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Miscigenação e hibridismo nas Etiópicas de Heliodoro

Miscegenation and Hybridism in Heliodorus’ Aethiopica

Resumo:

Dentre todos as obras do gênero, o romance Etiópicas destaca-se pelas técnicas de composição nele empregadas. Seu autor, Heliodoro, possui a habilidade de inovar e surpreender o leitor, criando cenas, personagens e situações completamente únicas e originais. Tendo como fio vermelho o verbo μιαίνω, por ser recorrente na obra e sumarizar a ideia de miscigenação, enfatizamos alguns trechos do romance em que a ideia de hibridismo, de oposição de contrários ou ainda de sobreposição de elementos é utilizada. O estudo demonstra que a miscigenação, além de ser uma marca do estilo de Heliodoro, é uma técnica que suscita questionamentos acerca de convenções sociais, geográficas e culturais da época.

Palavras-chave:
romance grego; miscigenação; técnicas narrativas; Etiópicas de Heliodoro

Abstract:

Amongst all the works within the genre, the novel Aethiopica stands out for its composition techniques. In fact, the author Heliodorus shows the ability of both innovate and astonish readers, by creating scenes and characters, as well as distinguished and completely original situations. Taking the verb μιαίνω as a red string, since it is recurrently used in Heliodorus’ work and also summarizes the idea of miscegenation, some pieces of the romance in which the idea of hybridity, opposition of contraries or, still, the overlapping of elements are highlighted and used in the present study. The results show that miscegenation, besides being a sign of Helidorus’ style, is a technique that gives rise to questioning about social, geographical and cultural conventions of that time.

Keywords:
Greek novel; miscegenation; narrative techniques; Heliodorus’ Aethiopica

Introdução

O romance Etiópicas retrata a história de amor entre o belo Teágenes, que se jacta de ser descendente de Aquiles, e a esplêndida Caricleia, a princesa etíope que cresce em terras gregas. A união de dois jovens provenientes cujo fim é o happy end é tema comum a todos os romancistas gregos. Nesse quesito, o fenício Heliodoro, autor da obra, mantém a tradição literária. O particular apreço do escritor pela miscigenação, contudo, é um ponto de inflexão no gênero. Em meados do século passado, Feuillâtre (1966FEUILLÂTRE, E. (1966). Études sur les Étiopiques d’Héliodore : contribution à la connaissance du roman grec. Paris, Presses Universitaires de France., p. 72) já observava no autor uma obsessão pela harmonização dos contrários e pela exposição de paradoxos. Ao incluir na trama temas correlatos ou decorrentes da miscigenação, especialmente em contextos descritivos - écfrases - ou em comentários de cunho moral,1 1 Veja-se, por exemplo, o comentário inserido em 1.4.3 a respeito da captura de Teágenes e Caricleia pelo bando de salteadores egípcios: “O que acontecia era uma cena de glória: O chefe parecia servir como um escravo e o vencedor colocava-se às ordens dos presos”. Todas as traduções do romance Etiópicas são de nossa autoria e seguem o texto de R. M. Rattenburry, disponibilizado na edição francesa do romance pela Belles Lettres (Maillon, 2011), em três volumes. Heliodoro torna a história de Teágenes e Caricleia deveras original, despertando por meio dela não apenas o interesse pelas aventuras de amor, mas também indagações acerca dos valores culturais dominantes do mundo greco-romano do século IV d.C.

O objetivo deste artigo é o de localizar em que contextos e situações a miscigenação aparece nas Etiópicas. Tendo como ponto de partida o uso do verbo μιαίνω, procuraremos compreender como o conceito de harmonização de contrários estende-se pela obra como um todo, tornando-se um padrão para a caraterização dos personagens, para a composição de cenas decisivas ou ainda para a descrição de seres atípicos. Obviamente, a intenção não é a de esgotar o tema. O que se pretende é iniciar o debate sobre a miscigenação dentro do gênero do romance grego que, convém dizer, ainda é um campo a ser bastante explorado no âmbito da crítica literária.

Μιαίνω nas Etiópicas de Heliodoro

Antes de mencionar em quais contextos o verbo μιαίνω aparece nas Etiópicas, convém relacionar os possíveis significados que esse termo pode assumir. Uma rápida consulta a dicionários e léxicos que cobrem um vasto período da língua grega demonstra que o vocábulo, por si só, carrega uma conotação ambígua, já que pode assumir ora um sentido literal, ora um figurado.2 2 O Dictionnaire grec-français de Bailly traz as seguintes possibilidades: teindre e souiller (de sangue, de pó). O Greek-English Lexicon (LSJ), de Liddel e Scott, distingue entre sentido literal e figurado: 1. to paint over, stain, dye, colour, lat. violare; 2. to stain, defile, soil. 3. metaph. to taint, defile, pollute. O Greek Lexicon of the Roman and Byzantine Periods, de Sophocles, apresenta as traduções to stain, pollute. O Patristic Greek Lexicon, de Lampe, não inclui o verbete μιαίνω, apenas o verbo correlato μ(ε)ίγνυμι - to mix, misturar. Por fim, o Léxico do Novo Testamento grego-português, de Gingrich e Danker, traduz o termo como contaminar, manchar, com a nota de que há um sentido figurado de contaminação moral ou cerimonial.

O significado primário e literal de μιαίνω é “manchar”, no sentido de “colorir” e “tingir”. Por conseguinte, pode ser entendido como “sujar” ou, ainda, como “contaminar”. Quando o contexto inclui o elemento sangue, “manchar” pode ser entendido “contaminar-se moralmente”. É o caso, por exemplo, de uma violação sexual. Além do termo latino correlato violare (violar, profanar ou violentar uma mulher), mencionado em um dos léxicos consultados (LSJ), pode-se dizer que o termo latino maculare, que também possui sentido literal e figurado (“manchar, conspurcar, desonrar, corromper”) tem relação com μιαίνω. Vê-se essa relação quando o adjetivo μιαρός, ά, όν, derivado de μιαίνω, é observado: defiled with blood; 2. Generally, polluted, abominable, foul (cf. LSJ).

Em contextos religiosos, o sentido pejorativo do termo também é verificado. “Manchar”, nesse caso é, “tornar-se cerimonialmente impuro”. Esse é o uso mais encontrado em textos bíblicos, tanto no Novo Testamento quanto no texto da Septuaginta (LXX).3 3 Veja-se, por exemplo, 2 Cro. 36.14; 3 Mac. 7.14; Tob. 2.9; Sab. 7.25; 1 Esd. 1.47. É importante ressaltar que o pano de fundo histórico de μιαίνω nesses livros é o da busca por pureza moral e cerimonial do povo judeu e o consequente rechaçamento da miscigenação racial e religiosa com povos pagãos.

Enfim, seja qual for o sentido pretendido, a imagem/ação que dá origem ao verbo pressupõe a mistura ou o envolvimento físico, moral e espiritual entre dois ou mais elementos. Nesse sentido, μιαίνω dá a ideia de “miscigenar”, “sobrepor cores”, “conjugar etnias, ideais e cultos”, “misturar substâncias líquidas”.

Em Heliodoro, a ideia de miscigenação perpassa a obra, o que torna μιαίνω um vocábulo recorrente. Ele aparece em três momentos cruciais da trama: (i) na cena de abertura; (ii) no livro 7, em um contexto de extrema tensão; e (iii) nas cenas decisivas do romance.

  1. A écfrase4 4 A écfrase (ἔκφρασις) é um recurso retórico bastante explorado pelos escritores e oradores dos primeiros séculos. Nas narrativas, podem assumir a função de pausas na ação, a fim de descrever determinado personagem, lugar ou objeto. Sob esse aspecto, servem como um contraponto para a técnica da διήγησις. Ao mesmo tempo, podem servir para intensificar a narrativa, conforme comenta Webb (1999, p. 14): “far from constituting ‘narrative pauses’ (and consequently demanding interpretation) were often an intensification of the narrative, introducing a degree of detail which would evolve the audience both imaginatively and emotionally”. Sobre o uso da écfrase, ver Reardon (1971), Bartsch (1989), Futre Pinheiro (2001; 2013), Mestre (2007), Webb (2018). da cena de abertura na foz do Nilo é um espetáculo teatral, da qual os piratas egípcios são os espectadores diretos e o leitor, o espectador indireto:

A praia estava completamente cheia de corpos recentemente abatidos [...]. Os vestígios não eram de uma batalha habitual; pelo contrário, misturavam-se (ἀναμέμικτο) com os sinais de uma festa mal-sucedida, para a qual a sorte reservara esse lastimável desfecho. A comida permanecia intocada nas mesas. Algumas delas, entornadas ao chão, estavam ainda presas às mãos dos que delas se usaram como escudo durante a batalha; pois o confronto havia sido inesperado. Outras mesas abrigavam os que pensaram esconder-se debaixo delas. Algumas das crateras, as que chegaram a ser utilizadas, estavam emborcadas e caídas das mãos das pessoas. Já outras haviam sido usadas como pedras, pois o ataque repentino obrigara-os a improvisar e a inventar uma nova finalidade para as crateras: armas de ataque [...]. Num curto espaço de tempo, o destino conseguiu preparar um programa infinitamente variado: maculou vinho com sangue (οἶνον αἵματι μιάνας), sobrepôs (ἐπιστήσας) uma guerra a um banquete, reuniu (ἐπισυνάψας) assassinatos e bebedices, libações e vítimas. Esta foi a cena (θέατρον) exibida diante dos salteadores egípcios. Mas eles, da montanha em que estavam assentados, embora assistissem como espectadores, não eram capazes de compreendê-la (οὐδὲ συνιέναι τὴν σκηνὴν ἐδύναντο). (1.1.3-7)

A cena da praia do Nilo é incompreensível aos salteadores egípcios por diversos motivos. Um deles é decorrente da conjugação de elementos contrários, o que pressupõe um apurado nível interpretativo. Diante dos olhos dos piratas havia a relativização e a mescla de fatos e probabilidades que, isolados, faziam sentido; mas reunidos, formavam um enigmático espetáculo. Do alto da montanha, atestavam eles claros vestígios de uma festa e também de uma guerra. Concluíam que mesas e crateras, objetos geralmente utilizados em banquetes, haviam sido improvisados como armas para uma batalha inesperada.

Mais de um verbo desse excerto aponta para o efeito híbrido da descrição. Além de μιαίνω, utilizado para descrever a mistura entre vinho e sangue, são usados ἀναμίγνομι (“misturar”), ἐφίστημι (“sobrepor”), ἐπισυνάπτω (“reunir”). Nessa écfrase, encontram-se conjugados: vinho e sangue, guerra e banquete, assassinatos e brindes festivos, libações e vítimas. A respeito de μιαίνω especificamente, que relaciona a mistura entre vinho e sangue, pode-se depreender a ideia de “contaminação”: mais do que misturada, a bebida havia sido maculada.

  1. A segunda ocorrência de μιαίνω digna de nota está no livro 7. Na ocasião, Teágenes e Caricleia encontram-se presos no palácio persa, sob o domínio da irmã de Artaxerxes, o Grande Rei Persa. Ársace, uma mulher casada, é tomada por uma paixão incontrolável e passa a insinuar-se ao jovem grego. Ele, por sua vez, de todas as formas e meios tenta desvencilhar-se das investidas da mulher. Como a situação torna-se cada vez mais conflitante a ponto de Ársace ficar fora de controle, o casal procura encontrar uma solução plausível. Abaixo um dos diálogos entre os dois:

“O que é preciso fazer? Que ardil conceber para impedir estas odiosas uniões: a de Ársace comigo e a de Aquemenes contigo?” “Só há uma saída”, respondeu-lhe Caricleia, “consentires à união que te é imposta, a fim de evitar a outra, a que diz respeito a mim”. “Não digas uma coisa destas!”, exclamou Teágenes, “Que jamais o destino, que tem tornado a nossa vida um fardo, constranja-me a isso, de modo que eu, que até aqui tenho respeitado Caricleia, venha a me macular numa relação ilícita com outra mulher (ἄλλης ὁμιλίᾳ παρανόμος μιανθῆναι)! (7.25.6-7)

Nesse contexto, a forma passiva do verbo μιαίνω tem, também, um claro significado de contaminação. Embora o consentimento de Teágenes aos apelos sexuais de Ársace seja a saída sugerida por Caricleia para a resolução do conflito, aos olhos do jovem, que preza por sua pureza, tal atitude é sinônimo de abominação. Como observa Bird (2017BIRD, R. (2017). Virtue Obscured: Theagenes’ Sophrosyne in Heliodorus’ Aethiopica. Ancient Narrative 14, p. 195-208., p. 205) esse é o único pronunciamento feito diretamente pelo próprio personagem acerca de suas opções sexuais. Todas as outras referências ao caráter de Teágenes ocorrem em discurso indireto. Assim sendo, a enfática resposta do jovem à amada nessa ocasião demonstra quão valiosa lhe é a pureza moral. Além disso, a afirmação proferida pelo próprio Teágenes corrobora, para o leitor, o caráter excelente desse personagem.

Quanto à escolha do termo por Heliodoro, o criador de Teágenes, vê-se nesse contexto uma exceção para a tendência do autor, que é a de unir contrários dantes não conjugados. Como uma das máximas do romance é a pureza sexual, tal princípio é preservado como um absoluto no relacionamento entre os protagonistas. Isso significa que, nas Etiópicas, a relativização é uma característica marcante; todavia, não ocorre de forma desordenada.

  1. Por fim, a última ocorrência de μιαίνω a ser destacada é a verificada nas cenas finais do romance, quando a verdade a respeito da identidade de Caricleia é revelada diante da assembleia etíope. A cena é literalmente um desnudamento, já que a jovem precisa levantar o vestido para mostrar a mancha no braço:

Ordenaram que os escravos trouxessem o quadro. Assim que o dispuseram ao lado de Caricleia, levantou-se um alarido tal entre a multidão, que todos, tomados de admiração pela exatidão da semelhança entre as duas e demonstrando extrema alegria, irromperam em palmas e gritos [...]. Quanto a Hidaspes, ainda que não lhe restassem mais dúvidas [de que ela era de fato sua filha], permaneceu petrificado por um longo tempo, dividido entre a alegria e o espanto. Então Sisimitres afirmou: “Há mais uma coisa! Pois o que está em discussão é a realeza, a legitimidade de sucessão por ela reivindicada e, acima de tudo, a própria verdade. Desnuda teu braço, ó jovem, aquele que está manchado (ἐσπίλωτο) com um sinal de nascença de cor escura - pois não é nada indecoroso mostrar em público o que certifica tua filiação e tua raça”. No mesmo momento, Caricleia desnudou o braço esquerdo, e havia como que uma mancha redonda que tingia de ébano seu braço de marfim (καὶ ἦν τις ὥσπερ ἔβενος περίδρομος ἐλέφαντα τὸν βραχίονα μιαίνων) (10.15.1-2).

Torna-se público, enfim, que Caricleia, a jovem grega outrora separada para os sacrifícios em honra à vitória etíope é, na realidade, a filha única dos reis Hidaspes e Persina, que nascera branca como marfim. O fato, até então mantido sob sigilo por Persina, vem à tona dezessete anos depois de forma inusitada. Nesse momento, em que Caricleia reencontra a mãe e que pai e filha se veem pela primeira vez, vários episódios da inédita história são esclarecidos. Um deles é a explicação para a exuberante beleza da jovem. Como é possível perceber no excerto acima, Caricleia é uma cópia exata de Andrômeda, a princesa etíope da mitologia grega, salva por Perseu. Segundo Persina, Caricleia nascera branca porque, no momento da concepção, ela admirava um quadro na parede do quarto do casal. Nele estava retratado o mito de Andrômeda e Perseu. Curiosamente, a criança nascera com as características físicas da personagem mítica.

Em outras palavras, Caricleia apresenta uma identidade híbrida, por conjugar, em sua identidade física, elementos tanto da arte - logo, artificiais, provenientes de uma técnica - quanto da natureza humana. Por ter uma identidade híbrida, Caricleia foge ao padrão, seja do ponto de vista da aparência física, seja do ponto de vista de criação artística, uma vez que os filhos devem se parecer com os pais e que a arte deve imitar a natureza. No caso de Caricleia, o que sucede é o contrário, ela é um ato extremo de mimesis, em que a vida imita a arte (cf. Whitmarsh, 2001WHITMARSH, T. (2001). Greek literature and the Roman Empire: the politics of imitation. Oxford, Oxford University Press., p. 83-86). Por ser a concretização da imagem de Andrômeda e ultrapassar o limite do mundo mítico e artístico para se tornar uma realidade palpável, ela é, também um ato extremo de criação literária (cf. Elmer, 2008ELMER, D. (2008). Heliodoros’ Sources: Intertextuality, Paternity and the Nile River in the Aithiopika’. Transactions of the American Philological Association 138, p. 411-450., p. 428). Caricleia vem a ser, pois, a concretização da técnica retórica da écfrase que, segundo a recomendação do sofista Téon de Alexandria, “é uma composição explanatória que traz à vista de forma vívida o que se está a mostrar” (Progymn. 7.1-5).5 5 Tradução de Rui Duarte (1995). Em suma, Caricleia é inédita, única e inigualável, fruto de uma técnica nunca antes vista ou concebida no mundo artístico ou literário.

Nessa cena de reconhecimento de Caricleia, dois verbos são utilizados para fazer referência à mancha de nascença: σπιλόω, que pode ser traduzido por “manchar; sujar” e μιαίνω. Diferentemente das ocorrências dos livros 1 e 7 anteriormente mencionadas, não há nesse contexto a ideia de contaminação ou impureza. A ideia é de uma mancha que tinge uma determinada superfície: a mancha é de cor escura/ébano e a superfície é a pele de cor clara/marfim. Ainda assim, o sinal de nascença no braço da jovem é um índice para o intercâmbio de elementos, em diversos níveis: ficção e realidade; arte e natureza; etnia negra e branca; cultura grega e etíope; cultura educada e bárbara. Não se pode dizer que Caricleia é totalmente branca ou totalmente negra, totalmente grega ou totalmente etíope. Ela acumula todas essas possibilidades.

O breve apanhado sobre as três ocorrências de μιαίνω e seus correlatos dão uma ligeira noção sobre a tendência miscigenadora de Heliodoro. Mas o que é miscigenado nas Etiópicas e como isso ocorre? O processo de conjugação e hibridização pode ser verificado em diversos momentos e em diferentes contextos, dentre os quais: (i) na caracterização dos personagens; (ii) na descrição de cenas; (iii) na descrição de animais; e (iv) na descrição de lugares.

Caracterização dos personagens

Não há dúvidas de que Caricleia apresenta uma identidade fragmentada e fluida. O trecho do livro 10, anteriormente citado, é uma pequena demonstração desse fato. A própria saga da protagonista é fundamentada no tema da busca pela identidade. O enredo das Etiópicas é desenvolvido em torno de uma menina sem pai que empreende uma jornada em busca de sua verdadeira família. Nessa perspectiva, a identidade de Caricleia não é algo estático; muito pelo contrário, está em um processo constante de construção.

Esse movimento de construção e desconstrução da identidade dos personagens ocorre seguidamente nas Etiópicas. Tíamis, o chefe dos salteadores egípcios, não se enquadra no estereótipo de um bandido. Ele não é cruel, desumano ou um ditador que cria suas próprias leis. Uma rápida descrição de Tíamis é fornecida em uma fala de Cnemo:

o chefe dos bandidos de modo algum tinha os costumes de um bárbaro; pelo contrário, era um pouco civilizado. Pois, sendo ele de nobre linhagem, havia escolhido o atual modo de vida por necessidade. (1.19.2)

É importante entender que, no mundo do romance grego, esse não seria o comportamento esperado de um personagem pertencente aos βουκόλοι - piratas egípcios. No próprio romance Etiópicas eles são descritos como feras selvagens (2.24.1); desleais (2.17.4-5); impetuosos (1.30.6); de aparência descuidada e amedrontadora (2.20.5); criadores de suas próprias leis (5.31.3).6 6 Como observa Perkins, esses bandidos possuem uma função particularmente importante dentro do romance, evidenciando os contrastes sociais, culturais e políticos da época: “In the romance the bandits stood as the personification of anti-structural forces” (Perkins, 1995, p. 60) Os βουκόλοι são mencionados, também, nos romances de Aquiles Tácio (Leucipe e Clitofonte) e de Xenofonte de Éfeso (Efesíacas). Na obra de Aquiles Tácio, são descritos como extremamente selvagens, pavorosos e cruéis (3.9.2; 3.15.5). Ao que tudo indica, esses grupos eram bem conhecidos dos viajantes e eram temidos por suas práticas. Mais pormenores a respeito desse grupo social e da estrutura político-social da época imperial persa, à qual Heliodoro faz referência, são fornecidos por Futre Pinheiro (1989). Tíamis, contudo, não compartilha dessas características. É um pirata fora do padrão: um bárbaro civilizado.

Como relata Cnemo, Tíamis havia se tornado um bárbaro por necessidade. De origem nobre, viu-se obrigado a fugir de sua terra natal por disputas familiares em torno do cargo de sacerdote, transmitido de geração em geração na sociedade egípcia. Ainda assim, manteve sua índole nobre, de forma que, na trama, acaba por se tornar líder de dois grupos sociais egípcios totalmente antagônicos. Ele era, paradoxalmente, a um e ao mesmo tempo, o representante máximo dos piratas - a classe marginalizada - e o representante máximo da classe sacerdotal - que constitui a nobreza dessa mesma sociedade. Na identidade de Tíamis, portanto, que não está acabada, mas que é construída e desconstruída de acordo com as aventuras da trama, estão em choque dois opostos da pirâmide social. Na caracterização desse personagem há uma clara relativização das oposições entre bárbaro e grego, rude e civilizado. A exemplo de Caricleia, Tíamis possui uma identidade híbrida. O que mudam são os elementos conjugados.

O mesmo processo de desconstrução e reconstrução ocorre com Calasiris, personagem que é peça central nas Etiópicas. A primeira impressão que se tem do ancião é a de um sacerdote grego. Ao menos é essa a conclusão da análise de Cnemo, após observar a aparência física e as vestimentas do senhor. A expectativa de Cnemo, entretanto, é rapidamente desfeita, assim que os dois iniciam o diálogo:

O cabelo era comprido e totalmente branco, como o de um sacerdote. O queixo ostentava uma barba venerável e espessa. A capa, bem como o restante da vestimenta, remetia mais à maneira grega [...]. “Não me é possível ter um bom dia”, retrucou o velho, “depois de tantos infortúnios”. Cnemo, maravilhado, respondeu: “És grego, forasteiro?” “Não sou grego, mas sim egípcio, daqui dessa terra”. “Por que, então, helenizas as vestimentas/ veste-se como um grego?” “As desventuras” explicou, “levaram-me a abandonar minhas vestimentas habituais e a adotar essa esplêndida indumentária”. (2.21.2, 4)

Como é possível perceber, Calasiris é um personagem controverso desde o primeiro momento. O ancião é construído de tal forma por Heliodoro que, até o fim da trama, não fica claro ao leitor qual é a sua verdadeira identidade. Seria ele um santo, um mago, um sábio, um filósofo ou um charlatão? Nada disso? Ou tudo isso?

Por ter uma identidade tão ambígua e contraditória, Calasiris é um dos temas mais estudados e comentados pelos classicistas no âmbito das Etiópicas. Ainda assim, poucas certezas há a respeito desse personagem. É mais fácil afirmar o que ele não é do que aquilo que ele é.7 7 Nesse sentido, conclui Stephens (2013, p. 98): “However convoluted or even deceitful his narrative may be, his behaviour is often the inverse of other fictional Egyptians”. Outras publicações que discutem a controversa personalidade de Calasiris: Sandy (1982); Anderson (1994); Futre Pinheiro (1994); Winkler (1999); De Temmerman (2007); Bremmer (2013). Como um camaleão, Calasiris constantemente muda sua aparência para obter o que quer. Aproveita-se, por exemplo, da crença cultivada pelo senso comum do que seja um sacerdote proveniente do Egito para colocar em prática seu plano de raptar Caricleia. Ele tem consciência de que “assimilation to pre-existing character types is an eficient tool” (De Temmermann, 2007DE TEMMERMAN, K. (2007). Where Philosophy and Rhetoric Meet: Character Typification in the Greek Novel. Ancient Narrative [Supplementum] 10, p. 85-110., p. 87).

O mesmo artifício é utilizado por Cnemo. Embora afirme ser um legítimo grego,8 8 Em seu discurso a Teágenes e Caricleia, identifica-se como grego de raça e língua (Ἕλλην ὡς ἀληθῶς τὸ γένος καὶ τὴν φονήν - 1.8.6) e proveniente de uma influente família de Atenas: “Meu pai é Aristipo, de origem ateniense, membro do Areópago e detentor de uma fortuna considerável” (1.9.1). comporta-se como um dos piratas (1.27.3; 2.17.1; 2.18.4; 2.20.5). Apesar de emocionar Teágenes e Caricleia com seus infortúnios e passar a imagem de vítima de tudo e de todos (1.18.1), é a pessoa de confiança de Tíamis, o chefe do bando dos piratas (1.28.1; 2.10.3). No caso de Cnemo, o ingrediente de desconstrução e reconstrução é evidente. Assim que ele deixa a ilha dos piratas egípcios, trata de rapidamente mudar de aparência. O objetivo é claro: abandonar o visual de bandido para parecer-se com um grego:

A primeira coisa que fez foi cortar o cabelo, que estava muito comprido, o qual havia deixado crescer enquanto esteve junto aos vaqueiros para assemelhar-se mais a um salteador. [...] Cortou, pois, Cnêmon, quantidade suficiente do cabelo para adquirir uma aparência mais cuidada, abandonando a de pirata egípcio (2.20.5-2.21.1).

A primeira pessoa a encontrar-se com Cnemo após a transformação é justamente Calasiris. Para o ancião, não resta dúvidas de que ele é um grego. Mais do que isso: um típico ateniense (3.1.2).

Não raras vezes, as palavras e ações de Cnemo remetem o leitor a textos da comédia, da tragédia e, inclusive, do romance grego (ex.g. 2.11.2; 2.23.5). Por isso mesmo, a identidade de Cnemo parece ser deveras teatral. Não é possível identificar o que é fictício e o que é real nesse personagem. Qual é a verdadeira identidade de Cnemo: a de ateniense ingênuo, vítima de todos, ou a de bandido egípcio, que dissimula para tirar partido da situação? É pertinente o questionamento levantado por Kasprzyk:

Cette nouvelle chevelure lui donne une nouvelle apparence: révèle-t-elle pour autant sa véritable identité, en montrant ce qu’il est par contraste avec son existence et son apparence passées, ou lui offre-t-elle une nouvelle identité qui n’est pas forcément plus authentique? (Kasprzyk, 2017KASPRZYK, D. (2017). Les Aigyptiaka de Cnémon (Héliodore, Éthiopiques). Ancient Narrative 14, p. 149-174., p. 168).

Quanto a Teágenes que, durante boa parte da trama apresenta uma atitude passiva a ponto de, por vezes, parecer irrelevante para a concretização do oráculo de Delfos (2.33.5), parece se transformar em outro personagem nas cenas finais. De repente, vêm à tona as qualidades até então guardadas do distinto herói, corroborando a veracidade do seu ἔθος, construído a partir de relatórios positivos disseminados pelo romance (cf. 1.1.3; 1.3.6; 2.34.4; 2.35.1; 4.5.5; 7.10.4; 10.9.1). Dentre as qualidades atribuídas a Teágenes, estão: pureza, beleza, fidelidade, coragem, força física e moral, visão, simpatia, habilidade retórica e ginástica. Veja-se, por exemplo, o comentário do narrador na cena do duelo entre Teágenes e o gigante etíope Meroebo:

Mas Teágenes, que era perito nas técnicas de luta (γυμνασίων), bem treinado nessa arte de Hermes (Ἑρμοῦ τέχνην ἠκριβωκώς), soube usar seus conhecimentos com precisão. A princípio, deixou que o seu oponente prevalecesse, pois sabia que teria que enfrentar o poder de adversário. Não encarou de frente esse ser de aparência bestial de peso monstruoso e semblante rude; pelo contrário, usou sua experiência para astuciosamente tirar vantagem dessa força animal. (10.31.5)

As habilidades ginásticas de Teágenes ficam em relevo também em outro momento, quando domina o touro e o cavalo a ponto de harmonizá-los num só ser (cena comentada no tópico seguinte). Ao mesmo tempo, comprova que é hábil na arte retórica, ao discutir de igual para igual com o sacerdote Cáricles, quando este o acusa de rapto (10.37.1-2).9 9 Como observa De Temmerman (2014, p. 302), habilidades retóricas e ginásticas poderiam andar lado a lado: “the conflation of verbal and physical rethoric broadly echoes other depictions of physical training (gymnastikê) as an intellectually prestigious art requiring skills that are also central to rethorical expertise”.

Sendo assim, no caso de Teágenes, o conceito de μιαίνω repousa não na conjugação de forças contrárias, mas sim na sobreposição de forças que se complementam. Nesse sentido, vem a ser uma técnica retórica empregada pelo autor com a finalidade de garantir a coerência no emprego da etopeia. Ao concluir a obra, o leitor tem a convicção de que o herói do livro 10 é, de fato, o cavaleiro da procissão de Delfos, aclamado como o inigualável (3.3.1-8).

Em suma, o herói construído por Heliodoro é um aglomerado de virtudes gregas, fato que não deixa de remeter à ideia contida em μιαίνω. Jones assevera:

Heliodorus is at pains to demonstrate that his hero can be more than the extremes of passive or active: he is capable of combining a traditional physical andreia with intelligence and foresight. (Jones, 2007JONES, M. (2007). Andreia and Gender in the Greek Novels. Ancient Narrative [Supplementum] 10, p. 111-135., p. 124)

Com exceção de Caricleia, em cuja caracterização há explicitamente um termo lexical que remete à miscigenação e ao hibridismo - o verbo μιαίνω - em todos os outros personagens destacados esse conceito é expressado de outras formas. O que se vê, na caracterização dos personagens de uma maneira geral, é que eles não são τύποι herméticos ou estáticos, como os que aparecem na comédia.10 10 A dinamicidade da personalidade dos heróis do gênero do romance passou a ser uma realidade admitida entre os críticos nas últimas décadas. Billault (2003, p. 127) destaca que, diferentemente dos personagens da Nova Comédia, os heróis do romance mudam: “they are not the same persons in the end as they were in the beginning of the history”. Ou, ainda, nas palavras de De Temmerman (2014a, p. 232): “Indeed, the novels tend not merely to adopt traditional character types but also to elaborate, vary, complicate, develop, or creatively enhance them”. Nas Etiópicas, eles não apenas mudam de um estado para outro como podem alternar entre dois polos - social, étnico, cultural, religioso -, ou, ainda, apresentar em sua identidade a sobreposição de vários estereótipos, de forma ambígua e híbrida. Enfim, Heliodoro opta pela imprecisão. Como observa De Temmerman, ao considerar a protagonista:

However, even this ultimate paradigm of Charicleia is treated with ambiguity and inconclusiveness. As such, Chariclea’s recognition is emblematic of the protagonists’ character depiction on general. It undermines any notion of character as a fixed and stable entity. Instead, it explores character as a fluid simultaneity of association and dissociation, of construction and deconstruction (De Temmerman, 2014bDE TEMMERMAN, K. (2014b). Crafting Characters: Heroes and Heroines in the Ancient Greek Novel. Oxford, Oxford University Press., p. 313).

Descrição de animais

Na obra de Heliodoro, a miscigenação é observada, também, na descrição dos animais. O caso mais evidente é o do καμηλοπάρδαλις, causador de um enorme tumulto na assembleia etíope nos episódios finais da trama. Esse estranho e monstruoso animal, cuja aparição assemelha-se a de um fantasma (10.28.1), é descrito como um ser totalmente inédito. Como não há, segundo o narrador, equivalentes no reino animal, ele é comparado àqueles seres conhecidos pelo seu público (leão, cisne, camelo, avestruz - 10.27.2-4). Ao fazê-lo, o “camelo-leopardo”, que vem a ser a girafa, é retratado como se fosse o produto de uma experiência de montagem. É um novo ser com partes provenientes de origens as mais diversas, o que lhe confere um aspecto não natural - o que não condiz com a realidade. Em todo caso, o fato de ela ser considerada um ser artificial, fruto da união de elementos que naturalmente não se conjugam, remete à ideia de μιαίνω. Logo, em Heliodoro, a girafa é um ser híbrido.

Esse mesmo princípio é utilizado na descrição de outro ser, tão inédito quanto o καμηλοπάρδαλις. Trata-se do ἱπποταύρος. O “cavalo-touro” é resultado da façanha de Teágenes, depois que o herói domina o touro e o cavalo que haviam disparado do altar aquando da aparição da girafa. Assim relata o narrador:

Quando [Teágenes] viu que o touro se habituara à sua figura e manejo, passou a cavalgar bem rente ao animal. Nessa marcha corpo a corpo, entrecruzavam-se (κεραννύων) o suor e a respiração do touro e a do cavalo. A cadência da marcha tornou-se tão perfeitamente sincronizada que, de longe, as cabeças dos dois animais pareciam fundidas numa só (ὡς καὶ συμφυεῖς εἶναι τὰς κορυφὰς). Teágenes foi vivamente aplaudido e endeusado, pois, ao conjugar (ζευξάμενον) os dois animais, realizara algo inédito: dar origem a um hipotauro (ἱπποταύρου). (10.29.1)

Ou seja, o “cavalo-touro” é mais um exemplo de conjugação não-espontânea que, de forma peculiar, é trazido à existência na obra de Heliodoro. Observe-se que, apesar de a girafa se tratar de um ser natural, é descrito de forma a parecer o resultado de uma técnica; o hipotauro, por sua vez, é descrito justamente de forma contrária: é um ser artificial que, na narrativa, aparenta ser um só animal, naturalmente criado. Tanto num quanto noutro caso, a ideia é a de sobreposição e de miscigenação, conceito presente no verbo μιαίνω.

Descrição de cenas

O expediente da miscigenação, já observado na caracterização dos personagens e na descrição de animais fantásticos, ocorre também na descrição de cenas. Uma delas é a já mencionada cena de abertura, à qual não convém retornar. Muitas outras, entretanto, compartilham da mesma abordagem, embora nem todas apresentem o verbo μιαίνω ou seus sinônimos de forma explícita. Eis a seguir dois exemplos: (i a descrição da batalha de Siene e (ii) a descrição da reação de Hidaspes diante da revelação de Persina.

  1. No livro 9, etíopes e persas entram em confronto na cidade egípcia de Siene. Nesta altura, há uma cena insólita, decorrente da estratégia de guerra arquitetada pelos etíopes. Eles resolvem usar a estrutura da cidade, que é murada, para sitiá-la com o auxílio do rio Nilo, edificando um segundo muro pelo lado de fora de Siene. Cercados de água, os sieneus - juntamente com o exército persa - ficam isolados. É nesse momento que o narrador tece o seguinte comentário:

O espetáculo era inédito: navios aportavam de um muro a outro; marinheiros navegavam sobre um rio que era uma faixa de terra; e embarcações velejavam sobre terra fértil. Embora a guerra sempre opere de modo inovador, o que realizava dessa vez era uma proeza, algo completamente fora do habitual: colocava em conflito combatentes do mar e defensores de muros; equipava a infantaria contra a força marítima! (9.5.5)

Nessa cena, fica evidente a relativização de dois modus operandi do contexto bélico - força naval e infantaria -, já que terra e água estão confundidos e sobrepostos por causa da estratégia etíope. Daí a afirmação do narrador a respeito da capacidade operacional da guerra, de realizar milagres (ἐταυματούργει). A exemplo do que ocorre na cena de abertura, em que os piratas não conseguem definir com exatidão se o que se passou foi uma festa ou uma chacina, na cena de Siene, a mistura de elementos não permite ao leitor/espectador classificar a batalha em quaisquer das categorias até então conhecidas.

  1. no último livro, vem à tona o fato de que a criança que Persina concebera no passado não havia morrido - essa tinha sido a primeira versão da história contada ao rei Hidaspes - mas havia sido enviada para a Grécia. Ao se dar conta da verdade, Hidaspes reage de modo particular:

Hidaspes, vendo a mulher a lamentar-se, teve piedade dela e o seu coração dobrava-se para a compaixão. Ficou ali, de pé diante daquele espetáculo, com o olhar petrificado, como se fosse de chifre ou de ferro, reprimindo as lágrimas que insistiam em nascer. Enquanto isso, em seu interior, sua alma enfrentava uma tempestade em alto mar, agitada ora para o amor paternal, ora para a reputação como homem, revolta por causa da ambiguidade, lançada de um lado para outro como se abatida por uma onda. Por fim, foi vencido pela natureza, que sempre vence, e não apenas se convenceu de que era pai, mas também experimentou todos os sentimentos próprios de um pai. (10.16.2)

Nesse comentário, vê-se nitidamente o contraste entre as reações externa e interna do rei. Embora por fora estivesse petrificado, por dentro vivia um duro conflito, comparado a uma tempestade em alto mar. A ambiguidade tomava conta de sua alma, de forma que se dividia entre o amor paternal e a honra masculina. A tensão dura até o instante em que Hidaspes é invadido/manchado pelo sentimento de pai. Há uma clara sobreposição de elementos nessa situação, ainda que metafóricos. A mistura de sentimentos que brota do interior de Hidaspes transborda a ponto de vencer a dureza da aparência, a exemplo de um líquido que colore a superfície de um objeto ou que é misturado a um outro elemento fluido. Essa é justamente a imagem do verbo μιαίνω.

Caracterização de lugares

Como mencionado anteriormente, as écfrases de Heliodoro caracterizam-se por mesclar elementos contrários ou sobrepostos. Esse princípio rege inclusive as descrições de lugares. No mundo das Etiópicas, são múltiplos os ambientes frequentados pelos personagens. Um deles é a caverna, fundamental para o desenrolar dos acontecimentos:

A caverna não era uma obra da natureza, como a maioria das que se cavam de maneira autônoma sob a terra, mas era uma técnica de salteadores, a qual imitava o natural, uma galeria subterrânea minuciosamente cavada pelas mãos dos egípcios como um refúgio para os produtos do saque [...]. A caverna havia sido cortada desordenadamente em canais tortuosos. As passagens e vias que levavam para os interiores, perdiam-se cada uma por um lado com refinada técnica; em outros lugares, eram feitas de modo que caíam umas sobre as outras, e trançadas como raízes, confluíam juntas para um fundo oco, onde formavam um amplo salão. (1.28.2; 1.29.2)

A écfrase chama a atenção para a diferença entre uma caverna naturalmente formada (φύσις) e uma artificialmente fabricada (τέχνη). A caverna da ilha dos vaqueiros era do segundo tipo, com um detalhe: imitava as encontradas na natureza a ponto de não ser mais possível afirmar que se tratava de uma construção arquitetada. Vê-se em operação, uma vez mais, a técnica de conjugar elementos opostos a fim de originar algo novo e inédito. Ademais, o detalhamento da arquitetura da caverna aponta para a sobreposição, o cruzamento e, por fim, a confluência dos túneis, o que não deixa de retomar o conceito de μιαίνω.

O caso da caverna é bastante semelhante ao da descrição da girafa e do cavalo-touro, pois o que está em jogo é o contraste entre o natural e o artificial. Outra oposição, entretanto, também chama a atenção no ambiente da caverna: centro vs. periferia. É nesse ambiente que Heliodoro escolhe situar vários episódios determinantes do romance. Um deles é o assassinato de Tisbe, que morre por ser confundida com Caricleia. Nessa cena, há um claro mal-entendido decorrente da oposição geográfica centro vs. periferia. Tisbe e Caricleia são igualmente levadas até a caverna por medida de segurança, mas enquanto Caricleia é conduzida por Cnemo até o fundo da cavidade (τὸ ἔσχατον τοῦ ἄντρου - 1.29.3), Tisbe é deixada por Termutis na entrada. Para os piratas, o centro da caverna ficava na periferia do túnel, pois era nesse ponto que os bens mais preciosos eram escondidos (1.28.1). Ou seja, no caso da caverna, o centro ficava em um lugar remoto e de difícil acesso.

Essa mesma relativização do que seja centro ou periferia aparece, também, na descrição do destino final dos heróis. No romance, a perspectiva geográfica da Etiópia pode ser entendida tanto como central quanto como periférica. Tudo depende da perspectiva. Na trama, a terra etíope é o fim da trajetória de Caricleia, mas também o fim do mundo, no sentido mais amplo de ἔσχατον. Ao mesmo tempo, no mundo do romance, a Etiópia torna-se o centro. Basta observar o o comentário de Hidaspes a respeito da Grécia. Na perspectiva etíope, ela fica nos confins da terra (ἐπὶ πέρατα γῆς ἔσχατα - 10.16.6) ao considerar a Grécia o fim do mundo. Vê-se, portanto, que a interpretação do que seja centro ou periferia não é rígida, mas varia a depender do contexto.

Nas Etiópicas, a enigmática “terra escurecida pelo sol” de que trata o oráculo de Delfos (2.35.5) é um paraíso utópico, onde os povos vivem em perfeita harmonia. É um lugar que esbanja luz, paz, riquezas, sabedoria e prosperidade (cf. 2.30.3; 8.1.3; 9.1.5; 10.5.1,2).11 11 Sobre Etiópia como uma utopia, ver o trabalho de Futre Pinheiro (2006). Hidaspes, o rei desse mundo ideal, fundamenta suas decisões em valores essencialmente gregos, tais como φιλανθρωπία, σωφροσύνη e εὐνομία,12 12 Veja-se 9.5.4; 9.6.2-3; 9.21.1; 9.23.5; 9.27.2; 10.1.1; 10.3.3; 10.27.1. o que não deixa de ser um fato surpreendente para o leitor. O comportamento esperado seria, obviamente, o de um bárbaro. O que ocorre é que Hidaspes não apenas domina a língua grega, como também se comporta como um grego sem, ao mesmo tempo, deixar de ser um legítimo etíope. Por essas razões, o reino etíope é o estado de miscigenação por excelência. Nele, os conceitos de centro e periferia ou de grego e bárbaro são relativizados. A identidade de Hidaspes, bem como a forma de organização política de seu reino, questiona a supremacia geográfica e cultural grega. Whitmarsh (2011WHITMARSH, T. (2011). Narrative and identity in the ancient novel: returning romance. Cambridge, Cambridge University Press., p. 117) destaca que: “the geographical model of the canonical myth has been reversed, as Ethiopia becomes the homeland and Greece the foreign space”.

Ademais, é na Etiópia que ocorre o maior número de situações conflitantes, onde todas as situações não resolvidas da trajetória dos protagonistas vêm à tona. É justamente nesse contexto que Heliodoro explora o conceito de μιαίνω com ainda mais intensidade. Veja-se o comentário do narrador, incluído praticamente nas últimas linhas do romance:

Por meio desse deus, os opostos casaram-se (ἡρμόζετο), em harmonia juntaram-se (συμπεπλεγμένων) tristeza e alegria, lágrimas misturaram-se (κεραννυμένων) a sorrisos. A cena funesta e sombria transformou-se em festa, juntando os que riem com os que choram e os alegres com os que se lamentam; os que não viviam foram encontrados e os que pareciam ter sido encontrados foram perdidos. Por fim, o esperado cenário de sacrifício e morte foi revertido em uma feliz celebração. (10.38.4)

Se, na cena de abertura festa e carnificina estão misturados, no encerramento do romance, sacrifício e morte confundem-se com uma cena de celebração.

Considerações finais

É fato que o leitor que se depara com as Etiópicas não precisa de muito tempo para perceber que se encontra diante de uma obra de extrema complexidade, não apenas pela extensão, mas sobretudo pelo estilo do autor. Por isso, os diversos matizes semânticos e estruturais existentes nas construções ambíguas e miscigenadas de Heliodoro podem escapar a um leitor apenas parcialmente comprometido com a trama. No que se refere às Etiópicas, “To refuse involvement is to not-read” (Bartsch, 1989BARTSCH, S. (1989). Decoding the Ancient Novel: the reader and the role of description in Heliodorus and Achilles Tatius. Princeton, Princeton University Press., p. 99). Ou, nas palavras de Futre Pinheiro (1994FUTRE PINHEIRO, M. P. (1994). Calasiris’ Story and its Narrative Significance in Heliodorus’ Aethiopica. Groningen Colloquia on the Novel 5, p. 69-83., p. 82):

The author takes pleasure in tormenting the reader and stimulating his curiosity, presenting him with a fragmented reality like a broken mirror. The reader then is faced with the task of rebuilding the narrative puzzle piece by piece. The literary work becomes, at the same time, an enjoyable pastime and an intellectual activity.

É possível dizer que o estilo de Heliodoro é reflexo do mundo globalizado em que ele vive. A miscigenação de culturas, etnias, ideais filosóficos, cultos e, de certo modo, de classes sociais, é uma realidade bem presente para o autor.13 13 Sobre as características socioculturais dos primeiros séculos da era cristã, ver Reardon (1971); Whitmarsh (2001); Pernot (2006); Futre Pinheiro (2014). Nesse sentido, o fato de Heliodoro obsessivamente mesclar elementos contrários ou dar origem a seres, personagens e situações híbridos pode ser resultado direto do seu pano de fundo sociocultural. Por outro lado, como observa Feuillâtre (1966FEUILLÂTRE, E. (1966). Études sur les Étiopiques d’Héliodore : contribution à la connaissance du roman grec. Paris, Presses Universitaires de France.), a conjugação de contrários parece ser um traço peculiar do autor, de sua própria visão de mundo:

Les oppositions expriment souvent le monde tel que le voit Héliodore, ensemble complexe avec son étrange diversité de moeurs et de caractères, avec l’imprévu de certaines situations, si inattendues, qu’elles semblent plutôt le jeu d’une puissance divine que l’effet d’un hasard capricieux. (Feuillâtre, 1966FEUILLÂTRE, E. (1966). Études sur les Étiopiques d’Héliodore : contribution à la connaissance du roman grec. Paris, Presses Universitaires de France., p. 73)

De qualquer forma, seja influenciado por seu meio, seja movido pela sua própria concepção de mundo, Heliodoro explora sobremaneira ο conceito de miscigenação em sua obra. Como se vê nos exemplos analisados, o padrão de Heliodoro é a mistura de elementos. Ainda que repetitivas, as construções híbridas que aparecem do início ao fim do romance não se tornam maçantes. Isso só é possível pela habilidade de Heliodoro, que usa toda a sua técnica para conjugar, de forma criativa e inusitada, elementos provenientes de origens e áreas as mais diversas.

Parece evidente que a elaborada técnica de composição narrativa extrapola o âmbito artístico e literário. Heliodoro não se limita ao uso de antíteses já conhecidas como luz vs. escuridão; alegria vs. tristeza. Ao incluir, em seu laboratório literário, experiências que misturam ingredientes de ordem social e cultural, abre espaço para uma intrigante crítica social.

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  • 1
    Veja-se, por exemplo, o comentário inserido em 1.4.3 a respeito da captura de Teágenes e Caricleia pelo bando de salteadores egípcios: “O que acontecia era uma cena de glória: O chefe parecia servir como um escravo e o vencedor colocava-se às ordens dos presos”. Todas as traduções do romance Etiópicas são de nossa autoria e seguem o texto de R. M. Rattenburry, disponibilizado na edição francesa do romance pela Belles Lettres (Maillon, 2011MAILLON, J. (2011). Héliodore. Théagène et Chariclée. Texte établi par R. M. Rattenburry, traduit par J. Maillon. 3 vols. Paris, Belles Lettes.), em três volumes.
  • 2
    O Dictionnaire grec-français de Bailly traz as seguintes possibilidades: teindre e souiller (de sangue, de pó). O Greek-English Lexicon (LSJ), de Liddel e Scott, distingue entre sentido literal e figurado: 1. to paint over, stain, dye, colour, lat. violare; 2. to stain, defile, soil. 3. metaph. to taint, defile, pollute. O Greek Lexicon of the Roman and Byzantine Periods, de Sophocles, apresenta as traduções to stain, pollute. O Patristic Greek Lexicon, de Lampe, não inclui o verbete μιαίνω, apenas o verbo correlato μ(ε)ίγνυμι - to mix, misturar. Por fim, o Léxico do Novo Testamento grego-português, de Gingrich e Danker, traduz o termo como contaminar, manchar, com a nota de que há um sentido figurado de contaminação moral ou cerimonial.
  • 3
    Veja-se, por exemplo, 2 Cro. 36.14; 3 Mac. 7.14; Tob. 2.9; Sab. 7.25; 1 Esd. 1.47. É importante ressaltar que o pano de fundo histórico de μιαίνω nesses livros é o da busca por pureza moral e cerimonial do povo judeu e o consequente rechaçamento da miscigenação racial e religiosa com povos pagãos.
  • 4
    A écfrase (ἔκφρασις) é um recurso retórico bastante explorado pelos escritores e oradores dos primeiros séculos. Nas narrativas, podem assumir a função de pausas na ação, a fim de descrever determinado personagem, lugar ou objeto. Sob esse aspecto, servem como um contraponto para a técnica da διήγησις. Ao mesmo tempo, podem servir para intensificar a narrativa, conforme comenta Webb (1999WEBB, R. (1999). Ekphrasis ancient and modern: the invention of a genre. Word and image 15, n. 1, p. 7-18., p. 14): “far from constituting ‘narrative pauses’ (and consequently demanding interpretation) were often an intensification of the narrative, introducing a degree of detail which would evolve the audience both imaginatively and emotionally”. Sobre o uso da écfrase, ver Reardon (1971REARDON, B. P. (1971). Courants littéraires grecs des IIe et IIIe siècles après J.-C. Paris, Belles Lettres.), Bartsch (1989BARTSCH, S. (1989). Decoding the Ancient Novel: the reader and the role of description in Heliodorus and Achilles Tatius. Princeton, Princeton University Press.), Futre Pinheiro (2001FUTRE PINHEIRO, M. P. (2001). The language of silence in the ancient greek novel. In: JÄKEL, S.; TIMONEN, A. (eds.). The language of silence. Vol. 1. Turku, Yurun Yliopisto, p. 127-140.; 2013FUTRE PINHEIRO, M. P. (2013). As Etiópicas de Heliodoro no contexto literário da segunda sofística. In: WEINHARDT, M. et al. (orgs.). Ética e estética nos estudos literários. Curitiba, Editora UFPR, p. 523-549.), Mestre (2007MESTRE, F. (2007). Filóstrato y los progymnasmata. In: DELGADO, J. A. F.; PORDOMINGO, F.; STRAMAGLIA, A. (eds.). Escuela y Literatura en Grecia Antigua. Actas del Simposio Internacional, Universidad de Salamca, 17-19 noviembre de 2004. Cassino, Editora dell’Università degli Studi di Cassino, p. 523-556.), Webb (2018)WEBB, R. (2018). La Galerie de tableaux de Philostrate: vision, mémoire et espace. In: BERTHOZ, A.; SCHEID, J. (orgs.). Les arts de la mémoire et les images mentales. Paris, Collège de France. p. 31-43..
  • 5
    Tradução de Rui Duarte (1995DUARTE, R. (1995). Teon de Alexandria. Progymnasmata (Os exercícios preparatórios de Élio Téon de Alexandria). Estudo introdutório e tradução. Trabalho destinado à prestação de provas de Aptidão Pedagógica à Universidade da Madeira, Funchal.).
  • 6
    Como observa Perkins, esses bandidos possuem uma função particularmente importante dentro do romance, evidenciando os contrastes sociais, culturais e políticos da época: “In the romance the bandits stood as the personification of anti-structural forces” (Perkins, 1995PERKINS, J. (1995). The suffering self: pain and narrative representation in the Early Christian Era. London/New York, Routledge., p. 60) Os βουκόλοι são mencionados, também, nos romances de Aquiles Tácio (Leucipe e Clitofonte) e de Xenofonte de Éfeso (Efesíacas). Na obra de Aquiles Tácio, são descritos como extremamente selvagens, pavorosos e cruéis (3.9.2; 3.15.5). Ao que tudo indica, esses grupos eram bem conhecidos dos viajantes e eram temidos por suas práticas. Mais pormenores a respeito desse grupo social e da estrutura político-social da época imperial persa, à qual Heliodoro faz referência, são fornecidos por Futre Pinheiro (1989)FUTRE PINHEIRO, M. P. (1989). Aspects de la problématique sociale et économique dans le roman d’Héliodore. In: FURIANI, P. L.; SCARCELLA, A. M. (eds.). Piccolo Mondo Antico. Napoli, Edizione Scientifiche Italiane, p. 17-42..
  • 7
    Nesse sentido, conclui Stephens (2013STEPHENS, S. (2013). Fictions of cultural authority. In: WHITMARSH, T.; THOMSON, S. (eds.). The romance between Greece and the East. Cambridge, Cambridge University Press, p. 91-101., p. 98): “However convoluted or even deceitful his narrative may be, his behaviour is often the inverse of other fictional Egyptians”. Outras publicações que discutem a controversa personalidade de Calasiris: Sandy (1982SANDY, G. (1982). Characterization and Philosophical Décor in Heliodorus’ Aethiopica. Transactions of the American Philological Association 112, p. 141-167.); Anderson (1994ANDERSON, G. (1994). Sage, saint and sophist. London, Routledge.); Futre Pinheiro (1994)FUTRE PINHEIRO, M. P. (1994). Calasiris’ Story and its Narrative Significance in Heliodorus’ Aethiopica. Groningen Colloquia on the Novel 5, p. 69-83.; Winkler (1999WINKLER, J. J. (1999). The mendacity of Kalasiris and the narrative strategy of Heliodoros’ Aithiopika. In: SWAIN, S. (ed.). Oxford readings in the Greek novel. Oxford, Oxford University Press, p. 286-350.); De Temmerman (2007)DE TEMMERMAN, K. (2007). Where Philosophy and Rhetoric Meet: Character Typification in the Greek Novel. Ancient Narrative [Supplementum] 10, p. 85-110.; Bremmer (2013BREMMER, J. (2013). The Representation of Priests and Priestesses in the Pagan and Christian Greek Novel. In: DIGNAS, B.; PARKER, R.; STROUMSA, G. (eds.). Priests and Prophets among Pagans, Jews and Christians. Leuven/Paris/Walpole, Peeters, p. 136-161.).
  • 8
    Em seu discurso a Teágenes e Caricleia, identifica-se como grego de raça e língua (Ἕλλην ὡς ἀληθῶς τὸ γένος καὶ τὴν φονήν - 1.8.6) e proveniente de uma influente família de Atenas: “Meu pai é Aristipo, de origem ateniense, membro do Areópago e detentor de uma fortuna considerável” (1.9.1).
  • 9
    Como observa De Temmerman (2014, p. 302), habilidades retóricas e ginásticas poderiam andar lado a lado: “the conflation of verbal and physical rethoric broadly echoes other depictions of physical training (gymnastikê) as an intellectually prestigious art requiring skills that are also central to rethorical expertise”.
  • 10
    A dinamicidade da personalidade dos heróis do gênero do romance passou a ser uma realidade admitida entre os críticos nas últimas décadas. Billault (2003BILLAULT, A. (2003). Characterization in the Ancient Novel. In: SCHMELING, G. (ed.). The Novel in the Ancient World. Boston/Leiden, Brill Academic Publish, p. 115-130., p. 127) destaca que, diferentemente dos personagens da Nova Comédia, os heróis do romance mudam: “they are not the same persons in the end as they were in the beginning of the history”. Ou, ainda, nas palavras de De Temmerman (2014aDE TEMMERMAN, K. (2014a). Characterization in the Ancient Novel. In: CUEVA, E. P.; BYRNE, S. N. (eds.). A Companion to the Ancient Novel. Malden/Oxford, Wiley/Blackwell, p. 231-243., p. 232): “Indeed, the novels tend not merely to adopt traditional character types but also to elaborate, vary, complicate, develop, or creatively enhance them”.
  • 11
    Sobre Etiópia como uma utopia, ver o trabalho de Futre Pinheiro (2006)FUTRE PINHEIRO, M. P. (2006). Utopia and Utopias: a study on a literary genre in Antiquity. In: BYRNE, S.; CUEVA, E.; ALVARES, J. (eds.). Authors, Authority and Interpreters in the Ancient Narrative : essays in honor of Gareth Schmeling. Groningen, Barkhuis Publishing, p. 147-171..
  • 12
    Veja-se 9.5.4; 9.6.2-3; 9.21.1; 9.23.5; 9.27.2; 10.1.1; 10.3.3; 10.27.1.
  • 13
    Sobre as características socioculturais dos primeiros séculos da era cristã, ver Reardon (1971REARDON, B. P. (1971). Courants littéraires grecs des IIe et IIIe siècles après J.-C. Paris, Belles Lettres.); Whitmarsh (2001WHITMARSH, T. (2001). Greek literature and the Roman Empire: the politics of imitation. Oxford, Oxford University Press.); Pernot (2006PERNOT, L. (2006). La Seconde Sophistique et l’Antiquité tardive. Classica 19, n. 1, p. 30-44.); Futre Pinheiro (2014)FUTRE PINHEIRO, M. P. (2014). The genre of the novel: a theoretical approach. In: CUEVA, E. P.; BYRNE, S. N. (eds.). Companion to the Ancient Novel. Hoboken, John Wiley & Sons, p. 201-216..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2020
  • Aceito
    03 Set 2020
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