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A Teoria da Demonstração Científica de Aristóteles em Segundos Analíticos 1.2-9 e 1.13

Aristotle’s Theory of Scientific Demonstration in Posterior Analytics 1.2-9 and 1.13

Resumo:

Defendo uma interpretação do livro I dos Segundos Analíticos de Aristóteles que distingue dois projetos em diferentes trechos da obra: (i) explicar em que consiste uma dada ciência e (ii) explicar em que consiste o conhecimento propriamente científico. Exponho a teoria de Aristóteles que responde à questão ii, com especial atenção à definição de conhecimento científico em 71b9-12 e mostrando como isso se desdobra ao longo dos capítulos 1.2-9 e 1.13 em uma consistente Teoria da Demonstração Científica. O principal ponto dessa teoria é que demonstrações precisam capturar explicações relevantes. Alguns requisitos formais (como a estrutura silogística e a coextensão de termos) são desdobramentos do alvo principal, a saber, capturar e expor de forma apropriada relações causais-explanatórias relevantes.

Palavras-chave:
Teoria da Demonstração Científica; metodologia científica; explicação; relevância; Aristóteles

Abstract:

I defend an interpretation of Aristotle’s Posterior Analytics Book I which distinguishes between two projects in different passages of that work: (i) to explain what a given science is and (ii) to explain what properly scientific knowledge is. I present Aristotle’s theory in answer to ii, with special attention to his definition of scientific knowledge in 71b9-12 and showing how this is developed on chapters 1.2-9 and 1.13 into a solid Theory of Scientific Demonstration. The main point of this theory is that demonstrations need to capture relevant explanations. Some formal requirements of the demonstration (as the syllogistic structure and coextension between terms) are unfoldings of the main project, 1.e., to capture and present properly relevant causal-explanatory relations.

Keywords:
Theory of Scientific Demonstration; scientific methodology; explanation; relevancy; Aristotle

1. Introdução

Os Segundos Analíticos de Aristóteles foram tomados, por muitos, como uma obra de epistemologia, preocupada com a certificação da possibilidade de se possuir conhecimento, com as condições para conhecer, e com a definição de conhecimento em geral. Questões como “o que é conhecimento”, “como temos conhecimento” e “o que conta como justificação epistêmica” seriam centrais nesse projeto. Nessa interpretação as teses de Aristóteles nos Segundos Analíticos foram entendidas como teses de juventude, herdadas de Platão, mais interessadas no conhecimento matemático do que nas ciências empíricas. Contudo, hoje temos excelentes motivos para crer que as preocupações de Aristóteles nos Segundos Analíticos não eram essas,1 1 Veja Ferejohn (1991), McKirahan (1992), Barnes (1993), Angioni (2016), Bronstein (2016) que argumentam solidamente que Aristóteles não estava preocupado com epistemologia em geral nos Segundos Analíticos. e podemos descartar as teorias desenvolvimentistas que situam a obra como precoce e irrelevante para os tratados mais tardios de Aristóteles. Seus objetivos são delineados por questões distintas: “como expor da melhor maneira o conhecimento científico”, “quais as características desse tipo de conhecimento mais elevado que almejamos expor”, “o que parece ser conhecimento científico mas na verdade não o é”, “em que se fundamenta o conhecimento científico”. A obra dos Segundos Analíticos é, portanto, mais próxima da disciplina contemporânea da Filosofia da Ciência (estuda aquilo que caracteriza a ciência em especial) do que da Epistemologia (estuda aquilo que caracteriza o conhecimento em geral).2 2 Esses pontos são levantados por diversos autores, como, por exemplo, Taylor (1990, p. 116-117), Ferejohn (1991, Introduction). De fato, Ferejohn (1991; 1994) discorda que as considerações acima sejam suficientes para afirmar que o projeto de Aristóteles se enquadra no que hoje chamamos de Filosofia da Ciência, mas concorda, ainda assim, que Aristóteles está preocupado em expor um tipo especial de conhecimento, e não está preocupado em uma teoria geral sobre o conhecimento ou Epistemologia.

A noção central, portanto, é a noção de ἐπιστήμη. A tradução de ἐπιστήμη não é simples. A palavra é a mesma que dá origem ao nome da disciplina Epistemologia, ou Teoria do Conhecimento. Contudo, o objeto principal da epistemologia contemporânea, a saber, o conhecimento em geral, não é algo que Aristóteles chamaria de ἐπιστήμη. Aristóteles usa o termo de diversas maneiras, mas a principal e central para os Segundos Analíticos é uma noção que remete a um tipo específico de conhecimento, o conhecimento científico. Mas o termo pode ser corretamente traduzido de diferentes maneiras em diferentes ocorrências. Intérpretes que aceitam que os Segundos Analíticos tratam de filosofia da ciência muitas vezes traduzem ἐπιστήμη por um (ou vários) dos seguintes termos: “ciência”, “expertise”, “conhecimento científico”, “conhecimento do expert”, “understanding”, “scientific understanding” etc. Burnyeat (1981BURNYEAT, M. (1981). Aristotle on Understanding Knowledge. In: BERTI, E. (ed.). Aristotle on Science - The Posterior Analytics. Padova, Antenore, p. 97-140.) consagrou e refinou a interpretação (já mapeada por Kosman, 1973KOSMAN, L. A. (1973). Explanation, Understanding and Insight in Aristotle’s Posterior Analytics. In: LEE, H.; MOURELATOS, A.; RORTY, R. (eds.). Exegesis and Argument. Assen, Van Gorcum, p. 374-392.) sobre a importância da distinção entre o conhecimento do que (hoti) e o conhecimento do porque (dihoti) nos Segundos Analíticos. Também propôs e enfatizou a tradução de ἐπιστήμη por “understanding”.3 3 É importante delinear que o inglês “understanding” possui uma conotação específica muito própria, que não corresponde ao português “entendimento”. Creio que nenhum termo em português capte as nuances de “understanding”, então mantive na tradução “conhecimento científico”. O foco de Aristóteles seria o tipo de conhecimento que alguém com alto domínio de uma dada disciplina possui, o conhecimento de uma pessoa com capacidades corretamente direcionadas e confiáveis para alcançar alvos desejáveis naquele ramo do conhecimento humano.

Uma distinção preliminar (confira também Burnyeat, 1981BURNYEAT, M. (1981). Aristotle on Understanding Knowledge. In: BERTI, E. (ed.). Aristotle on Science - The Posterior Analytics. Padova, Antenore, p. 97-140.) que vale a pena ressaltar é que o uso de ἐπιστήμη por Aristóteles compreende dois níveis distintos: a palavra é usada (i) para se referir a uma ciência em particular (um body of knowledge, uma disciplina, um domínio científico específico, um sistema de proposições conhecíveis) e (ii) para se referir a um estado cognitivo de um indivíduo com relação a uma dada proposição (o indivíduo x sabe cientificamente que y). Pode-se refinar ainda mais a distinção ii acima, pois não apenas Aristóteles usa o termo para falar do estado do indivíduo que sabe cientificamente uma proposição específica, mas também ele está preocupado com a questão (ii*) “em que consiste ter conhecimento científico de um dado teorema de uma dada ciência (e.g., da geometria)”,4 4 Análise de Angioni (no prelo). em oposição à questão (i*) “em que consiste uma dada ciência (e.g., a geometria)”. Essa distinção é muito importante, pois em diferentes partes dos Segundos Analíticos Aristóteles está interessado em diferentes questões. A questão ii* é a principal preocupação de Aristóteles na teoria da demonstração em Segundos Analíticos 1.2-9 e 1.13, enquanto em 1.10, 1.12 e 1.15-26 (além de alguns outros parágrafos soltos, como 1.2 72a8-24) a preocupação de Aristóteles é com a questão i*. Neste trabalho, almejamos elucidar a teoria de Aristóteles em resposta à questão ii*, e por isso 1.2-9 e 1.13 foram os capítulos selecionados para a apresentação subsequente.

O que está em jogo não é, primariamente, como um indivíduo adquire ἐπιστήμη ou como o cientista deve realizar sua pesquisa empírica. Antes, a preocupação de Aristóteles é em como expor de maneira adequada o conhecimento científico que já se adquiriu e como o cientista deve organizar e compreender os resultados de sua pesquisa empírica (cf. Barnes, 1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press., Introduction; Ferejohn, 1991FEREJOHN, M. (1991). The origins of Aristotelian science. New Haven, Yale University Press., p.2).5 5 Parece que Aristóteles tinha em mente que o trabalho científico se completaria em um dado período de tempo, e já teríamos investigado tudo o que há. Nesse cenário, a preocupação de como expor adequadamente uma “ciência acabada/completa” seria muito razoável. A questão central, contudo, é que o conhecimento científico reporta o explanans de um dado explanandum científico através de sua causa, e a teoria da demonstração que Aristóteles desenvolve no livro 1 dos Segundos Analíticos busca regimentar na silogística dos Primeiros Analíticos as explicações causais. Essas explicações apropriadas se reportam, em última instância, às essências dos objetos neles mesmos (que são a fonte de seus poderes causais), e é por esse motivo que Aristóteles volta sua atenção, no livro II dos Segundos Analíticos, para uma teoria essencialista (cf. Koslicki, 2012KOSLICKI, K. (2012). Essence, necessity and explanation. In: TAHKO, T. (ed.). Contemporary Aristotelian Metaphysics. Cambridge, Cambridge University Press, p. 187-206.). Há, portanto, continuidade entre os livros 1 e 2 (como já julgava Porchat Pereira, 2000PORCHAT PEREIRA, O. (2000). Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo, Fundação Editora da Unesp.).

Dado esse pano de fundo, apresento abaixo em que consiste a teoria da demonstração científica de Aristóteles nos Segundos Analíticos, a partir de considerações nos capítulos 1.2-9 (1.1 meramente introduz a discussão) e 1.13. Primeiramente apresento a definição de conhecimento científico de Aristóteles e a discuto (seção 2 abaixo), passando então para os requisitos que algo deve satisfazer para ser uma demonstração científica (seção 3).

2. A Definição de Conhecimento Científico

Em Segundos Analíticos (doravante, APo) 1.2 71b9-12 Aristóteles afirma que:

Ἐπίστασθαι δὲ οἰόμεθ’ ἕκαστον ἁπλῶς, ἀλλὰ μὴ τὸν σοφιστικὸν τρόπον τὸν κατὰ συμβεβηκός, ὅταν τήν τ’ αἰτίαν οἰώμεθα γινώσκειν δι’ ἣν τὸ πρᾶγμά ἐστιν, ὅτι ἐκείνου αἰτία ἐστί, καὶ μὴ ἐνδέχεσθαι τοῦτ’ ἄλλως ἔχειν. (texto de Ross, 1949ROSS, W. D. (1949). Aristotle. Aristotle’s Prior and Posterior Analytics. Oxford, Oxford University Press.)

Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, sem mais (e não de modo sofístico, por um concomitante), quando julgamos conhecer, a respeito da causa pela qual a coisa é, que ela é causa dessa coisa, e quando julgamos que isso não pode ser de outro modo. (tradução de Angioni, 2004ANGIONI, L. (2004). Aristóteles. Segundos Analíticos I. Tradução, introdução e notas. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução 7, p. 1-117., modificada).

Aristóteles define aqui o que é o conhecimento científico. Convém elucidar com clareza qual é o definiens e qual é o definiendum na passagem acima e em qual sentido o estamos tomando. Uma análise minuciosa desse trecho pode ser encontrada em Angioni (2016ANGIONI, L. (2016). Aristotle’s Definition of Scientific Knowledge (APo 71b9-12). Logical Analysis and History of Philosophy 19, p. 140-166.), e é principalmente a partir dela que a análise seguinte foi feita.

O definiendum em questão é “ Ἐπίστασθαι ἕκαστον ἁπλῶς ”, “conhecer cada coisa sem mais”.6 6 A rigor Aristóteles afirma “Ἐπίστασθαι δὲ οἰόμεθ’ ἕκαστον ἁπλῶς”, “Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, sem mais”. Esse “οἰόμεθα” (“julgamos”) aparece no definiendum (linha 9) e reaparece no definiens (linha 11 e é coordenado de modo subentendido na linha 12 - acrescentado por mim na tradução). A função do οἰόμεθα é secundária aqu1. O termo está apenas colocando a coisa de um modo mais ameno, afirmando, por exemplo, que a definição de conhecimento científico em questão não depende de nós termos de fato identificado acertadamente a causa, mas que, se conhecemos cientificamente, então conhecemos pela causa. Pois sempre que achamos que conhecemos cientificamente, achamos que conhecemos pela causa. Isto é, mesmo se estivermos equivocados sobre conhecermos a causa e conhecermos cientificamente, não estaríamos equivocados com relação à verdade do bicondicional “se conhecemos cientificamente, então conhecemos a causa, e vice-versa”. “Ἐπίστασθαι” é o verbo correspondente ao substantivo “ἐπιστήμη”, discutido na introdução acima. Aristóteles quer saber em que consiste conhecer cientificamente (ἐπίστασθαι) uma dada coisa, isto é, o que é ter conhecimento científico (ἐπιστήμη) de algo. O objeto “ἕκαστον” (“cada coisa”) é um termo propositalmente vago que funciona como um signo de lacuna. O sentido é algo como “para um dado x, conhecemos esse x cientificamente quando…”. Aristóteles está preocupado em caracterizar a noção de conhecimento científico em geral, sem se preocupar com qual é o objeto desse conhecimento (se é um objeto concreto ou abstrato, por exemplo), e sem se preocupar com o domínio específico desse conhecimento (se matemático, biológico, natural etc.).

Há, contudo, um qualificador que modifica “ἐπίστασθαι”, o advérbio “ἁπλῶς”. Traduzir ἁπλῶς não é uma tarefa trivial. Barnes (1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press.) se vale da expressão latina “simpliciter” em sua tradução para o inglês. Angioni (2004ANGIONI, L. (2004). Aristóteles. Segundos Analíticos I. Tradução, introdução e notas. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução 7, p. 1-117.) traduz como “sem mais”. Defendo que o ἁπλῶς aqui afirma daquilo que está qualificando (no caso, ἐπίστασθαι) que deve-se tomar tal coisa sem nenhuma outra qualificação restritiva. Entendo que esse “conhecer cientificamente” é, para Aristóteles, tomado em si mesmo, e não relativo a outra coisa. Aristóteles poderia tratar do ἐπίστασθαι para os gregos, ou do ἐπίστασθαι dos médicos, mas aqui o assunto é o ἐπίστασθαι sem mais, sem nenhuma outra qualificação.

Há quem defenda que o ἁπλῶς é usado aqui por Aristóteles para indicar um tipo específico de ἐπίστασθαι, acerca do qual não nos referimos com a palavra “ἐπίστασθαι”, mas se faz necessária a expressão “ἐπίστασθαι ἁπλῶς”. Isso poderia ser entendido de três formas: (i) o “ἁπλῶς” caracteriza um tipo de ἐπίστασθαι; (ii) o “ἁπλῶς” enfatiza a qualidade do ἐπίστασθαι em questão no contexto em questão; (iii) o “ἁπλῶς” denota um ἐπίστασθαι abstrato, abstraído de seu contexto. Como esclareci acima, não acho que a opção i seja o caso. A opção ii, contudo, está correta. Da mesma forma que podemos afirmar “chocolate mesmo é o suíço”, podemos afirmar “conhecimento mesmo é o de causas de tal e tal tipo”. Isto é o caso não porque chocolate que não seja suíço ou conhecimento que não seja científico não sejam, respectivamente, chocolate e conhecimento. São instâncias legítimas de chocolate e de conhecimento. O “mesmo” apenas está afirmando que existe um que é superior. O “ἁπλῶς” aqui é usado como esse “mesmo” do português, uma ênfase na qualidade do ἐπίστασθαι em questão - por isso a tradução por “conhecimento científico”, e não apenas “conhecimento”. A opção iii também está parcialmente correta: Aristóteles está falando do conhecimento científico de forma abstrata, não especificamente um conhecimento biológico, ou matemático etc. Como dissemos, não é o conhecimento dos médicos, ou dos construtores etc. que está em questão, mas o conhecimento científico em geral. (Isso não significa que cada caso de conhecimento científico pela causa, contudo, não seja altamente sensível ao contexto e as propriedades contextuais e relacionais do objeto desse conhecimento - por isso deve-se ter cuidado ao afirmar ii1.) O definiendum, portanto, não é o conhecimento em geral (tema da epistemologia) mas o conhecimento científico em geral (tema da filosofia da ciência).

O termo “ἐπίστασθαι” pode assumir diferentes significados em diferentes contextos, e, muitas vezes, utiliza-se o termo para designar algo que não é, estritamente falando, um caso genuíno de ἐπίστασθαι. Isso nos leva para a expressão seguinte, traduzida de maneira parentética por Barnes (1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press.) e Angioni (2004ANGIONI, L. (2004). Aristóteles. Segundos Analíticos I. Tradução, introdução e notas. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução 7, p. 1-117.), “ἀλλὰ μὴ τὸν σοφιστικὸν τρόπον τὸν κατὰ συμβεβηκός” (“e não de modo sofístico, por um concomitante”). Aristóteles se importa em fazer essa qualificação pois, em alguns casos, a expressão “ἐπίστασθαι” é utilizada sem ser do modo ἁπλῶς, mas do modo sofístico, a saber, por um concomitante. Nesse caso, “ἐπίστασθαι” não se refere genuinamente a um caso de conhecimento científico, a um caso de ἐπίστασθαι sem mais, mas se refere a coisas que aparentam ser conhecimento científico mas não o são de fato. Esses casos são chamados de ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός (conhecer cientificamente por meio de um concomitante) em oposição ao ἐπίστασθαι ἁπλῶς (conhecer cientificamente sem mais).7 7 Pode parecer estranho à primeira vista, mas é um fenômeno totalmente natural na linguagem que um qualificador negue o primeiro termo. Um caso similar a esse no português seria quando alguém dissesse “estou falando de árvores mesmo, e não de árvores de mentirinha”, ou “estou falando de árvores, e não de árvores de plástico”. Árvores de mentirinha e árvores de plástico não são árvores. Do mesmo modo, o ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός não é um ἐπίστασθαι. Sobre o significado da expressão “κατὰ συμβεβηκός” ou “por um concomitante” em Aristóteles, muito poderia ser dito, mas no presente artigo convém apenas esboçar de maneira resumida. Essa expressão é utilizada por Aristóteles em muitas ocasiões e de muitas maneiras em diferentes domínios. Contudo, o significado básico parece ser de “algo que vai junto de X mas não em virtude do ponto/característica mais relevante de X no contexto em questão”. Em explicações científicas, algo pode ser dito “por um concomitante” quando a explicação em questão não explica de fato apropriadamente por que o explanandum é como é, isto é, ela não capta o fator explanatório mais relevante para aquela explicação almejada. Do mesmo modo, o conhecimento científico por um concomitante é aquele que não contém aquilo que é mais relevante ou apropriado sobre o que se propõe a conhecer, mas apenas conhece de uma maneira inadequada, pois não captou o ponto mais importante. O ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός é um ἐπίστασθαι fajuto, que não atende os requisitos adequados para ser um conhecimento científico de fato, apenas em aparência.

A interpretação tradicional constrói κατὰ συμβεβηκός como aquilo que acontece apenas acidentalmente, em oposição àquilo que decorre necessariamente. Assim, κατὰ συμβεβηκός poderia ser traduzido como “contingentemente”, ou, como foi traduzido muitas vezes, “acidentalmente”. Nessa interpretação, o ἐπίστασθαι ἁπλῶς seria o conhecimento necessário, em oposição ao conhecimento contingente, o ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός. Rejeito essa interpretação e tradução, pois ela não capta aquilo que Aristóteles tem em mente aqui e em várias outras ocorrências de κατὰ συμβεβηκός e συμβεβηκός. Para argumentos em favor da interpretação que descrevi acima, confira Angioni (2006ANGIONI, L. (2006). Introdução à Teoria da Predicação em Aristóteles. Campinas, Editora Unicamp.; 2016ANGIONI, L. (2016). Aristotle’s Definition of Scientific Knowledge (APo 71b9-12). Logical Analysis and History of Philosophy 19, p. 140-166.).

Voltemo-nos agora para o definiens do conhecer cientificamente sem mais. Temos uma conjunção de duas cláusulas no definiens: [i] ὅταν τήν τ’ αἰτίαν οἰώμεθα γινώσκειν δι’ ἣν τὸ πρᾶγμά ἐστιν, ὅτι ἐκείνου αἰτία ἐστί (quando julgamos conhecer, a respeito da causa pela qual a coisa é, que ela é causa dessa coisa), καὶ (e) [ii] μὴ ἐνδέχεσθαι τοῦτ’ ἄλλως ἔχειν (quando julgamos que isso não pode ser de outro modo). A cláusula i afirma que o conhecimento científico é aquele que sabe não apenas que uma causa x e um efeito y são o caso/ocorreram, mas que sabe que x é a causa de y. É um conhecimento não apenas da ocorrência ou não de certos fatos ou eventos, mas da ocorrência de uma dada relação de causalidade entre esses fatos ou eventos. Sabe-se que há uma relação causal assimétrica entre os fatos e qual termo é a causa do outro, além de saber, é claro, que tais termos são o caso. Pois é possível, por exemplo, saber que é comum caírem raios e que é comum animais morrerem sem saber que vários desses raios causaram a morte de vários desses animais. Ou, de modo mais específico, é possível saber que houve uma tempestade ontem e que João morreu ontem sem saber que a tempestade causou a morte de João. O conhecimento científico é aquele que almeja saber que as causas das coisas são justamente as causas das coisas, isto é, que aquilo que se sabe que ocorreu estava concatenado causalmente.8 8 A relação entre conhecimento científico e conhecimento causal aqui nos Segundos Analíticos concorda com a filosofia da natureza de Aristóteles em Física 1.1 184a10-14, 2.3 194b18-20. Isto é o mesmo que afirmar que não basta conhecer extensionalmente a causa (saber que houve uma tempestade ontem), mas é preciso compreendê-la intensionalmente, enquanto causa de uma dada coisa (saber que a tempestade de ontem ocasionou a morte de João).

A tradução de ‘αἰτία’ por ‘causa’ não é unânime, embora seja a mais tradicional. Sigo aqui a tradição por comodidade. Autores como Hocutt (1974HOCUTT, M. (1974). Aristotle’s four becauses. Philosophy 49, p. 93-110.) e Moravcsik (1974MORAVCSIK, J. M. (1974). Aristotle on Adequate Explanations. Synthese 28, p. 3-17.) utilizam o inglês ‘explanation’, dada a correlação de αἰτίαι com perguntas por que (why-questions) para Aristóteles. Barnes (1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press.) adota essa opção em suas traduções, mas, diferentemente do que muitos poderiam entender, afirma que explanations não são coisas intramentais e subjetivas, mas sim itens reais no mundo - Freeland (1991FREELAND, C. (1991). Accidental Causes and Real Explanations. In: JUDSON, L. (ed.). Aristotle’s Physics. Oxford, Clarendon Press, p. 49-72.) e Shields (2007SHIELDS, C. (2007). Aristotle. New York, Routledge.) possuem uma visão similar, realista acerca de explanations. White (1984WHITE, M. J. (1984). Causes as Necessary Conditions: Aristotle, Alexander of Aphrodisias and J. L. Mackie. Canadian Journal of Philosophy supplementary volume 10, p. 157-189.) propõe que há uma ambiguidade do termo ‘αἰτία’ e que as traduções por ‘cause’ e ‘explanation’ captam os dois sentidos do termo em Aristóteles, mas que não devem ser conflacionados. Freeland (1991)FREELAND, C. (1991). Accidental Causes and Real Explanations. In: JUDSON, L. (ed.). Aristotle’s Physics. Oxford, Clarendon Press, p. 49-72. e Koslicki (2012KOSLICKI, K. (2012). Essence, necessity and explanation. In: TAHKO, T. (ed.). Contemporary Aristotelian Metaphysics. Cambridge, Cambridge University Press, p. 187-206.) subscrevem essa visão de que o termo é ambíguo, significando tanto causa como explicação, dependendo do contexto. Moravcsik (1991)MORAVCSIK, J. M. (1991). What Makes Reality Intelligible? Reflections on Aristotle’s Theory of Aitia. In: JUDSON, L. (ed.). Aristotle’s Physics. Oxford, Oxford University Press, p. 31-47. e Stein (2011STEIN, N. (2011). Causation and Explanation in Aristotle. Philosophy Compass 6, n. 10, p. 699-670.) defendem a tradução por ‘cause’, contra sua alternativa. Há, contudo, uma terceira proposta que recebeu pouca atenção, de autoria de McKirahan (1992)MCKIRAHAN, R. (1992). Principles and Proofs - Aristotle’s Theory of Demonstrative Science. Princeton, Princeton University Press.: a tradução por ‘ground’. Angioni (2018ANGIONI, L. (2018). Causality and Coextensiveness in Aristotle’s Posterior Analytics 1.13. Oxford Studies in Ancient Philosophy 54, p. 159-185.) coteja essa tradução, mas mantém ‘cause’. A noção de grounding tem recebido crescente atenção em metafísica contemporânea, e é preciso um estudo mais profundo para correlacionar Aristóteles com esse novo metaphysical trending,9 9 Corkum (2016) é um ponto de partida inicial para esse estudo. mas é uma possibilidade de tradução promissora. Contudo, dado propostas recentes mais Aristotélicas acerca da metafísica da causação (cf. Stein, 2011STEIN, N. (2011). Causation and Explanation in Aristotle. Philosophy Compass 6, n. 10, p. 699-670.), não vejo por que não manter a tradução tradicional por ‘causa’. Esclareço aqui, todavia, que farei uso dos termos ‘explanandum’, ‘explanans’, e ‘explicação’ diversas vezes, dada sua relevância e praticidade no contexto da investigação científica de perguntas por que.

A cláusula ii é mais complicada. Há um certo consenso de que “não pode ser de outro modo” é sinônimo a “deve ser do modo como é”, ou “é necessariamente como é”. Logo, conclui-se que Aristóteles está dizendo “isso é necessário”. A principal questão é a que o “isso” (τοῦτο) se refere. A interpretação tradicional (cf., p. ex., McKirahan, 1992MCKIRAHAN, R. (1992). Principles and Proofs - Aristotle’s Theory of Demonstrative Science. Princeton, Princeton University Press., p. 23; Porchat Pereira, 2000PORCHAT PEREIRA, O. (2000). Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo, Fundação Editora da Unesp., p. 35-36) entende que o τοῦτο (71b12) retoma o πρᾶγμά e o ἐκείνου (71b10) da cláusula i, que, por sua vez, estariam retomando o ἕκαστον (71b9) do definiendum. Isto é, aquilo que é necessário é aquilo que é objeto do conhecimento científico e que é correlato da causa (aquilo de que a causa é causa). Ou seja, para essa interpretação, o explanandum deve ser necessário (necessariamente verdadeiro). Alguns comentadores entendem, portanto, que a teoria da demonstração no livro I dos Segundos Analíticos é uma continuação da silogística modal apresentada nos Primeiros Analíticos. A noção de necessidade metafísica foi um dos tópicos mais estudados em metafísica no século XX, e é uma noção importante para Aristóteles, o que justifica a conexão rápida de muitos intérpretes nessa passagem. Mas talvez não devamos nos precipitar atribuindo essa força à afirmação de Aristóteles. O referente do “isso” (τοῦτο) pode ser diferente dos referentes de πρᾶγμά, ἐκείνου e ἕκαστον. Aristóteles não está afirmando que o explanandum é necessário, mas que a causa de algo é necessariamente a causa de algo. Aristóteles está afirmando que o conhecimento científico requer que, sobre um explanandum x, identifiquemos que sua causa B é necessariamente sua causa. Para cada explanandum só pode haver um explanans apropriado, ao menos quando se trata de conhecimento científico (explicações científicas são relações biunívocas, ou seja, funções bijetoras).10 10 Aparentemente há um problema quando pensamos que um mesmo objeto pode apresentar quatro diferentes causas para Aristóteles sob diferentes aspectos - as famosas quatro causas. Contudo, quando explicitamos corretamente o explanandum em questão, fica claro que o explanans só pode ser uma única coisa (apenas uma das quatro causas se faz relevante para explicar o atributo em questão). Como diremos na seção 3 abaixo, o explanandum é uma sentença predicativa do tipo S é P. Mas no contexto científico é preciso explicitar a complexidade envolvida nos termo sujeito e predicado. Logo, não perguntamos “qual a causa da estátua ser brilhante”, mas “qual a causa da estátua enquanto matéria ser brilhante”, e a resposta é que a estátua é composta de uma matéria de tal e tal tipo que apresenta brilho por tal e tal motivo. Mas a pergunta pela causa final seria enunciada de maneira diferente: “qual a causa da estátua, enquanto uma representação de um homem louvável, ser brilhante” e a resposta seria que a estátua é brilhante conquanto o objetivo do escultor era enobrecer a figura de tal homem louvável, e o brilho é adequado para esse objetivo. O foco de Aristóteles não está, portanto, na necessitação metafísica do explanandum pelo explanans, e nem mesmo na necessitação lógica do explanandum pelo explanans (veremos adiante as características lógicas do conhecimento científico para Aristóteles), mas sim na adequação explanatória do explanans para um dado explanandum (cf. Angioni, 2014ANGIONI, L. (2014b). Aristotle on Necessary Principles and on Explaining X Through the Essence of X. Studia Philosophica Estonica 7, n. 2, p. 88-112.b). E é sobre isso que versa a cláusula ii no definiens do conhecimento científico para Aristóteles.

3. A Teoria da Demonstração de Aristóteles

Passo agora para uma breve exposição da teoria da demonstração de Aristóteles e sua apresentação em APo 1.2-9 e 1.13. Não discutirei pormenorizadamente cada passagem e a interpretação de cada uma, mas apresentarei de modo geral a interpretação que foi construída acerca destes capítulos.

Primeiramente, convém explicitar qual a relação da teoria da demonstração nos Segundos Analíticos com a teoria do silogismo nos Primeiros Analíticos. É muito provável que Aristóteles considerasse os Analíticos como uma única obra de quatro livros, ao invés de duas obras com dois livros cada. Na academia há muita discussão sobre qual seria a relação entre os dois primeiros livros (os Primeiros Analíticos) e os dois subsequentes (os Segundos Analíticos). Embora Barnes (1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press., Introduction) possa estar correto em apontar que ambos os livros foram revisitados, corrigidos e incrementados por Aristóteles diversas vezes ao longo de um vasto período de tempo, e que nós não podemos datar um como anterior ao outro, talvez haja uma relação de prioridade ou anterioridade de importância de um assunto com relação ao outro. Concordamos com Angioni (2014ANGIONI, L. (2014a). Demonstração, Silogismo e Causalidade. In: ANGIONI, L. (ed.). Lógica e Ciência em Aristóteles. Campinas, PHI, p. 61-120.a) que Aristóteles parece ter escolhido o silogismo por ser a ferramenta mais adequada para os seus propósitos em sua teoria da demonstração nos Segundos Analíticos. O silogismo não é, portanto, a teoria aristotélica sobre deduções válidas - pois Aristóteles não admite como silogismos uma série de inferências dedutivas que são claramente válidas, e isso não parece ter-lhe passado despercebido. Assim, estabelecemos que há uma certa prioridade dos Segundos Analíticos sobre os Primeiros, na medida em que o projeto de Aristóteles na teoria da demonstração o levou a desenvolver a teoria do silogismo.11 11 Smith (1984) concorda com a prioridade dos Segundos Analíticos. Assim como ele, não nego que há uma certa interdependência e mútua influência entre as duas obras, mas ainda assim afirmo uma prioridade dos Segundos Analíticos.

Mas o que é uma demonstração científica? Em APo 1.2, após definir o conhecimento científico (como analisamos em 2 acima), Aristóteles afirma que tal conhecimento científico12 12 Estou assumindo que há uma continuidade entre o ἐπίστασθαι ἁπλῶς que foi definido antes e o ἐπίστασθαι que aparece em 71b16 em diante. Para argumentos em favor dessa tese, cf. Bronstein, 2016. se dá por meio de demonstrações, e que demonstrações são silogismos científicos, isto é, silogismos pelos quais conhecemos cientificamente (71b16-19). O conhecimento científico, portanto, deve se estruturar na forma silogística. Dadas as características do silogismo, uma regimentação em silogismos ocorre em dois níveis: a regimentação de sentenças concatenadas na forma de duas premissas e uma conclusão para compor uma dedução válida, e a regimentação de termos na forma predicativa (S é P) para compor sentenças predicativas. Toda demonstração é, portanto, um silogismo. Essas características formais da demonstração estão muito ligadas ao objetivo de uma exposição adequada de uma “ciência acabada”. A regimentação ajuda a deixar tudo bem claro e organizado. Contudo, essa escolha também reflete algo importante para Aristóteles, a saber, que a relação causal é uma relação triádica (cf. Angioni, 2014ANGIONI, L. (2014a). Demonstração, Silogismo e Causalidade. In: ANGIONI, L. (ed.). Lógica e Ciência em Aristóteles. Campinas, PHI, p. 61-120.a). O silogismo possui uma estrutura triádica, em que três termos (em geral simbolizados por Aristóteles por A, B e Γ, e traduzidos por A, B e C) são relacionados, dois dos quais compõem a sentença predicativa da conclusão (os termos maior e menor, A e C) e um que atua (na primeira figura) como termo sujeito na premissa maior e como termo predicado na premissa menor (o termo médio ou mediador B). Na demonstração, a conclusão composta de A e C é o explanandum, e as premissas com o termo B são o explanans, pois apontam o termo B como a causa apropriada que faz a conclusão ser o que ela é. Bronstein (2016BRONSTEIN, D. (2016). Aristotle on Knowledge and Learning. Oxford, Oxford University Press.) aponta que há dois modelos de demonstração em Aristóteles, o modelo 1 no qual o termo mediador significa a essência do termo menor C, e o modelo 2 no qual o termo mediador significa a essência do termo maior A. Angioni (2014b)ANGIONI, L. (2014b). Aristotle on Necessary Principles and on Explaining X Through the Essence of X. Studia Philosophica Estonica 7, n. 2, p. 88-112. argumenta convincentemente que o que mais importa para Aristóteles no contexto da teoria da demonstração são demonstrações de acordo com o modelo 2, no qual a essência do atributo A é capturada pelo termo maior B.

Ainda em APo 1.2, Aristóteles apresenta uma lista de requisitos que as premissas da demonstração precisam satisfazer. Essa lista não pretende ser exaustiva e nada indica que os requisitos presentes nela sejam mais importantes que os demais apresentados por Aristóteles em outras passagens. Em princípio esses requisitos parecem ser seis, distintos entre si, mas concordamos com a análise de Angioni (2012ANGIONI, L. (2012). Os seis requisitos das premissas da demonstração científica em Aristóteles (Segundos Analíticos I 2). Manuscrito 35, n. 1, p. 7-60.) que faz cinco deles convergirem para um apenas. Aristóteles diz que “é necessário que o conhecimento demonstrativo provenha de itens verdadeiros, primeiros, imediatos, mais cognoscíveis que a conclusão, anteriores a ela e que sejam causas dela”. Para Filopono (e uma grande parte da tradição posterior, incluindo McKirahan, 1992MCKIRAHAN, R. (1992). Principles and Proofs - Aristotle’s Theory of Demonstrative Science. Princeton, Princeton University Press., e Bronstein, 2016BRONSTEIN, D. (2016). Aristotle on Knowledge and Learning. Oxford, Oxford University Press.), os três primeiros requisitos são relativos às premissas enquanto tomadas nelas mesmas, mas os três últimos são acerca das premissas tomadas enquanto numa dada relação com a conclusão. Mas na interpretação de Angioni, apenas o primeiro requisito (verdade) se aplica às premissas independentemente da conclusão, enquanto os cinco últimos (primeiros, imediatos, mais cognoscíveis, anteriores e causas) todos falam das premissas enquanto explanatórias da conclusão.13 13 Gramaticalmente, todos concordam (eu inclusive) que os três primeiros termos não são modificados pelo genitivo “τοῦ συμπεράσματος”, e sim os três últimos termos. A diferença demarcada aqui é conceitual, e não gramatical. Talvez alguns intérpretes tenham julgado que as relações gramaticais sejam bons guias para mapear as relações conceituais entre os requisitos e a conclusão nessa passagem, mas disso discordo. Não me deterei em uma análise minuciosa de cada requisito, basta afirmar que podemos reduzi-los a dois: as premissas precisam ser verdadeiras e precisam captar o fator explanatório mais apropriado (οἰκεῖον, 71b23) para a conclusão ser o que ela é.

Em APo 1.3 Aristóteles considera alguns desafios à possibilidade do conhecimento científico de acordo com o seu entendimento de tal tipo de conhecimento. Os desafios são dois: as demonstrações precisariam proceder ad infinitum, de modo que não poderia haver conhecimento científico; e haveriam demonstrações circulares, de modo que tudo poderia ser demonstrado.14 14 A interpretação tradicional identifica que aqui Aristóteles estaria lidando com uma questão de epistemologia geral, a saber, o trilema de Agripa, de que devemos escolher uma de três teorias sobre justificação epistêmica: coerentismo, fundacionalismo ou infinitismo. Não achamos que a passagem seja sobre isso. Para uma discussão sobre qual posição Aristóteles teria com relação ao problema do trilema de Agripa, cf. Goldin (2013). Ambas as dificuldades surgem porque assumem que o único tipo de conhecimento científico é o conhecimento demonstrativo, mas Aristóteles nega essa premissa: o conhecimento dos imediatos é indemonstrável. Diante disso, alguns intérpretes entendem que há um tipo de conhecimento científico (ἐπίστασθαι) que não é demonstrativo como o conhecimento científico sem mais (ἐπίστασθαι ἁπλῶς), e que é acerca de primeiros princípios mais básicos e fundacionais epistemicamente. Como defendo que ἐπίστασθαι ἁπλῶς e ἐπίστασθαι são usados como sinônimos, descarto essa saída. Entendo que os “primeiros princípios”, “imediatos” e “indemonstráveis” são nada mais que as premissas do silogismo demonstrativo (as quais contém o termo mediador), e esses termos são entendidos da mesma maneira que os requisitos em 1.2 foram apresentados: concernentes à adequação explanatória. O conhecimento das premissas é indemonstrável porque não pode haver uma demonstração de que elas são as premissas adequadas para o explanandum em questão: é a relação das premissas com a conclusão que tem que ser indemonstrável.

Em 1.4 73b16-18 Aristóteles fala de outro requisito para as premissas demonstrativas, a saber, que elas devem ser predicações per se (καθ’ αὑτὸ). Nesse mesmo capítulo ele introduz 4 tipos de usos da expressão per se, dois dos quais são propriedades das sentenças nelas mesmas (per se 1 e per se 2), uma que captura os termos sortais (per se 3, a única que não é predicativa e não pode ser o requisito das premissas da demonstração), e uma última que diz respeito às propriedades das sentenças num contexto explanatório (per se 4). (Para uma análise e explicação dos tipos de predicados per se, cf. Zuppolini, 2018ZUPPOLINI, B. (2018). Aristotle on Per Se Accidents. Ancient Philosophy 38, n. 1, p. 113-135..) O per se 1 é um predicado A que está envolvido, em certa medida, na natureza do sujeito C, enquanto o per se 2 é um predicado A que contém ou envolve a natureza do termo sujeito C. Já o per se 4 fala de situações em geral nas quais um predicado se atribui a um sujeito devido à natureza do sujeito. Aparentemente, o per se 4 envolve ambas as noções de per se 1 e 2, sendo uma noção mais ampla. Ainda em 1.4 mas também em 1.5, Aristóteles trata de um outro requisito: as premissas precisam ser universais (καθόλου).15 15 Um comentário detalhado de 1.5 e um argumento contra interpretações que buscam ali uma matemática pré-euclidiana pode ser encontrado em Hasper (2006). O sentido de καθόλου aqui é de conhecer um objeto x universalmente, isto é, conhecer cientificamente sem mais. Esse uso específico de καθόλου por Aristóteles significa o mesmo que o conhecimento científico sem mais como definido em 71b9-12. O requisito de premissas predicativas per se é retomado em 1.6, onde Aristóteles afirma que as demonstrações científicas a respeito de predicados per se procedem de itens per se. Em 1.6 Aristóteles também trabalha mais com o requisito da “necessidade”, que entendo como necessidade das premissas para explicar a conclusão (mesma discussão sobre a biunivocidade entre explanans e explanandum acima, Angioni 2014ANGIONI, L. (2014b). Aristotle on Necessary Principles and on Explaining X Through the Essence of X. Studia Philosophica Estonica 7, n. 2, p. 88-112.b).

Em APo 1.7 Aristóteles trata da noção de ‘μετάβασις εἰς ἄλλο γένος’ (kind crossing), isto é, em quais condições é aceitável que se demonstre no campo de uma ciência utilizando noções de uma outra ciência. A conclusão é de que isso só é apropriado no caso das ciências subordinadas (a óptica e a astronomia são subordinadas à geometria, por exemplo, e podem empregar noções geométricas em suas demonstrações). Em 1.8 Aristóteles se preocupa na aplicação disto a fenômenos que ocorrem muitas vezes (mas não no mais das vezes e não sempre). Em 1.9 Aristóteles retoma algumas questões apresentadas em 1.7 sobre kind crossing em ciências subordinadas (a harmônica é subordinada à aritmética), mas esse não é o assunto principal do capítulo.

Em APo 1.9 Aristóteles denuncia que existem tentativas de demonstração que na verdade não o são, embora pareçam, como a tentativa16 16 A palavra ‘tentativa’ é acrescentada aqui pois embora Aristóteles utilize as formas δεῖξαι (provar) e δεικνύουσιν (provam) em 75b40-41, entendemos que tais formas estão no presente de tentativa (endeavour present, cf. Gildersleeve, 1900). de demonstração da quadratura do círculo feita por Brisão. A “demonstração” de Brisão falha pois sua explicação não é exclusiva ao explanandum em questão (por que um dado círculo tem a área igual a de um dado quadrado) mas é válida para outros itens que não são συγγενῶν.17 17 Aristóteles concede que os princípios do Brisão são indemonstráveis, imediatos e primeiros, mas na verdade ele não concorda com isso. Para ele, esses casos não são indemonstráveis, nem imediatos, nem primeiros no sentido dado por ele em 1.2. Eles de fato o são em outro uso dos termos ‘indemonstráveis, ‘imediatos’ e ‘primeiros’, mas esse outro uso não é relevante para caracterizar uma demontração e não deve ser levado a sério. A jogada de Brisão é sofística: passa de um uso a outro dos termos sem deixar isso evidente. O que Aristóteles quer dizer por συγγενῶν não é óbvio, mas parece que συγγένεια aqui não quer dizer simplesmente “ser do mesmo tipo/gênero”, mas sim ter uma espécie específica de afinidade: o termo mediador B precisa ter uma afinidade tal com o A que ele capte o que o A é. Συγγένεια parece codificar uma certa relevância explanatória. Mas συγγένεια também fala de co-ocorrência (ou coextensão), que é o assunto principal de 1.13. O ponto, contudo, é que Aristóteles parece adicionar συγγένεια como outro requisito em 1.9, um requisito que creio é explicado melhor em 1.13.

Ainda em 1.9, em 76a4 s., Aristóteles retoma a definição de conhecimento científico apresentada em 71b9-12. Ele diz:

Ἕκαστον δ’ ἐπιστάμεθα μὴ κατὰ συμβεβηκός, ὅταν κατ’ ἐκεῖνο γινώσκωμεν καθ’ ὃ ὑπάρχει, ἐκ τῶν ἀρχῶν τῶν ἐκείνου ᾗ ἐκεῖνο, οἷον τὸ δυσὶν ὀρθαῖς ἴσας ἔχειν, ᾧ ὑπάρχει καθ’ αὑτὸ τὸ εἰρημένον, ἐκ τῶν ἀρχῶν τῶν τούτου. ὥστ’ εἰ καθ’ αὑτὸ και ἔκεῖνο ὑπάρχει, ἀνάγκη τὸ μέσον ἐν τῇ αὐτῇ συγγενείᾳ εἶναι. (76a4-9, texto de Ross, 1949ROSS, W. D. (1949). Aristotle. Aristotle’s Prior and Posterior Analytics. Oxford, Oxford University Press., modificado: lendo manuscrito n na linha 8)

A ocorrência de ἐπιστάμεθα μὴ κατὰ συμβεβηκός sem o ἁπλῶς favorece minha interpretação de que o ἁπλῶς não acrescenta nada ao ἐπίστασθαι em 71b9-12. Aristóteles está dizendo aqui que “conhecemos cientificamente cada coisa (cada explanandum predicativo CA) não por um concomitante quando a (o explanandum CA) conhecemos com base naquilo (esse ἐκεῖνο da linha 5 é o termo mediador B que capta a causa apropriada) pelo que [algo CA] se dá (se atribui) a partir dos princípios daquilo [ἐκεῖνο da linha 6] enquanto aquilo”. A que se refere o ἐκεῖνο da linha 6? Há três principais possibilidades: ao explanandum CA como um todo, ao termo sujeito C ou ao termo predicado A. Defendo que se atribui ao explanandum como um todo mas no qual o termo maior A é mais relevante para Aristóteles, seguindo as demonstrações do Modelo 2 de David Bronstein (2016BRONSTEIN, D. (2016). Aristotle on Knowledge and Learning. Oxford, Oxford University Press.). Aristóteles continua: “por exemplo, o ter dois ângulos retos [A] aquilo a que o atributo mencionado se atribui per se a partir dos princípios disso [A]”. O mais importante aqui para Aristóteles é a essência do atributo A, e não do sujeito C. Ela possui prioridade explanatória nas demonstrações. Aristóteles prossegue falando que é necessário que o mediador esteja na mesma συγγενείᾳ. Como dissemos acima, há duas coisas codificadas por συγγένεια, uma relevância explanatória e a coextensão ou co-ocorrência dos termos em uma demonstração. Essa segunda característica é explicada melhor por Aristóteles em 1.13.

Em APo 1.13 Aristóteles trata de causalidade e explicação. Angioni (2018ANGIONI, L. (2018). Causality and Coextensiveness in Aristotle’s Posterior Analytics 1.13. Oxford Studies in Ancient Philosophy 54, p. 159-185.) analisa essa passagem em detalhe. Ressaltamos aqui apenas a enunciação de um outro requisito das premissas demonstrativas para Aristóteles: elas devem apresentar termos coextensivos. Ora, a coextensão é uma relação simétrica, mas a causação e a explicação não o são, antes são assimétricas.18 18 É importante distinguir “assimétricas” (nunca convertíveis ou ‘contrapredicáveis’ na linguagem de Aristóteles) de “não-simétricas” (que não são sempre convertíveis ou ‘contrapredicáveis’). Para Aristóteles não há nenhum problema em sua teoria utilizar de um arcabouço simétrico para codificar relações assimétricas, pois o cientista e o aprendiz estão muito bem avisados de que o termo mediador B deve sempre capturar a causa apropriada, e que, portanto, há, no nível intensional, uma assimetria entre os termos. Isso fica claro no silogismo dos planetas, os quais não cintilam por estarem perto da Terra. Essa construção evidencia o por que (to dihoti) de planetas não cintilarem, sua causa ou explicação real. Contudo, como as situações são coextensivas e portanto simétricas no mundo, pode-se construir um silogismo similar, mas que afirme o seguinte:

Tudo que não cintila está perto da Terra

Planetas não cintilam

--------------------------------

Planetas estão perto da Terra

Esse silogismo, contudo, não capta o porquê de planetas estarem perto, mas apenas constata ou estabelece o fato. É um silogismo válido e os termos são coextensivos, mas ele não é demonstrativo pois não captura a causa apropriada do explanandum no termo mediador. Isso indica que, embora os requisitos sintáticos e formais sejam importantes para Aristóteles, eles não são definitivos, pois sua teoria requer ainda uma regra intencional: o termo mediador B deve sempre explicar apropriadamente o porquê de o termo maior A se atribuir ao termo menor C. Koslicki (2012KOSLICKI, K. (2012). Essence, necessity and explanation. In: TAHKO, T. (ed.). Contemporary Aristotelian Metaphysics. Cambridge, Cambridge University Press, p. 187-206.) vai nessa mesma direção.

Defendi, portanto, que a teoria da demonstração de Aristóteles nos Segundos Analíticos livro I possui diversos requisitos e considerações, mas a centralidade é sempre na relevância explanatória. Os requisitos formais de regimentação silogística visam facilitar o entendimento e padronizar a exposição do conhecimento científico. Mas o mais importante é que as premissas sejam explanatoriamente apropriadas para a conclusão, captando a essência do termo maior e explicando sua atribuição ao termo menor (nisso estão satisfeitos tanto os 5 últimos requisitos de 1.2 quanto os requisitos per se, universal e necessário de 1.4-6, e parcialmente também a συγγένεια de 1.9). É importante ainda, contudo, que os termos sejam coextensivos, isto é, que haja, no mundo, co-ocorrência entre aquelas coisas que eles significam (como Aristóteles requer com a συγγένεια de 1.9 e também em 1.13).19 19 O presente artigo foi desenvolvido ao longo de uma disciplina de pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas ministrada pelo professor Lucas Angioni sobre o livro I dos Segundos Analíticos. Agradeço ao professor Angioni pelas muitas contribuições e correções para o presente trabalho, além do incentivo para submetê-lo para publicação. Agradeço também aos demais participantes da disciplina: Angelo A. P. de Oliveira, Gustavo R. B. A. Ferreira, Charles A. Teixeira e Luciana Sarkozy. Minha pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo: FAPESP 2018/21898-9 e 2016/11438-5.

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  • 1
    Veja Ferejohn (1991FEREJOHN, M. (1991). The origins of Aristotelian science. New Haven, Yale University Press.), McKirahan (1992)MCKIRAHAN, R. (1992). Principles and Proofs - Aristotle’s Theory of Demonstrative Science. Princeton, Princeton University Press., Barnes (1993BARNES, J. (1993). Posterior Analytics. 2ed. Oxford, Oxford University Press.), Angioni (2016ANGIONI, L. (2016). Aristotle’s Definition of Scientific Knowledge (APo 71b9-12). Logical Analysis and History of Philosophy 19, p. 140-166.), Bronstein (2016BRONSTEIN, D. (2016). Aristotle on Knowledge and Learning. Oxford, Oxford University Press.) que argumentam solidamente que Aristóteles não estava preocupado com epistemologia em geral nos Segundos Analíticos.
  • 2
    Esses pontos são levantados por diversos autores, como, por exemplo, Taylor (1990TAYLOR, C. C. W. (1990). Aristotle’s epistemology. In: EVERSON, S. (ed.). Epistemology. Cambridge, Cambridge University Press, p. 116-142., p. 116-117), Ferejohn (1991FEREJOHN, M. (1991). The origins of Aristotelian science. New Haven, Yale University Press., Introduction). De fato, Ferejohn (1991FEREJOHN, M. (1991). The origins of Aristotelian science. New Haven, Yale University Press.; 1994FEREJOHN, M. (1994). The Immediate Premises of Aristotelian Demonstration. Ancient Philosophy 14, p. 79-97.) discorda que as considerações acima sejam suficientes para afirmar que o projeto de Aristóteles se enquadra no que hoje chamamos de Filosofia da Ciência, mas concorda, ainda assim, que Aristóteles está preocupado em expor um tipo especial de conhecimento, e não está preocupado em uma teoria geral sobre o conhecimento ou Epistemologia.
  • 3
    É importante delinear que o inglês “understanding” possui uma conotação específica muito própria, que não corresponde ao português “entendimento”. Creio que nenhum termo em português capte as nuances de “understanding”, então mantive na tradução “conhecimento científico”.
  • 4
    Análise de Angioni (no prelo).
  • 5
    Parece que Aristóteles tinha em mente que o trabalho científico se completaria em um dado período de tempo, e já teríamos investigado tudo o que há. Nesse cenário, a preocupação de como expor adequadamente uma “ciência acabada/completa” seria muito razoável.
  • 6
    A rigor Aristóteles afirma “Ἐπίστασθαι δὲ οἰόμεθ’ ἕκαστον ἁπλῶς”, “Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, sem mais”. Esse “οἰόμεθα” (“julgamos”) aparece no definiendum (linha 9) e reaparece no definiens (linha 11 e é coordenado de modo subentendido na linha 12 - acrescentado por mim na tradução). A função do οἰόμεθα é secundária aqu1. O termo está apenas colocando a coisa de um modo mais ameno, afirmando, por exemplo, que a definição de conhecimento científico em questão não depende de nós termos de fato identificado acertadamente a causa, mas que, se conhecemos cientificamente, então conhecemos pela causa. Pois sempre que achamos que conhecemos cientificamente, achamos que conhecemos pela causa. Isto é, mesmo se estivermos equivocados sobre conhecermos a causa e conhecermos cientificamente, não estaríamos equivocados com relação à verdade do bicondicional “se conhecemos cientificamente, então conhecemos a causa, e vice-versa”.
  • 7
    Pode parecer estranho à primeira vista, mas é um fenômeno totalmente natural na linguagem que um qualificador negue o primeiro termo. Um caso similar a esse no português seria quando alguém dissesse “estou falando de árvores mesmo, e não de árvores de mentirinha”, ou “estou falando de árvores, e não de árvores de plástico”. Árvores de mentirinha e árvores de plástico não são árvores. Do mesmo modo, o ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός não é um ἐπίστασθαι.
  • 8
    A relação entre conhecimento científico e conhecimento causal aqui nos Segundos Analíticos concorda com a filosofia da natureza de Aristóteles em Física 1.1 184a10-14, 2.3 194b18-20.
  • 9
    Corkum (2016CORKUM, P. (2016). Ontological Dependence and Grounding in Aristotle. Oxford Handbooks Online in Philosophy. Available at https://www.oxfordhandbooks.com/view/10.1093/oxfordhb/9780199935314.001.0001/oxfordhb-9780199935314-e-31?rskey=BYF7rI&result=3. Accessed in 12/11/2019.
    https://www.oxfordhandbooks.com/view/10....
    ) é um ponto de partida inicial para esse estudo.
  • 10
    Aparentemente há um problema quando pensamos que um mesmo objeto pode apresentar quatro diferentes causas para Aristóteles sob diferentes aspectos - as famosas quatro causas. Contudo, quando explicitamos corretamente o explanandum em questão, fica claro que o explanans só pode ser uma única coisa (apenas uma das quatro causas se faz relevante para explicar o atributo em questão). Como diremos na seção 3 abaixo, o explanandum é uma sentença predicativa do tipo S é P. Mas no contexto científico é preciso explicitar a complexidade envolvida nos termo sujeito e predicado. Logo, não perguntamos “qual a causa da estátua ser brilhante”, mas “qual a causa da estátua enquanto matéria ser brilhante”, e a resposta é que a estátua é composta de uma matéria de tal e tal tipo que apresenta brilho por tal e tal motivo. Mas a pergunta pela causa final seria enunciada de maneira diferente: “qual a causa da estátua, enquanto uma representação de um homem louvável, ser brilhante” e a resposta seria que a estátua é brilhante conquanto o objetivo do escultor era enobrecer a figura de tal homem louvável, e o brilho é adequado para esse objetivo.
  • 11
    Smith (1984SMITH, R. (1984). Immediate propositions and Aristotle’s proof theory. Ancient Philosophy 6, p. 47-68.) concorda com a prioridade dos Segundos Analíticos. Assim como ele, não nego que há uma certa interdependência e mútua influência entre as duas obras, mas ainda assim afirmo uma prioridade dos Segundos Analíticos.
  • 12
    Estou assumindo que há uma continuidade entre o ἐπίστασθαι ἁπλῶς que foi definido antes e o ἐπίστασθαι que aparece em 71b16 em diante. Para argumentos em favor dessa tese, cf. Bronstein, 2016BRONSTEIN, D. (2016). Aristotle on Knowledge and Learning. Oxford, Oxford University Press..
  • 13
    Gramaticalmente, todos concordam (eu inclusive) que os três primeiros termos não são modificados pelo genitivo “τοῦ συμπεράσματος”, e sim os três últimos termos. A diferença demarcada aqui é conceitual, e não gramatical. Talvez alguns intérpretes tenham julgado que as relações gramaticais sejam bons guias para mapear as relações conceituais entre os requisitos e a conclusão nessa passagem, mas disso discordo.
  • 14
    A interpretação tradicional identifica que aqui Aristóteles estaria lidando com uma questão de epistemologia geral, a saber, o trilema de Agripa, de que devemos escolher uma de três teorias sobre justificação epistêmica: coerentismo, fundacionalismo ou infinitismo. Não achamos que a passagem seja sobre isso. Para uma discussão sobre qual posição Aristóteles teria com relação ao problema do trilema de Agripa, cf. Goldin (2013GOLDIN, O. (2013). Circular Justification and Explanation in Aristotle. Phronesis 58, p. 195-214.).
  • 15
    Um comentário detalhado de 1.5 e um argumento contra interpretações que buscam ali uma matemática pré-euclidiana pode ser encontrado em Hasper (2006HASPER, P. S. (2006). Sources of delusion in Analytica Posteriora I 5. Phronesis 51, p. 252-284.).
  • 16
    A palavra ‘tentativa’ é acrescentada aqui pois embora Aristóteles utilize as formas δεῖξαι (provar) e δεικνύουσιν (provam) em 75b40-41, entendemos que tais formas estão no presente de tentativa (endeavour present, cf. Gildersleeve, 1900GILDERSLEEVE, B. (1900). Syntax of Classical Greek. New York, American Book Company.).
  • 17
    Aristóteles concede que os princípios do Brisão são indemonstráveis, imediatos e primeiros, mas na verdade ele não concorda com isso. Para ele, esses casos não são indemonstráveis, nem imediatos, nem primeiros no sentido dado por ele em 1.2. Eles de fato o são em outro uso dos termos ‘indemonstráveis, ‘imediatos’ e ‘primeiros’, mas esse outro uso não é relevante para caracterizar uma demontração e não deve ser levado a sério. A jogada de Brisão é sofística: passa de um uso a outro dos termos sem deixar isso evidente.
  • 18
    É importante distinguir “assimétricas” (nunca convertíveis ou ‘contrapredicáveis’ na linguagem de Aristóteles) de “não-simétricas” (que não são sempre convertíveis ou ‘contrapredicáveis’).
  • 19
    O presente artigo foi desenvolvido ao longo de uma disciplina de pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas ministrada pelo professor Lucas Angioni sobre o livro I dos Segundos Analíticos. Agradeço ao professor Angioni pelas muitas contribuições e correções para o presente trabalho, além do incentivo para submetê-lo para publicação. Agradeço também aos demais participantes da disciplina: Angelo A. P. de Oliveira, Gustavo R. B. A. Ferreira, Charles A. Teixeira e Luciana Sarkozy. Minha pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo: FAPESP 2018/21898-9 e 2016/11438-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2019
  • Aceito
    22 Jun 2020
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