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O passo 62b do Fédon: a proibição do suicídio e o enigma da phrourá

Phaedo 62b: the prohibition of suicide and the enigma of the phrourá

Resumo:

No final do prólogo do Fédon (61b-63b), há uma tensão entre desejo de morte e proibição do suicídio entendida por Cebes como um contrassenso manifesto. Contudo, o que se mostra um disparate é na realidade o recurso platônico para introduzir grandes temas que serão trabalhados ao longo do diálogo. Delinear-se-á, numa curiosa trama de mythos e lógos, um ponto crucial que reverbera no restante do diálogo e que possui, com efeito, grande envergadura para o pensamento filosófico e religioso posterior: trata-se do passo 62b, no qual se diz que “nós homens estamos numa certa de phrourá”. Como entender essa afirmação, cuja obscuridade é reconhecida pelo próprio Sócrates? Parece-nos que a compreensão desse passo depende da interpretação e, por conseguinte, da tradução que se dá para o termo phrourá. Afinal, trata-se de prisão, cárcere, custódia, posto, ou serviço de guarda? Devido às muitas controvérsias que esse vocábulo tem causado desde a Antiguidade, e na confiança de que essa discussão ainda está longe de encontrar seu termo, este artigo tem como objetivo não só analisar a semântica desse vocábulo grego, mas também articulá-la com o passo no qual está inserida. E o pano de fundo: uma visão religiosa particular que afirma o divino ser o que cuida dos homens. Em suma, espera-se que esse debate proporcione recursos para novas pesquisas e reflexões férteis sobre a filosofia platônica.

Palavras-chave:
Religião; filosofia; suicídio; ética; semântica da guerra

Abstract:

At the end of the Phaedo’s prologue (61b-63b), there is a tension between the desire for death and the prohibition against suicide understood by Kebes as an absolute nonsense. However, what is shown as an absurdity is, in fact, the platonic tool used to introduce some of the grand themes that will be approached in the dialogue. It will be outlined, in a curious thread of mythos and logos, a crucial point that echoes throughout the rest of the dialogue and has enormous effect on the later religious and philosophical thought: it is precisely the passage 62b, in which is said that “we men are in a kind of phrourá”. How can we understand this sentence, whose obscurity is attested by Socrates himself? It seems that the comprehension of this passage depends on the interpretation and thus the translation of the word ‘phrourá’. What does it mean afterall, prison, jail, custody, garrison or guard duty? Due to the many controversies that this word has been raising since the Antiquity, and believing that this debate is far from ending, this article has the objective of not only analyzing the semantics of this word, but also articulating it with the passage in which it is found. And the background: a particular religious viewpoint that defends the divine as man’s caretaker. Finally, we hope that this debate will stimulate new researches and fruitful reflections on the platonic philosophy.

Keywords:
Religion; philosophy; suicide; ethics; semantics of war

O presente artigo tem por objeto a parte final do prólogo do Fédon, sobretudo o passo 62b. Neste momento aparece, de fato, um ponto nevrálgico do diálogo: mostrar não só porque não se deve temer a morte (e Sócrates se esforçará ao máximo para purgar esse temor), mas, sobretudo, os motivos para desejá-la. Assim como uma locomotiva que puxa consigo o restante dos vagões, esse tema traz consigo as demais questões do diálogo; por exemplo, a imortalidade e o cuidado com a alma, a teoria das Ideias, a catarse e as relações alma-corpo; não no sentido de que ele tenha preponderância em relação aos demais temas, mas apenas pelo fato de ele ser o disparador que vai encadear o restante do debate. Na certeza da magnitude dessa temática, é preciso adotar uma posição que, a um só tempo, privilegie o pensamento de Platão no Fédon e procure evitar ao máximo certos preconceitos e lugares-comuns.

Cebes se surpreende com a afirmação de Sócrates de que, por um lado, aqueles que se dedicam verdadeiramente à filosofia desejam morrer, mas, por outro lado, é proibido cometer suicídio (Phd. 61c). E então, como se não bastasse a obscuridade dessas duas afirmações, Sócrates expõe uma fórmula religiosa, cuja difícil compreensão é explicitamente declarada:

E, com efeito [...], pode parecer dessa maneira irracional (álogon); no entanto, tem possivelmente alguma razão (lógon). Pois, então, o que se diz nos Mistérios em relação a eles há uma razão: que nós humanos estamos numa certa phrourá, e não é lícito liberar-se a si mesmo nem escapar; <isso> me parece algo grande e não fácil de alcançar; no entanto, ó Cebes, isto me parece bem dito: os deuses são os que cuidam de nós (hemôn toùs epimelouménous) e nós humanos somos um de seus pertences (ktemáton); não te parece assim? (Phd. 62b1-9. Tradução minha).

A compreensão do tema do suicídio depende sobremaneira do modo como articulamos o argumento que defende sua proibição com uma palavra em especial: phrourá. Não seria um exagero afirmar - como se pretende tornar claro ao longo deste texto - que sua interpretação não apenas tem ressonância no restante do Fédon, como também é capaz de alterar o modo como se enxerga o diálogo. Com efeito, “se trata de um ponto de grande importância não apenas para a visão de mundo que Sócrates está para expor, mas também, e sobretudo, para a história do platonismo europeu” (Di Giuseppe, 1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 2). Por outras palavras, o modo de compreensão dessa visão de mundo depende muito de como se interpreta a interdição ao suicídio em conjunto com a tradução e a exegese da palavra phrourá.

É muito comum que estudos e análises acerca dessa passagem (e dessa palavra em especial) desdobrem-se imediatamente na temática do corpo como cárcere (ou prisão) da alma. Ora, carregando conosco mais de vinte e cinco séculos de tradição filosófica e dois milênios de tradição cristã - que contribuiu em grande medida para a consolidação dessa vertente hermenêutica -, parece estar “na medula” de nós ocidentais a associação e referência quase automática da phrourá a essa célebre discussão. Courcelle (1974COURCELLE, P. (1974). Connais-toi toi-même : de Socrate à saint Bernard. Tome 2. Paris, Études augustiniennes.) fez uma detalhada pesquisa e demonstrou a existência de uma verdadeira tradição ligada ao tema do corpo-prisão1 1 Cf. sobretudo o capítulo XIII, seção 2, intitulada prison de l’âme (Phédon 62b, Cratyle 400c), p. 345-80. . Num outro artigo, chamado Tradition platonicienne et tradition chrétienne du corps-prison (Courcelle, 1965COURCELLE, P. (1965). Tradition platonicienne et tradition chrétienne du corps-prison. Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belle-Lettres 2, p. 341-344.), ele faz uma síntese extraordinária de autores cristãos que se ocuparam dessa metáfora. A fim de não parecer que se está colocando todo o cristianismo no mesmo balaio, é preciso citar uma pequena passagem deste texto:

Uma nova tradição cristã se elaborou, hostil à doutrina do corpo-prisão. Epifânio de Chipre e Teófilo de Alexandria no Oriente, Jerônimo e Agostinho no Ocidente, negam que o corpo seja uma prisão atribuída à alma como punição de um pecado anterior à sua encarnação. Pois a geração não é nem um castigo nem uma falta, já que o Deus do Gênese abençoa a procriação. O pecado de Adão não teve como efeito fazer a alma cair no corpo (Courcelle, 1965COURCELLE, P. (1965). Tradition platonicienne et tradition chrétienne du corps-prison. Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belle-Lettres 2, p. 341-344., p. 342, grifo nosso)2 2 Todas as traduções de fontes secundárias são minhas, exceto onde indicado. .

Ressalva feita, não se pode negar a enorme influência que o cristianismo exerceu sobre este assunto; fato perceptível quando se constata a relutância de muitos estudiosos em aceitar leituras mais heterodoxas, seja porque adotam o cristianismo como religião, seja porque são influenciados pela tradição cristã a tal ponto que nem percebem essa influência (há também casos em que intérpretes baseiam sua interpretação no argumentum autoritatis de outros autores). Com efeito, a discussão acerca desse vocábulo é sempre mencionada e até mesmo considerada; todavia, ela é rapidamente posta de lado - e com pouca cerimônia - uma vez evocado o peso da tradição.

Nessa perspectiva, alguns dos comentadores consultados adotam uma das seguintes posturas, ambas igualmente problemáticas: ou desvalorizam o prólogo como um todo3 3 Bostock (2002), por exemplo, dedica-lhe uma ínfima parte de seu comentário, concentrando-se especialmente nos argumentos da imortalidade da alma. , ou quando se propõem a analisá-lo, não se debruçam sobre este ponto nevrálgico. Na melhor das hipóteses analisam-no en passant, ignorando a possibilidade de ele ter uma enorme reverberação no restante do diálogo. À guisa de exemplo, esse parece ser o caso de Hackforth (1993HACKFORTH, R. (2011). Plato’s Phaedo. 11ed. Cambridge, Cambridge University Press. (1ed 1955), p. 38) e Robin (1949, p. 8-9). O primeiro traduz a phrourá como prisão, usando como justificativa a comparação com o famoso passo 400c do Crátilo. O segundo, ainda que não siga a ortodoxia ao traduzir por ‘garderie’, exclui outras possibilidades de tradução pelo fato de “não se encaixar no contexto”. Curiosamente, ambos autores têm em comum o fato de acrescentarem às suas breves justificativas o famoso argumento do “ambiente órfico-pitagórico do Fédon”. Ora, que o contexto do Fédon seja órfico-pitagórico é evidente, e seria absurdo negá-lo. Porém, seria muito precipitado pensar que Platão reproduz ipsis litteris o pensamento de seus antecessores, sobretudo quando o próprio texto afirma o caráter estranho, profundo, difícil e até mesmo irracional desse tema; logo, é provável que tenhamos de entender isso como um alerta de Platão contra o perigo da univocidade. Burnet comenta numa breve passagem a influência (e não uma apropriação) do pensamento pitagórico:

Como nós podemos ver a partir do Fédon e do Górgias, Platão era íntimo desses homens (scil. pitagóricos) e ficou profundamente impressionado pelo pensamento religioso deles, embora esteja igualmente claro que ele não o adotou como sua própria crença. (Burnet, 1892BURNET, J. (1892). Early Greek Philosophy. London/Edinburgh, Adam and Charles Black., p. 321)

Antes de prosseguirmos, é necessário fazer uma breve consideração acerca de como a phrourá aparece no dicionário e, em seguida, posicionarmo-nos de pronto no que concerne nossa opção de tradução-exegese da palavra. Com isso, esperamos situar adequadamente o leitor nesta problemática e prepará-lo para a discussão que se seguirá. Seguindo o verbete de Liddell-Scott, as traduções mais comuns do termo phrourá são: guarda, vigia e guarnição. Há também sentidos, digamos, mais específicos como ‘posto de fronteira’, ‘posto de observação’ e ‘corpo de homens destinados ao serviço’ (uso do vocábulo em Esparta). Há, finalmente, uma entrada um tanto lacônica que indica o sentido de ‘prisão’, referindo-se a Platão. É interessante notar o quanto a palavra “prisão” destoa dos demais sentidos; nota-se ademais que em nenhuma das palavras derivadas de phrourá a semântica da prisão aparece; o que predomina é a semântica militar. Encontra-se, com efeito, a voz passiva do verbo phrouréo, comumente vertido por ‘ser observado’ ou ‘ser guardado’. Burnet (1911BURNET, J. (1911). Plato’s Phaedo. Oxford, Oxford University Press., p. 23), na sua edição do Fédon, acrescenta que a phrourá é a palavra usada no Peloponeso para strateía que, por sua vez, possui as acepções de expedição, campanha, ou serviço militar. Por isso, ele concorda com a tradução de Archer-Hind (“in Ward”) visto que ela preserva a ambiguidade que caracteriza essa palavra.

Contudo, parece-nos - e tentaremos mostrar isso ao longo deste artigo - que há uma diferença importante entre prisão e guarda/vigia. Esperamos também fundamentar paulatinamente dois pontos complementares: (1) a razão pela qual privilegiamos a semântica da guerra e (2) o fato de a passagem 62b do Fédon não se referir ao tema do corpo-prisão, mas à condição do homem no mundo. Enfim, acreditamos alcançar com essa análise uma perspectiva que nos proporcione maior clareza e definição do quadro geral do diálogo.

Poderíamos dividir didaticamente as múltiplas interpretações em dois grandes blocos: o primeiro, composto por aqueles que defendem a exegese tradicional, e entendem a phrourá como prisão ou cárcere em conexão com o tema do corpo-prisão. Um segundo bloco é representado por aqueles que rejeitam a leitura tradicional em favor de hipóteses alternativas. Uns interpretam a palavra de modo eminentemente ativo, optando por “serviço de guarnição”; outros veem-na de modo ambíguo, traduzindo por “custódia” ou “posto de guarda” na tentativa de trazer à luz a ideia de que se desenvolve uma atividade de custódia ao mesmo tempo em que se reside passivamente num lugar estabelecido; há, enfim, aqueles que optam pelo sentido unicamente passivo, optando por “cercado”, “recinto” ou “jaula”.

No primeiro bloco, por exemplo, temos - além de Hackforth - Dorter (1991), Gallop (2009GALLOP, D. (2009). Plato. Phaedo. New York, Oxford University Press.), Guthrie (1975GUTHRIE, W. K. C. (1975). A History of Greek Philosophy. Vol. 4: Plato: The man and his dialogues: earlier period. Cambridge, Cambridge University Press.), Bernabé (2011BERNABÉ, A. (2011). Platão e o orfismo: diálogos entre religião e filosofia. Trad. Dennys Garcia Xavier. São Paulo, Annablume Clássica.), Bostock (2002BOSTOCK, D. (2002). Plato’s Phaedo. 2ed. New York, Oxford University Press. (1ed 1986)), Grube (2002GRUBE, G. M. A. (2002). Plato. Five Dialogues - Euthyphro, Apology, Crito, Meno, Phaedo. 2ed. Indianapolis, Hackett Publishing Company.), Nunes (2011NUNES, C. A. (2011). Homero. Ilíada. Tradução e introdução. São Paulo, Editora Hedra.) e Schiappa de Azevedo (1988)SCHIAPPA DE AZEVEDO, M. T. (1988). Platão. Fédon. Tradução, introdução e notas. 2ed. Coimbra, Livraria Minerva.. Todos eles contribuem, em maior ou menor grau, para a formação de uma verdadeira vulgata da phrourá. O segundo bloco, sendo radicalmente menos unívoco que o primeiro, apresenta traduções mais variadas. Além de Robin, há também Archer-Hind (1973)ARCHER-HIND, R. D. (1973). The Phaedo of Plato. 2ed. New York, Arno Press. (1ed 1883) que, visando manter a ambiguidade considerada inerente à palavra, traduz por “in Ward”, e é seguido por Burnet (1911BURNET, J. (1911). Plato’s Phaedo. Oxford, Oxford University Press.) e Taylor (2013). Courcelle (1965COURCELLE, P. (1965). Tradition platonicienne et tradition chrétienne du corps-prison. Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belle-Lettres 2, p. 341-344.) adota a mesma tradução de Boyancé, qual seja, “résidence surveillé” (residência vigiada), e afirma ainda: “Platão, por sua vez, não menciona a phourá a título de castigo cruel [...]”. Finalmente, Dixsaut (1991DIXSAUT, M. (1991). Platon. Phédon. Paris, GF Flammarion.) segue a mesma tradução de Courcelle e Boyancé.

Outros autores defendem que tanto ‘prisão’ quanto ‘serviço de guarda’ são viáveis. Burger, por exemplo, tece um comentário que resume sua postura neutra:

o lógos secreto que Sócrates acha ‘grande e não fácil de alcançar’ diz ou que a vida é uma prisão sem revelar a culpa pela qual estamos encarcerados, ou que nós mesmos somos guardiões, sem revelar aquilo pelo qual nós somos responsáveis, nem porque somos compelidos a manter essa posição. (Burger, 1984BURGER, R. (1984). The Phaedo: A Platonic Labyrinth. New Haven, Yale University Press., p. 32)

Di Giuseppe (1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 4) menciona três traduções que enfatizam o aspecto ativo da palavra. Wartturm, que significa torre de guarda (Dirlmeier); Wachtposten, posto de guarda (Kassner); e Warte, guarda (Friedlander).

Diante dessa miríade de exegeses que compõem o segundo bloco em comparação com a unanimidade e univocidade do primeiro, seria lícito refletir sobre o que está em jogo quando se propõe uma visão do corpo (e talvez, por extensão, do mundo) tão negativa e pessimista figurada na metáfora do corpo-prisão; e a partir daí ponderar também sobre a sua reverberação na história do Ocidente e seus efeitos ainda presentes no imaginário do homem contemporâneo. Ora, se Platão pretendeu de fato veicular a semântica do cárcere é algo que ainda precisa ser demonstrado.

Além disso, é muito provável que ao identificar a tradução ‘cárcere/prisão’ com o tema “cárcere do corpo” estejamos adotando uma solução muito rápida e precipitada; porém, também não seria correto contestar essa identificação só porque isso significaria aceitar a interpretação tradicional; trocando em miúdos, como se a reflexão filosófica só tivesse valor na medida em que se refuta a tradição. Nessa medida, sem uma análise cuidadosa e livre de preconcepções, corremos o risco de, sem nos darmos conta, já termos resolvido a priori que o passo 62b refere-se ao tema do corpo-prisão. Com efeito, ainda que o passo se refira a esse famoso binômio,

o problema não é decidir a priori que se trata dessa questão; o problema é também decidir antecipadamente que tipo de relação corpo e alma estabelecem; dessa maneira, corre-se o risco da petição de princípio, comprometendo a interpretação do passo; ademais, essa petição de princípio influenciará, sem dúvida alguma, a tradução da phrourá. E, por conseguinte, se continuássemos nossas indagações sobre a base dessas premissas, seria irrelevante e não nos auxiliaria em nada encontrar outros empregos da phrourá correspondentes aos requisitos desejados; isso faria somente com que se confirmasse a petitio principii inicial, isto é, seja a obscuridade da palavra, seja a clareza do contexto interpretativo tacitamente pressuposto (Di Giuseppe, 1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 5).

Atentos aos perigos da preconcepção e da univocidade, quando nos debruçamos sobre este problema, algumas perguntas circulam insistentemente em nossas mentes: o que pretendia Platão com a fórmula “nós homens estamos numa certa phrourá”? O que significa essa palavra literalmente? Qual sua relação com a proibição do suicídio? E, afinal, por onde começar essa investigação?

Nas primeiras páginas deste artigo, iniciamos um debate sobre a questão da phrourá por meio da enumeração dos seus sentidos num famoso léxico de grego e com uma exposição panorâmica dos dois principais blocos hermenêuticos e alguns dos seus defensores. Agora, para que tenhamos algum êxito em desvendar esse enigma, devemos tentar rastrear o que significa comumente essa palavra na língua grega. Sendo assim, é necessário buscar o significado literal da palavra - sem excluir, é claro, a hipótese da ‘prisão’ - e, em seguida, delinearmos seu campo semântico.

Segundo Chantraine (1968CHANTRAINE, P. (1968). Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire de mots. Paris, Klincksieck., p. 1229), no seu Dictionnaire étymologique de la langue grecque, essa palavra é formada a partir da preposição pró (‘antes’, ‘à frente’, ‘de antemão’, etc.) e o verbo horáo (‘eu vejo’). Trata-se, portanto, de um substantivo situado etimologicamente no âmbito do “ver antes”, do “ver primeiro”, enfim, do “vigiar”. Sobre as ocorrências literárias mais antigas que mencionam essa palavra e confirmam essa interpretação, observa Di Giuseppe (1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 9):

phrourá se revela como um terminus technicus da linguagem militar, usado principalmente: a) como nomen actionis, com o valor geral de ‘guarda’, no sentido de ‘serviço’ ou ‘turno’ de guarda; b) por meio de metonímia, como nomen agentis, e significa ‘guarda’ no sentido da pessoa ou do grupo de pessoas a serviço de guarda.

Para sustentar melhor essa hipótese devemos apresentar alguns trechos de obras nas quais o termo aparece com esses significados. Vejamos o verso que abre a tragédia Agamêmnon: “Aos deuses suplico a libertação das labutas, da guarda (phrourá) anual duradoura” (A. Ag. 1-2; tradução nossa).4 4 Os trechos das tragédias de Ésquilo citadas neste artigo foram retirados de http://www.perseus.tufts.edu.

Nesse verso de Ésquilo, a palavra é claramente usada no sentido ativo de ‘serviço de guarda’. Além disso, a cena inicial e seu contexto são reveladores: Clitemnestra ordena que se monte uma guarda no alto do palácio de Argos até que seu marido regresse de Troia. Ora, a guerra durou dez anos, sugerindo que o guarda presta esse serviço há muito tempo. Depreende-se ainda o fato de essa longa vigilância ser fatigante e laboriosa para quem é submetido a ela; por esse motivo, pede-se a liberação do serviço. Essa mesma acepção é encontrada em Heródoto (2.30): “Esses egípcios, tendo prestado serviço de guarda (phrourésantas) por três anos sem que viessem dispensá-los do serviço (tês phrourês) [...]”.5 5 Tradução M. da Gama Kury ligeiramente modificada. Como se vê, o aspecto desagradável do serviço de guarda também é representado nessa passagem de Heródoto. Não é fortuito que na frase seguinte, Heródoto conte que os egípcios desertaram (apósantes) e passaram para o lado inimigo. Como observou com precisão Di Giuseppe (1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 10), nessa passagem há um paralelo ainda mais impressionante com o Fédon: a correspondência entre a expressão de Heródoto, “toùs Aigyptíous apélue tês phrourês”, e a usada por Platão no Fédon (62b4-5): “heautòn ek tês phrourás lýein”. Pode-se deduzir que essa é uma expressão idiomática, usada para indicar que alguém se subtraiu de seu dever e abandonou seu posto.

No que concerne ao segundo significado, isto é, nome de agente, o Agamêmnon também nos fornece ótimas referências. Clitemnestra diz: “E a luz longínqua a guarda não ignorou” (A. Ag. 300-301; tradução nossa). Como se vê, nos usos mais antigos do termo, a phrourá conserva, em consonância com sua própria etimologia, o campo semântico da guerra e, mais especificamente, da ‘guarda’ e da ‘vigia’.6 6 Nas Traquínias (225-256), Sófocles fala em hómmatos phrourán, ‘a vigia dos olhos’, ou ainda, segundo a tradução de Trajano Vieira, ‘a atenção da vista’. Vale sublinhar também um verso de Aristófanes (Nu. 721-722): “E ainda, além desses males, com as vigílias (phrourâs) já cantadas, eu mesmo estou quase partindo” (tradução minha; trecho retirado de http://www.perseus.tufts.edu). Ésquilo - desta vez no Prometeu Agrilhoado - oferece-nos outro verso em que as nuances já mencionadas da palavra aparecem sintetizadas. “Nos cimos mais altos, a guarda não invejável suportarei” (A. Pr. 142-143: tradução nossa) . Considerando o contexto da tragédia, talvez essa seja a frase - das que foram mencionadas até agora - que mais aproxima as semânticas da phrourá e do desmotérion (de fato, essa passagem do Prometeu remete-nos a Phd, 67d1-2). Contudo, seguindo a premissa de que as diferenças, uma vez encontradas, devem ser bem marcadas, precisamos tecer uma palavra sobre esse trecho.

A fala de Prometeu ao coro indica-nos como serão as condições de sua vida; ele deve suportar sua guarda sem esperanças de que essa tarefa chegue a um termo. Nota-se que a guarda é, assim como no Agamêmnon, algo cansativo, desprazeroso e de longa duração. Além disso, é importante observar que Prometeu não está preso (ou encarcerado) no sentido que hoje concebemos. Ele está no alto de uma montanha, num local completamente aberto e propício para o seu trabalho de vigia; portanto, o grilhão denota a ideia de imobilidade e não de confinamento. Logo, parece-nos que Prometeu é constrangido a correntes não para evitar a fuga de uma prisão, mas para que não abandone seu posto e sua tarefa.

A propósito, é interessante notar o paralelo entre a tarefa de Prometeu e a própria etimologia do seu nome, Prometheús: ele é composto da preposição pró e o verbo mantháno, que pode significar tanto ‘aprender’, ‘conhecer’ e ‘compreender’, quanto ‘notar’, ‘ver’, ou ainda, ‘apreender pelos sentidos’; “significa exatamente o que o latim denomina prudens, de prouidens, o prudente, o “previdente”, o que percebe de antemão” (Brandão, 2010BRANDÃO, J. S. (2010). Mitologia Grega. Vol. 1. 22ed. Rio de Janeiro, Vozes. (1ed 1986), p. 175). O paralelo estende-se não só ao parentesco morfológico e semântico com a phrourá, mas, sobretudo, ao fato de o herói cumprir na tragédia a sina imposta, antes de mais nada, pelo seu próprio nome: a vigilância. Até este ponto, como se pode perceber, não se falou ainda de ‘cárcere’. Nos exemplos mencionados acima, retirados da literatura anterior a Platão, phrourá tem sempre o significado usual de ‘guarda’.

E no que diz respeito ao contexto filosófico? Seria o Fédon o primeiro texto em que aparece esse termo? Com efeito, há um belíssimo fragmento de Antifonte, o orador, advogado e filósofo coetâneo de Sócrates, em que a phrourá aparece na semântica que estamos traçando:

O viver se parece com uma vigília efêmera e a longitude da vida com um dia, no qual, por assim dizer, lançando os olhos na direção da luz, entregamos o posto [phrourán] aos outros que nos sucedem. (DK87 B50, trad. Ribeiro, 2008)

O fragmento de Antifonte confirma de modo cristalino que até mesmo num contexto considerado filosófico, o significado originário de ‘guarda’ se mantém.

No que concerne à obra de Platão, a palavra também é usada dentro da semântica militar, seja como nome de ação, seja como nome de agente. Vejamos primeiro o Crítias: “Aos soldados mais confiáveis era atribuída a vigia (phrourá) da torre mais estreita e próxima à Acrópole” (Criti. 117d1-3). Aqui, a palavra aparece no sentido de ‘serviço’. Nas duas passagens seguintes das Leis, ela aparece no sentido de ‘turno’ e ‘posto’ de guarda respectivamente.

Por dois anos o comando e a guarda (tèn phrourán) pertencem aos guardas (phrouroîs) e também aos comandantes da guarda” (Lg. 6.760c5-6; trad. nossa).

[...] e expõem por escrito na ágora que abandonou o posto (tèn phrourán). (Lg. 6.762c5; trad. nossa).7 7 É interessante observar que na passagem seguinte, é dito que esse desertor deve ser punido por ter falhado com seu dever público. Analogamente, no Fédon (62c1-4) Sócrates informa que deus ficaria irritado e, se possível, puniria, aqueles que não cumprissem com a obrigação imposta por thémis.

No mesmo diálogo, a phrourá aparece com todas as nuances de ‘guarda’ já mencionadas.

Nada, tanto quanto possível, fica sem vigilância (aphrouréton). No que concerne à cidade, as guardas (hai phrouraí) ficam sob os cuidados dos generais, taxiarcas, hiparcas, filarcas, pritâneos, e também dos administradores da cidade e da ágora (Lg. 6.760a6-b1).8 8 Vertido para o português a partir de Di Giuseppe, 1993 (ligeiramente modificado).

Nesse passo, cada um dos cargos públicos assinalados é responsável por cuidar de uma guarda. Nos passos seguintes fica claro que esses magistrados devem preocupar-se com tudo o que concerne suas respectivas guardas: os tipos de pessoas que vão prestar o serviço, as durações dos turnos, os postos a serem ocupados e as regiões onde o serviço de guarda será prestado; além disso, serão escolhidos cinco phrourárchoi (capitães da guarda) para auxiliar os magistrados e servir de mediadores entre eles e os distritos da cidade. O aspecto etimológico, o uso na literatura, na história e na própria filosofia de Platão indicam claramente o campo semântico militar da palavra phrourá.9 9 É préciso ressaltar que encontramos 47 ocorrências do termo phrourá s no corpus de Xenofonte, filósofo e historiador contemporâneo a Platão. Em cada caso, a tradução gira em torno do aspecto militar do vocábulo, o que indica, parece-nos, que ele não perdeu seu sentido original. Ela denota, com efeito, uma atividade; atividade, é importante lembrar, da ordem da ambivalência, porque ela é penosa, difícil, sofrida, e muitas vezes desprazerosa (como no Prometeu e no Agamêmnon); sendo assim, Platão tem o hábito de utilizar esse termo dentro semântica da guerra.

Todavia, para justificar o tema do corpo-prisão, é comum que alguns estudiosos lancem mão de uma passagem do Crátilo em que se apresenta o binômio sôma-sêma (corpo-tumba):

A meu ver, é passível de várias interpretações se o modificarmos um tantinho. Uns afirmam que o corpo é sepultura (sêma), da alma por estar a alma em vida sepultada no corpo, ou então, por ser pelo intermédio do corpo que a alma dá expressão ao que quer significar (semaínein), é muito apropriado esse mesmo nome com o significado de sinal (sêma), que lhe foi dado. Porém o que me parece mais provável é que foram os órficos que assim o denominaram, por acreditarem que a alma sofre castigo pelas faltas cometidas, sendo o corpo uma espécie de receptáculo ou cárcere (desmoteríou), onde ela se preserva [sôizetai: se mantém a salvo, se protege] até que pague aquilo que lhe é devido; por isso, esse “corpo” seria ao pé da letra “proteção” da alma até que pague aquilo que deve; nessa hipótese não será preciso alterar uma letra (Cra. 400c; trad. Nunes, 2001NUNES, C. A. (trad.) (2001). Platão. Crátilo - Teeteto. Belém, Editoria Universitária UFPA., ligeiramente modificada).

Como se pode perceber, nesse passo Sócrates procura traçar a etimologia da palavra corpo (sôma) e o faz basicamente de três maneiras: (1) alguns afirmam que o corpo é a tumba (sêma) da alma, aproveitando a grande semelhança entre as duas palavras (doutrina cuja paternidade é geralmente conferida aos órficos; o pronome ‘tines’ (alguns) parece ser justamente uma alusão que Sócrates tornará explícita logo em seguida). (2) Acrescenta ao binômio sôma-sêma a correspondência entre sêma - semaínein; concebe-se, pois, a ideia de que o corpo não é o sêma da alma na perspectiva em que normalmente se pensa, isto é, tumba; ele é lugar de significação, o instrumento de que a alma se utiliza para se manifestar e dar sentido ao mundo. De fato, o primeiro sentido de ‘sêma’ é precisamente ‘sinal funerário’, ou seja, a marca colocada na terra para conservar a memória do morto; daí a ambivalência semântica da palavra. Bernabé (2011BERNABÉ, A. (2011). Platão e o orfismo: diálogos entre religião e filosofia. Trad. Dennys Garcia Xavier. São Paulo, Annablume Clássica.), aponta que o deslizamento de ‘tumba’ para ‘sinal’ teria feito parte de uma leitura alegórica por parte de autores não órficos (e provavelmente pitagóricos) na tentativa de suavizar a crueza da fórmula órfica. (3) A última proposta etimológica - seguindo a leitura de Bernabé - deve ser atribuída não a Orfeu e seus seguidores, mas ao próprio Sócrates.

Para justificar sua interpretação, o Bernabé baseia-se em duas expressões do texto: o verbo “parece-me” (dokoûsi ... moi), indicando que o que se seguirá é a visão de Sócrates sobre o assunto; e a frase “nessa hipótese não será preciso alterar uma letra”, que mostra a enorme satisfação de Sócrates em ter encontrado uma etimologia que ele considera mais adequada que a dos órficos. Segundo a etimologia socrática, o corpo é um lugar de proteção (sôizetai) da alma; isto é, um recinto do qual a alma não pensa em fugir porque lá ela está preservada, protegida, mantida a salvo. Ora, na perspectiva da terceira etimologia, já se observa que o Crátilo se situa num contexto diferente do Fédon, em que, sempre de acordo com a interpretação tradicional, a alma deseja fugir da prisão do corpo por não suportar os perigos (i.e., dores, sofrimentos, prazeres, etc.) que ele constantemente a submete.

Fizemos um recorte da longa análise de Bernabé para captarmos com mais objetividade o que Platão tentou fazer nesse passo do Crátilo.

Em outras palavras: Sócrates diz que aceita que o sôma se chame assim porque pode-se considerar um sêma (em seu duplo sentido), mas, sobretudo, porque soidzei [sic.] à alma [...]. O que Sócrates toma dos órficos são determinadas doutrinas sobre a alma que favorecem a nova interpretação que agora oferece ele mesmo [...]. Platão, através da nova etimologia que propõe que sôma é um nome de resultado de sôidzo, reinterpreta o papel do corpo em um sentido mais positivo, como proteção da alma, utilizando como intermédio a ideia de prisão [...]. O ponto de vista de Platão está centrado no aspecto político e na moral; o mito é um preventivo para a correta atuação do homem como cidadão; esta vida tem valor e a alma está ‘sob custódia’ do corpo, mas viva e atuante [...]. Platão, pela boca de Sócrates, analisa a etimologia de sôma e reivindica uma nova interpretação a partir de soidzein [sic.] “salvar”, que explica para ele a condição do corpo melhor do que o faz a identificação com sêma [...]. A melhora etimológica é, por um lado, linguística, porque não obriga a mudar nenhuma letra [isto é, o por e], mas por outro, afeta a questões mais profundas (Bernabé, 2011BERNABÉ, A. (2011). Platão e o orfismo: diálogos entre religião e filosofia. Trad. Dennys Garcia Xavier. São Paulo, Annablume Clássica., p. 207, 210, 218, 222, 227; grifo nosso)

Platão aceita a fórmula órfica na medida em que ela serve de base para a elaboração de sua própria visão; em contrapartida, Platão declara explicitamente a preferência pela sua etimologia: afinal, não é necessário alterar nenhuma letra. O que se vê nessa passagem do Crátilo é um movimento tipicamente filosófico: aceita-se a tradição para em seguida confrontá-la e, quando necessário, refutá-la. Platão realiza uma mudança substancial na interpretação do papel do corpo, sem dúvida, menos pessimista que a fórmula órfica. Estamos convencidos, junto a Bernabé (2011BERNABÉ, A. (2011). Platão e o orfismo: diálogos entre religião e filosofia. Trad. Dennys Garcia Xavier. São Paulo, Annablume Clássica., p. 228),10 10 A única crítica que poder-se-ia fazer à leitura de Bernabé é a identificação, um tanto apressada (como o fazem também boa parte dos estudiosos), da phrourá ao tema do corpo-prisão (p. 221), e a redução semântica dessa palavra com o desmotérion. de que é precisamente com o intento de alterar essa visão que Platão corrige a etimologia de sôma e, com isso, negar a interpretação do corpo-tumba. Contudo, parece-nos que a mudança mais substancial, diríamos ainda, radical, que Platão realiza, está no próprio valor do termo tò desmotérion (nota-se, aliás, que Platão não usa a phrourá para exprimir a ideia de cárcere): mesmo usando o termo clássico para ‘prisão’, a ideia evocada é a da ‘custódia’, um recinto no qual a alma mantém-se sã e salva.

Em suma, esse trecho do Crátilo parece não ser adequado para dar suporte à interpretação tradicional da phrourá, pois o corpo é visto como conditio sine qua non no que diz respeito às atividades da alma, ou ainda, à sua manifestação no mundo. E, além de figurar-se como instrumento de significação e uma espécie de refúgio, em nenhum momento uma relação negativa entre corpo e alma é mencionada.

Costuma-se lançar mão também do passo 525a7 do Górgias; quanto a isso, basta citar uma importante observação de Burnet (1911BURNET, J. (1911). Plato’s Phaedo. Oxford, Oxford University Press., p. 23): “A phrourá em Górgias 525a7 é a prisão do mundo e não do corpo”. Ora, a mesma observação de Burnet valeria para o passo 114c do Fédon (muito usado também como justificativa da interpretação do corpo-cárcere) em que Platão refere-se a uma prisão. Contudo, nessa passagem, Platão está se referindo à prisão da Terra, ou melhor, àquilo que os homens pensam ser a verdadeira Terra; e para isso ele utiliza o termo desmotérion e não phrourá. Agora é possível compreender melhor como uma palavra podia significar tanto ‘serviço/posto de guarda’ quanto ‘custódia’, ‘cárcere’, ‘residência vigiada’ e até mesmo ‘jaula para animais’. Nessa perspectiva, Di Giuseppe (1993, p. 14) conclui:

É notável [...] o uso da palavra num contexto filosófico com o desaparecimento da referência militar. Como a residência numa solitária, o estar em custódia refere-se ainda menos diretamente ao serviço de guarda, restando o sentido de lugares guardados. Com o desaparecimento progressivo do contexto militar, também o significado ativo da palavra aparece menos, a favor do êxito da noção passiva de ‘guarda’, que se afirma pouco a pouco.

Uma vez recolhido e avaliado todo esse material - passando pelos comentadores contemporâneos, além das etimologias e usos literários e filosóficos - como nos posicionar diante disso tudo, e oferecer uma tradução e interpretação que nos pareça razoável e mais consonante com o passo 62b do Fédon?

Para facilitar uma visão geral da questão da phrourá e desnudar a palavra de uma vez por todas, propõe-se a tabela abaixo, em que decompomos e sintetizamos todos os aspectos semânticos identificados nos tópicos anteriores.11 11 Modificamos ligeiramente o quadro proposto por Di Giuseppe (1993, p. 15), cuja essência, contudo, procuramos manter.

Tabela 1:
<Significados particulares do termo phrourá>

Uma vez destrinchada toda a semântica da palavra, podemos considerar, dentre as suas múltiplas acepções, a que melhor se encaixa no passo 62b. A expressão “ek tês phrourâs lýein” sugere-nos que as acepções (1) e (2) não são adequadas porque, apesar de denotarem o aspecto da ação, nenhuma delas implica a ideia de lugar. Avançando um pouco no texto, em 62d4 há uma referência explícita a um ‘serviço prestado aos deuses’ (therapeías); exclui-se, portanto, as acepções passivas de custódia e cárcere, restando-nos apenas a acepção (3.1).

Também podemos reforçar essa escolha se compararmos a atitude dos deuses no Fédon que - da mesma forma que os magistrados das Leis (760a7-8: strategôn epimelouménon) - cuidam de nós (62b7: hemôn toùs epimelouménous). Confirmado o contexto ativo do serviço militar, vê-se que ele é totalmente compatível com o significado (3.1). Sendo assim, seguimos a sugestão de Di Giuseppe e traduzimos por “corpo de guarda”, já que se diz que todos os homens estão neste posto12 12 Roux & Roux (1961, p. 207-210) são vozes (quase) solitárias no século XX na defesa da interpretação não hegemônica da phrourá. Os comentadores optam pela metáfora militar e traduzem service de garnison seguindo, aliás, a sugestão de Cícero nas obras De Senectute e Somnium Scipionis onde phrourá é traduzida por praesidium ou statio (posto de guarda). . A princípio, pode parecer problemático o uso da palavra ‘corpo’ quando se considera o contexto do Fédon (em que o termo ‘corpo’ (sôma) aparece várias vezes) e o fato de estarmos muito acostumados a associar esse vocábulo ao seu aspecto fisiológico. Contudo, pensemos no termo ‘corporação’, muito presente no léxico militar contemporâneo (daí dizermos, p.ex., ‘corpo de bombeiros’); consideremos ainda que a palavra latina custodia possui como uma de suas acepções primeiras o sentido de ‘corps de guarde’ (segundo o léxico latim-francês de Félix Gaffiot); imaginemos, enfim, uma guarda completa de uma fortaleza, sendo a fortaleza a própria Terra, e sua guarnição a humanidade inteira.

Observação feita, vejamos novamente Fédon 62b com a tradução proposta:

E, com efeito [...], pode parecer dessa maneira irracional; no entanto, tem possivelmente alguma razão. Pois, então, o que se diz nos Mistérios em relação a eles há uma razão: que nós humanos estamos num certo corpo de guarda, e não é lícito liberar-se a si mesmo nem desertar; <isso> me parece algo grande e não fácil de alcançar, entretanto, ó Cebes, isto me parece bem enunciado: os deuses são os que cuidam de nós e nós humanos somos um de seus pertences; não te parece assim?

Sob essa perspectiva, conseguimos enxergar através da trama de mythos e lógos de Sócrates e compreender a sua fala. Se os homens vivem num ‘corpo de guarda’, os deuses tomam conta deles e os supervisionam, da mesma forma que um comandante supervisiona e se (pre)ocupa com a sua própria guarda; entende-se também porque os homens são pertences (ktémata; 62b8) dos deuses; não porque estejam circunscritos num recinto, como um rebanho que está limitado pela cerca; mas porque na condição de ‘servidores’ ou, se quisermos, de ‘guerreiros’, realizam para os deuses certo érgon. Além disso, sendo nossos mestres (despótoi) e superiores, é preciso esperar que eles autorizem nossa retirada, i.e., nossa morte13 13 Nesse sentido, vale citar in extenso um comentário de Roux & Roux (1961, p. 208): “À notre avis, les mots phrourá et ktêma ne développent pas une seule et même image […]; Platon recourt à deux images différentes, successives, la seconde exprimant la même idée que la première, mais avec beaucoup plus de force : à savoir que l’homme n’a pas le droit de déterminer lui-même, par un acte de son libre-arbitre, la durée du temps qu’il doit passer sur la terre.” . Não se deve levar ao pé da letra a passagem em que se diz que os deuses ficariam furiosos e nos puniriam. O fato de a divindade ser boa e cuidar dos homens, e Sócrates enxergar o mundo como um cosmo moralmente organizado, torna paradoxal o fato de essa mesma divindade aprisionar, sem motivo, aqueles por quem ela vela.

Precavidos contra a possibilidade de abordar o texto com concepções e opiniões formadas de antemão - e também contra a possibilidade de que estivéssemos recusando a interpretação tradicional por uma rebelde “aversão à ortodoxia” - aceitamos em nossa análise a hipótese da ‘prisão’ e verificamos paulatinamente que ela não se confirma como uma tradução adequada. Refletindo um pouco mais acerca dessa metáfora, conclui-se que ela não se encaixa bem ao passo 62b Fédon.

Supostamente, o prisioneiro não tem motivo algum para suportar a dura pena; ele poderia simplesmente encurtar seu período de encarceramento e se autoproclamar livre mediante o suicídio. Como aponta Gertz (2011GERTZ, S. R. P. (2011). Death and Immortality in Ancient Neoplatonism. Studies on the Ancient Commentaries on Plato’s Phaedo. Boston, Brill., p. 37) com acuidade: “Se eu fui escravizado e preso por um inimigo, não deveria eu aguardar o momento adequado para escapar?”. Além disso, não se identifica nenhum vínculo entre ele e seu carcereiro; o prisioneiro é puramente passivo em sua condição de penitente, ou seja, não presta serviço a ninguém, ao passo que o guarda está vinculado a um compromisso (i.e., a therapeía) com a divindade. Na imagem do corpo de guarda, o que mantém (ou deveria manter) o homem atrelado à vida não é um lugar no qual ele está detido, e sim, esse vínculo estabelecido pelo serviço assumido perante os deuses. Podemos encontrar evidências desse vínculo no próprio Fédon. Sócrates diz explicitamente - na célebre passagem sobre os cisnes (84e-85a) - que ele e essas aves são servidores (therápontes) de Apolo. Dentro da metáfora do corpo de guarda, ao cometer suicídio, o homem priva os deuses de “soldados” ao seu serviço. Perguntemos, ademais, aos defensores da interpretação tradicional o porquê de Platão utilizar na frase que abre o Fédon (57a2) o vocábulo tò desmotérion para referir-se à prisão onde estava Sócrates, e em 62b, onde supostamente ele também se refere à prisão, ele não repetir o mesmo vocábulo.

Parece-nos igualmente errôneo ligar a phrourá ao tema do corpo-cárcere. Primeiro, em nenhum lugar do Fédon se diz que estamos no corpo pagando a pena de um crime pretérito ou de uma culpa originária.14 14 Assim como não há referência alguma ao mito de Dioniso no Fédon. Essa foi, p.ex., a solução de Xenócrates em sua tentativa de solucionar o enigma da phrourá e que deu origem a uma vasta tradição hermenêutica que perdurou até Damascio. Fundamental lembrar que Damascio (2009), ao discutir este ponto, faz um juízo sobre a vida e a condição humana na Terra; com efeito, na visão desse neoplatônico, os homens reencarnam e são colocados numa na phrourá com fins de ‘aprendizado’ e não por castigo. Além disso, Sócrates diz que essa fórmula não é clara de se compreender. Segundo Dixsaut - esse não seria o caso se a phrourá tivesse o sentido unívoco de prisão; univocidade, aliás, que não faz parte da ambiguidade semântica que, conforme mostramos, lhe é inerente (ignora-se seu aspecto ativo). Segundo, basta compreender que o suicídio per se - e pensado como libertação - está disponível a todos; o que o impede não é um espaço fechado (o corpo) em que se está detido, mas o imperativo da thémis divina; ademais, não faria sentido proibir algo que não fosse possível de ser levado a cabo. Ora, nessa perspectiva, poderíamos questionar a fragilidade desse suposto cárcere que, na realidade, não prende ninguém já que bastaria se suicidar para se libertar e fugir dele. Dito de outro modo, uma vez aceita a possibilidade do suicídio e o cárcere sendo, por definição, um lugar que impossibilita ao cativo qualquer chance de fuga, as duas coisas não se encaixam; vê-se, pois, que não há uma correspondência entre corpo-prisão, e libertação pelo suicídio (entendido como fuga da prisão).

Todavia, há aqueles que - mesmo diante de tais evidências - preferem manter a tradução por “cárcere” ligando-a ao tema do corpo-prisão, mas ao mesmo tempo fornecendo inúmeras explicações e justificativas de que não estão entendendo a palavra (e, por extensão, nem o corpo) em sentido negativo. Ora, pode-se evitar não só todos esses circunlóquios, mas também evitar que o leitor, desde o prólogo, cristalize uma certa imagem do Fédon e de seu conteúdo: basta alterar a tradução de uma palavra e o tom da fala de Sócrates já sofre grandes mudanças. Perguntemos, pois, o motivo de perseverar no uso de uma palavra cuja semântica sofreu tamanho desgaste e que induz o leitor a uma univocidade que não é o que se pretende veicular no texto. Ora, que o corpo ou a vida de modo geral sejam prisões, é uma coisa que apenas narrativas religiosas podem dar-nos suporte; por outro lado, que a vida seja uma batalha constante, qualquer um pode com facilidade verificar e experimentar cotidianamente. Em última instância, se a phrourá é uma prisão ou um corpo de guarda, qualquer que seja o caminho que decidamos tomar, ele está diretamente relacionado ao modo pelo qual desejamos (cientes ou não) interpretar a visão socrática da vida: como um castigo, uma penalidade, ou como uma prova, uma missão, ou um serviço a ser cumprido.

Evidentemente, isso não significa dizer que - uma vez excluído o tema do corpo-prisão - exclui-se de maneira absoluta o caráter passivo e até mesmo negativo da palavra, visto que também no corpo de guarda, o indivíduo é constrangido a uma résidence surveillé (residência vigiada). Nessa medida, entende-se não apenas a obrigação do serviço e do lugar em que se reside para a sua realização, mas também seu aspecto fatigante e desagradável (como nos mostrou Heródoto e Ésquilo, sobretudo no Prometeu Acorrentado). Em contrapartida, a tradução “cárcere/prisão” acentua de tal maneira o aspecto negativo da palavra que ela termina por anular seu outro aspecto que é o da responsabilidade no cumprimento do serviço.

Nessa perspectiva, é preciso fazer mais um pequeno comentário sobre a letra platônica. Segundo o passo 62b, “nós homens estamos numa certa phrourá”, e não a alma ela mesma, como deveria ser caso se tratasse do cárcere do corpo. Evidentemente, não é lícito dizer que “nós homens estamos no cárcere do corpo”, porque ‘homem’ já é o nome dessa combinação de alma e corpo, como nos diz Sócrates de modo cristalino no passo 79b1-2: “Ora vê, no homem há duas coisas distintas a considerar: por um lado, o corpo, por outro, a alma?” (Ver também Phd. 80b3 e 80c2-4). Então, se a frase em 62b4 for interpretada à luz da metáfora do corpo-cárcere ela ficaria com um sentido deveras absurdo: significaria que alma e corpo estão na prisão do corpo. Para que a metáfora do corpo-prisão funcione, seria necessário identificar ánthropos e psyché, o que o texto do Fédon não nos autoriza a fazer (seria preciso lidar, é verdade, com os passos 130b-e do Alcibíades I e 365e do Axíoco).

Na imagem do corpo de guarda, contudo, e talvez a diferença mais relevante esteja neste ponto - o filósofo figura-se como uma espécie de hoplita e de acordo com essa imagem, pode-se dizer seguramente que a areté “filosófico-guerreira” cumpre-se em uma morte enfrentada com intrepidez. Segundo Di Giuseppe, é exatamente isso que Sócrates faz:

A morte de Sócrates como realização de sua areté. Isso significa que para Platão, só com a morte se atinge a virtude buscada em vida; ele encontra a excelência humana na provação da morte corajosamente enfrentada. (Di Giuseppe, 1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 94)

Essa virtude é, sem dúvida, o traço mais marcante do Sócrates do Fédon; é precisamente sua postura austera que serve de inspiração e encorajamento para seus companheiros. Que essa virtude, aliás, seja também a maior virtude guerreira, prova-nos a Ilíada: Aquiles não é o melhor dos Aqueus (áriston Achaiôn; 1.244) porque ele é o mais forte (esse é Ájax), ou o mais sagaz (esse é Odisseu); ele é o melhor dentre os melhores precisamente porque ele é o único dentre todos os aqueus que não teme a morte e marcha em direção a ela sem hesitação (não é fortuito, aliás, a menção a Aquiles em Pl. Ap. 28c-d). Ora, não nos esqueçamos que Sócrates foi realmente um soldado a serviço de Atenas que realizou grandes proezas militares. Não podemos nos esquecer, por exemplo, da descrição das habilidades guerreiras de Sócrates em Diógenes Laércio (2.22) e no Banquete de Platão (219e-220d).

Torna-se patente, então, que ao combinar a proibição do suicídio com o enigma da phrourá, Sócrates está convidando seus interlocutores a refletir sobre a relação entre vida e morte e deuses e homens. E a metáfora do ‘corpo de guarda’ nos mostra, justamente, um juízo sobre a vida e a situação dos homens na Terra. Como aponta Di Giuseppe (1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 37),

a vida é vista por Sócrates como uma obrigação na qual o homem empenha a própria responsabilidade, isto é, como um serviço a cumprir até o fim. Não nos é dado o porquê desse serviço, mas para isso também há uma explicação; porque a interdição ao suicídio é apresentada como um imperativo e não como um raciocínio persuasivo (grifo nosso).

Com efeito, poder-se-ia afirmar que a maioria dos homens, desconhecendo essa curiosa relação com o divino - não é fortuito que Sócrates fale de um lógos secreto, ou seja, inacessível às massas -, desconhece também esse serviço que deve ser prestado aos deuses. Nesse sentido, Sócrates seria um privilegiado, já que mantém com os deuses uma relação muito próxima e consciente; ou seja, a despeito da acusação de impiedade, Sócrates reconhece o divino como ninguém, mediante daímones, sonhos, ou quaisquer outros sinais; tudo isso o levou a descobrir o seu próprio serviço.

Ademais, assim como no Crítias e nas Leis, no passo 62b do Fédon, o aspecto ambivalente da phrourá pode ser resumido na expressão de Dixsaut (1991DIXSAUT, M. (1991). Platon. Phédon. Paris, GF Flammarion.) - aliás, muito pertinente - Surveillance-Surveillé, isto é, Vigilância-Vigiada. E é justamente a divindade que faz a vigilância do homem. Suicidar-se não significa, portanto, fugir da prisão; significa abster-se da missão divina, desertar do posto e, consequentemente, a liberação de um compromisso assumido, sem que esse compromisso tenha de fato chegado ao fim.15 15 Da mesma forma, o suicídio segundo a leitura de Damascio (Comm. Phd., 1, 10), seria a comprovação de que a alma ainda precisa ligar-se novamente a um corpo para continuar o aprendizado que ela própria interrrompeu. É preciso, como diz o próprio Sócrates, esperar que deus envie um sinal claro de que o homem está liberado do serviço. A esse propósito, há duas belíssimas passagens nos Discursos de Epiteto que nos remetem ao Fédon e nos ajudam a fundamentar nossa posição:

E de minha parte eu diria: amigos, esperem por Deus: quando ele der o sinal (seménei) e liberá-los (apolýsei) de seu serviço (hyperesías), então vão até ele; mas por enquanto suportem a morada nesse lugar onde ele vos colocou; curto, de fato, é o tempo de vossa morada aqui, e fácil de suportar para aqueles assim dispostos. [...] Esperem então, não partam sem um motivo.

Só não podemos fazê-lo [o suicídio] inconsideradamente, nem fracamente, nem por qualquer outro motivo; pois, por outro lado, Deus não quer que isso seja feito, e ele tem necessidade de tal mundo e de tais habitantes vivendo nele. Mas se ele der o sinal para a retirada (héos àn ho theòs seménei tò anakletikón), como ele fez com Sócrates, nós precisamos obedecer aquele que deu o sinal, como se ele fosse um general (strategôi). (Epict. Ench. 1.9, 29;16 16 Vertido para o português a partir da tradução de Long obtida em http://www.perseus.tufts.edu. grifo nosso)17 17 Note-se que no parágrafo anterior, Epiteto refere-se à ‘prisão’ com o clássico vocábulo tò desmotérion.

Em primeiro lugar, é preciso sublinhar a presença do vocabulário militar em ambos os trechos. Isso mostra-nos que Epiteto captou com maestria a relação deus-general/homem-soldado que procuramos trazer à luz ao longo deste artigo18 18 Sobre a articulação entre o sentido militar da phrourá e a fórmula dos estoicos héos àn ho theòs seménei tò anakletikón, cf. Roux & Roux, 1961, p. 209. . Segundo, conquanto Epiteto não utilize o mesmo termo de Platão, ele fala de um ‘lugar’ em que os homens foram colocados. Ora, é interessante notar que a phrourá também possui essa acepção (3.1); e foi precisamente esse aspecto que verificamos ser o mais adequado para o passo 62b. Assim como os deuses fizeram com Prometeu, os homens foram colocados em uma morada difícil de lidar, com percalços a serem suportados; na perspectiva de Epiteto, a morte é o “bater em retirada” em resposta ao comando da divindade. E esse comando é dado por um ‘sinal’, como o próprio Epiteto faz questão de frisar, remetendo o leitor à importância de se reconhecer o divino tal como fez Sócrates. Portanto, a visão estoica acerca do suicídio - pelo menos em Epiteto - parece sofrer grande influência do passo 62b do Fédon.

Mas não é apenas no prólogo que metáforas guerreiras estão presentes. Com efeito, elas permeiam o diálogo como um todo. Dixsaut (1991DIXSAUT, M. (1991). Platon. Phédon. Paris, GF Flammarion., p. 122) observa com acuidade que essas metáforas são amplamente utilizadas por Fédon no interlúdio (88c-89c). Chama nossa atenção sobretudo o seguinte passo:

Foi como se, derrotados (hetteménous) e postos em fuga (pepheugótas), a sua voz nos exortasse de novo a regressar às fileiras (anekalésato kaì proútrepsen), a fim de prosseguirmos em conjunto com o exame do argumento (89a5-7).

Logo em seguida, Sócrates diz que ele e Fédon deverão cortar os cabelos se ele não retornar à peleja e derrotar o discurso de Símias e também o de Cebes (prín àn nikéso anamachómenos tòn Simmíou te kaì Kébetos lógon - Phd., 89c2-5). Ora, que a semântica da guerra permeia todo o diálogo, mostra-nos também os passos 103d8 e 104b11, nos quais Sócrates diz que, num embate entre contrários (p.ex., neve e fogo), um deles terá que bater em retirada (hypechorésein) ou perecer (apoleîsthai).

Em suma, Sócrates parece ver na decisão dos atenienses a vontade dos deuses, ou melhor, um sinal claro de liberação do serviço. Além disso, a pena de morte imposta pelo tribunal ateniense é vista por Sócrates como a ocasião de cumprir seu desejo de morrer. Sócrates, portanto, não sustenta a teoria de uma interdição absoluta ao suicídio. Nesse sentido, talvez ele não queira condenar simpliciter o suicídio, mas tentar explicar por que o desejo de morte do filósofo não pode justificar o ato de encurtar a existência ao morrer pelas próprias mãos. Ora, se lembrarmos da Apologia, entre ser privado da atividade filosófica e da própria vida, Sócrates prefere morrer, porque “uma vida sem investigação não vale a pena ser vivida”. É justamente nessa encruzilhada imposta pelos atenienses que Sócrates enxerga o sinal divino anunciando sua morte e o fim da sua missão: fazer filosofia.

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  • 1
    Cf. sobretudo o capítulo XIII, seção 2, intitulada prison de l’âme (Phédon 62b, Cratyle 400c), p. 345-80.
  • 2
    Todas as traduções de fontes secundárias são minhas, exceto onde indicado.
  • 3
    Bostock (2002BOSTOCK, D. (2002). Plato’s Phaedo. 2ed. New York, Oxford University Press. (1ed 1986)), por exemplo, dedica-lhe uma ínfima parte de seu comentário, concentrando-se especialmente nos argumentos da imortalidade da alma.
  • 4
    Os trechos das tragédias de Ésquilo citadas neste artigo foram retirados de http://www.perseus.tufts.edu.
  • 5
    Tradução M. da Gama Kury ligeiramente modificada.
  • 6
    Nas Traquínias (225-256), Sófocles fala em hómmatos phrourán, ‘a vigia dos olhos’, ou ainda, segundo a tradução de Trajano Vieira, ‘a atenção da vista’. Vale sublinhar também um verso de Aristófanes (Nu. 721-722): “E ainda, além desses males, com as vigílias (phrourâs) já cantadas, eu mesmo estou quase partindo” (tradução minha; trecho retirado de http://www.perseus.tufts.edu).
  • 7
    É interessante observar que na passagem seguinte, é dito que esse desertor deve ser punido por ter falhado com seu dever público. Analogamente, no Fédon (62c1-4) Sócrates informa que deus ficaria irritado e, se possível, puniria, aqueles que não cumprissem com a obrigação imposta por thémis.
  • 8
    Vertido para o português a partir de Di Giuseppe, 1993 (ligeiramente modificado).
  • 9
    É préciso ressaltar que encontramos 47 ocorrências do termo phrourá s no corpus de Xenofonte, filósofo e historiador contemporâneo a Platão. Em cada caso, a tradução gira em torno do aspecto militar do vocábulo, o que indica, parece-nos, que ele não perdeu seu sentido original.
  • 10
    A única crítica que poder-se-ia fazer à leitura de Bernabé é a identificação, um tanto apressada (como o fazem também boa parte dos estudiosos), da phrourá ao tema do corpo-prisão (p. 221), e a redução semântica dessa palavra com o desmotérion.
  • 11
    Modificamos ligeiramente o quadro proposto por Di Giuseppe (1993DI GIUSEPPE, R. (1993). La Teoria della Morte nel Fedone Platonico. Napoli, Società Editrice il Mulino., p. 15), cuja essência, contudo, procuramos manter.
  • 12
    Roux & Roux (1961ROUX, G.; ROUX, J. (1961). À propos de Platon: réflexions en marge du Phédon (62b) et du Banquet. Revue de Philologie, de littérature et d’histoire ancienne 35, p. 207-234., p. 207-210) são vozes (quase) solitárias no século XX na defesa da interpretação não hegemônica da phrourá. Os comentadores optam pela metáfora militar e traduzem service de garnison seguindo, aliás, a sugestão de Cícero nas obras De Senectute e Somnium Scipionis onde phrourá é traduzida por praesidium ou statio (posto de guarda).
  • 13
    Nesse sentido, vale citar in extenso um comentário de Roux & Roux (1961ROUX, G.; ROUX, J. (1961). À propos de Platon: réflexions en marge du Phédon (62b) et du Banquet. Revue de Philologie, de littérature et d’histoire ancienne 35, p. 207-234., p. 208): “À notre avis, les mots phrourá et ktêma ne développent pas une seule et même image […]; Platon recourt à deux images différentes, successives, la seconde exprimant la même idée que la première, mais avec beaucoup plus de force : à savoir que l’homme n’a pas le droit de déterminer lui-même, par un acte de son libre-arbitre, la durée du temps qu’il doit passer sur la terre.”
  • 14
    Assim como não há referência alguma ao mito de Dioniso no Fédon. Essa foi, p.ex., a solução de Xenócrates em sua tentativa de solucionar o enigma da phrourá e que deu origem a uma vasta tradição hermenêutica que perdurou até Damascio. Fundamental lembrar que Damascio (2009), ao discutir este ponto, faz um juízo sobre a vida e a condição humana na Terra; com efeito, na visão desse neoplatônico, os homens reencarnam e são colocados numa na phrourá com fins de ‘aprendizado’ e não por castigo.
  • 15
    Da mesma forma, o suicídio segundo a leitura de Damascio (Comm. Phd., 1, 10), seria a comprovação de que a alma ainda precisa ligar-se novamente a um corpo para continuar o aprendizado que ela própria interrrompeu.
  • 16
    Vertido para o português a partir da tradução de Long obtida em http://www.perseus.tufts.edu.
  • 17
    Note-se que no parágrafo anterior, Epiteto refere-se à ‘prisão’ com o clássico vocábulo tò desmotérion.
  • 18
    Sobre a articulação entre o sentido militar da phrourá e a fórmula dos estoicos héos àn ho theòs seménei tò anakletikón, cf. Roux & Roux, 1961ROUX, G.; ROUX, J. (1961). À propos de Platon: réflexions en marge du Phédon (62b) et du Banquet. Revue de Philologie, de littérature et d’histoire ancienne 35, p. 207-234., p. 209.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2018
  • Aceito
    10 Jan 2019
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