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Enfermeiros e usuários do Programa Saúde da Família: contribuições da bioética para reorientar esta relação profissional

Resumos

OBJETIVO: Identificar problemas éticos vividos por enfermeiros na atenção básica, com vistas a contribuir para aprimorar a relação profissional-usuário. MÉTODOS: Estudo de ética descritiva, empírico, qualitativo no Programa Saúde da Familia de São Paulo, com entrevistas semi-estruturadas e análise de conteúdo. RESULTADOS: A dimensão ética na atenção básica lida com situações corriqueiras da prática cotidiana É urgente o redirecionamento da sensibilidade dos enfermeiros para a percepção da sutileza dos problemas éticos nas relações com os usuários na atenção básica. CONCLUSÃO: A ponderação e especificação dos princípios da autonomia, não maleficência, justiça e beneficência, enriquecidas por outros enfoques da bioética, podem contribuir para a construção da cidadania e promoção da saúde.

Bioética; Ética de enfermagem; Programa saúde da família; Atenção primária á saúde; Relações enfermeiro-paciente; Saúde Pública


OBJECTIVE: To identify ethical issues experienced by nurses during their clinical practice in primary care settings and to explore ways to improve the nurse-patient ethical relationship. METHODS: This qualitative descriptive study was conducted through semi-structured interviews with 17 registered nurses from a Family Health Program in São Paulo City, Brazil. Data were analyzed through content analysis. RESULTS: Ethical issues in primary care settings are not serious and do not demand immediate attention. Ethical issues in these settings can be easily resolved through good nurse-patient relationship. CONCLUSION: The main ethical principles of autonomy, justice, and beneficence may contribute to better citizenship and health promotion.

Bioethics; Ethics, nursing; Family health program; Primary health care; Nurse-patient relations; Public health


OBJETIVO: Identificar problemas éticos vividos por enfermeros en la atención básica, con miras a contribuir para perfeccionar la relación profesional-usuario. MÉTODOS: Estudio de ética descriptiva, empírico, cualitativo realizado en el Programa Salud de la Familia de Sao Paulo, con entrevistas semi-estructuradas y análisis de contenido. RESULTADOS: La dimensión ética en la atención básica lidia con situaciones rutinarias de la práctica cotidiana. Es urgente el redireccionamiento de la sensibilidad de los enfermeros para la percepción de la sutilidad de los problemas éticos en las relaciones con los usuarios en la atención básica. CONCLUSIÓN: La ponderación y especificación de los principios de la autonomía, no maleficencia, justicia y beneficencia, enriquecidas por otros enfoques de la bioética, pueden contribuir en la construcción de la ciudadanía y promoción de la salud.

Bioética; Ética de enfermería; Programa salud de la familia; Atención primaria de salud; Relaciones enfermero-paciente; Salud pública


ARTIGO ORIGINAL

Enfermeiros e usuários do Programa Saúde da Família: contribuições da bioética para reorientar esta relação profissional* * Trabalho realizado no Programa Saúde da Família de São Paulo.

Enfermeros y usuarios del Programa Salud de la Familia: contribución de la bioética para reorientar esta relación profesional

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli

Professora Doutora da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo -USP - São Paulo (SP), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli Av.: Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira Cesar SP- Cep:05403-000 E-mail: elma@usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Identificar problemas éticos vividos por enfermeiros na atenção básica, com vistas a contribuir para aprimorar a relação profissional-usuário.

MÉTODOS: estudo de ética descritiva, empírico, qualitativo no Programa Saúde da Familia de São Paulo, com entrevistas semi-estruturadas e análise de conteúdo.

RESULTADOS: A dimensão ética na atenção básica lida com situações corriqueiras da prática cotidiana É urgente o redirecionamento da sensibilidade dos enfermeiros para a percepção da sutileza dos problemas éticos nas relações com os usuários na atenção básica.

CONCLUSÃO: A ponderação e especificação dos princípios da autonomia, não maleficência, justiça e beneficência, enriquecidas por outros enfoques da bioética, podem contribuir para a construção da cidadania e promoção da saúde.

Descritores: Bioética; Ética de enfermagem; Programa saúde da família; Atenção primária á saúde; Relações enfermeiro-paciente; Saúde Pública.

RESUMEN

OBJETIVO: Identificar problemas éticos vividos por enfermeros en la atención básica, con miras a contribuir para perfeccionar la relación profesional-usuario.

MÉTODOS: Estudio de ética descriptiva, empírico, cualitativo realizado en el Programa Salud de la Familia de Sao Paulo, con entrevistas semi-estructuradas y análisis de contenido.

RESULTADOS: La dimensión ética en la atención básica lidia con situaciones rutinarias de la práctica cotidiana. Es urgente el redireccionamiento de la sensibilidad de los enfermeros para la percepción de la sutilidad de los problemas éticos en las relaciones con los usuarios en la atención básica.

CONCLUSIÓN: La ponderación y especificación de los principios de la autonomía, no maleficencia, justicia y beneficencia, enriquecidas por otros enfoques de la bioética, pueden contribuir en la construcción de la ciudadanía y promoción de la salud.

Descriptores: Bioética; Ética de enfermería; Programa salud de la familia; Atención primaria de salud; Relaciones enfermero-paciente; Salud pública.

INTRODUÇÃO: A BIOÉTICA E A ATENÇÃO BÁSICA

Concebida como idéia de ponte, a bioética, ao dar mais espaço para o limite e a exceção e relegar os problemas do cotidiano, pode se apresentar, bem mais, como muro e ficar isolada dos problemas de ordem ética que envolvem a maioria das pessoas em sua vida diária e em boa parte dos serviços de saúde e dos fazeres profissionais. Assim, não causa surpresa a escassa produção em bioética voltada para a atenção básica que, por suas peculiaridades e especificidades, traz questões eticamente significativas distintas das vividas na clínica hospitalar. Os atores (usuários, trabalhadores, profissionais, gestores), o ambiente, o tipo de encontros e relações da equipe de saúde com os usuários, a conformação e o trabalho em equipe têm características diferentes do que se vê na atenção hospitalar(1).

Desta forma, ao se transpor os estudos e as reflexões realizados na e para a assistência hospitalar, de maneira acrítica, para a atenção básica, corre-se o risco de se incorrer na incompletude da bioética, sem mencionar o manejo equivocado das situações geradoras de problemas éticos. Isto porque se estaria tomando um cenário de saúde como o modelo para os demais, desprezando as peculiaridades de cada um deles. Daí a necessidade salientada por alguns autores de se desenvolver estudos para identificar os problemas éticos próprios da atenção básica, especialmente em unidades básicas de saúde(2-4).

Com estas motivações, realizou-se estudo para identificar problemas éticos vivenciados por enfermeiros do Programa de Saúde da Família e os fundamentos que balizam sua tomada de decisão nestas situações(5).

Neste artigo serão discutidos os resultados concernentes às relações com usuários e suas famílias, na perspectiva dos enfermeiros, com vistas a contribuir para a construção de pontes entre cuidado e trabalho, entre acolhimento e técnica na prática da enfermagem. A bioética propicia uma ética de novas relações profissionais, destituindo toda e qualquer voz de monopólio nas relações, pois reconhece e legitima a pluralidade de papéis e vozes a fim de impedir a desqualificação do outro pelo exercício do poder. A amalgama da escuta ativa, do olhar atento, da reflexão genuína, do conhecimento e da competência técnicas possibilitará relações profissionais respeitadoras e promotoras dos direitos, da liberdade e da dignidade humanas(6).

MÉTODOS

Foram incluídos 17 enfermeiros de equipes de saúde da família do Município de São Paulo. O tamanho da amostra seguiu o critério de representatividade e variabilidade que permitisse abranger o discurso acerca do problema investigado em suas múltiplas dimensões, saturando-o. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Desenvolveu-se estudo empírico, qualitativo, de ética descritiva, que constitui a investigação factual da conduta moral por meio de procedimentos e metodologias de natureza científica, com vistas a conhecer como as pessoas equacionam e agem. Sendo tarefa científica, e não filosófica em bioética, presta-se, dentre outras funções, a identificar e caracterizar os problemas éticos vividos na atenção à saúde.

Em entrevistas semi-estruturadas, pedia-se a narração de uma situação vivida pelos profissionais na qual considerassem que tinham se defrontado com problemas éticos, listando-os, em seguida. Após a transcrição dos depoimentos gravados, procedeu-se à análise categorial temática, segundo Bardin(7). Na análise de conteúdo identificaram-se três âmbitos nas situações geradoras de problemas éticos: relações com os usuários e famílias; relações de equipe e relações com a organização e o sistema de saúde.

Por situar a pesquisa no escopo da ética descritiva, distinguiu-se, no estudo, dilema de problema ético. Dilema envolve "duas proposições contraditórias, entre as quais se é colocado na obrigação de escolher"(8). Por extensão de seu sentido etimológico, a expressão dilema é aplicada à "oposição mutua de duas teses filosóficas tais que a aceitação ou o repúdio de uma, com os seus corolários, leva à negação ou à afirmação da outra sem que nenhuma das duas possa ser refutada com a ajuda dos princípios professados pelos dois partidos que as sustentam"(8).

Por outro lado, problema ético abrange os aspectos, as questões ou as implicações éticas de ocorrências "comuns", corriqueiras na prática da atenção à saúde, não configurando, necessariamente, um dilema, como definido anteriormente(9). Problemas éticos consistem sempre em conflitos de valores, é claro, e os valores têm como base os fatos. Porém, são os atores envolvidos nos casos que elegem o que é problema ético que o aflige e quer discutir, isto não é prerrogativa de um experto(10). Assim, a enunciação dos problemas éticos que segue, é apresentada segundo o definido pelos entrevistados.

RESULTADOS: A DIMENSÃO ÉTICA DA RELAÇÃO USUARIO E ENFERMEIRO NO PROGRAMA SAÚDE DA FAMILIA- PSF

Os enfermeiros apontam como problemas éticos nas relações com os usuários e as famílias: dificuldade em estabelecer os limites da relação profissionalusuário; pré-julgamento dos usuários por parte da equipe; desrespeito do profissional para com o usuário; indicações clínicas imprecisas; prescrição de medicamentos que o usuário não poderá comprar; prescrição de medicamentos mais caros com eficácia igual a dos mais baratos; solicitação de procedimentos pelo usuário; como informar o usuário para conseguir sua adesão ao tratamento; omissão de informações ao usuário; acesso dos profissionais de saúde a informações relativas à intimidade da vida familiar e conjugal dos usuários; dificuldades para manter a privacidade nos atendimentos domiciliários; compartilhamento do diagnóstico do usuário com os demais membros de sua família.

Os resultados revelam que na atenção básica os problemas éticos decorrem de preocupações corriqueiras ao cotidiano da atenção à saúde. Estudo realizado em Israel(3) também apontou entre os 10 problemas éticos mais freqüentemente assinalados pelos enfermeiros de serviços comunitários: conflito entre as necessidades dos usuários e da família; cuidado a usuários ofensivos; denúncia de atos incompetentes de médicos ou enfermeiros; comportamento insultuoso ou rude dos profissionais para com os usuários; omissão de informação ao usuário por pressões da família; administração de tratamento errado ou com validade questionável e o constrangimento aos usuários que recusavam tratamento.

Isto remete à sutileza que pode cercar os problemas éticos na atenção básica(9). A clínica neste nível de atenção, especialmente no Programa de saúde da Família (PSF), dá-se em momento crônico, com seguimento no tempo e resultados a médio e longo prazo, é análogo a um filme. Na atenção hospitalar, o encontro momentâneo ocorre em episódios agudos que requerem resultados imediatos, comparável a uma fotografia(1). Esta constância e aparente simplicidade dos encontros com os usuários na atenção básica imprimem especificidades e peculiaridades à forma como os problemas éticos emergem, o que pode dificultar seu reconhecimento. Acrescente-se a isto, que as questões de ética que ocupam mais espaço na mídia, são as mais dilemáticas, como aborto, eutanásia, clonagem, etc.

Estas peculiaridades da atenção básica, também parecem explicar as dificuldades para estabelecer os limites na relação com usuário: "o limite da relação profissional – família, profissional – paciente, é pra mim um dilema ético (....) a gente faz a nossa parte e a gente não tem que se meter em outros assuntos (....) eu acho que a gente é responsável sim, a gente tem que fazer alguma coisa sim (E2)

Autonomia é, muitas vezes, equivocadamente confundida com independência, de onde decorre que o respeito à pessoa autônoma resume-se a não interferir em suas decisões e escolhas. O individualismo está na base desta compreensão, pulverizando a razão da responsabilidade interpessoal, domesticando a capacidade da indignação diante de iniqüidades e reduzindo a ética a aspectos defensivos, em prejuízo de seu dinamismo afirmativo e criativo. A prática do cuidado constitui exercício de proximidade ética, exigindo contigüidade, disponibilidade, preocupação pelo outro, acercamento de sua dor. Mas, se não se pode ajudar alguém à distância, a proximidade não pode significar dependência afetiva que obscurece a identidade pessoal. O enfermeiro não pode ocupar o lugar do outro e responder por ele. Para cuidar há de se manter um distanciamento que possibilite assumir-se e tomar decisões, em ambos pólos da relação, enfermeiro e usuário. Momentos de forte proximidade têm de ser equilibrados com outros de respeitosa distância(11).

O trato rude e ofensivo das equipes de saúde para com os usuários pode comprometer o respeito e a promoção da autonomia, que pressupõem relação de diálogo entre duas pessoas que se reconhecem como sujeitos. Um comportamento violento e agressivo se não inviabiliza, ao menos ameaça, a relação de vínculo com vistas a autonomização dos usuários. De um lado, o usuário busca a resolução de um problema de saúde que considera importante, e do outro, o trabalhador de saúde, muitas vezes, mantêm-se preso a procedimentos, normas e rotinas do serviço ou ainda, a seu entendimento técnico do que é melhor para o usuário. Nesse desencontro de necessidades e interesses, a negociação, que se efetiva pelo diálogo respeitoso e escuta qualificada, é necessária e deve estar presente, pois nem sempre o carecimento do usuário é interpretado como um problema de saúde pelo trabalhador e/ou serviço de saúde(12). A comunicação é indispensável para a assistência à saúde, pois, além de principal meio de veiculação do processo educativo, constitui-se recurso para estabelecer a confiança e a vinculação do usuário à equipe e ao serviço(13). Entretanto, para isto, o que mais importa não é a capacidade argumentadora lógica, mas o diálogo de presenças, o encontro de seres que se dispõem a falar, a olhar-se, a aceitar-se e enriquecer-se mutuamente(11).

O PSF caracteriza-se pelo vínculo e co-responsabilização pela saúde. Assim é que os diversos atores do Programa (enfermeiros, médicos, agentes comunitários de saúde e gestores) identificam um perfil para este trabalho: "ter compromisso", "envolver-se" e "almejar a equidade social"(14). Estas atitudes remetem à noção de alteridade: "ser capaz de apreender o outro na plenitude de sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo da sua diferença". Isto implica recolocar e valorizar a compreensão do eu em relação com o outro, considerando-o em sua singularidade e unicidade. A superação de situações de injustiça passa necessariamente pela mudança na compreensão que temos do outro numa ruptura com o racionalismo e o individualismo modernos(15).

A autonomia do usuário não pode ser ponderada e especificada sem considerar não maleficência e justiça, como fica evidente nesta solicitação de procedimento: "Tem um caso de um paciente que é portador de HIV e já foi repetido 3 ou 4 vezes o exame dele. Mas ele não acredita, está na fase de negação (....) vai ser feito novamente o exame dele, a médica achou melhor porque (....) ele não come, não toma as medicações, não faz mais nada" (E11)

É claro que o usuário tem o direito de, autonomamente, consensuar seu projeto terapêutico com a equipe, no entanto, nesta negociação as obrigações decorrentes dos princípios da não maleficência e justiça: não prejudicar e usar eficaz e eficientemente os recursos de saúde, evitando desperdícios e promovendo sua justa alocação, também têm de ser pesadas, especialmente em cenários de escassez como no sistema de saúde brasileiro. O usuário pede uma nova coleta de exame para HIV no que é atendido em nome dos prováveis danos que a recusa poderia lhe trazer, no entanto, é sabido que as equipes, quase sempre, trabalham com restrição de cotas para encaminhamentos laboratoriais, como era o caso. Em situações excepcionais, os benefícios de renovar a confiança do usuário em dúvida acerca de seu diagnóstico justificam a repetição de exames, ainda que desnecessários e com custos injustos para o sistema de saúde(5). Essa visão parece considerar excessivamente o ângulo individual, provavelmente em decorrência do protagonismo da autonomia e livre escolha que marca a bioética norte-americana. Uma atenção à saúde que vise à autonomização das pessoas e a co-responsabilização pela saúde, terá que ponderar o princípio ético da justiça, aceitando-se a recusa de procedimentos desnecessários em vista da distribuição eqüitativa de recursos escassos.

A preocupação com as condições dos usuários para adquirir os medicamentos prescritos, parece avançar para além do cunho biológico do modelo queixa-conduta, possibilitando troca de valores e concepções, com vistas à co-responsabilização pela saúde: "Se eu for prescrever uma pomada (....) eu tenho que saber se eu não tenho no posto e se ela tem condições de comprar. Que não adianta eu fazer a receita, se ela guardar e não usar. Então tem coisas naturais ..." (E11)

A autonomia, na realidade latino-americana, precisa ser pensada mais dialeticamente, considerando a vulnerabilidade, especialmente em sua dimensão social. O respeito à pessoa autônoma, então, não pode se limitar a atitudes passivas de, simplesmente, não invadir a autonomia do outro. É necessário ir além disso e, com ajuda mutua, enfrentar as insuficiências e construir a autonomia(16). Somente a capacidade de transcender a nós mesmos e compreender a dor do outro, pode tornar presente a sensibilidade que gera a disposição para superar as contradições e o sistema produtores desta dor acompanhada da negação do outro(15).

O princípio da vulnerabilidade interpela diretamente o enfermeiro quanto a sua responsabilidade em estabelecer relações simétricas com o usuário dos serviços. Obriga, profissionais e instituições a proteger, zelar por todos os cidadãos, igualmente. O princípio da vulnerabilidade ainda excede a lógica da reivindicação dos direitos das pessoas, para anunciar a lógica da solicitude dos deveres que competem a todos(17). Visa complementar a ética dos direitos, calcada na liberdade individual e desenvolvida no reforço da autonomia, com uma ética de responsabilidade, firmada na alteridade e cultivada na solidariedade.

A humanização da atenção à saúde requer garantias ao direito de informação, um dos elementos vitais para que o usuário possa tomar decisões substancialmente autônomas sobre sua saúde. A relação de confiança, vínculo e co-responsabilização determinam a obrigatoriedade dos enfermeiros reconhecerem e respeitarem a autonomia dos primeiros, incluindo o dever de conversar e expor a informação de maneira compreensível, ou seja, simples, aproximativa, inteligível, leal e respeitosa(18). Por isso, chama a atenção que a preocupação do enfermeiro é como informar para conseguir a adesão do usuário, e não como transmitir a informação de maneira a assegurar decisões esclarecidas e substancialmente autônomas.

Alguns depoimentos reiteram consideração acerca da "relação de amizade" que, por vezes, se estabelece entre o profissional e o usuário em decorrência das peculiaridades da atenção no PSF e proporcionam acesso a informações para além da esfera clínica, adentrando em aspectos íntimos da dinâmica familiar: "(....) de repente surge no meio de uma consulta (....) histórias de infidelidade conjugal (....) de gravidez indesejada ou de dúvida de paternidade (....)" (E5)

É claro que esta situação denota a obrigatoriedade de se preservar a confidencialidade(19) pois, caso contrário, na maioria das circunstâncias o usuário não se sentiria à vontade para revelar informações que são privativas e potencialmente embaraçosas. Embora adentrar em aspectos íntimos da vida familiar gere certo desconforto, como mostrou este estudo.

O PSF, com as visitas domiciliárias e os agentes comunitários de saúde, torna mais próxima com a família e vizinhos, trazendo novos desafios para a preservação da confidencialidade:

"(....) às vezes (....)na visita, tem outras pessoas(....)vizinho(....)você acaba conversando com a paciente, mas outras pessoas também acabam tendo acesso ao que tá acontecendo com aquela determinada pessoa" (E10)

"(....) os agentes comunitários (....)têm acesso ao prontuário e fala do vizinho, que tem tal problema (....)" (E3)

O compartilhar de informações com a família é esperado, em virtude de sua função cuidadora e protetora(20). Porém, compete a cada usuário estabelecer o que, de seu âmbito privativo, deseja e autoriza que seja revelado a sua família, vizinhos ou amigos próximos, mesmo que estes sejam profissionais de saúde.

DISCUSSÃO: O OLHAR DA BIOÉTICA PARA A RELAÇÃO DO ENFERMEIRO E O USUÁRIO NO PSF

As situações vividas pelos enfermeiros no PSF não podem ser caracterizadas como dilemáticas, mas antes representam aspectos éticos integrantes do cotidiano do cuidar. Diferem das situações críticas que requerem soluções imediatas enfrentadas no contexto da clínica hospitalar. Essas peculiaridades podem resultar na dificuldade em percebê-las, com prejuízos à atenção, especialmente no que se refere ao vínculo e co-responsabilização pela saúde, diretrizes do PSF. Assim, parece que para atuar na atenção básica os profissionais, além de redirecionar sua prática clínica, têm de redimensionar sua sensibilidade para a compreensão, percepção e ponderação de situações eticamente significativas ou problemáticas. Podemos dizer que a formação profissional marcada pelo hospitalocentrismo e a vivência em ambientes de alta especialização também faz sentir seus efeitos no equacionamento ético dos enfermeiros.

Os enfermeiros demonstraram respeito pela autonomia do usuário ao preservar sua confidencialidade, privacidade e capacidade para ponderar e bem balancear esse princípio prima facie com o igualmente obrigatório princípio da não maleficência, especialmente frente ao risco para a saúde e vida de terceiros ou comunidade.

Entretanto, mostraram-se poucos preparados para lidar com tecnologias leves, relacionais, como comunicação, acolhimento, vínculo e escuta qualificada. Advoga-se o acesso do usuário à informação, para assegurar decisões substancialmente autônomas e efetivar a cidadania na atenção à saúde, mas isso só será possível com domínio de habilidades para condução de processos comunicativos dialógicos e emancipatórios.

A ação de cuidar, que marca a clinica da enfermagem, deve se pautar na autonomia dos usuários, reconhecendo que, muitas vezes, esta ainda é um por vir que requer uma construção em ajuda mutua e solicitude solidária. Vulneráveis, tanto quem cuida como quem é cuidado, juntos são capazes de grandes transformações, mas isolados, somente conseguirão a cristalização do que está posto na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O OLHAR DA BIÓETICA PARA A ENFERMAGEM NO PSF

A efetivação do PSF não se resume a uma nova configuração da equipe técnico-assistencial ou da unidade básica de saúde. Se a construção do Sistema Único de Saúde configura um processo de reviravolta ética por exigir dos múltiplos atores envolvidos mudanças atitudinais e culturais, o PSF amplia e aprofunda o trajeto desse giro ético, e reforça a necessidade da sensibilidade e compromisso éticos com a alteridade.

A prática da enfermagem na equipe de saúde da família tem de ser marcada pela humanização, cuidado, exercício da cidadania, respeito à dignidade e liberdade humanas e ser alicerçada na compreensão de que as condições de vida definem o processo saúde-doença-cuidado das famílias, demandando dos enfermeiros empenho para sua transformação no sentido da promoção da saúde e construção da autonomia.

REFERÊNCIAS

Artigo recebido em 18/10/2006 e aprovado em 27/02/2007

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  • Autor Correspondente:
    Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli
    Av.: Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira Cesar
    SP- Cep:05403-000
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    Trabalho realizado no Programa Saúde da Família de São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      27 Fev 2007
    • Recebido
      18 Out 2006
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