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Astrocytoma ponto-cerebelar. Estudo anátomo-clínico

Oswaldo LangeI; Walter Edgard MaffeiII; Carlos Virgilio SavoyIII

IDocente de Neurologia na Fac. Medicina da Universidade de S. Paulo

IIDocente de Neurologia na Fac. Medicina da Universidade de S. Paulo

IIIDocente de Anatomia-Patológica na Fac. Medicina da Univ. de S. Paulo

RESUMO

É descrita e comentada pormenorizadamente a sintomatologia neurológica apresentada por um adulto de 20 anos de idade, portador de um astrocitoma da variedade cística com degeneração secundária, localizado na hemiprotuberância e pedúnculo cerebeloso médio. Os autores acompanharam a evolução da moléstia pela sintomatologia neurológica e, pelo exame anátomo-patológico, puderam confirmar, quase que plenamente, seu raciocínio clínico.

SUMMARY

The A.A. describe in detail the neurologic symptoms of a patient 20 years of age with a cystic astrocytoma with secondary degeneration, located in the right hemi-protuberance and medium cereberellar peduncle. The evolution of the disease was followed by the neurologic symptoms. Postmortem examination confirmed the clinical interpretation and diagnosis to almost every detail.

O diagnóstico topográfico das afecções protuberanciais e ponto-cerebelares é relativamente fácil; prestam-se à confusão apenas as afecções compressivas do metencéfalo, principalmente os tumores do ângulo ponto-cerebelar. A semiologia neurológica dispõe, atualmente, de elementos muito seguros para esse diagnóstico topográfico e para a distinção entre as afecções destrutivas da protuberância e aquelas meramente compressivas desse segmento do tronco cerebral.

Difícil, por vezes, é o diagnóstico etiológico, mormente quando certos tumores, como se deu no caso que vamos apresentar, evoluem sem produzir a síndrome de hipertensão intracraniana. O interesse da observação que relataremos adiante cresce porque pudemos acompanhar detalhadamente a evolução da moléstia, assistindo, por assim dizer, o progressivo crescimento da lesão e sua evolução inexorável. Relataremos a observação por partes, acompanhando-a dos comentários que nos eram sugeridos pela evolução e pelos elementos fornecidos pelos exames clínicos e complementares.

Trata-se de C. M. F. (S. N. - 6.497) 20 anos de idade, brasileiro, branco, solteiro, comerciário. Examinado no Ambulatório de Neurologia em 25 de Fevereiro de 1942. Antecedentes pessoais sem interesse para o caso atual. Tem um irmão tuberculoso.

Moléstia atual - Relata o paciente que sempre foi sadio e com boa disposição para o estudo e trabalho. Há cerca de dois meses começou a ter vômitos fáceis, em jato e sem náuseas. Ao mesmo tempo notou certa dificuldade em caminhar em linha reta, dificuldade que se agravou progressivamente, a ponto de não conseguir andar sem o auxílio de terceiros. Cambaleava muito, como se estivesse embriagado. Uma ocasião teve vertigens: teve a impressão de que os objetos giravam em torno de si, perdendo, logo em seguida, os sentidos; este fenômeno não mais se repetiu. Nos primeiros dias de sua moléstia, quando procurava fixar um objeto a certa distância, tinha sensação de instabilidade do objeto visado. Não conseguia ficar na posição de sentido e para manter-se na posição ortostática necessitava aumentar a base de sustentação. Há 8 dias vem notando dificuldade em apreender os objetos; também a escrita e a fala estão se tornando cada vez mais alteradas. Tem a impressão de que a hemi-face direita está amortecida e não sente bem o gosto dos alimentos. Nunca teve cefaléia ou qualquer outra dor.

Exame clínico-neurológico - Trata-se de indivíduo branco, longilíneo, emagrecido, com perfeita constituição osteo-muscular. Panículo adiposo escasso. Não há gânglios infartados. Apirético. Não acusa dores osteócopas. Nada acusa para o lado dos aparelhos respiratório, digestivo e genito-urinário. Pulso fino, rítmico, isócrono, batendo 84 vezes por minuto. Pressão arterial: Max. 125 - Mn. 80. Reforço da 1.a bulha no foco aórtico. Psiquismo aparentemente íntegro. Facies sonolenta. Equilíbrio: impossível a manutenção da atitude erecta com os pés juntos, caindo pesadamente para a direita, tanto com os olhos abertos como fechados. Ampliando a base de sustentação, notam-se ligeiras oscilações que não se modificam quando o doente fecha os olhos. Marcha ebriosa. Dificuldade em deglutir. Palavra monótona e escandida. Rima palpebral direita ligeiramente aumentada e a oclusão mostra certa deficiência do orbicular das pálpebras nesse lado.

Não há deficit muscular dos membros inferiores (provas de Mingazzini e Barré). Pela prova de Raimiste observamos abertura dos dedos e flexão do polegar e indicador da mão esquerda. Na prova dos braços estendidos, há ligeira queda do membro superior esquerdo. Tonus muscular ligeiramente diminuído no hemi-corpo esquerdo. Reflexos patelares vivos, mais nitidamente à esquerda. Reflexos aquileos, estiloradiais, bicipitais e tricipitais normais. Reflexos cutaneo-abdominais abolidos à esquerda; reflexos cremastéricos muito diminuidos à esquerda, normais à direita Sinal de Babinski à esquerda.

Reflexo córneo-palpebral abolido à direita. Reflexos pupilares normais; pupilas isocóricas. Paralisia dos músculos mastigadores à direita, revelada pela hipotonia do masseter e pelo desvio da mandíbula. Anestesia da córnea e conjuntiva do olho direito. Hipoestesia a todas as formas de sensibilidade na hemi-face direita. Hipoestesia superficial no hemi-corpo esquerdo com exclusão da face. Não existem movimentos involuntários espontâneos. Não existem distúrbios esfinctéricos nem alterações tróficas.

Ligeira dismetria no hemi-corpo direito: ao executar os movimentos de dedo-nariz e calcanhar-joelho, o doente ultrapassa o alvo; ao apanhar um copo de água, longe ainda do objeto, a mão já vem espalmada (hipermetria). Disdiadococinesia e prova de Stewart-Holmes positiva à direita. As alterações da sinergia muscular entre agonistas e antagonistas são bem evidenciadas nas provas de dorso-flexão, dorso-extensão e da cadeira. A assinergia se manifesta, também, nos atos voluntários que são executados com movimentos rápidos e paradas bruscas, sem sequência harmoniosa. Nistagmo espontâneo ao olhar lateral e vertical.

Em resumo, existia hemianestesia alterna atingindo a hemi-face direita e os membros esquerdos, hemisindrome cerebelosa à direita e Hemiparesia motora também alterna, com sinais de déficit piramidal no hemi-corpo esquerdo e paresia facial direita. Diante deste quadro, indicando a existência de uma lesão protuberancial à direita e para maiores esclarecimentos, foram pedidos vários exames complementares.

O exame oto-neurológico mostrou: déficit do aparelho estatocinético com desvio do corpo e tendência à queda para a direita; hipoestesia da hemi-face, das mucosas bucal e nasal à direita; hipotonia do masséter direito com desvio da mandíbula para a esquerda; paresia facial à direita; hipoacusia bilateral de tipo mixto, mais nítida à direita; nistagmo horizontal espontâneo no olhar lateral para ambos os lados; nistágmo vertical espontâneo; inexcitabilidade dos canais verticais de ambos os lados; déficit nas reações subjetivas vertiginosas à prova calórica, processando-se normalmente as reações motoras e o nistágmo provocado (canais horizontais). (J. Rezende Barbosa).

O exame neuro-ocular mostrou: paresia do orbicular das palpebras à direita. Meios e fundos oculares normais. Visão em ambos os olhos, 1/3; o doente não fixa suficientemente para a tomada dos campos visuais. (D. Prado).

O exame do líquido céfalo-raquidiano nada de anormal revelou, sendo também normal a pressão (12 cms ao manómetro de Claude). Negativa a reação de Wassermann no sangue. Normal a taxa de uréia no sangue (0,35 por litro).

O exame elétrico dos músculos da face mostrou a existência de degeneração parcial no território muscular subordinado ao trigêmio direito (contração lenta e igualdade polar nos músculos masséter, temporal e milo-hioidêu), contraindo-se normalmente os músculos dependentes do nervo facial. (C. Savoy).

O doente apresentava, pois, um quadro neurológico complexo indicando a existência de uma lesão intra-protuberancial, localizada predominantemente à direita. Em resumo, existia: 1) hemiplegia alterna (paresia na hemi-face direita e paresia dos membros à esquerda); 2) hemianestesia alterna, atingindo a face à direita e o hemi-corpo esquerdo; 3) síndrome cerebelosa cujas manifestações eram preponderantes à direita (homolateralidade da lesão e dos distúrbios cerebelosos); 4) nistágmo vertical espontâneo e síndrome vestibular disarmônica provocada pelas provas otológicas. Este conjunto depunha em favor de uma lesão intra-protuberancial: ficaram excluídas as lesões compressivas do metencéfalo, inclusive as do ângulo ponto-cerebelar.

Entre os elementos colhidos pelos exames feitos neste paciente, só um discordava do conjunto por não ser explicável pela lesão protuberancial. Referimo-nos à falta de reações subjetivas vertiginosas em seguida às provas calóricas realizadas pelo oto-neurologista. Segundo a esquematização de Jones1 1 . Isaac Jones - Equilibrium and vertigo. 1 volume, Baltimore, 1918. , esta ausência da vertigem provocada seria devida à lesão cerebelar ou, quando menos, do continente ponto-cerebelar, isto é, das fibras do pedúnculo cerebeloso médio. Aliás em nosso caso, não seria de estranhar a possibilidade de uma lesão cerebelar ou ponto-cerebelar à direita, tal era a nitidez com que se apresentava a síndrome cerebelosa no hemi-corpo direito. Portanto, a ausência de reações vertiginosas afirmavam, no caso que observavamos, a extensão da lesão ao cerebelo. A prova do index de Barany mostrou desvio do index direito para fora o que confirmava a existência de lesão no hemisfério cerebelar direito. Por outro lado, levando-se em conta que a moléstia se iniciara com distúrbios do equilíbrio estático-cinético, com tendência à latero-pulsão e queda para a direita, era licito pensar, até, que a lesão tivesse sido primitivamente cerebelar (pedúnculo cerebeloso médio) sendo secundária, por propagação a lesão protuberancial.

O exame oto-neurológico mostrou outro fato interessante: ao lado do nistágmo vertical espontâneo - indício certo de lesão central das vias vestibulares - a inexcitabilidade dos canais semi-circulares verticais de ambos os lados. Este último achado, segundo Jones, alem de só por si localizar a lesão na protuberância, indicaria o comprometimento bi-lateral. Portanto a lesão, localizada inicial e predominantemente à direita (pedúnculo cerebelar médio e protuberância) estaria se estendendo também para o lado esquerdo, isto é para a hemiprotuberância esquerda. Todos estes fatos corroboravam a hipótese que formulávamos, isto é, que a lesão, em sua progressão destrutiva, atingira, pela ordem, o predúnculo cerebeloso médio direito, a hemiprotuberância direita e, por fim a hemiprotuberância esquerda.

Podíamos precisar mais ainda, considerando outros elementos do quadro neurológico, e afirmar que a lesão atingia a hemiprotuberancia direita em sua quase totalidade, em sentido antero-posterior (lesão das fibras piramidais na parte anterior e, na calota, das fibras da fita de Reil mediana e lateral, das fibras espinho-talâmicas, dos núcleos sensitivo e motor do V par, do núcleo do VII par) ao passo que a lesão da hemi-protuberância esquerda era menor, atingindo só as vias vestibulares centrais.

Um detalhe da observação não se encaixava perfeitamente nos clássicos moldes da síndrome protuberancial; referimo-nos aos característicos da paresia facial. De fato, até então o doente não apresentava uma paralisia facial de tipo periférico, completo, como a que é encontrável na síndrome de Millard-Gubler por lesão do terço inferior da protuberância, isto é, quando é atingido o núcleo do facial ou suas raízes intra-protuberanciais. O que encontramos foi uma paresia facial, comprometendo a motricidade voluntária da hemi-face direita, principalmente na sua parte inferior: pensamos tratar-se de uma lesão supranuclear do contingente cortico-facial. Aliás, o exame elétrico revelara, ao lado de grave comprometimento da excitabilidade dos músculos inervados pelo trigêmeo direito, completa normalidade dos músculos inervados pelo facial, o que confirmava o raciocínio clínico de que as perturbações da motricidade na face, eram consequência de lesão supra-nuclear.

Como explicar, pois, a hemiparesia alterna, simulando a hemiplegia alterna tipo Millard-Gubler? Evidentemente esta hemiparesia alterna não podia ser explicada por uma lesão única: a lesão protuberancial direita estaria produzindo a hemiparesia dos membros superior e inferior esquerdos, ao passo que a paresia facial à direita só poderia ser explicada pela lesão do contingente cortico-facial do lado esquerdo, acima do entrecruzamento. Considerando-se a paralisia nuclear do trigêmeo direito, poder-se-ia imaginar que a lesão, situada no 1/3 médio da protuberância e à direita, invadira um pouco a hemi-protuberância esquerda, atingindo, aí, as fibras para a motricidade voluntária da hemi-face direita.

Haveria outra hipótese, também aplicável ao caso. A lesão estaria no terço inferior da protuberância direita produzindo alterações nucleares ou radiculares, porém não totais, no facial direito. A evolução do caso resolveria estas dúvidas: caso estivesse certa a primeira hipótese, a paresia facial conservaria até o fim os característicos do tipo central, isto é, respeitaria parcialmente a musculatura superior da face. Caso contrário, a paresia facial se acentuaria globalmente tendendo a realizar o tipo periférico: completa esta paralisia e aguardando tempo necessário, o exame elétrico, demonstrando a reação de degeneração, esclareceria todas as duvidas.

Além disso, outros sintomas chamaram a atenção indicando a propagação do processo. O aparecimento de distúrbios na deglutição e a disfonia levaram a pensar no acometimento dos núcleos bulbares; embora o exame laringoscópico não tivesse demonstrado paralisia das cordas vocais ou do véo do paladar, tais distúrbios indicavam, seguramente, o comprometimento das funções do vago-espinhal e do glosso-faríngeo.

Si o diagnóstico topográfico era relativamente fácil, o mesmo não se dava em relação à etiología do processo. Dada a rapidez da evolução, pensou-se em um tumor, não sendo descabível a hipótese de um tubérculo, em virtude da existência de tuberculose pulmonar em um irmão do paciente. Para maiores esclarecimentos o paciente foi internado na 1.a Enfermaria de Medicina da Santa Casa de Misericórdia, o que se deu em 11 de Março.

Rapidamente se agravaram os distúrbios acima referidos, sobrevindo, além disso, paralisia do VI Par à direita com consequente estrabismo interno do olho homólogo. Agravaram-se as perturbações na deglutição dos alimentos os quais, por vezes, regorgitavam pelo nariz. A fala era monótona, escandida e hipofônica. O estado geral se agravou rapidamente, alterando-se, também, as funções psíquicas: sua atenção, provocada ou espontânea, era dispersa; indiferentismo em relação ao ambiente, aos familiares e ao seu estado de saúde; sonolência e estado de torpor. Nunca se queixou de cefaléia. Frequentes eram os vômitos em jacto, sem serem precedidos de náuseas. A desambulação e atitude erecta tornaram-se cada vez mais difíceis e, afinal, impossíveis, permanecendo o doente sempre acamado, muito quieto, preferivelmente em decúbito lateral direito, com a cabeça antefletida. e em rotação para a direita.

Sob o ponto de vista neurológico, completaram-se e agravaram-se os distúrbios já assinalados. Tornaram-se nitidamente positivas as manobras de Barré e Mingazzini no membro inferior esquerdo. Tornaram-se mais nítidos os sinais cerebelares, localizando-se ainda mais no hemi-corpo direito. Também se intensificaram os sinais de déficit sensitivo, principalmente na hemi-face direita. A deficiência motora da musculatura da hemi-face direita também se agravou englobadamente, sendo atingidas tanto a motricidade voluntária como automática de todos os músculos faciais, tanto do território superior como do inferior. Instalou-se, assim, rápida e progressivamente a paralisia facial tipo periférico, completando-see, pois, a síndrome, de Millard-Gubler, indicadora segura de lesão protuberancial inferior direita.

Alguns dias depois de internado o doente, surgiram, no membro superior direito, movimentos anormais de tipo mal definível, dos quais resultava uma instabilidade motora na mão e no antebraço direitos; assemelhavam-se aos movimentos coréicos mas não tinham a intensidade e a constância destes últimos. Não os classificamos como mioclonias porque não se tratava de contrações musculares isoladas e sim de contrações de agrupamentos musculares movimentando segmentos esqueléticos. O que verificamos foi exatamente o seguinte: a mão e o antebraço direitos, que permaneciam ao longo do corpo do doente acamado, eram, de vez em quando, movimentados e elevados acima do plano do leito, como que jogados, por contrações musculares bruscas, sem ritmo, sem continuidade. Estes movimentos cessavam quando o doente dormia, reaparecendo desde que acordasse, o que, aliás, só se dava por solicitação extranha. Em nenhum momento foram notadas mioclonias quer no véo do paladar ou em outro setor muscular.

A sintomatologia neurológica fazia pensar em tumor, apesar de não haver cefaléia. No entanto, os exames complementares não corroboraram esta hipótese. Foi feito novo exame neuro-ocular que não revelou qualquer alteração do fundo dos olhos. Repetida a punção sub-occipital, forneceu liquor normal e não hipertenso.

Conhecidos certos antecedentes familiares, fôra aventada a hipótese de um tubérculo protuberancial, hipótese que, também, não encontrou apoio suficiente, uma vez que nada de anormal fôra encontrado, clínica e radiologicamente, no aparelho respiratório e que resultara negativo o exame de escarro; negativa, também, foi a reação de Mantoux.

A possibilidade de tratar-se de uma lesão vascular também não foi desprezada apezar do caráter rapidamente evolutivo do processo e de não ter havido ictus inicial; também esta hipótese, porém, não encontrava apoio clinicamente, pois nada havia de anormal no aparelho cardiovascular, sendo normal a pressão arterial. Além disso, estava normal a taxa de uréia no sangue (0,35 gr por litro), sendo também normal a contagem global e específica dos glóbulos sanguíneos.

O único exame complementar que forneceu alguma indicação para o esclarecimento etiológico foram as radiografias do crânio. Ao lado a inexistência de sinais de hipertensão intracraniana - o que estava de acordo com a inexistência de cefaléia, de alterações dos fundos oculares e de hipertensão liquórica - o radiologista encontrou uma condensação e opacidade total da mastoide esquerda, indicando processo inflamatório crônico (P. Toledo).

Com este achado surgiu outra hipótese diagnóstica: a de um abcesso intra-craniano secundário a mastoidite. Contra ela existiam três fatos: a ausência de hipertermia, a ausência de polinucléose neutrófila no sangue e a normalidade cito-química do líquido céfalo-raquidiano. Apesar destes fatos negativos, porem, a hipótese ainda permaneceu de pé, pois a forma e a rapidez da evolução da sintomatologia neurológica poderiam ser explicadas pela existência de um processo supurado atingindo o tronco cerebral e cerebelo direito Mesmo a total ausência de sinais de hipertensão intra-craniana não infirmava esta hipótese diagnóstica, dado que é comum evoluirem os abcessos encefálicos, mormente os não encapsulados, sem sintomatologia hipertensiva.

De quarquer forma, nos pareceu impossível firmar convenientemente, tão somente pelos dados colhidos até então, a etiología do processo, sem o que seria impossível uma terapéutica segura. Como, por outro lado, se agravassem contínua e rapidamente os sintomas com evidente peiora do estado do paciente, foi decidida a realização do exame ventriculográfico, sendo praticada, pelo Dr. Carlos Gama, em 18 de Março, a trepanação occipital esquerda. Como, durante a intervenção, se agravassem os distúrbios do paciente, a injeção de ar foi adiada.

No dia seguinte o estado geral foi considerado mau, estando o doente em completo torpor, com pulso fino, isócrono, taquicárdico (96) e ligeiramente hipertérmico (38,5). Nesse estado continuou todo dia, falecendo à noite, apesar da terapêutica tônico-cardíaca.

Com consentimento da família foi praticada autopsia parcial, retirando-se o encéfalo para exame, em 21 de Março de 1942.

Exame anátomo-patológico - Macroscopicamente: dura-mater de aspecto e coloração normais. Ligeiro grau de congestão dos vasos piaencefálicos e pequeno edema encefálico. Pequeno foco hemorrágico subdural ao nível do orifício de trepanação occipital esquerdo. Hemisférios cerebrais depressíveis, dando idéia de hidrocefalia interna. Nenhum sinal de tumor da base do crânio ou atingindo os nervos cranianos. Ligeiro exudato branco-amarelado nas cisternas quiasmática e cerebelar. Grande deformação da protuberância, a qual se apresentava achatada no sentido antero-posterior, com desaparecimento da saliência habitual da ponte de Varoli. O achatamento era muito mais nítido na hemi-protuberância direita onde a palpação dava impressão de flutuação. Os outros segmentos do tronco encefálico se apresentam com aspecto normal. Tronco basilar recurvado com concavidade para a direita (fig. 1).


Aguardado o tempo necessário para a fixação, foi feito um corte vértico-oblíquo apanhando o cerebelo e a protuberância. Este corte mostrou, ocupando o pedúnculo cerebelar médio direito e a parte posterior da hemi-protuberância homóloga, uma tumoração composta de duas partes: uma cavidade irregularmente oval medindo 3 cmts. de comprimento por 2 cmts. de largura, cheia de um material de aspecto gelatinoso e de cor esverdeada (fig. 2); a outra parte era constituída por nódulos finamente granulosos e de cor castanho-pálida, situados atraz da cavidade cística já em plena substância branca do cerebelo, que se propagavam para cima, pela calota da ponte, indo até a parte inferior do pedúnculo cerebral (fig. 3). Nos hemisférios cerebrais nada havia de anormal, além do edema já assinalado. Dilatação moderada das cavidades ventriculares.



Exame microscópico: Os diversos cortes histológicos, corados pela hematoxilina-eosina, mostraram tecido neoplásico com aspectos variados. Em primeiro lugar, destacava-se o cisto contendo material acidófilo e homogêneo, semelhante à substância coloide, cuja parede era constituida por elementos fusiformes, de tipo espongioblástico, entremeados de fibrilas gliais, formando feixes dispostos circularmente em tomo da cavidade (fig. 4). Para fora dessa faixa, o tecido neoplásico era constituído por células piriformes com o núcleo deslocado para a periferia e cujos prolongamentos, em vários pontos, se inseriam em vasos, apresentando, assim, os caracteres dos astroblastos (fig. 5). Esta área se continuava sem limites precisos com outra onde existia acentuado polimorfismo celular, misturando-se células gigantes multinucleadas com células muito pequenas, redondas e fusiformes. Além disso, existiam pequenas áreas irregulares de necrose, circundadas por acúmulos de pequenas células das quais sobressaía o núcleo, formando arranjos semelhantes a palissadas (fig. 6). Os vasos aqui, eram numerosos, em geral muito dilatados, parecendo lacunas sanguíneas; vários deles estavam obliterados por trombose. Os limites da neoplasia com o tecido nervoso circunvizinho eram variados: em certos pontos havia nítida demarcação, em outros, a neoplasia infiltrava difusamente o tecido nervoso, como se verificava ao nível do núcleo denteado (Fig. 7).





Trata-se, evidentemente, de um cisto gliomatoso que sofrerá transformação maligna. De fato, o material nele contido não era de natureza necrótica, mas tinha o aspecto de líquido gliomatoso coagulado; além disso, sua parede era formada por elementos diferentes daqueles vistos na outra parte. Esta última, oferecia os caracteres do glioblastoma multiforme o qual, habitualmente, não é cístico.

Comentários

Dos elementos diagnósticos encontrados nesta observação, alguns merecem ser focalizados. Em primeiro lugar, a ausência de sinais de hipertensão intracraniana. Durante os três meses que durou a evolução do caso, nenhum sinal, a não ser os vômitos em jacto e sem náuseas, revelava que uma tumoração estivesse crescendo dentro do crânio. As radiografias não mostravam impressões digitais, platibasia ou deformação da sela turca, os exames oftalmológicos não revelaram papila de estase, a punção raquidiana não mostrou hipertensão manométrica. Ausentes estes elementos, o diagnóstico de neoplasia, embora suspeitado, não poude ser firmado convincentemente, permitindo mesmo que se atribuísse a sintomatologia neurológica a um abcesso ponto-cerebelar.

Aliás, é notável que a ausência de sinais de hipertensão intracraniana, mormente alterações do fundo de olho e alterações radiológicas do crânio, tenha sido assinalada com relativa frequência nos tumores intra-protuberanciais, servindo mesmo, segundo alguns, para diferenciá-los dos tumores do ângulo ponto-cerebelar pois que estes sempre se fazem acompanhar de tais alterações, consequentes à hipertensão intracraniana. Um trabalho de Alpers e Yaskin2 2 . Alpers, B. J. e Yaskin, J. C. - Gliomas da protuberancia Arch, of Neurol. a. Psych. 41: 453 (Março) 1939. mostra bem este fato aparentemente paradoxal: em 11 casos de neoplasias intra-protuberanciais, algumas das quais muito extensas, produzindo grandes deformações no tronco cerebral e bloqueios da dinâmica ventricular com hidrocefalia interna considerável, só um apresentou pequeno edema de papila; em todos os outros o exame oftalmoscópico nada revelou. Nosso caso, pois, não constitue uma exceção, antes confirma a regra de que nos tumores intra-protuberanciais não se deve ter em grande conta a papila de estase e outras alterações do fundo de olho. Diga-se o mesmo em relação às alterações radiológicas, pois, também entre os 11 casos relatados por Alpers e Yaskin, só um as apresentava.

É licito discutir aqui o mecanismo pelo qual se produzem os chamados vômitos de tipo cerebral. Se é verdade que este sintoma é encontrado, habitualmente, nos casos de grandes hipertensões intracranianas, não é menos exato que em muitos outros casos - como se deu no que observamos - ele se apresenta isolado, parecendo ser totalmente independente da hipertensão intra-craniana. Para nosso caso, pensamos, seria mais lógico atribui-lo às lesões dos centros vegetativos pontobulbares, reguladores do tonismo do trato gastro-esofagiano.

Nos últimos dias de vida do paciente que observamos, foi notado outro sinal, também atribuído, por alguns, à hipertensão intracraniana e à dor por ela causada: referimo-nos à posição viciosa que o paciente adotara, com a cabeça permanentemente inclinada sobre o ombro direito. Querem alguns que esta posição - chamada antálgica - é devida a uma modificação tônica dos músculos do pescoço como defesa contra a dor produzida pelos movimentos da cabeça nos tumores da fossa posterior; agravando-se essas dores pelo bloqueio dos condutos interventriculares produzido pela massa tumoral, o doente assumiria uma atitude, especial para cada caso, que facilitasse a passagem do liquor. Em nosso caso porem, tal posição não se poderia denominar antálgica pois o doente nunca se queixou de dores; dest'arte a posição viciosa deveria ser explicada de outra forma, talvez pelas lesões dos centros tonigenos do rombencéfalo, acarretando uma diferença de tonus entre um lado e outro.

A sintomatologia neurológica do caso que observamos não permitia dúvida no que respeita ao diagnóstico topográfico. Poderia ser discutido, apenas, o diagnóstico diferencial com os tumores do ângulo ponto-cerebelar. Contra esta última localização, porém, existiam fatos bem elucidativos, tais como a ausência de papila de estase já comentada acima e ainda mais, o acometimento bilateral porem incompleto da audição e a existência de nistágmo vertical espontâneo, sendo este sinal universalmente considerado como seguro indicador das lesões centrais das vias vestibulares.

É de notar que por ocasião do primeiro exame que procedemos no doente, e mesmo depois de internado, não verificamos uma paralisia facial completa, de tipo periférico e sim uma paresia facial parcelada. Só com o correr dos dias acentuou-se a paralisia facial, atingindo afinal a intensidade e extensão que são habituais nas lesões nucleares do VII par. Alpers e Yaskin (loc. cit.) já tinham observado o mesmo fato em 2 de seus 11 doentes, atribuindo-o à progressão lenta da destruição nuclear pela neoplasia.

Fizemos o diagnóstico de lesão intra-protuberancial e avançando ainda mais, aventamos que a lesão inicialmente cerebelar (inicio da sintomatologia por sinais nitidamente cerebelares), invadira a hemi-protuberância direita, atingindo-a em toda sua extensão, isto é, lesando tanto o pé como a calota. Assim pensamos por serem bem nítidas a hemiplegia e a hemianestesia alternas, assim como as paralisias dos V, VI, VII pares e os distúrbios cerebelosos. No entanto, o exame anatômico nos mostrou que o pé da protuberância estava quase que totalmente íntegro, estando lesados somente os contingentes piramidais mais posteriormente situados. Esta discordância entre os fatos clínicos e os achados anátomo-patológicos talvez se possa explicar pelo fato de que o tumor, sem a alterar profundamente, comprimia a parte anterior da protuberância e consequentemente o feixe piramidal direito, de encontro à proeminencia basilar. Confessamos porem que, durante a vida do doente, não nos ocorreu esta possibilidade, estando inclinados a admitir mesmo que a lesão fosse mais pronunciada no pé que na calota. E assim pensamos porque o doente não apresentou o sinal - espasmo do masseter homolateral ao tumor - que Rasdolsky descreveu3 3 . Rasdolsky, I. - Síndrome de neoplasma da parte dorsal da ponte. Ztschrift. f. Ges. Neurol. u. Psych. 152: 530 (Abril) 1935. como sendo característico dos neoplasmas localizados na parte posterior da protuberância.

No que diz respeito à variedade da neoplasia - astrocitoma de forma cística com degeneração - à sua localização primária - hemisfério cerebelar ou proximidades - à evolução - em geral rápida apesar de ter Gagel observado um caso com 12 anos de evolução4 4 . Gagel, O. - Astrocitoma da protuberância: evolução inusual. Nervenartzt. 14: 343 (Agosto) 1941. - nosso caso não escapa à regra geral deste tipo de neoplasia. Este tipo de tumor em geral se localiza nos hemisférios cerebelares de pacientes jovens e tem evolução curta. Alem dos 11 casos de Alpers e Yaskin, todos falecidos entre 3 e 12 meses após o início, poderemos citar outros 12, referidos por Foerster e Gagel5 5 . Foerster O. e Gagel O. - Gliomas da ponte. Ztschrift. f. d. Ges, Neuro y Psych 166: 497 (Junho) 1939. , nos quais a duração média dos astrocitomas intra-protuberanciais foi de 3 anos e 6 meses.

  • Astrocytoma ponto-cerebelar.

    Estudo anátomo-clínico
  • 1
    . Isaac Jones - Equilibrium and vertigo. 1 volume, Baltimore, 1918.
  • 2
    . Alpers, B. J. e Yaskin, J. C. - Gliomas da protuberancia Arch, of Neurol. a. Psych.
    41: 453 (Março) 1939.
  • 3
    . Rasdolsky, I. - Síndrome de neoplasma da parte dorsal da ponte. Ztschrift. f. Ges. Neurol. u. Psych.
    152: 530 (Abril) 1935.
  • 4
    . Gagel, O. - Astrocitoma da protuberância: evolução inusual. Nervenartzt.
    14: 343 (Agosto) 1941.
  • 5
    . Foerster O. e Gagel O. - Gliomas da ponte. Ztschrift. f. d. Ges, Neuro y Psych
    166: 497 (Junho) 1939.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1944
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