que, quando o esquizofrênico, anteriormente, já era um esquizóide frio, desinteressado de tudo, e sobretudo se sua estrutura corporal era astênica, leptossomática, o prognóstico era muito pior que o da esquizofrenia surgida num extrovertido pícnico. Quer dizer: quanto mais "esquizofreno-afim", pior o prognóstico; quanto maior a afinidade com o círculo maníaco-depressivo e tipo pícnico, melhor o prognóstico.

Daí uma série de conclusões: o esquizóide que se "esquizofreniza" aos poucos, sorrateiramente, com progressivo "esvaziamento afetivo" e contínua "deserção dos sentimentos", imperceptível mas segura, tem prognóstico mau. Vice-versa, o indivíduo que, após trauma moral ou doença física, apresenta uma síndrome esquizofreniforme ou esquizofrênica, teria o prognóstico habitual dos neuróticos por trauma afetivo ou dos portadores de reações exógenas e psicoses sintomáticas: é muito mais curável, em princípio. Ou seja, quanto mais psicógeno ou exógeno fôr o desencadeamento da síndrome esquizofrênica ou esquizofreniforme, tanto melhor o prognóstico; quanto mais autóctone, quanto mais endógeno, pior o prognóstico.

Tais são os dados básicos do prognóstico da esquizofrenia. Sob a pri-masia decadente dos dados psicopatológicos, ainda se pretende construir alguma coisa nesse capítulo obscuro da esquizofrenia. Contudo, isto tudo foi estatuído na época em que não tínhamos qualquer método terapêutico eficiente para o tratamento da esquizofrenia. Conviria, pois, verificar todos esses postulados com o teste da terapêutica.

Isto é o que vimos procurando fazer há cerca de 3 anos. Trata-se de duríssima tarefa para nossas possibilidades: unificação de diagnósticos, unificação de material capaz de permitir comparações, dados psicopatologicamente exatos quanto à síndrome antes e depois dos tratamentos. Depois de 3 anos reunimos 42 casos, dos quais 21 remitiram totalmente e 21 re-mitiram parcialmente ou não remitiram absolutamente. Não temos certeza que as remissões perdurem por muito tempo; mas tôdas elas têm mais de um ano, algumas mais de 6 anos. Definitivas ou não, as remissões, ou apareceram logo depois dos tratamentos, ou não apareceram. Isto já nos dá um critério diferencial entre casos influenciáveis e não influenciáveis pelos tratamentos, embora não afirmemos que a influenciabilidade seja definitiva.

Também não nos interessou avaliar sòmente a influenciabilidade da síndrome completa e sim determinar os sinais - um por um - que possam sofrer a influência dos tratamentos. Êles serão, de certo modo, um indicador prognóstico depois de concluído o trabalho. A verificação da curabilidade de síndromes completas é muito falsa. Confrontem-se estatísticas de vários autores e se verificará que cada um dêles dá uma percentagem diferente de curas pelo insulino e convulsoterapia. O que um autor diagnostica como esquizofrenia não é por outro assim diagnosticado; pelo menos não o é sempre. Só isso faz variar imensamente o material cujo resultado se apura.

Só por isso nos satisfariam os trabalhos de Langfeldt (The Schzophreniform States, Oxford Press, 1939), que não se limitou a fazer latos diagnósticos de síndromes esquizofrênicas, mas desceu ao exame dos sintomas e condições de aparição da esquizofrenia, examinando catamnèsticamente 200 casos, dez anos após os tratamentos.

MÉTODO DE TRABALHO

Neste trabalho será tentado, ainda uma vez, o estabelecimento, com auxílio da Psicopatologia, dos sinais que denunciam a esquizofrenia tratada pelos métodos modernos de terapêutica. Compulsando trabalhos nacionais e estrangeiros verificamos sempre a imprestabilidade quase total de sua leitura devido aos seguintes fatos: a) extensão variável, de autor para autor, do diagnóstico de esquizofrenia; b) inexistência de conceitos uniformes de cura e de prazo de observação suficiente; c) agrupamento em formas clínicas - hebefrênicas, catatônicas e paranóides - que o mais das vezes é inseguro.

Obviamos a primeira dificuldade, em quase todos os casos, unificando as bases diagnosticas da esquizofrenia. Será, assim, diagnosticada como tal a síndrome que, não sendo reativa e não sendo exógena, tenha na sintomatologia um ou mais dos sinais alardeados pelos fenomenologistas: distúrbios do eu e da consciência de atividade, desordens primárias da percepção ou da ideação, vivência de ameaça ao eu e sua unidade, sentimento de transformação do eu e do mundo, conteúdos psicóticos incompreensíveis e não influenciáveis psicoteràpicamente; aí vão as síndromes de influência, os "fenômenos xenopáticos" de Clerambault, as alucinações psíquicas e psicomotoras verbais, da escola francesa. Tais serão as esquizofrenias "típicas" (possivelmente as "processuais" dos velhos tempos).

Também serão esquizofrenias as síndromes não psicógenas nem exógenas que tenham na sintomatologia: risos ou choros imotivados (à pesquisa cuidadosa), solilóquios, "deserção dos sentimentos", perda do contado com a realidade, idéias de perseguição, extravagâncias, bizarrias, estereotipias, maneirismos, idéias de grandeza, ou perversão da afetividade, catatonia, "discordância afetiva". Estas serão esquizofrenias "atípicas".

Se bem que não acreditemos na precisão dos subgrupos (hebefrênico sobretudo, que varia de autor para autor), tentaremos classificar nosso material também nesses subgrupos kraepelinianos. Assim, não obviamos de todo parte dessa terceira dificuldade. Vê-se bem que a segunda dificuldade foi obviada pelo exame do doente após o tratamento - curado ou não curado - sem pretensões e definitivos desfechos. Queremos saber do comportamento diante do tratamento.

Vamos expor nossos resultados sem receio dos erros possíveis, prováveis e inevitáveis, pois isso é inerente aos métodos psicopatológicos. Uma pesquisa não se obriga a achar fatos brilhantes mas se obriga a ser honesta. Isso garantimos que o foi. Importa-nos muito pouco a tradição de postulados teóricos nunca submetidos à prova. Talvez êles não mereçam o favor de que gozam. Se nossas conclusões fôrem atacáveis e se não resistirem a novas verificações, teremos, pelo menos, ensejado estudos e exames dessa metodologia que nos parece atualmente ainda preslável - a psicopatológica subsidiada pela biotipológica. Embora em vias de desprestígio, a orientação nosológico-clínica, ao se desmoronar, ainda pode, talvez, fornecer matéria prima aproveitável. Sobretudo no setor prognóstico. Êste foi nosso objetivo.

RESULTADOS

1) A presença, no início, de sinais de confusão mental, não deu indicações prognósticas; a maioria dos casos de nossa casuística não apresentava êstes sinais, como se vê pelo quadro abaixo:

2) A presença de traumatismo psíquico desencadeante também não melhorou o prognóstico; a grande maioria de nossos casos não teve traumatismo afetivo desencadeado r. Apenas 11 em 41 pacientes o tiveram, como mostra o quadro abaixo:

3) A presença de fatôres orgânicos desencadeantes não deu indicações prognósticas, salvo quando o fator exógeno foi o álcool: neste último caso o prognóstico foi invariavelmente mau; 11 casos em 41 tiveram desencadeamento exógeno, como mostra o quadro abaixo:

4) O início sorrateiro assinala prognóstico mau. O início súbito foi seguro indicador de bom prognóstico; apresentou-se 10 vêzes, seguindo-se em 9 dêles a cura da esquizofrenia.

5) A personalidade anterior "normal" não influiu no prognóstico, ao passo que a extrovertida assinalou desfecho favorável. Metade do material apresentava traços fortes de esqúizotímia ou esquizoidia; isso também não trouxe indicação prognóstica. Em 7 vêzes a personalidade anterior assinalava-se como psicopática, mas de outro tipo que não o esquizóide; a personalidade psicopática anterior influencia no desfecho desfavorável.

6) A patoplastia rica melhorou o prognóstico de maneira não decisiva. A patoplastia pobre é indicador sensível de prognóstico mau.

7) As desordens do pensamento foram assinaladas sobretudo nas esquizofrenias de mau prognóstico.

8) Quanto à afetividade, a conclusão mais segura é a seguinte: a perda é de pior prognóstico que a perversão. A perversão revelou-se, mesmo, indicador de desfecho favorável.

9) O autismo não deu indicação prognostica alguma.

10) Também não deu indicação prognóstica a presença de alucinações cenestésicas, visuais ou auditivas; apesar disso, elas predominaram ligeiramente no grupo de mau prognóstico. A presença dos chamados distúrbios do "eu", que se dá como autenticador máximo da esquizofrenia (sintomas de primeira categoria, segundo Kurt Schneider), deu-se com freqüência, predominando, paradoxalmente, no grupo de desfecho favorável. E, para completar a surpresa, essa síndrome esteve ausente sobretudo nos casos de desfecho desfavorável.

11) Quanto ao biótipo, houve imensa predominância dos leptossomáticos e leptoatléticos. O biótipo leptossomático não prejudicou nem melhorou a evolução favorável. Os dois únicos pícnicos não remitiram.

12) No tocante à idade, até os 25 anos predominaram as esquizofrenias de mau prognóstico e, daí em diante, as de bom prognóstico. Isto nos traz convicção de que o núcleo antigamente chamado "demência precoce" tem pior prognóstico do que os outros adicionados por Bleuler, que não levou em conta o critério da idade.

13) Doze vêzes 42 casos, registrou-se a existência de surto anterior; a maioria deles tinha apenas um único surto no passado. A esquizofrenia recidivou um ou mais anos depois. Empreendeu-se o tratamento do novo surto; em 7 vezes não houve remissão e apenas 5 vêzes ela foi obtida de modo completo. Nos 5 casos de remissão completa, o surto anterior havia remitido espontaneamente em 3; nos 7 que se cronificaram, só uma vez tinha havido remissão espontânea e 6 vezes a remissão fora obtida com a terapêutica de choque.

14) Apesar do artificialismo que classifica as subformas, procedemos à classificação e verificamos que foram de pior desfecho as simples e as hebefrênicas. Bem melhor prognóstico tiveram as formas paranoides. As esquizofrenias que consideramos "típicas" tiveram prognóstico favorável em pequena maioria de casos. As que consideramos "atípicas" tiveram prognóstico predominantemente mau.

15) Quanto ao tempo de doença, tôdas as formas não curadas foram tratadas nos 6 primeiros meses de doença; entre os curados, 16 estavam nessas mesmas condições; os 5 restantes tinham prazo de doença bem maior.

16) A dúvida diagnostica entre esquizofrenia e qualquer outra psicose, isto é, o fato de ser mais ou menos "impura" a síndrome, não deu indicação prognostica. Apenas quando a dúvida dizia respeito a neurose, simulação e paranoia é que a evolução foi favorável.

17) A inexistência de tara direta entre os pais não só não favoreceu o prognóstico, como até foi mais freqüente no grupo que não curou. Dois esquizofrênicos que tinham um dos pais alienado não curaram. Pais neuróticos ou alcoolistas foram vistos sobretudo no grupo curado. Entre os irmãos repetiram-se êsses fatos: não existia tara, principalmente no grupo que não curou; havia entretanto, irmãos alienados apenas nesse grupo de desfecho desfavorável.

18) Quanto ao comportamento em face do tratamento, poderemos dividir rada grupo - curados e não curados - em 3 subgrupos: 1) Curados: a) O primeiro surto foi há anos; remitiram 5, sendo que em 3 casos a remissão foi espontânea e, em 2 casos, foi obtida com a convulsoterapia. b) A convulsoterapia elétrica fracassou imediatamente ou então a recidiva surgiu pouco depois; empregada a insulino-terapia houve remissão da síndrome (5 casos), c) Os tratamentos empreendidos deram pleno resultado imediato; não tinha havido episódio anterior (11 casos).

2) Não curados: a) O primeiro surto foi há anos; remitiram 7, sendo que um espontaneamente, um com insulinoterapia e 5 com convulsoterapia. b) Um dos tratamentos fracassou ou deu resultado por poucas semanas ou meses (o tratamento que fracassou inicialmente foi em 6 vêzes o de Cerletti, cm 3 vêzes o de Cerletti combinado com o de Sakel e em 2 vêzes, o Sakel); houve recidiva e nenhum tratamento deu resultado (8 casos), c) Todos os tratamentos empreendidos foram inúteis (Sakel, Cerletti e Meduna), no total de 6 casos.

Êstes dados permitem concluir que: a) A recidiva é sempre mais grave; de 12 casos, apenas 5 se restabeleceram, b) O tratamento insulínico fez remitir casos que haviam resistido ao tratamento convulsoterápico; o contrário disso nunca se deu. c) Quando um dos tratamentos fracassa imediatamente ou quando sobrevém recidiva pouco após o seu término, a gravidade é muito maior: em 13 casos que isto ocorreu obteve-se a cura apenas em 5. d) As esquizofrenias benignas remitem, em geral, ao primeiro tratamento; as malignas, na maioria de casos, se deixam influenciar transitoriamente pelo tratamento; só em minoria de casos as malignas resistem a todos os tratamentos, não se deixando influir nem mesmo transitòriamente.

Trabalho apresentado ao V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (São Paulo-Rio de Janeiro, outubro-novembro de 1949).

Largo da Lapinha, 27 - Salvador, Bahia.

  • Esquizofrenias influenciáveis e não influenciáveis pelas terapêuticas de prova

    Nelson PiresI; Luís CerqueiraII; Manoel GuerreiroIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1950
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