Acessibilidade / Reportar erro

Construindo a filosofia “clássica”: Cícero e o epicurismo

Constructing “Classical” Philosophy: Cicero and the Epicureanism

Resumo:

A obra filosófica de Cícero põe em cena debates intelectuais entre membros da elite romana, e suas figuras principais exibem uma combinação equilibrada de dotes intelectuais, excelência moral e expertise política. A filosofia grega emerge como um importante aliado no projeto intelectual de Cícero, mas não in toto. Este artigo lida com o modo pelo qual Cícero denigre uma multitudo de filósofos que produziam aquilo que ele considerava obras moralmente perigosas e estilisticamente inferiores, contribuindo para a criação de uma filosofia “clássica” que ainda configura o estudo moderno da filosofia.

Palavras-chave:
Cícero; História Intelectual; Filosofia romana; Classicismo; Epicurismo romano

Abstract:

Cicero's philosophical works put on the scene intellectual debates among members of the Roman élite, displaying a balanced combination of intellectual skills, moral excellence and political expertise. Greek philosophy emerges as an important ally in Cicero's intellectual project, but not in toto. This paper deals with ways in which Cicero dismisses a multitudo of philosophers who churn out what he considers dangerous and stylistically inferior works. In this way, Cicero contributed to the creation of a "classical" philosophy that still guides modern study of philosophy.

Keywords:
Cicero; Intellectual History; Roman Philosophy; Classicism; Roman Epicureanism

Cícero é uma figura ímpar na tradição do pensamento ocidental e sua obra, que se estende por quarenta anos no século I AEC, é um labirinto de referências cruzadas entre filosofia, política, religião, lei e oratória. O vasto corpus ciceroniano, o maior conjunto de textos que chegou até nós através da tradição manuscrita, expresso em diferentes gêneros literários, fornece importantes dados e chaves interpretativas para a compreensão do pensamento normativo, da recepção, produção e circulação do conhecimento na República tardia e além. Cícero modelou uma linguagem nos âmbitos filosófico, retórico e político, e exige que lidemos com o debate - sempre renovado - sobre sua visão de mundo e seu papel na construção do pensamento em seu tempo e além.

Há, então, dificuldades metodológicas envolvidas nesse estudo, por exemplo: como lidar com a distância entre o mundo dos textos filosóficos e o mundo da prática notadamente política e forense de Cícero? Este é um dos maiores desafios dos estudos ciceronianos. Definir os limites da interpretação dessa distância é também problemático, dadas as lógicas internas dos diferentes textos, para não mencionar as dificuldades trazidas pela própria transmissão dos manuscritos e a recepção multissecular das ideias ciceronianas. Enfim, como lidar com as relações entre o mundo do conhecimento, os debates intelectuais e as produções teóricas, por um lado, e o mundo da prática política e jurídica, por outro? Como interpretar a passagem de determinada ideia de uma esfera a outra? Essas são algumas das questões metodológicas inescapáveis quando lidamos com o vasto corpus ciceroniano. A própria natureza e o escopo desse corpus fazem dele um inestimável laboratório para os classicistas. Por exemplo, um mesmo tema é explorado de modos distintos nas cartas, nos diálogos filosóficos e nos discursos, e a tensão entre a necessidade de analisar e interpretar cada obra em seu próprio contexto literário e intelectual e a ambição de se obter um bom grau de comparabilidade é um dos maiores desafios que Cícero apresenta aos estudiosos.1 1 Os estudos ciceronianos têm uma vasta bibliografia e é impossível fazer justiça a todas as valiosas contribuições dos especialistas. Alguns destaques, em uma lista obviamente incompleta, são: May, 1988; Fantham, 2004; Dugan, 2005; Steel, 2005; Fox, 2007; e Gildenhard, 2007. Um estudo recente de La Bua (2019), apesar de lidar apenas com os discursos de Cícero, elucida importantes aspectos sobre como mestres da antiguidade lidavam com as obras de Cícero em seu ensino. La Bua reconstrói as principais fases da transmissão textual desses discursos da primeira divulgação pelo próprio autor no século I AEC até manuscritos medievais do século VI EC.

Restringindo o foco do interesse deste artigo à philosophica, uma carta a Ático, datada de abril de 46 AEC, fornece uma pista para a compreensão do projeto de escrita filosófica de Cícero:2 2 Sobre a correspondência de Cícero e Varrão neste período, ver Leach, 1999, p. 165-168; Baraz, 2012, p. 80-86; Wiseman, 2009, p. 107-129, que destaca seus aspectos políticos; e Gunderson, 2016.

[M]odo nobis stet illud, una vivere in studiis nostris, a quibus antea delectationem modo petebamus, nunc vero etiam salutem; non deesse, si quis adbibere volet, non modo ut architectos verum etiam ut fabros ad aedificandam rem publicam et potius libenter accurrere; si nemo utetur opera, tamen et scribere et legere πολιτείας et, si minus in curia atque in foro, at in litteris et libris, ut doctissimi veteres fecerunt, gnavare rem p. et de moribus ac legibus quaerere (Att. 9.2.5).

Mantenhamos nossa determinação de viver em nossos estudos, nos quais antes buscávamos apenas o deleite, mas agora também a preservação de nossas vidas. E se alguém quiser nossos serviços não apenas como arquitetos, mas também como operários para construir a república, não nos recusemos, mas nos apressemos entusiasmados pela obra. Contudo, se ninguém nos empregar, vamos escrever e ler πολιτείας. E se não pudermos fazê-lo na cúria e no fórum, ao menos em cartas e livros, assim como os doutíssimos antigos faziam, governemos a res publica e investigemos seus costumes.3 3 Exceto quando explicitado, as traduções do latim são minhas.

É significativo o termo grego πολιτείας na passagem. Em muitos pontos de seus diálogos filosóficos, Cícero fez declarações semelhantes que, de fato, cumpriu.4 4 Varrão, a partir dessa data, também produziu uma extensa obra teórica com diferentes características. Sobre o prolífico milieu intelectual da Roma tardo-republicana ver Moatti, 1997; Feeney, 1999; Rüpke, 2012; Woolf, 2015; e Maso, 2015. Nos meses seguintes a essa carta, Cícero escreveu uma verdadeira enciclopédia filosófica. Sua philosophica é marcada por um intenso debate com o pensamento helenístico contemporâneo e, hoje, considerar sua obra apenas pelo viés da tradução e transmissão do pensamento helenístico é algo controverso.5 5 Referências fundamentais para o crescente interesse acadêmico na obra filosófica de Cícero são Glucker, 1988; Lévy, 1992; Görler, 1995; Powell, 1995; Mansfeld 1999; Schofield, 2008; Maso, 2015; Woolf, 2015; Annas, 2016; e Brittain, 2016. Ver também consistentes críticas da ideia corrente de um Cícero cético em Lévy, 2017; e no recente Skvirsky, 2019. Certamente, essa ampla produção literária era parte integrante de sua carreira política e de ação pública, mas era também um ambicioso projeto intelectual.

Quase todos os diálogos filosóficos de Cícero incluem apologias de seu esforço para garantir um lugar para a filosofia na vida da elite romana, e ele recorrentemente declara que pretende prover seus contemporâneos com uma linguagem e uma educação filosófica sofisticada e bem desenvolvida (e.g., Acad. 1.11, Fin. 1.10, Tusc. 1.3 e Nat. D. 1.7). Mesmo em seus discursos públicos, os temas filosóficos são abundantes e Cícero defende a filosofia como uma atividade digna de seus pares. Em quase todos os seus diálogos, Cícero se alinha explicitamente com Platão, defendendo a necessidade de o governante ser também um intelectual de alto nível (e.g. Off. 3.13-16, 3.77, 3.81). Contudo, sua obra também revela uma tensão entre a filosofia e o comportamento adequado a um nobre romano.6 6 Ver especialmente Gildenhard, 2007. Sobre as linhas gerais do projeto intelectual de Cícero, ver Baraz, 2012; e Bishop, 2019. Suas personagens principais formam um grupo seleto de indivíduos que servem como um guia moral e intelectual para a conduta e o pensamento.7 7 Krostenko, 2001, p. 202-232, é uma excelente análise do vocabulário de Cícero no contexto do que denominou uma “linguagem da performance social”. Ver também Stroup (2010) sobre a produção de textos literários no milieu elitista da época de Cícero, e Van der Blom (2010), sobre os modelos de comportamento escolhidos por Cícero. Ver Hine, 2016, p. 11-19, sobre o uso, por Cícero, do termo philosophus e suas nuances na philosophica. As causas dos problemas contemporâneos da libera res publica, em sua visão, podiam ser corrigidas pela filosofia.8 8 A respeito das ideias de Cícero sobre a educação e como superar o que considerava influências corruptoras da nobreza romana, ver Gildenhard (2007, p. 74-78, 176-178) defendendo tratar-se também de um ataque às pretensões gentílicas de transmissão hereditária das virtutes pelo novus Cícero, no contexto de uma cultura política altamente conservadora. Sobre este ponto, ver também Steel (2005, p. 107-109), que lida com a criação de uma rede de interlocutores políticos e intelectuais por Cícero como base para a construção da sua persona pública. Ver também Dugan, 2005, p. 87-104; e Van der Blom, 2010, p. 35-59. A filosofia grega, portanto, emerge como um aliado importante deste projeto, mas não in toto. É possível, então, perguntar que filosofia Cícero propõe e o que ele rejeita em sua obra.

Observando o conjunto do corpus ciceroniano, percebe-se que a doutrina de Epicuro é o principal alvo da polêmica ciceroniana, e Cícero alega seu potencial disruptivo para a elite romana de um modo que às vezes beira à pura invectiva, como na passagem: “Epicuro, de fato, fala de tal modo que realmente penso que ele nos convida ao riso” (Epicurus vero ea dicit, ut mihi quidem risus captare videatur: Tusc. 2.17). Certamente, ele não se volta apenas contra o epicurismo, pois muitos aspectos do estoicismo, principalmente, e de outras doutrinas filosóficas de sua época são também objeto de fortes críticas. Contudo, com sua ênfase na virtude e na participação política, o estoicismo podia parecer mais adequado à cultura política romana que o epicurismo. Mas, ainda que o epicurismo seja o foco das mais graves controvérsias, essa doutrina tem um grande destaque na philosophica, e o modo como Cícero constrói sua polêmica revela a importância que dava a esta doutrina, bem como sua forte presença na vida intelectual romana do século I AEC.9 9 Sobre a ambígua relação de Cícero com as teses epicuristas, ver especialmente Maso, 2015.

Este artigo concentrará seu foco em apenas um ponto da polêmica ciceroniana contra o epicurismo, perguntando pelo modo com que Cícero denigre uma multitudo de filósofos que divulgavam a doutrina epicurista e produziam livros em latim que considerava epigonais, moralmente duvidosos e estilisticamente inferiores, ao passo que promove uma tradição filosófica específica em seu projeto intelectual, contribuindo para a criação de uma filosofia “clássica”, uma construção que fundamenta, ainda hoje, o modo como se percebe e se estuda a filosofia.

Classicismo e epicurismo

As campanhas de Sula e de Lúculo contra Mitrídates geraram muitas pressões e dificuldades nas cidades da Ásia Menor e da Grécia, e Atenas foi particularmente atingida pelo cerco e saque de Sula em 88 AEC. Vários intelectuais gregos se mudaram para Roma, incluindo o acadêmico Filo de Larissa e seu então pupilo Antíoco de Ascalão, assim como Apolônio Molon e Posidônio estiveram em Roma em embaixadas. O gramático Tirânio, o poeta Parteno e Alexandre, o Polímata, foram levados a Roma como prisioneiros, para não falar das importantes bibliotecas com as quais Sula e Lúculo enriqueceram Roma no século I AEC. Tudo isso sabemos, especialmente, pela obra de Cícero.10 10 Sobre intelectuais gregos em Roma neste período, ver Hutchinson (2013) e Hatzimichali (2013, p. 1-7). Sobre as bibliotecas, há uma referência de Cícero à biblioteca de Sula em Att. 4.10 e, no proêmio do De finibus 3, Cícero cria um encontro com Catão na biblioteca de Lúculo. Além disso, jovens romanos da elite viajavam para estudar nos grandes centros culturais da época, como Atenas e Rodes. Ver também Houston (2014, p. 121-125), que demonstra que a maior parte dos papiros datáveis da Vila dos Papiros em Herculano data do fim do século II e início do século I AEC. Mas, a “cultura grega” que chegava a Roma não era monolítica, o que é frequentemente obscurecido pela pesquisa moderna. As ideias e os livros pelos quais os romanos se interessaram eram tão multifacetados quanto os intelectuais que os produziam, com suas diferentes doutrinas e referências. A República tardia não foi um tempo de dogmatismo do tipo que Peter van Nuffelen (2011)VAN NUFFELEN, P. (2011). Rethinking the Gods. Philosophical Readings of Religion in the Post-Hellenistic Period. Cambridge, Cambridge University Press. apontou como característica de épocas posteriores. Um “classicismo” em sentido pleno é geralmente identificado como uma característica do período augustano, florescendo especialmente na chamada Segunda Sofística, incluindo o estabelecimento de listas de, podemos dizer, nobilia operae, ou “o melhor em cada gênero”, com forte predominância de autores gregos dos século V e IV AEC.

A época de Cícero, por sua vez, foi um período de ricos debates, polêmicas e controvérsias, apesar de já ser detectada uma ideia da “superioridade” de uma Atenas já considerada “clássica”.11 11 Para Citroni (2006), o que chamamos “classicismo” é, até certo ponto, uma consequência do impulso helenístico de catalogação e sistematização do conhecimento. Ver também Moatti, 1997. Sobre a natureza dos “cânones” helenísticos, ver Most, 2006; e Vardi, 2003. Como resultado deste enfoque classicista, o grego ático também foi elevado a modelo linguístico, tornando-se o padrão não somente da linguagem literária, mas também a língua falada pelas elites grega e romana. A melhor evidência do gradual surgimento do “classicismo” é, de fato, a filosofia, quando os interesses empíricos e polêmicos dos pensadores helenísticos começaram a derivar para posições dogmáticas.12 12 Ver Sedley, 1989; e Sedley, 1997. Para Sedley (1997, p. 97), a filosofia era uma área especialmente afeita ao classicismo, posto que as seitas filosóficas se uniam por um compromisso virtualmente religioso com a autoridade da figura de um fundador. Cícero, e.g., afirma que o estoico Panécio chamava Platão de divino: Tusc. 1.79. Enfim, uma resposta “classicista” aos pensadores dos séculos V e IV começou a se formar em intelectuais romanos da época de Cícero, ainda que só atingisse seu ápice décadas mais tarde. Isso é detectável, por exemplo, no proêmio do De finibus 5, na passagem em que um jovem Cícero visita a Academia em Atenas com um grupo de jovens romanos. O lugar está abandonado - até certo ponto porque fora pilhado por soldados romanos - e eles conversam sobre como as grandes figuras do passado ali voltavam à vida (Fin. 5.1-6). Na passagem, Pisão, a personagem principal, declara que os romanos não deveriam imitar os interesses antiquários dos gregos atuais, e sim criar seus próprios clássicos usando os gregos antigos como modelos a fim de construir uma época clássica em Roma - e a ideia de que o conhecimento tinha sido transferido da Grécia para Roma é apresentada por Cícero.13 13 Até certo ponto, os autores romanos criaram um classicismo tão inovador que afetou autores gregos contemporâneos, mas este tema escapa ao escopo deste artigo. Um bom exemplo aqui é a criação do “aticismo” como um movimento retórico talvez na própria geração de Cícero, o que não teria ocorrido, decerto, sem que os intelectuais helenísticos codificassem e sistematizassem seus próprios “clássicos”. Ver Kennedy, 1972; Wisse, 1995; e Dihle, 2011, que defende uma origem grega para este movimento entre intelectuais gregos que viviam em Roma, como Filoxeno. Do mesmo modo, em De oratore (1.47, 2.18, 3.131) é dito que os gregos adquiriram tão alto padrão de conhecimento exatamente porque dispunham de muito tempo livre, podendo se dedicar a disputas sobre o sentido preciso de palavras ou criando um desnecessário excesso de regras técnicas. Há de se notar, contudo, que essas declarações são feitas pela personagem Crasso, que distingue os “ociosos” gregos de seu tempo e aqueles que podiam ser legitimamente admirados pelos romanos: os sábios gregos do passado.14 14 Ver Gildenhard (2007) sobre a ambivalência de Cícero em relação à cultura grega, a cultura de um povo subjugado, ao passo que incentivava sua apropriação - de um modo imperialista. Krostenko (2001, p. 168-176), discute este tema nos discursos públicos de Cícero, nos quais o autor declara sua distância da cultura e da arte grega, respondendo a acusações de filelenismo. Ver também Plut. Cic. 5.2 e Cass. Dio 46.18.1-2.

Em Roma, Cícero estudou filosofia e retórica com Filo de Larissa e os romanos Élio Stilo e Ácio, entre outros intelectuais em Atenas e Rodes, como Antíoco de Ascalão, Demétrio Siro, Apolônio Molon, Posidônio, Tirânio e Crátipo. Não há dúvidas do alto nível da formação intelectual de Cícero, que foi, de fato, um dos primeiros autores romanos a expressar uma veneração classicista por Platão e Aristóteles, o que se tornou uma marca de sua recepção em períodos tardios. A recepção altamente positiva desses filósofos por Cícero estimulou a leitura e a interpretação futuras de suas obras, estabelecendo um cânone literário “clássico”.

Voltemos, então, à questão: qual filosofia? Cícero enfatiza que Roma precisava do “tipo certo” de filosofia (Tusc. 2.1-6), e declara que um “tipo errado” já estava sendo produzido em latim, por autores que o faziam sem precisão ou habilidade literária, sem qualquer método, nem distinção (Tusc. 2.7).15 15 Para Cícero, o filósofo perfeito é idêntico a seu orador perfeito, cf. Schofield, 2008, p. 68-69. Por que, então, alguém leria seus livros? Neste ponto, Cícero se refere a um grupo de autores latinos em especial: os epicuristas.16 16 Livros epicuristas em latim são mencionados em muitas obras de Cícero, e.g., Acad. 1.5, Tusc. 1.6., 2.7., 4.6-7, e em sua correspondência com Cássio em Fam. 15.16, 15.9. À época de Cícero, livros filosóficos não eram apenas escritos por acadêmicos, como Varrão e Bruto, que também estudaram com Antíoco de Ascalão, mas também por Nigídio Fígulo, que talvez fosse pitagórico, e.g. Cic. Tim. 1.1-9, assim como autores estoicos já tinham começado a escrever em latim (Fam. 15.19), sem precisarmos mencionar a alta qualidade literária e filosófica de Lucrécio. Os epicuristas latinos que Cícero tem em vista são os bem-conhecidos Amafínio, Rabírio e Cátio, indicando que eles se endereçavam a audiências mais, digamos, populares. É certo que Cícero é uma testemunha hostil do epicurismo latino, mas sua obra é também nossa principal fonte de que o epicurismo encontrou uma boa expressão em latim e muitos seguidores no século I AEC.17 17 Em Tusc. 2.7-8, Cícero lamenta os Latini multi libri de epicuristas. Há indícios de que o Jardim continuou a funcionar em Atenas após a morte de Fedro em 70, mas Cícero teve que pedir a Mêmio (aparentemente, o destinatário de Lucrécio) que não derrubasse a casa de Epicuro em Atenas (Fam. 13.1.2). Sobre T. Albúcio (pretor de 105), uma referência de Cícero indica que ele teria escrito livros de filosofia, apesar de parecer terem sido redigidos em grego. Albúcio era um notório filelênico: e.g., Nat. D 1.93 (seu nome é mencionado entre Zenão e Fedro) e Brut. 131. Sobre Amafínio: Tusc. 1.5, 2.5, 4.6, Cael. 17.40-41, Nat. D 1.4, Acad. 1.4. Sobre Rabírio: Tusc. 4.7; Luc. 1.5, e.g. Sobre Cátio: Fam. 15.19.2. Esses autores latinos epicuristas foram objeto de diversas investigações e muitos detalhes são ainda controversos, o que escapa aos interesses deste artigo.

Sabemos que Filodemo e seus seguidores, assim como Fedro - um dos mestres de Cícero -, ensinaram a doutrina epicurista em Roma e seus arredores desde pelo menos 75 AEC. Fedro e Filodemo são relativamente bem-vistos por Cícero, Ático e L. Saufeio, e recebem menções positivas nos textos de Cícero (e.g. Fin. 1. 16, 2.110; Pis. 70-1), que, contudo, é fortemente seletivo em sua controvérsia contra o epicurismo.18 18 Sobre este tema, ver especialmente Lévy, 2001; e Griffin, 2001. Ao que tudo indica, os desafetos ciceronianos Amafínio, Rabírio e Cátio estavam tornando o epicurismo acessível em latim a um grande público na Itália. Obviamente, a evidência de Cícero tem de ser problematizada. Se declara que esses livros se tornaram algo como bestsellers, ele também diz que eram lidos por muito poucos, somente por aqueles que compartilhavam das mesmas opiniões equivocadas e do baixo nível literário - significativamente, Cícero não menciona Lucrécio, que dificilmente poderia ser acusado de baixa qualidade literária. Essas declarações precisam ser interpretadas tendo em vista o projeto intelectual de Cícero, apesar do fato de que, desde seu fundador, os epicuristas parecem ter enfatizado o proselitismo com bons resultados, esforçando-se - desde as Kyriai Doxai de Epicuro - por tornar sua doutrina acessível a um público mais vasto (Tusc. 1.6, 2.7-8; Diog. L. 10.9). O modo como Cícero apresenta esses três escritores latinos popularizando sua doutrina, portanto, nada tem de excepcional. Ao que tudo indica, o epicurismo foi muito bem-sucedido na República tardia, Cícero tinha um sólido conhecimento desta doutrina e é a principal fonte do sucesso do epicurismo em Roma, certamente com algum exagero retórico, como em Tusc. 4.7, em que fala da “invasão da Itália” pelos epicuristas (Italiam totam occupaverunt).19 19 Outras declarações sobre a popularidade do epicurismo na Itália: Fin. 2.12, 2.28, 2.44-49. Sobre a vivacidade de diferentes doutrinas filosóficas em Roma e o modo como Cícero lida com elas ver, especialmente, Zetzel, 2013.

Conhecemos também nomes de epicuristas romanos dos altos estratos da sociedade romana, figuras significativas na vida pública como Saufeio, Pisão, Pansa e Torquato, para não mencionar o próprio Ático, todos mais ou menos atestados com segurança como epicuristas, mas mesmo amici epicuristas de Cícero pareciam denegrir textos epicuristas em latim, como o faz Cássio ao se referir a Amafínio e Cátio como mali verborum interpretes (Fam. 15.19.2). Nas Tusculanae, além disso, Cicero distorce a produção literária filosófica em Roma de modo a parecer que somente esses epicuristas se dedicavam a escrever filosofia em latim, o que podia justificar seu argumento de que Roma precisava de alguém que lhe desse um fundamento rigoroso e adequado para uma filosofia latina. Em outras palavras, Roma precisava do próprio Cícero.

Filósofos nobres, filósofos plebeus

Um bom exemplo para a elucidação da controvérsia ciceroniana contra o epicurismo ocorre no diálogo De finibus. No livro 1, o epicurista Torquato faz um longo discurso defendendo que o prazer é o summum bonum (Fin. 1.29-36), incluindo uma definição do prazer epicurista como sendo, por assim dizer, a ausência da dor (Fin. 1.37-41).

Torquato, em linhas gerais, faz uma apresentação dogmática do bem natural baseado em um tipo de prolepsis inata, compartilhada por seres humanos recém-nascidos e animais, pois os adultos têm crenças verdadeiras e falsas adquiridas pela educação e a socialização. Essas crenças adquiridas interferem na busca do sumo bem, produzindo dor e sofrimento.20 20 Ver as linhas gerais do Fin. em Lévy, 2002, p. xli-xlvi. Ver também Warren (2016) sobre a crítica de Cícero ao argumento de Torquato em defesa do prazer, apontando inconsistências epistemológicas na doutrina apresentada no L. 1, especialmente o fato de não ser estabelecida uma distinção segura entre o prazer e a ausência da dor como sendo o summus bonum. Atualmente é consensual que Cícero levava o epicurismo muito a sério, mas também que esta doutrina era uma ferramenta útil para seu argumento sobre o papel da filosofia na vida da elite romana, um argumento desenvolvido em uma atmosfera polêmica. Para o epicurismo, o conhecimento humano é baseado nas percepções sensíveis, em uma epistemologia empírica. Para Cícero, como para a Nova Academia21 21 Sobre a Nova Academia, também denominada “Quarta Academia”, Tarrant (1985) e Brittain (2001) são especialmente esclarecedores. em geral, as percepções sensíveis não são totalmente confiáveis, dada a própria natureza dos objetos da cognição e as imprecisões nas capacidades perceptivas humanas - apesar de ser possível chegar a um conhecimento verossímil desses objetos com base nos sentidos, e este é um ponto relevante do debate intelectual da época (cf. Luc. 19-20, 43, 46-53, 78-86).

Torquato insiste no papel do pensamento racional e no estudo da natureza em benefício da vida humana, e Cícero usa o próprio cerne do argumento epicurista para contestar essa doutrina em De finibus 2. O debate sobre a acurácia das reconstruções ciceronianas da doutrina epicurista não é objeto de interesse aqui.22 22 Sobre a acurácia de Cícero em suas reconstruções das teses epicuristas, ver e.g., Maso, 2015; Morel, 2016; e Warren, 2016. Cícero recorrentemente apresenta o epicurismo como uma doutrina epistemologicamente fraca e popular entre a multidão inculta (e.g. Fin. 2.45; Tusc. 4.7). Mas, conhecendo muito bem o epicurismo, Cícero constrói o debate em um cuidadoso vocabulário epicurista, levando o leitor à conclusão de que esta doutrina devia ser rejeitada por suas próprias declarações. Para tal, amplia sua crítica em um intenso ataque pessoal a Torquato. Vejamos uma passagem significativa:

Aut haec tibi, Torquate, sunt vituperanda aut patrocinium voluptatis repudiandum. quod autem patrocinium aut quae ista causa est voluptatis, quae nec testes ullos e claris viris nec laudatores poterit adhibere? ut enim nos ex annalium monimentis testes excitamus eos, quorum omnis vita consumpta est in laboribus gloriosis, qui voluptatis nomen audire non possent, sic in vestris disputationibus historia muta est. numquam audivi in Epicuri schola Lycurgum, Solonem, Miltiadem, Themistoclem, Epaminondam nominari, qui in ore sunt ceterorum omnium philosophorum. nunc vero, quoniam haec nos etiam tractare coepimus, suppeditabit nobis Atticus noster e thesauris suis quos et quantos viros! nonne melius est de his aliquid quam tantis voluminibus de Themista loqui? sint ista Graecorum; quamquam ab iis philosophiam et omnes ingenuas disciplinas habemus; sed tamen est aliquid, quod nobis non liceat, liceat illis. Pugnant Stoici cum Peripateticis. alteri negant quicquam esse bonum, nisi quod honestum sit, alteri plurimum se et longe longeque plurimum tribuere honestati, sed tamen et in corpore et extra esse quaedam bona. et certamen honestum et disputatio splendida! omnis est enim de virtutis dignitate contentio. at cum tuis cum disseras, multa sunt audienda etiam de obscenis voluptatibus, de quibus ab Epicuro saepissime dicitur (Fin. 2.67-68).

Esses fatos [as ações de seus ancestrais] devem ser por ti, Torquato, ou repreendidos ou a defesa do prazer precisa ser repudiada. Mas, que defesa é essa ou que causa é essa do prazer, que não pode apresentar nenhum testemunho de nomes famosos nem depoentes favoráveis? De fato, como nós evocamos aquelas testemunhas dos documentos dos anais, cuja vida foi toda consumida em trabalhos cheios de glória e que não poderiam ouvir o nome do prazer, do mesmo modo a história é muda em vossas discussões. Nunca ouvi, na escola de Epicuro, citar Licurgo, Sólon, Milcíades, Temístocles ou Epaminondas, que estão na boca de todos os outros filósofos. Entretanto, no presente, já que nós [romanos] começamos também a tratar disso, nosso Ático nos fornecerá, de seus tesouros, homens de qualidade e quantidade. Porventura não é melhor dizer algo sobre essas coisas do que a Temista em tantos volumes? Que sejam essas dos gregos, ainda que nos venham deles a filosofia e todos os ramos iniciais do conhecimento. Contudo, existe algo que a nós não convém, mas convém a eles. Digladiam-se os estoicos com os peripatéticos. Uns negam que exista algo bom, a não ser que seja honesto; outros afirmam atribuir em especial, de muito longe mesmo, importância à honestidade, mas que existem certos bens tanto no corpo como fora dele. Ó certame honesto e discussão magnífica! Pois, toda a discussão versa sobre a dignidade das virtudes. Entretanto, como tinhas exposto com os teus, muitas coisas devem ainda ser conhecidas sobre os prazeres obscenos, aos quais Epicuro se refere com muita frequência.23 23 Tradução Bassetto, 2018.

Em termos ciceronianos, a doutrina epicurista necessariamente levaria o nobre Torquato a minar os feitos de seus ancestrais e seu próprio nomen. Com base no acordo tácito da elite romana, isto é, a expectativa compartilhada de imitação das ações ancestrais, Cícero ataca seu adversário e denota o potencial destrutivo do epicurismo para Roma. Além disso, a referência ao seu melhor amigo, o epicurista Ático, é muito perspicaz: como um romano e um amante de Atenas, Ático podia escrever sobre muitos casos de heroísmo cívico, mas, enquanto epicurista, para manter a consistência teórica, ele tinha que rejeitá-los como sendo equivocados. Ao fundamentar a conduta moral no prazer, um princípio inaceitável para Cícero, o epicurismo desdenharia dos valores políticos e minaria a moralidade romana. Mais ainda, há coisas que convêm aos gregos, mas não aos romanos, como diz Cícero, para quem a moralidade não é um dado universal. A conclusão óbvia é que a doutrina epicurista não era adequada para um nobre romano e devia ser rejeitada não apenas por suas ideias, mas também pelas ações de seus seguidores.24 24 Ver Prost (2003), que defende que a feroz oposição de Cícero ao epicurismo no De finibus sustenta o argumento de Cícero em prol do tipo de nobre romano filosoficamente educado que propõe como ideal. Ver também Auvray-Assayas, 2006, p. 87-139.

Em uma passagem do De natura deorum, o ataque ad hominem ao epicurismo é ainda mais explícito na fala da personagem Cotta, o acadêmico:

Istisne fidentes somniis non modo Epicurus et Metrodorus et Hermarchus contra Pythagoram Platonem Empedoclemque dixerunt, sed meretricula etiam Leontium contra Theophrastum scribere ausast -scito illa quidem sermone et Attico, sed tamen: tantum Epicuri hortus habuit licentiae. Et soletis queri; Zeno quidem etiam litigabat; quid dicam Albucium; nam Phaedro nihil elegantius nihil humanius, sed stomachabatur senex si quid asperius dixeram, cum Epicurus Aristotelem vexarit contumeliosissime, Phaedoni Socratico turpissime male dixerit, Metrodori sodalis sui fratrem Timocraten, quia nescio quid in philosophia dissentiret, totis voluminibus conciderit, in Democritum ipsum quem secutus est fuerit ingratus, Nausiphanem magistrum suum, a quo non nihil didicerat, tam male acceperit. Zeno quidem non eos solum qui tum erant, Apollodorum Sillim ceteros, figebat maledictis, sed Socraten ipsum parentem philosophiae Latino verbo utens scurram Atticum fuisse dicebat, Chrysippum numquam nisi Chrysippam vocabat (Nat. D. 1.93).

Confiantes nesses sonhos, não só Epicuro, Metródoto e Hermarco falaram contra Pitágoras, Platão e Empédocles, mas também a meretrizinha Leôncio ousou escrever contra Teofrasto - de fato em elegante idioma ático: em todo caso, porém, apenas o jardim de Epicuro teve imunidade. Ainda costumais lamentar-vos: Zenão até mesmo brigava; o que diria de Albúcio; quanto a Fedro, nada diria de mais elegante e mais humano, mas o velho se irritava. Se eu dissesse algo mais rude, como Epicuro havia atacado afrontosamente a Aristóteles, e falado mal, de modo muito desonroso, de Fédon, o socrático; derrubou Timócrates, irmão de seu companheiro Metródoto, com todos os volumes, porque discordou de não sei o que em filosofia; foi ingrato para com o próprio Demócrito, a quem seguia; recebeu tão mal a Nausífanes, seu mestre, do qual havia aprendido alguma coisa. Zenão, é verdade, feria com ultrajes não só os que lhe eram contemporâneos, Apolodoro, Silo e outros, como também dizia que o próprio Sócrates, o pai da filosofia, havia sido, usando o termo latino, o bufão ático; nunca citava Crísipo a não ser como Crísipa.25 25 Tradução de Bassetto, 2016.

Mesmo que no proêmio do De natura deorum Cicero declare sua ligação com o princípio acadêmico de que não se deve dar crédito à autoridade pessoal, e sim ao valor dos argumentos (Nat. D. 1.10),26 26 Classen 2010 fornece uma discussão substanciada da forma e da função das antologias filosóficas e da técnica de exposição de Cícero em Nat. D. Para Classen, mesmo em seus diálogos filosóficos, Cícero segue o estilo de composição de seus discursos forenses, e analisa a forma retórica da argumentação filosófica e a função que Cícero deu a esta forma em seus diálogos. Ver também Zetzel (2003) sobre os modos como Cícero lidava com filósofos gregos. este é um ataque muito pessoal, violento e misógino. Em sua invectiva, Cícero cria um quadro altamente irrisório do Jardim de Epicuro e não poupa nem mesmo seu querido mestre Fedro. Cotta declara que os epicuristas são vulgares e licenciosos, além de especialmente ingratos. Epicuro e seus seguidores são atacados por serem rudes, libidinosos e arrogantes, e ambas as passagens citadas são exemplos importantes da argumentação de Cícero. Em suma, as menções a filósofos epicuristas passados e presentes não são edificantes, e eles surgem como maus exemplos para os romanos. Cícero desaprova o que considerava um intelectualismo vazio que, para ele, não tinha outra consequência a não ser uma vida socialmente irresponsável. Percebe-se claramente um alinhamento com o elitismo intelectual platônico contra os sofistas, destinado em Cícero a atingir tanto o ensino epicurista “popular” em Roma quanto seu próprio grupo, seus optimates, atacando os seguidores de Epicuro na própria elite romana (e.g. Tusc. 1.1-2). Para Cícero, Platão e Aristóteles, de “inteligência divina” (divina ingenia, Fin. 1.7), eram mestres mais adequados.

Decerto, não eram apenas os acadêmicos que se apoiavam em Platão neste momento. Platonem… legunt omnes, diz Cícero em Tusc. 2.8. O classicismo começava a se consolidar no mundo helenístico-romano, e Platão se tornava uma importante autoridade também para peripatéticos e estoicos. O epicurismo parece ter sido a única escola filosófica de destaque neste período que não enfatizava laços especiais com Platão, mas mesmo entre epicuristas ele era muito lido, debatido e refutado. Platão foi um dos primeiros beneficiários da tendência classicista cuja origem podemos datar do século II AEC, e o estoico Antípatro de Tarso é frequentemente considerado um dos primeiros exemplos deste interesse classicista em sua obra. Essa popularidade de Platão pode ser apreciada considerando a atitude de quatro filósofos que Cícero tinha como seus principais guias filosóficos: os acadêmicos Filo de Larissa e Antíoco de Ascalão, e os estoicos Panécio e Posidônio. Apesar de suas atitudes e doutrinas serem particulares e, às vezes, contraditórias, esses filósofos usavam Platão como argumento de autoridade, apesar de Cícero também destacar o papel relevante de Aristóteles em sua obra filosófica. Para Cícero, Platão era não apenas o melhor modelo de expressão em língua grega, mas também de pensamento crítico. Platão era, para ele, o fundador de um método filosófico e a origem de toda atividade filosófica subsequente, enquanto Aristóteles era aquele que refinara o sistema platônico. E se todo mundo lia Platão, poucos liam Aristóteles, o que Cícero declara na introdução de suas Topica. Um elemento da técnica retórica aristotélica era central no projeto intelectual de Cícero: o método in utramque partem, no qual foi treinado por Filo de Larissa - ou, pelo menos, parece que Filo atribuía o método a Aristóteles. O Platão de Cícero era, contudo, uma figura ímpar: um pensador cético e um mestre da refutação que considerava todo conhecimento como incerto, o fundador de uma tradição filosófica apropriada por todas as escolas filosóficas posteriores - o que deriva em um Platão muito peculiar.

Propugnando seu ideal de filosofia, em seus diálogos filosóficos Cícero põe em cena debates entre membros da elite romana para seus pares. Suas personagens encarnam o tipo ideal de nobre romano que Cícero recomenda, aquele que apresenta um equilíbrio entre os dotes intelectuais e a prática política. O pensamento filosófico, para Cícero, é para poucos e praticado por poucos, e a filosofia que interessa tem uma fonte e agentes específicos, especialmente Platão, Aristóteles e a tradição da Academia. Em Tusc. 1.55, é significativo que Cícero denomine plebeii philosophi aos epicuristas com quem polemiza. Nobilissima é a tradição da Academia. Nessa passagem, Cícero, um consular, insere os filósofos gregos na hierarquia social e política romana.27 27 Cf. também Rep. 2.3, 2.21-22, 2.59, Orat. 1.224, Orator 9-10, Opt. gen. 6, Tusc. 1.7, 1.20, 5.34. Em Rep. 2.55, e.g., Cícero faz Cipião argumentar: “... não estou recitando coisas antigas e obsoletas para vocês sem motivo: quero apresentar exemplos de homens e ações usando pessoas e eventos famosos, para servir de base para o restante do meu discurso” (Neque ego haec nunc sine causa tam vetera vobis et tam obsoleta decanto, sed inlustribus in personas temporibusque exempla hominum rerumque definido, ad quae reliqua oratio derigatur mea).

Conclusão

O pensamento de Cícero é inerentemente político, destacando virtudes como pietas, concordia, iustitia, fides, dentre outras, com nuances que escapam ao tópico aqui discutido. Elas são, antes de tudo, virtudes sociais e têm de ser postas em prática para existirem. É notório seu esforço e sucesso em “enobrecer” o pensamento grego em Roma, escrevendo diálogos nos quais eminentes figuras públicas debatiam em suas villae e afastavam as objeções ao pensamento filosófico, pois seu comportamento e suas ambições diferiam da vida e do comportamento dos pensadores gregos. Suas personagens não eram filósofos em tempo integral, nem ganhavam a vida como palestrantes ou mestres de filosofia, como os gregos de seu tempo. Essas figuras eram senadores, magistrados, sacerdotes públicos, enfim, pessoas altamente recomendadas na Roma tardo-republicana - e, em Roma, era sobremaneira importante quem falava e como falava. Em suma, Cícero projeta um nobre filósofo, que combina a busca da sabedoria com um sólido compromisso político e moral conservador, visando um campo aberto para o debate em Roma - desde que a “verdade” estivesse em aberto e fosse o fruto de um debate entre seus instruídos pares (Inv. 1.1, Orat. 1.142-3, 3.60-1, Nat. D. 1.6). Com suas controvérsias, Cícero investe contra o que considera um pensamento e uma ação inferiores. Ao fazê-lo, Cícero estabelece uma filosofia “clássica” conservadora como remédio contra os círculos “hedonistas” e individualistas de epicuristas em Roma, que não se encaixam no tipo ideal de nobre por ele propugnado, assim como não satisfazem seus critérios de rigor teórico.

O ideal ciceroniano da libera res publica seria o resultado da ação de uma elite filosoficamente educada e distante da massa de filósofos “plebeus” que seduziam as pessoas sem instrução e eram moralmente perigosos para a juventude romana. Cícero, então, ataca a multitudo de autores que considerava disruptivos e inferiores, “que escreveram uma quantidade infinita de livros repetitivos e inúteis” (eadem enim dicuntur a multis ex quo libris omnia referserunt, Tusc. 2.6), recrutando um grupo seleto de filósofos do passado e pessoas altamente talentosas que fazia se expressarem em diálogos sofisticados, criando uma “nobre” filosofia. Para James Zetzel (2013ZETZEL, J. E. (2013). Philosophy Is in the Streets. In: WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. (eds.). Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p. 50-82., p. 62), a proposta de Cícero até certo ponto lembra a moderna e altamente hierárquica formação acadêmica. O impressionante corpus ciceroniano é, decididamente, um dos mais influentes na tradição ocidental, orientando a recepção da filosofia nos séculos futuros e contribuindo para configurar os programas educacionais, as formações intelectuais e as estruturas do conhecimento ocidentais. Podemos perguntar, então, o que o moderno estudo da filosofia antiga e nossos programas de curso ainda devem a Cícero.

Bibliografia

  • ANNAS, J. (2016). Introduction. In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-11.
  • AUVRAY-ASSAYAS, C. (2006). Cicéron Paris, Les Belles Lettres.
  • BARAZ, Y. (2012). A Written Republic. Cicero’s Philosophical Politics. Princeton, Princeton University Press.
  • BASSETTO, B. F. (trad.) (2016). Cícero. A natureza dos deuses Uberlândia, EdUFU.
  • BASSETTO, B. F. (trad.) (2018). Cícero. Os limites dos bens e dos males Uberlândia, EdUFU.
  • BISHOP, C. (2019). Cicero, Greek Learning, and the Making of a Roman Classic Oxford, Oxford University Press.
  • BRITTAIN, C. (2016). Cicero’s sceptical methods: the example of De Finibus In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus Philosophical Approaches . Cambridge, Cambridge University Press, p. 12-40.
  • BRITTAIN, C. (2001). Philo of Larissa The Last of the Academic Sceptics. Oxford, Oxford University Press.
  • CITRONI, M. (2006). The Concept of the Classical and the Canons of Model Authors in Roman Literature. In: PORTER, J. I. (ed.). Classical Pasts: The Classical Tradition of Ancient Greece and Rome. Princeton, Princeton University Press, p. 204-235.
  • CLASSEN, C. J. (2010). Teaching Philosophy, a form or function of Roman oratory. In: BERRY, D. H.; ERSKINE, A. (eds.). Form and Function in Roman Oratory Cambridge, Cambridge University Press, p. 195-297.
  • DIHLE, A. (2011). Greek Classicism. In: SCHMITZ, T. A.; WIATER, N. (eds.). The Struggle for Identity: Greeks and their Past in the First Century BCE. Stuttgart, Franz Steiner Verlag, p. 47-60.
  • DUGAN, J. (2005). Making a New Man: Ciceronian Self-fashioning in the Rhetorical Works. Oxford, Oxford University Press.
  • FANTHAM, E. (2004). The Roman World of Cicero’s De Oratore Oxford, Oxford University Press.
  • FEENEY, D. (1999). Literature and Religion in Rome Cultures, Contexts and Beliefs. Cambridge, Cambridge University Press.
  • FOX, M. (2007). Cicero’s Philosophy of History Oxford, Oxford University Press.
  • GILDENHARD, I. (2007). Paideia romana Cicero’s ‘Tusculans Disputations’. Proceedings of the Cambridge Philological Society, Sup. 30. Cambridge, Cambridge Philological Society.
  • GLUCKER, J. (1988). Cicero’s Philosophical Affiliations. In: DILLON, J. M.; LONG, A. A. (eds.). The Question of “Eclecticism”. Studies in Late Greek Philosophy. Berkeley, University of California Press, p. 34-69.
  • GÖRLER, W. (1995). Silencing the Troublemaker: De Legibus 1.39 and the Continuity of Cicero’s Scepticism. In: POWELL, J. G. F. (ed.). Cicero the Philosopher Oxford, Oxford University Press , p. 85-113.
  • GRIFFIN, M. (2001). Piso, Cicero and their Audience. In: AUVRAY-ASSAYAS, C.; DELATTRES, D. (eds.). Cicéron et Philodème. La polémique en philosophie. Paris, Presses de l’École normale supérieure, p. 85-99.
  • GUNDERSON, E. (2016). Cicero’s Studied Passions: The Letters of 46 BCE. Arethusa 49, n. 3, p. 525-547.
  • HATZIMICHALI, M. (2013). The Texts of Plato and Aristotle in the First Century BC. In: SCHOFIELD, M. (ed.). Aristotle, Plato and Pythagoreanism in the First Century BC. New Directions for Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-27.
  • HINE, H. (2016). Philosophy and philosophi: From Cicero to Apuleius. In: WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. (eds.). Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p. 13-29.
  • HOUSTON, G. W. (2014). Inside Roman Libraries: Book Collections and their Management in Antiquity. Chapel Hill, The University of North Carolina Press.
  • HUTCHINSON, G. O. (2013). Greek into Latin: Frameworks and Contexts for Intertextuality. Oxford, Oxford University Press.
  • KENNEDY, G. A. (1972). The Art of Rhetoric in the Roman World Princeton, Princeton University Press.
  • KROSTENKO, B. A. (2001). Cicero, Catullus and the Language of Social Performance Chicago, The University of Chicago Press.
  • LA BUA, G. (2019). Cicero and Roman Education The Reception of the Speeches and Ancient Scholarship. Cambridge, Cambridge University Press.
  • LEACH, E. W. (1999). Ciceronian ‘Bi-Marcus’: Correspondence with M. Terentius Varro and L. Papirius Paetus in 46 BCE. Transactions of the American Philological Association 129, p. 139-179.
  • LÉVY, C. (1992). Cicero Academicus. Recherches sur les “Academiques” et sur la philosophie cicéronienne. Rome, École Française de Rome.
  • LÉVY, C. (2001). Cicéron et l’épicurism: la problématique de l’éloge paradoxal. In: AUVRAY-ASSAYAS, C.; DELATTRES, D. (eds.). Cicéron et Philodème. La polémique en philosophie. Paris, Presses de l’École normale supérieure, p. 61-75.
  • LÉVY, C. (2002). Supplément à l’Introduction. In: Des termes extrêmes des biens et des maux Livre 1. Paris, Les Belles Lettres , p. xxxii-xlvi.
  • LÉVY, C. (2017). Cicéron était-il un ‘Roman sceptic’? Ciceroniana online 1, p. 9-24.
  • MANSFELD, J. (1999). Theology. In: ALGRA, K.; BARNES, J.; MANSFELD, J.; SCHOFIELD, M. (eds.). The Cambridge History of Hellenistic Philosophy Cambridge, Cambridge University Press, p. 452-478.
  • MASO, S. (2015). Grasp and Dissent. Cicero and Epicurean Philosophy. Turnhout, Brepols.
  • MAY, J. M. (1988). Trials of Characters: The Eloquence of Ciceronian Ethos. Chapel Hill, The University of North Carolina Press.
  • MOATTI, C. (1997). La raison de Rome Naissance de l’esprit critique à la fin de la République. Paris, Ed. du Seuil.
  • MOREL, P.-M. (2016). Cicero and Epicurean Virtues (De Finibus 1-2). In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 77-95.
  • MOST, G. W. (2006). Athens as the School of Greece. In: PORTER, J. I. (ed.). Classical Pasts: The Classical Tradition of Ancient Greece and Rome. Princeton, Princeton University Press, p. 377-388.
  • POWELL, J. G. F. (ed.) (1995). Cicero the Philosopher. Twelve Papers. Oxford, Oxford University Press.
  • PROST, F. (2003). Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2. Quaderni del dipertimento di filologia linguistica e tradizione classica 2, p. 87-111.
  • RÜPKE, J. (2012). Religion in Republican Rome Rationalization and Ritual Change. Philadelphia, The University of Pennsylvania Press.
  • SCHOFIELD, M. (2008). Ciceronian Dialogue. In: GOLDHILL, S. (ed.). The End of the Dialogue in Antiquity Cambridge, Cambridge University Press, p. 63-84.
  • SEDLEY, D. (1989). Philosophical Allegiance in the Graeco-Roman World. In: GRIFFIN, M.; BARNES, J. (eds.). Philosophia Togata Oxford, Oxford University Press, p. 97-119.
  • SEDLEY, D. (1997). Plato’s Auctoritas and the Rebirth of the Commentary Tradition. In: GRIFFIN, M.; BARNES, J. (eds.), Philosophia Togata II: Plato and Aristotle at Rome. Oxford, Oxford University Press, p. 110-129.
  • SKVIRSKY, A. (2019). Doubt and Dogmatism in Cicero’s Academica Archai 27, e02705.
  • STEEL, C. (2005). Reading Cicero: Genre and Performance in Late Republic. London, Duckworth.
  • STROUP, S. C. (2010). Catullus, Cicero and a Society of Patrons: The Generation of the Text. Cambridge, Cambridge University Press.
  • TARRANT, H. (1985). Scepticism or Platonism? The Philosophy of the Fourth Academy. Cambridge, Cambridge University Press.
  • VAN DER BLOM, H. (2010). Cicero’s Role Models. The Political Strategy of a Newcomer. Oxford, Oxford University Press.
  • VAN NUFFELEN, P. (2011). Rethinking the Gods Philosophical Readings of Religion in the Post-Hellenistic Period. Cambridge, Cambridge University Press.
  • VARDI, A. D. (2003). Canons of Literary Texts at Rome. In: FINKELBERG, M.; STROUMSA, G. (eds.). Homer, the Bible and Beyond: Literary and Religious Canons in the Ancient World. Leiden, Brill, p. 131-152.
  • WARREN, J. (2016). Epicurean Pleasures in Cicero’s De Finibus In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 41-76.
  • WISEMAN, T. P. (2009). Remembering the Roman People: Essays on Late-Republican Politics and Literature. Oxford, Oxford University Press.
  • WISSE, J. (1995). Greeks, Romans and the Rise of Atticism. In: ABBENES, J. G. J.; SLINGS, S. R.; SLUITER, I. (eds.). Greek Literary Theory after Aristotle. A collection of papers in honour of D. M. Schenkeveld. Amsterdam, Amsterdam University Press, p. 65-82.
  • WOOLF, R. (2015). Cicero: The Philosophy of a Roman Sceptic London, Routledge.
  • ZETZEL, J. E. (2003). Plato with Pillows: Cicero on the Uses of Greek Culture. In: BRAUND, D.; GILL, C. (eds.). Myth, History and Culture in Republican Rome. Studies in Honour of T. P. Wiseman. Exeter, The University of Exeter Press, p. 119-138.
  • ZETZEL, J. E. (2013). Philosophy Is in the Streets. In: WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. (eds.). Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p. 50-82.
  • 1
    Os estudos ciceronianos têm uma vasta bibliografia e é impossível fazer justiça a todas as valiosas contribuições dos especialistas. Alguns destaques, em uma lista obviamente incompleta, são: May, 1988MAY, J. M. (1988). Trials of Characters: The Eloquence of Ciceronian Ethos. Chapel Hill, The University of North Carolina Press.; Fantham, 2004FANTHAM, E. (2004). The Roman World of Cicero’s De Oratore. Oxford, Oxford University Press.; Dugan, 2005DUGAN, J. (2005). Making a New Man: Ciceronian Self-fashioning in the Rhetorical Works. Oxford, Oxford University Press.; Steel, 2005STEEL, C. (2005). Reading Cicero: Genre and Performance in Late Republic. London, Duckworth.; Fox, 2007FOX, M. (2007). Cicero’s Philosophy of History. Oxford, Oxford University Press.; e Gildenhard, 2007GILDENHARD, I. (2007). Paideia romana. Cicero’s ‘Tusculans Disputations’. Proceedings of the Cambridge Philological Society, Sup. 30. Cambridge, Cambridge Philological Society.. Um estudo recente de La Bua (2019)LA BUA, G. (2019). Cicero and Roman Education. The Reception of the Speeches and Ancient Scholarship. Cambridge, Cambridge University Press., apesar de lidar apenas com os discursos de Cícero, elucida importantes aspectos sobre como mestres da antiguidade lidavam com as obras de Cícero em seu ensino. La Bua reconstrói as principais fases da transmissão textual desses discursos da primeira divulgação pelo próprio autor no século I AEC até manuscritos medievais do século VI EC.
  • 2
    Sobre a correspondência de Cícero e Varrão neste período, ver Leach, 1999LEACH, E. W. (1999). Ciceronian ‘Bi-Marcus’: Correspondence with M. Terentius Varro and L. Papirius Paetus in 46 BCE. Transactions of the American Philological Association 129, p. 139-179., p. 165-168; Baraz, 2012BARAZ, Y. (2012). A Written Republic. Cicero’s Philosophical Politics. Princeton, Princeton University Press., p. 80-86; Wiseman, 2009WISEMAN, T. P. (2009). Remembering the Roman People: Essays on Late-Republican Politics and Literature. Oxford, Oxford University Press., p. 107-129, que destaca seus aspectos políticos; e Gunderson, 2016GUNDERSON, E. (2016). Cicero’s Studied Passions: The Letters of 46 BCE. Arethusa 49, n. 3, p. 525-547..
  • 3
    Exceto quando explicitado, as traduções do latim são minhas.
  • 4
    Varrão, a partir dessa data, também produziu uma extensa obra teórica com diferentes características. Sobre o prolífico milieu intelectual da Roma tardo-republicana ver Moatti, 1997MOATTI, C. (1997). La raison de Rome. Naissance de l’esprit critique à la fin de la République. Paris, Ed. du Seuil.; Feeney, 1999FEENEY, D. (1999). Literature and Religion in Rome. Cultures, Contexts and Beliefs. Cambridge, Cambridge University Press.; Rüpke, 2012; Woolf, 2015WOOLF, R. (2015). Cicero: The Philosophy of a Roman Sceptic. London, Routledge.; e Maso, 2015MASO, S. (2015). Grasp and Dissent. Cicero and Epicurean Philosophy. Turnhout, Brepols..
  • 5
    Referências fundamentais para o crescente interesse acadêmico na obra filosófica de Cícero são Glucker, 1988; Lévy, 1992LÉVY, C. (1992). Cicero Academicus. Recherches sur les “Academiques” et sur la philosophie cicéronienne. Rome, École Française de Rome.; Görler, 1995; Powell, 1995POWELL, J. G. F. (ed.) (1995). Cicero the Philosopher. Twelve Papers. Oxford, Oxford University Press.; Mansfeld 1999MANSFELD, J. (1999). Theology. In: ALGRA, K.; BARNES, J.; MANSFELD, J.; SCHOFIELD, M. (eds.). The Cambridge History of Hellenistic Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, p. 452-478.; Schofield, 2008SCHOFIELD, M. (2008). Ciceronian Dialogue. In: GOLDHILL, S. (ed.). The End of the Dialogue in Antiquity. Cambridge, Cambridge University Press, p. 63-84.; Maso, 2015MASO, S. (2015). Grasp and Dissent. Cicero and Epicurean Philosophy. Turnhout, Brepols.; Woolf, 2015WOOLF, R. (2015). Cicero: The Philosophy of a Roman Sceptic. London, Routledge.; Annas, 2016ANNAS, J. (2016). Introduction. In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus. Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-11.; e Brittain, 2016BRITTAIN, C. (2016). Cicero’s sceptical methods: the example of De Finibus. In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus. Philosophical Approaches . Cambridge, Cambridge University Press, p. 12-40.. Ver também consistentes críticas da ideia corrente de um Cícero cético em Lévy, 2017LÉVY, C. (2017). Cicéron était-il un ‘Roman sceptic’? Ciceroniana online 1, p. 9-24.; e no recente Skvirsky, 2019SKVIRSKY, A. (2019). Doubt and Dogmatism in Cicero’s Academica. Archai 27, e02705..
  • 6
    Ver especialmente Gildenhard, 2007GILDENHARD, I. (2007). Paideia romana. Cicero’s ‘Tusculans Disputations’. Proceedings of the Cambridge Philological Society, Sup. 30. Cambridge, Cambridge Philological Society.. Sobre as linhas gerais do projeto intelectual de Cícero, ver Baraz, 2012BARAZ, Y. (2012). A Written Republic. Cicero’s Philosophical Politics. Princeton, Princeton University Press.; e Bishop, 2019BISHOP, C. (2019). Cicero, Greek Learning, and the Making of a Roman Classic. Oxford, Oxford University Press..
  • 7
    Krostenko, 2001KROSTENKO, B. A. (2001). Cicero, Catullus and the Language of Social Performance. Chicago, The University of Chicago Press., p. 202-232, é uma excelente análise do vocabulário de Cícero no contexto do que denominou uma “linguagem da performance social”. Ver também Stroup (2010STROUP, S. C. (2010). Catullus, Cicero and a Society of Patrons: The Generation of the Text. Cambridge, Cambridge University Press.) sobre a produção de textos literários no milieu elitista da época de Cícero, e Van der Blom (2010), sobre os modelos de comportamento escolhidos por Cícero. Ver Hine, 2016HINE, H. (2016). Philosophy and philosophi: From Cicero to Apuleius. In: WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. (eds.). Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p. 13-29., p. 11-19, sobre o uso, por Cícero, do termo philosophus e suas nuances na philosophica.
  • 8
    A respeito das ideias de Cícero sobre a educação e como superar o que considerava influências corruptoras da nobreza romana, ver Gildenhard (2007GILDENHARD, I. (2007). Paideia romana. Cicero’s ‘Tusculans Disputations’. Proceedings of the Cambridge Philological Society, Sup. 30. Cambridge, Cambridge Philological Society., p. 74-78, 176-178) defendendo tratar-se também de um ataque às pretensões gentílicas de transmissão hereditária das virtutes pelo novus Cícero, no contexto de uma cultura política altamente conservadora. Sobre este ponto, ver também Steel (2005STEEL, C. (2005). Reading Cicero: Genre and Performance in Late Republic. London, Duckworth., p. 107-109), que lida com a criação de uma rede de interlocutores políticos e intelectuais por Cícero como base para a construção da sua persona pública. Ver também Dugan, 2005DUGAN, J. (2005). Making a New Man: Ciceronian Self-fashioning in the Rhetorical Works. Oxford, Oxford University Press., p. 87-104; e Van der Blom, 2010VAN DER BLOM, H. (2010). Cicero’s Role Models. The Political Strategy of a Newcomer. Oxford, Oxford University Press., p. 35-59.
  • 9
    Sobre a ambígua relação de Cícero com as teses epicuristas, ver especialmente Maso, 2015MASO, S. (2015). Grasp and Dissent. Cicero and Epicurean Philosophy. Turnhout, Brepols..
  • 10
    Sobre intelectuais gregos em Roma neste período, ver Hutchinson (2013HUTCHINSON, G. O. (2013). Greek into Latin: Frameworks and Contexts for Intertextuality. Oxford, Oxford University Press.) e Hatzimichali (2013HATZIMICHALI, M. (2013). The Texts of Plato and Aristotle in the First Century BC. In: SCHOFIELD, M. (ed.). Aristotle, Plato and Pythagoreanism in the First Century BC. New Directions for Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-27., p. 1-7). Sobre as bibliotecas, há uma referência de Cícero à biblioteca de Sula em Att. 4.10 e, no proêmio do De finibus 3, Cícero cria um encontro com Catão na biblioteca de Lúculo. Além disso, jovens romanos da elite viajavam para estudar nos grandes centros culturais da época, como Atenas e Rodes. Ver também Houston (2014HOUSTON, G. W. (2014). Inside Roman Libraries: Book Collections and their Management in Antiquity. Chapel Hill, The University of North Carolina Press., p. 121-125), que demonstra que a maior parte dos papiros datáveis da Vila dos Papiros em Herculano data do fim do século II e início do século I AEC.
  • 11
    Para Citroni (2006CITRONI, M. (2006). The Concept of the Classical and the Canons of Model Authors in Roman Literature. In: PORTER, J. I. (ed.). Classical Pasts: The Classical Tradition of Ancient Greece and Rome. Princeton, Princeton University Press, p. 204-235.), o que chamamos “classicismo” é, até certo ponto, uma consequência do impulso helenístico de catalogação e sistematização do conhecimento. Ver também Moatti, 1997MOATTI, C. (1997). La raison de Rome. Naissance de l’esprit critique à la fin de la République. Paris, Ed. du Seuil.. Sobre a natureza dos “cânones” helenísticos, ver Most, 2006MOST, G. W. (2006). Athens as the School of Greece. In: PORTER, J. I. (ed.). Classical Pasts: The Classical Tradition of Ancient Greece and Rome. Princeton, Princeton University Press, p. 377-388.; e Vardi, 2003VARDI, A. D. (2003). Canons of Literary Texts at Rome. In: FINKELBERG, M.; STROUMSA, G. (eds.). Homer, the Bible and Beyond: Literary and Religious Canons in the Ancient World. Leiden, Brill, p. 131-152.. Como resultado deste enfoque classicista, o grego ático também foi elevado a modelo linguístico, tornando-se o padrão não somente da linguagem literária, mas também a língua falada pelas elites grega e romana.
  • 12
    Ver Sedley, 1989SEDLEY, D. (1989). Philosophical Allegiance in the Graeco-Roman World. In: GRIFFIN, M.; BARNES, J. (eds.). Philosophia Togata. Oxford, Oxford University Press, p. 97-119.; e Sedley, 1997SEDLEY, D. (1997). Plato’s Auctoritas and the Rebirth of the Commentary Tradition. In: GRIFFIN, M.; BARNES, J. (eds.), Philosophia Togata II: Plato and Aristotle at Rome. Oxford, Oxford University Press, p. 110-129.. Para Sedley (1997SEDLEY, D. (1997). Plato’s Auctoritas and the Rebirth of the Commentary Tradition. In: GRIFFIN, M.; BARNES, J. (eds.), Philosophia Togata II: Plato and Aristotle at Rome. Oxford, Oxford University Press, p. 110-129., p. 97), a filosofia era uma área especialmente afeita ao classicismo, posto que as seitas filosóficas se uniam por um compromisso virtualmente religioso com a autoridade da figura de um fundador. Cícero, e.g., afirma que o estoico Panécio chamava Platão de divino: Tusc. 1.79.
  • 13
    Até certo ponto, os autores romanos criaram um classicismo tão inovador que afetou autores gregos contemporâneos, mas este tema escapa ao escopo deste artigo. Um bom exemplo aqui é a criação do “aticismo” como um movimento retórico talvez na própria geração de Cícero, o que não teria ocorrido, decerto, sem que os intelectuais helenísticos codificassem e sistematizassem seus próprios “clássicos”. Ver Kennedy, 1972KENNEDY, G. A. (1972). The Art of Rhetoric in the Roman World. Princeton, Princeton University Press.; Wisse, 1995WISSE, J. (1995). Greeks, Romans and the Rise of Atticism. In: ABBENES, J. G. J.; SLINGS, S. R.; SLUITER, I. (eds.). Greek Literary Theory after Aristotle. A collection of papers in honour of D. M. Schenkeveld. Amsterdam, Amsterdam University Press, p. 65-82.; e Dihle, 2011DIHLE, A. (2011). Greek Classicism. In: SCHMITZ, T. A.; WIATER, N. (eds.). The Struggle for Identity: Greeks and their Past in the First Century BCE. Stuttgart, Franz Steiner Verlag, p. 47-60., que defende uma origem grega para este movimento entre intelectuais gregos que viviam em Roma, como Filoxeno.
  • 14
    Ver Gildenhard (2007)GILDENHARD, I. (2007). Paideia romana. Cicero’s ‘Tusculans Disputations’. Proceedings of the Cambridge Philological Society, Sup. 30. Cambridge, Cambridge Philological Society. sobre a ambivalência de Cícero em relação à cultura grega, a cultura de um povo subjugado, ao passo que incentivava sua apropriação - de um modo imperialista. Krostenko (2001KROSTENKO, B. A. (2001). Cicero, Catullus and the Language of Social Performance. Chicago, The University of Chicago Press., p. 168-176), discute este tema nos discursos públicos de Cícero, nos quais o autor declara sua distância da cultura e da arte grega, respondendo a acusações de filelenismo. Ver também Plut. Cic. 5.2 e Cass. Dio 46.18.1-2.
  • 15
    Para Cícero, o filósofo perfeito é idêntico a seu orador perfeito, cf. Schofield, 2008SCHOFIELD, M. (2008). Ciceronian Dialogue. In: GOLDHILL, S. (ed.). The End of the Dialogue in Antiquity. Cambridge, Cambridge University Press, p. 63-84., p. 68-69.
  • 16
    Livros epicuristas em latim são mencionados em muitas obras de Cícero, e.g., Acad. 1.5, Tusc. 1.6., 2.7., 4.6-7, e em sua correspondência com Cássio em Fam. 15.16, 15.9. À época de Cícero, livros filosóficos não eram apenas escritos por acadêmicos, como Varrão e Bruto, que também estudaram com Antíoco de Ascalão, mas também por Nigídio Fígulo, que talvez fosse pitagórico, e.g. Cic. Tim. 1.1-9, assim como autores estoicos já tinham começado a escrever em latim (Fam. 15.19), sem precisarmos mencionar a alta qualidade literária e filosófica de Lucrécio.
  • 17
    Em Tusc. 2.7-8, Cícero lamenta os Latini multi libri de epicuristas. Há indícios de que o Jardim continuou a funcionar em Atenas após a morte de Fedro em 70, mas Cícero teve que pedir a Mêmio (aparentemente, o destinatário de Lucrécio) que não derrubasse a casa de Epicuro em Atenas (Fam. 13.1.2). Sobre T. Albúcio (pretor de 105), uma referência de Cícero indica que ele teria escrito livros de filosofia, apesar de parecer terem sido redigidos em grego. Albúcio era um notório filelênico: e.g., Nat. D 1.93 (seu nome é mencionado entre Zenão e Fedro) e Brut. 131. Sobre Amafínio: Tusc. 1.5, 2.5, 4.6, Cael. 17.40-41, Nat. D 1.4, Acad. 1.4. Sobre Rabírio: Tusc. 4.7; Luc. 1.5, e.g. Sobre Cátio: Fam. 15.19.2.
  • 18
    Sobre este tema, ver especialmente Lévy, 2001LÉVY, C. (2001). Cicéron et l’épicurism: la problématique de l’éloge paradoxal. In: AUVRAY-ASSAYAS, C.; DELATTRES, D. (eds.). Cicéron et Philodème. La polémique en philosophie. Paris, Presses de l’École normale supérieure, p. 61-75.; e Griffin, 2001GRIFFIN, M. (2001). Piso, Cicero and their Audience. In: AUVRAY-ASSAYAS, C.; DELATTRES, D. (eds.). Cicéron et Philodème. La polémique en philosophie. Paris, Presses de l’École normale supérieure, p. 85-99..
  • 19
    Outras declarações sobre a popularidade do epicurismo na Itália: Fin. 2.12, 2.28, 2.44-49. Sobre a vivacidade de diferentes doutrinas filosóficas em Roma e o modo como Cícero lida com elas ver, especialmente, Zetzel, 2013ZETZEL, J. E. (2013). Philosophy Is in the Streets. In: WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. (eds.). Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford, Oxford University Press, p. 50-82..
  • 20
    Ver as linhas gerais do Fin. em Lévy, 2002LÉVY, C. (2002). Supplément à l’Introduction. In: Des termes extrêmes des biens et des maux. Livre 1. Paris, Les Belles Lettres , p. xxxii-xlvi., p. xli-xlvi. Ver também Warren (2016)WARREN, J. (2016). Epicurean Pleasures in Cicero’s De Finibus. In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus. Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 41-76. sobre a crítica de Cícero ao argumento de Torquato em defesa do prazer, apontando inconsistências epistemológicas na doutrina apresentada no L. 1, especialmente o fato de não ser estabelecida uma distinção segura entre o prazer e a ausência da dor como sendo o summus bonum.
  • 21
    Sobre a Nova Academia, também denominada “Quarta Academia”, Tarrant (1985TARRANT, H. (1985). Scepticism or Platonism? The Philosophy of the Fourth Academy. Cambridge, Cambridge University Press.) e Brittain (2001BRITTAIN, C. (2001). Philo of Larissa. The Last of the Academic Sceptics. Oxford, Oxford University Press.) são especialmente esclarecedores.
  • 22
    Sobre a acurácia de Cícero em suas reconstruções das teses epicuristas, ver e.g., Maso, 2015MASO, S. (2015). Grasp and Dissent. Cicero and Epicurean Philosophy. Turnhout, Brepols.; Morel, 2016MOREL, P.-M. (2016). Cicero and Epicurean Virtues (De Finibus 1-2). In: ANNAS, J.; BETEGH, G. (eds.). Cicero’s De Finibus. Philosophical Approaches. Cambridge, Cambridge University Press, p. 77-95.; e Warren, 2016.
  • 23
    Tradução Bassetto, 2018BASSETTO, B. F. (trad.) (2018). Cícero. Os limites dos bens e dos males. Uberlândia, EdUFU..
  • 24
    Ver Prost (2003PROST, F. (2003). Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2. Quaderni del dipertimento di filologia linguistica e tradizione classica 2, p. 87-111.), que defende que a feroz oposição de Cícero ao epicurismo no De finibus sustenta o argumento de Cícero em prol do tipo de nobre romano filosoficamente educado que propõe como ideal. Ver também Auvray-Assayas, 2006AUVRAY-ASSAYAS, C. (2006). Cicéron. Paris, Les Belles Lettres., p. 87-139.
  • 25
    Tradução de Bassetto, 2016BASSETTO, B. F. (trad.) (2016). Cícero. A natureza dos deuses. Uberlândia, EdUFU..
  • 26
    Classen 2010CLASSEN, C. J. (2010). Teaching Philosophy, a form or function of Roman oratory. In: BERRY, D. H.; ERSKINE, A. (eds.). Form and Function in Roman Oratory. Cambridge, Cambridge University Press, p. 195-297. fornece uma discussão substanciada da forma e da função das antologias filosóficas e da técnica de exposição de Cícero em Nat. D. Para Classen, mesmo em seus diálogos filosóficos, Cícero segue o estilo de composição de seus discursos forenses, e analisa a forma retórica da argumentação filosófica e a função que Cícero deu a esta forma em seus diálogos. Ver também Zetzel (2003ZETZEL, J. E. (2003). Plato with Pillows: Cicero on the Uses of Greek Culture. In: BRAUND, D.; GILL, C. (eds.). Myth, History and Culture in Republican Rome. Studies in Honour of T. P. Wiseman. Exeter, The University of Exeter Press, p. 119-138.) sobre os modos como Cícero lidava com filósofos gregos.
  • 27
    Cf. também Rep. 2.3, 2.21-22, 2.59, Orat. 1.224, Orator 9-10, Opt. gen. 6, Tusc. 1.7, 1.20, 5.34. Em Rep. 2.55, e.g., Cícero faz Cipião argumentar: “... não estou recitando coisas antigas e obsoletas para vocês sem motivo: quero apresentar exemplos de homens e ações usando pessoas e eventos famosos, para servir de base para o restante do meu discurso” (Neque ego haec nunc sine causa tam vetera vobis et tam obsoleta decanto, sed inlustribus in personas temporibusque exempla hominum rerumque definido, ad quae reliqua oratio derigatur mea).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2019
  • Aceito
    03 Fev 2020
Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra, Campus Darcy Ribeiro, Cátedra UNESCO Archai, CEP: 70910-900, Brasília, DF - Brasil, Tel.: 55-61-3107-7040 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: archai@unb.br