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Arquitetura vitruviana e retórica antiga

Vitruvian architecture and ancient rhetoric

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar a analogia básica entre arquitetura e retórica antiga a partir dos tratados De Architectura, de Vitrúvio, e o De Oratore, de Cícero. A analogia se verifica na definição do artífice, dos gêneros e partes das técnicas e dos fins de cada uma delas. Para tanto, tomaram-se como referência as fontes do tratado vitruviano, que menciona a influência de Varrão na gramática, de Lucrécio na filosofia e de Cícero no método oratório. A analogia com Cícero serve tanto para conferir autoridade ao modelo de arquiteto vitruviano quanto para diferenciar a arquitetura das demais ciências, sobretudo a filosofia, objeto de debate na obra ciceroniana.

Palavras-chave:
Vitrúvio; Cícero; arquitetura; retórica; signo

Abstract:

The aim of this article is to present the essencial analogy between architecture and ancient rhetoric based on the vitruvian treatise De Architectura and the ciceronian De Oratore. The analogy is verified in the definition of artist, of discursive gender and parts in both techniques, and their objectives. For this purpose, I make reference to the sources of Vitruvius De Architecture, namely Varro (in grammar), Lucretius (in philosophy) and Cicero (in rhetorical methods). The analogy with Cicero comprises not only the authority of the ideal architect but also the difference between architecture and other sciences, especially philosophy - object of ciceronian works.

Keywords:
Vitruvius; Cicero; architecture; rhetoric; sign

Introdução

Não por acaso, o tratado De architectura vitruviano abre-se com a indicação de uma dicotomia pertinente à arquitetura que também encontra correspondência na retórica. Tal indicação pressupõe que a obra arquitetônica (Vitr. De arch. 1. Pref. 1 opus) é produto de uma soma imotivada e arbitrária, condicionada pela aplicação da teoria (Vitr. De arch. 1. Pref. 1 Opera ea nascitur et fabrica et ratiocinatione), como se lê a seguir:

Cum in omnibus enim rebus, tum maxime etiam in architectura haec duo insunt, quod significatur et quod significat. Significatur proposita res, de qua dicitur; hanc autem significat demonstratio rationibus doctrinarum explicata. Quare videtur utraque parte exercitatus esse debere, qui se architectum profiteatur (Vitr. De arch. 1. Pref. 3).

Tal como nas demais coisas, também e especialmente na arquitetura apresentam-se estas duas partes, o que é significado e o que significa. O que é significado é a matéria proposta da qual se fala; o que significa é a exposição atestada pelos princípios dos sistemas. Por esse motivo, parece que deve se exercitar em ambas as partes aquele que pretenda ser arquiteto.1 1 Todas as traduções latinas apresentadas são de responsabilidade do autor deste trabalho. Utilizamos o texto vitruviano estabelecido na edição de Krohn (1912).

Ora, se bem compreendida, a dicotomia entre o que é significado e o que significa é a mesma operada entre matéria (res) e palavras (verba) na retórica, do modo como as fontes antigas dessa técnica (ars) a apresentam. Assim, pois, retórica e arquitetura possuem uma relação de analogia, se considerada a definição de Foucault para as formas de interpretação das coisas do mundo anteriores à lógica cartesiana. Nela, é bom lembrar, as relações entre todas as coisas que ocupam o espaço são sutis, percebidas por ajustes, ligamentos e junturas (Foucault, 2007, p. 29) possíveis pelo número, pela proporção e pela anatomia das coisas em comparação. Vitrúvio parece reconhecer tais ajustes, ligamentos e junturas quando menciona que significa e o que é significado são partes que afetam todas as coisas (Vitr. De arch. 1. Pref. 3 Cum in omnibus enim rebus; 2.2.2 cum res omnes coire nascique videantur).

A analogia entre retórica e arquitetura, porém, não se encerra aí. Vitrúvio prossegue dizendo que o arquiteto, obrigado a se exercitar em ambas as partes (utraque parte exercitatus, Vitr. De arch. 1. Pref. 3), deve somar talento (Vitr. De arch. 1. Pref. 3 ingenium) e disciplina (Vitr. De arch. 1. Pref. 3 disciplina), orientação que amplia os conhecimentos a serem dominados, como se lerá a seguir:

Itaque eum etiam ingeniosum oportet esse et ad disciplinam docilem. Neque enim ingenium sine disciplina aut disciplina sine ingenio perfectum artificem potest efficere. Et ut litteratus sit, peritus graphidos, eruditus geometria, historias complures noverit, philosophos diligenter audierit, musicam scierit, medicinae non sit ignarus responsa iurisconsultorum noverit, astrologiam caelique rationes cognitas habeat (De arch. 1. Pref. 3).

Assim, pois, convém também que ele [i.e., o arquiteto] seja talentoso e submisso à disciplina. Com efeito, o talento sem a disciplina e a disciplina sem o talento não podem fazer um artífice perfeito. Ele deve ser letrado, perito em desenho, conhecedor da geometria, conhecer várias histórias, ouvir diligentemente os filósofos, saber de música, não desconhecer medicina, saber dos artigos dos jurisconsultos, ter conhecimento de astrologia e das orientações do céu.

Também na retórica é exigido do orador o conhecimento de saberes extrínsecos ao objeto da técnica, o que se justifica pela arbitrariedade da soma entre matéria (res) e palavras (verba), sugerida na seguinte explanação ciceroniana:

125. Rerum enim copia uerborum copiam gignit; et, si est honestas in rebus ipsis, de quibus dicitur, exsistit ex re naturalis quidam splendor in uerbis. Sit modo is, qui dicet aut scribet, et institutus liberaliter educatione doctrinaque puerili et flagret studio et a natura adiuuetur et in uniuersorum generum infinitis disceptationibus exercitatus ornatissimos scriptores oratoresque ad cognoscendum imitandumque delegerit, ne ille haud sane quem ad modum uerba struat et illuminet a magistris istis requiret. Ita facile in rerum abundantia ad orationis ornamenta sine duce, natura ipsa, si modo est exercitata, delabitur (Cic. De Or. 3.31.125).

125. Portanto, a variedade de matérias gera a variedade de palavras; e, se nas próprias matérias existe honestidade, a partir delas surge um certo esplendor natural nas palavras. Que assim seja aquele que discursa ou escreve, disciplinado livremente desde menino; que seja tomado de boa vontade e seja ajudado pela natureza; que, versado nas infinitas discussões de todos os tipos, tenha se dedicado a conhecer e a imitar os mais refinados escritores e oradores a fim de não requerer mestres, e sim dispor e iluminar as palavras: assim é que a própria natureza, se for exercitada desse modo, facilmente será submetida, sem restrições, à abundância de matérias e mesmo aos ornamentos do discurso.

Em síntese, arquitetura e retórica têm em comum o signo, o que as coloca em relação de analogia. Mas não apenas isso: em ambas, a obra (opus; Cic. De or. 1.35.164; Vitr. De arch. 1. Pref. 1) é executada conforme o planejamento inicial, ou antes, conforme o domínio ou ciência (scientia; Cic. De Or. 1.3.9; Vitr. De arch. 1. Pref. 1) de princípios ou padrões organizados logicamente, donde a exigência de conhecimentos extrínsecos ao objeto de ambas por parte do artífice perfeito (Vitr. De arch. 1. Pref. 3 perfectum artificem) e do orador perfeito (Cic. De Or. 3.19.71; 21.80; 35.143). A analogia entre arquitetura e retórica, portanto, se dá não apenas entre objetos, mas também entre sujeitos.2 2 A utilização do termo sujeito aqui merece explanação, pois não recobre com propriedade (reconhecemo-lo) a noção de persona ou ἦθος que a retórica utiliza e a arquitetura infere na caracterização daquele que está preparado para empregar a técnica na elaboração da obra. O sujeito aqui é uma construção isenta de subjetividade (donde “orador ideal”, “artífice ideal”) porque atende à necessidade de formulação das regras técnicas. Isso quer dizer que o sujeito aqui existe em função do objeto, e não o oposto, como se poderia esperar. Este é propriamente o tema cuja investigação propomos neste trabalho.

Architectus, orator

Vitrúvio define a arquitetura como uma ciência ornada (ornata, Vitr. De arch. 1. Pref. 1) por outras disciplinas e saberes, sendo a obra o resultado da aplicação deles. Isso demanda do arquiteto o conhecimento teórico e o prático, o que faz da arquitetura não uma ciência contemplativa e sim prática, como atestado a seguir (grifo nosso):

Architecti est scientia pluribus disciplinis et variis eruditionibus ornata, [cuius iudicio probantur omnia] quae ab ceteris artibus perficiuntur. Opera ea nascitur et fabrica et ratiocinatione. Fabrica est continuata ac trita usus meditatio, quae manibus perficitur e materia cuiuscumque generis opus est ad propositum deformationis. Ratiocinatio autem est, quae res fabricatas sollertiae ac rationis proportione demonstrare atque explicare potest (Vitr. De arch. 1. Pref. 1).

A ciência do arquiteto é ornada por muitas disciplinas e por vários saberes, com cuja escolha tudo é realizado com base nas demais artes. Seu trabalho nasce da prática e da reflexão. A prática é a observação contínua e frequente do exercício, que é realizado com as mãos na matéria-prima, qualquer que seja o tipo necessário para o propósito do desenho. Por outro lado, a reflexão é o que pode demonstrar e explicar as coisas realizadas pelo alcance da destreza e da razão.

Se o arquiteto deve somar teoria e prática para a realização da obra, então seu domínio deve se estender a dois tipos de conhecimentos: os que lhe permitem refletir (ratiocinatione, Vitr. De arch. 1. Pref. 1) sobre a obra e os que lhe permitem concretizá-la (manibus perficitur e materia, Vitr. De arch. 1. Pref. 1). Caso conheça apenas os que lhe permitem refletir, não é arquiteto porque a obra não pode ser mera abstração; caso conheça apenas os que lhe permitem concretizá-la, não é arquiteto porque lhe falta autoridade (Vitr. De arch. 1. Pref. 2; cf. 6.2.4). Definida como ciência prática (scientia), sendo esse termo aqui tomado como sinônimo de técnica (artium, Vitr. De arch. 1.1.14), a arquitetura compartilha de saberes que o arquiteto deve conhecer medianamente e na proporção da necessidade (Vitr. De arch. 1.1.16; 3. Pref. 4).

Mais do que a incompletude de apenas um saber para a realização da obra arquitetônica, a justificativa para a necessidade do amplo conhecimento do arquiteto perfeito reside na concepção vitruviana de verdade. Concebida como essência das coisas, a verdade está oculta e necessita de esforço para ser observada (Vitr. De arch. 3. Pref. 1-2). Destarte, o artífice perfeito aceita duas responsabilidades: a primeira, de usar seu estudo, engenho e talento na composição da obra perfeita; a segunda, de produzir o esclarecimento e trazer a verdade para fora do interior das coisas (Vitr. De arch. 3. Pref. 3). Se isso não faz dele propriamente um sábio - porque, afinal, sua proficiência se restringe à aplicação de conceitos das mais diversas origens na elaboração de uma obra -, torna-o capaz de dissertar sobre sua arte e de explicitar seus critérios teóricos de elaboração porque o habilita a separar o verdadeiro do falso (Vitr. De arch. 3. Pref. 3; 6.2.4), o que é possível ser verificado no encerramento do Primeiro Livro do tratado vitruviano (grifo nosso):

17. Quibus vero natura tantum tribuit sollertiae, acuminis, memoriae, ut possint geometriam, astrologiam, musicen ceterasque disciplinas penitus habere notas, praetereunt offica architectorum et efficiuntur mathematici. Itaque faciliter contra eas disciplinas disputare possunt, quod pluribus telis disciplinarum sunt armati. Hi autem inveniuntur raro, ut aliquando fuerunt Aristarchus Samius, Philolaus et Archytas Tarentini, Apollonius Pergaeus, Eratosthenes Cyrenaeus, Archimedes et Scopinas ab Syracusis, qui multas res organicas, gnomonicas numero naturalibusque rationibus inventas atque explicitas posteris reliquerunt. 18. Cum ergo talia ingenia ab naturali sollertia non passim cunctis gentibus sed paucis viris habere concedatur, officium vero architecti omnibus eruditionibus debeat esse exercitatum, et ratio propter amplitudinem rei permittat non iuxta necessitatem summas sed etiam mediocris scientias habere disciplinarum, peto, Caesar, et a te et ab is, qui ea volumina sunt lecturi, ut, si quid parum ad regulam artis grammaticae fuerit explicatum, ignoscatur (Vitr. De arch. 1.1.17-18).

17. Os deveres dos arquitetos superaram e transformaram em matemáticos aqueles a quem, de fato, a natureza atribuiu inteligência, argúcia e memória, de maneira que eles possam ter conhecimento profundo da geometria, da astrologia, da música e das demais disciplinas. Assim, pois, eles podem examinar com facilidade essas disciplinas, porque estão armados com os dardos de vários saberes. É raro, porém, eles serem achados. Houve, no passado, Aristarco de Samos, Filolau e Arquitas de Tarento, Apolônio de Perga, Erastótenes de Cireneu, Arquimedes e Escopinas de Siracusa, os quais deixaram para a posteridade muitas coisas de mecânica e gnomônica,3 3 Vitrúvio elenca as três partes que compõem a arquitetura em Vitr. De arch. 1.3.1: a edificação, relativa à construção de prédios; a gnomônica, relativa à construção de relógios e a mecânica, relativa à construção de máquinas. Cada parte possui princípios próprios, constituindo gêneros particulares. Tais particularidades se evidenciam nas espécies de cada gênero, que se aplicam a diferentes obras. As espécies da edificação são os edifícios públicos, privados e religiosos; a gnomônica possui as espécies dos relógios de sol e os de água e a mecânica, as espécies de máquinas tractórias, acrobáticas e aéreas. Na retórica, os gêneros arquitetônicos encontram analogia nos gêneros de discurso - o deliberativo, o demonstrativo e o judiciário - também organizados em tríade e subdivididos em espécies, como se verificará ao final deste trabalho. descobertas e explicadas pelo número e pelas leis da natureza. 18. Por conseguinte, como tais talentos são concedidos por razão natural não indistintamente a todas as pessoas, mas sim a uns poucos homens, e o arquiteto de profissão deve ter sido exercitado em todos os saberes, e a razão, por conta da amplitude da tarefa, não permite ter conhecimentos técnicos amplos e próximos das necessidades, mas sim modestos, peço, ó César, de ti e daqueles que lerão estes volumes, que ignorem se algo tiver sido mal explicado à luz das regras da gramática.

Daí a diferença essencial entre o arquiteto e o filósofo - pois o arquiteto não deve apenas conhecer os quatro elementos, como ainda aplicá-los na elaboração da obra (Vitr. De arch. 8. Pref. 1-2; cp. 2. Pref. 5) - e entre o arquiteto e o construtor - pois o arquiteto não deve apenas aplicar os quatro elementos na elaboração da obra, como também conhecê-los e a tudo aquilo que eles podem gerar (Vitr. De arch. 6. Pref. 6). Renova-se, assim, a justificativa da necessidade da educação própria ao arquiteto, que é abrangente e deve ser adquirida o mais precocemente possível:

11. Cum ergo tanta haec disciplina sit, condecorata et abundans eruditionibus variis ac pluribus, non puto posse iuste repente profiteri architectos, nisi qui ab aetate puerili his gradibus disciplinarum scandendo scientia plerarumque litterarum et artium nutriti pervenerint ad summum templum architecturae. 12. Ac fortasse mirum videbitur inperitis hominibus posse naturam tantum numerum doctrinarum perdiscere et memoria continere. Cum autem animadverterint omnes disciplinas inter se coniunctionem rerum et communicationem habere, fieri posse faciliter credent; encyclios enim disciplina uti corpus unum ex his membris est composita. Itaque qui a teneris aetatibus eruditionibus variis instruuntur, omnibus litteris agnoscunt easdem notas communicationemque omnium disciplinarum, et ea re facilius omnia cognoscunt. Ideoque de veteribus architectis Pythius, qui Prieni aedem Minervae nobiliter est architectatus, ait in suis commentariis architectum omnibus artibus et doctrinis plus oportere posse facere, quam qui singulas res suis industriis et exercitationibus ad summam claritatem perduxerunt. 13. Id autem re non expeditur. Non enim debet nec potest esse architectus grammaticus, uti fuerit Aristarchus, sed non agrammatus, nec musicus ut Aristoxenus, sed non amusos, nec pictor ut Apelles, sed graphidos non inperitus nec plastes quemadmodem Myron seu Polyclitus, sed rationis plasticae non ignarus, nec denuo medicus ut Hippocrates, sed non aniatrologicus, nec in ceteris doctrinis singulariter excellens, sed in is non inperitus. Non enim in tantis rerum varietatibus elegantias singularis quisquam consequi potest, quod earum ratiocinationes cognoscere et percipere vix cadit in potestatem. 14. Nec tamen non tantum architecti non possunt in omnibus rebus habere summum effectum, sed etiam ipsi qui privatim proprietates tenent artium, non efficiunt, ut habeant omnes summum laudis principatum. Ergo si in singulis doctrinis singuli artifices neque omnes sed pauci aevo perpetuo nobilitatem vix sunt consecuti, quemadmodum potest architectus, qui pluribus artibus debet esse peritus, non id ipsum mirum et magnum facere, ne quid ex his indigeat, sed etiam ut omnes artifices superet qui singulis doctrinis adsiduitatem cum industria summa praestiterunt? (Vitr. De arch. 1.1.11-14).

11. Sendo, pois, tão importante disciplina ornada e enriquecida com muitos e diferentes conhecimentos, não julgo que o arquiteto possa adquirir experiência de modo correto de repente, e sim desde a juventude, ao subir as escadas das disciplinas nutrido com a ciência de muitas Letras e artes rumo ao templo maior da arquitetura. 12. Para os imperitos, talvez parecerá surpreendente que a natureza possa compreender tão grande número de doutrinas e a memória, retê-las. Contudo, tendo descoberto que todas as disciplinas possuem em comum a ligação e a comunicação entre as coisas, eles acreditarão que isso é facilmente possível. A disciplina universal é composta de seus membros, como um corpo só. Portanto, quem é instruído em vários conhecimentos desde o início da juventude verá em todas as Letras as mesmas notas e a comunicação de todas as disciplinas e por esse motivo conhecerá tudo com mais facilidade. Com efeito, entre os antigos arquitetos, Pítio - que planejou com nobreza o Templo de Minerva em Prieno - diz em seus Comentários que é conveniente que o arquiteto possa fazer, com todas as artes e doutrinas, mais do que aqueles que, com eficiência e treino, trouxeram grande reconhecimento a coisas singulares. 13. Isso não se deduz da realidade. O arquiteto não pode nem deve ser gramático, como foi Aristarco, mas não deve ser iletrado. Não deve ser músico, como Aristoxeno, mas não insensível. Não deve ser pintor, como Apeles, mas não inábil nem imperito; nem escultor como Mirão ou Políclito, mas não ignorante da arte escultórica; nem, mais uma vez, médico como Hipócrates, mas não desconhecedor da medicina; não deve ser o melhor em cada uma das demais doutrinas, mas não desinformado delas. Ninguém pode conseguir a perfeição em tamanha variedade de coisas, porque a duras penas se chega ao domínio da forma e da percepção do seu sistema. 14. Nem os arquitetos podem chegar à perfeição em todas as coisas, nem conseguem alcançar o ponto mais alto da glória aqueles que detêm o conhecimento de apenas uma das artes. Logo, se artífices isolados - e nem todos, mas poucos em todas as épocas - a duras penas conseguiram a excelência em cada doutrina, de que modo o arquiteto - que deve ter experiência em muitas artes - pode cumprir essa tarefa invulgar e grandiosa sem que elas lhes faltem, e sim que supere todos os artífices que, com todo o empenho, se sobressaíram em doutrinas específicas?

Do exposto, percebem-se não apenas os requisitos para a formação do modelo de arquiteto vitruviano (instrução em diversas áreas do conhecimento somada ao exercício da técnica), mas igualmente o próprio método pelo qual Vitrúvio adquire autoridade para falar. Da menção aos modelos de cada disciplina, é possível deduzir que a excelência do artífice pode ser verificada nos maiores expoentes delas, de maneira que se possa aprender deles o necessário. Não fosse isso, Pítio, Apeles, Aristoxeno, Mirão, Políclito e Hipócrates não seriam mencionados. Bastaria substituir modelos de artífices por habilidades compreendidas pela disciplina.

Nesse sentido, a autoridade de Vitrúvio para falar sobre a formação do modelo de arquiteto e demonstrar seu método é resultado do conhecimento adquirido com a filosofia epicurista de Lucrécio, com a correção linguística e a erudição de Varrão e com o método oratório de Cícero, como se verifica na passagem a seguir:

17. Item plures post nostram memoriam nascentes cum Lucretio videbuntur velut coram de rerum natura disputare, de arte vero rhetorica cum Cicerone, multi posterorum cum Varrone conferent sermonem de lingua latina, non minus etiam plures philologi cum Graecorum sapientibus multa deliberantes secretos cum his videbuntur habere sermones, et ad summam sapientium scriptorum sententiae corporibus absentibus vetustate florentes cum insunt inter consilia et disputationes, maiores habent, quam praesentium sunt, auctoritates omnes. 18. Itaque, Caesar, his auctoribus fretus sensibus eorum adhibitis et consiliis ea volumina conscripsi (Vitr. De arch. 9. Pref. 17-18).

17. Da mesma forma, muitos que vierem depois de nossa época serão vistos tratando sobre a natureza das coisas como se diante de Lucrécio, sobre a arte retórica com Cícero e muitos descendentes debaterão com Varrão sobre a língua latina. Não poucos filólogos,4 4 O termo philologi deve ser entendido aqui etimologicamente como qualificativo daqueles que se interessam voluntariamente pelo estudo. e sim vários, deliberando sobre muitas coisas, serão vistos dialogando com os sábios gregos. Em suma, as palavras florescentes dos escritores sábios, ainda que ausentes fisicamente, estão em nossas conversas e debates, possuindo maior autoridade do que se eles estivessem presentes. 18. Portanto, César, escrevi estes volumes apoiando-me nesses autores e com a admissão de suas explicações e concepções.

A menção ao método oratório de Cícero nos leva à relação entre arquiteto e orador. No De oratore, assim como no De architectura, o modelo de artífice tem como objetivo estabelecer parâmetros de exercício da técnica e mesmo delimitá-la. Ambos os tratados buscam prescrever os elementos que fazem da obra o resultado esperado da aplicação de uma formação teórica ampla e sólida. Cumpre lembrar, também, que, ao elencar Lucrécio, Varrão e Cícero entre seus modelos, Vitrúvio também pretende fornecer o exemplo tanto de artífice quanto dos parâmetros de exercício da técnica. Assim, tanto a oratória quanto a arquitetura podem ser definidas como ciências maiores - ou seja, um conjunto de conhecimentos amplo que extrapola os meios de concretização da obra -, mas também como preceitos técnicos estritos, que fazem com que uma técnica não se confunda com a outra.

Arquiteto e orador, contudo - e isso é previsível, dada a finalidade da obra de um e outro -, diferem no conhecimento de filosofia que devem possuir para o exercício da técnica. Mesmo que deva empregar conhecimentos de fisiologia na solução de problemas práticos de execução da obra, como a condução da água (Vitr. De arch. 1.7), em nenhuma passagem do De architectura o arquiteto é designado sapiens ou doctus - ambos qualificativos do filósofo. Por outro lado, no De oratore ciceroniano, o esforço de se vincular ética e eloquência permite a alternância entre sapiens, doctus e eloquens como qualificativos do orador (Cic. De or. 2.5 apud Vasconcelos, 2000VASCONCELOS, B. A. (2000). Educação oratória no De oratore de Cícero. Letras Clássicas 4, p. 179-190., p. 185). Na oratória, tal alternância tem como objetivo essencial eliminar a cisão contraditória entre razão e palavra, mas não apenas isso: o orador perfeito deve estar habilitado a tratar de questões definidas (causae; quaestiones finitae) e de abstratas (quaestiones infinitae), sendo essas últimas concernentes, sobretudo, aos filósofos (Vasconcelos, 2000, p. 186). Com isso, o orador ciceroniano carrega para a vida pública o conhecimento filosófico das coisas, superando a definição comum do “operário de língua célere e exercitada” (Cic. De or. 1.83 operarios lingua celeri et exercitata) da tradição sofística.

Em resumo, arquitetura e oratória são ciências práticas que exigem do artífice a formação prévia e vasta até o necessário em diferentes áreas do saber requeridas para execução da obra. A educação do artífice confere-lhe autoridade prescritiva e destreza na execução da obra, de modo que também sirva, ao mesmo tempo, para delimitar o campo de atuação do artífice e compor os princípios elementares da técnica. Os preceitos filosóficos, sejam eles éticos ou fisiológicos, tornam-se essenciais para ambos os artífices, porque fazem a mediação entre prática e teoria.

O opus na arquitetura e na retórica

A relação entre teoria e prática impõe à obra a necessidade da adequação, isto é, da correspondência entre os elementos internos e os fundamentos da produção da obra, sendo essa correspondência chamada de aptum, decorum ou πρέπον pelos antigos. Isso pode ser depreendido do trecho do De oratore a seguir, em que Cícero não apenas define o que é a obra retórica (oratio), como ainda os elementos mesmos de que a técnica está conformada:

17. Est enim et scientia comprehendenda rerum plurimarum, sine qua uerborum uolubilitas inanis atque inridenda est, et ipsa oratio conformanda non solum electione sed etiam constructione uerborum, et omnes animorum motus, quos hominum generi rerum natura tribuit, penitus pernoscendi, quod omnis uis ratioque dicendi in eorum, qui audiunt, mentibus aut sedandis aut excitandis exprimenda est. Accedat eodem oportet lepos quidam facetiaeque et eruditio libero digna celeritasque et breuitas et respondendi et lacessendi subtili uenustate atque urbanitate coniuncta (Cic. De or. 1.5.17).

17. Deve-se, pois, compreender a ciência de coisas diversificadas, sem a qual a variedade de palavras é insignificante e ridícula; aliás, o próprio discurso deve ser formado não apenas pela eleição como ainda pela construção dos enunciados; todas as paixões da alma que a natureza conferiu à espécie humana devem ser conhecidas em profundidade, pois toda a força e sentido da expressão devem estar indicadas na provocação e no apaziguamento da mente daqueles que ouvem. Convém somar a isso certa esperteza, suavidade, erudição, rapidez e precisão ao responder e atacar dignas do homem livre, adicionadas a uma sutil harmonia e à urbanidade.

A noção de aptum também pode ser depreendida da menção vitruviana ao opus, cuja aplicação se dá, no geral, a qualquer obra e, em particular, à construção arquitetônica:

Igitur in hac re Pytheos errasse videtur, quod non animadvertit ex duabus rebus singulas artes esse compositas, ex opere et eius ratiocinatione, ex his autem unum proprium esse eorum qui singulis rebus sunt exercitati, id est operis effectus, alterum commune cum omnibus doctis, id est rationem (Vitr. De arch. 1.15).

Assim, pois, parece que, nesse assunto, Pítias errou por não ter percebido que as artes são compostas de duas coisas singulares: a obra e sua teoria. Contudo, dessas coisas, uma é própria daqueles que se exercitaram em coisas específicas, a saber, a execução da obra; a outra é comum a todos os homens doutos, a saber, a teoria.

Entende-se, pois, e claro está mais uma vez, que a obra seja produto da teoria, o que leva a supor a semelhança ou a identidade também entre os procedimentos de sua elaboração. Eles se manifestam tanto exteriormente quanto interiormente à obra, o que significa dizer que a afetam na elaboração, na organização ou disposição dos elementos e em sua materialidade. Passaremos a tratar desses elementos da obra tendo em vista as relações de analogia entre retórica e arquitetura.

Inventio, ordinatio

Definida como colocação adequada dos membros (Vitr. De arch. 1.2.2 modica membrorum operis commoditas), a ordenação (ordinatio) trata não apenas das partes da obra, como ainda da proporção de cada parte dela em relação ao todo. É a primeira etapa da elaboração da obra, porque a medida deve ser estabelecida antes mesmo da construção da obra e visa a não confundir os observadores (Vitr. De arch. 6.2.5). A ordenação é matemática e musical, porque busca a harmonia das partes. Além disso, toma como referência o corpo humano, graças ao qual Vitrúvio define os conceitos de proporção e simetria (Vitr. De arch. 3.1.1):

Proportio est ratae partis membrorum in omni opere totiusque commodulatio, ex qua ratio efficitur symmetriarum. Namque non potest aedis ulla sine symmetria atque proportione rationem habere compositionis, nisi uti ad hominis bene figurati membrorum habuerit exactam rationem (Vitr. De arch. 3.1.1).

A proporção é a estrutura comum à parte sólida dos membros da obra inteira, a partir da qual se origina o sistema de simetrias. Com efeito, nenhuma edificação pode ser calculada sem a simetria e sem a proporção se não tiver a exata medida dos membros de um ser humano de boa aparência.

Por conta disso, as formas geométricas são desenhadas a partir do corpo humano: o umbigo e as pontas dos dedos formam círculos; o espaço medido da ponta dos pés ao alto da cabeça do homem adulto forma o retângulo. Do corpo humano também procede o sistema de medidas: dedo, pé, palmo, côvado. Dez é o número perfeito, porque são dez os dedos das mãos e dez são os dedos dos pés (Vitr. De arch. 3.1.3-9). O mesmo sucede na criação das ordens: a proporção, a solidez e a elegância da ordem dórica são medidas pelo corpo masculino; a jônica e a coríntia, pelo corpo feminino (Vitr. De arch. 4.1.6-8). Da projeção da voz humana deriva a disposição das caixas de ressonância no teatro, bem como a dos vasos de bronze e cerâmicos (Vitr. De arch. 5.1.1-8). Por fim, as condições do clima - o equilíbrio entre calor e frio para o corpo humano - determinam a disposição das ruas e demais espaços públicos e privados da cidade, a orientação dos templos religiosos e a construção de aquedutos (cf. Vitr. De arch. 1.4.12; 1.6.1; 1.6.3-7; 8. Pref. 2).

A explicação da relação entre corpo humano e ordenação da obra arquitetônica se fundamenta na própria natureza: o corpo humano realiza, individualmente, a harmonia das coisas do mundo em escala maior: “todas as coisas”, diz Vitrúvio, “parecem provir e serem formadas de elementos em concordância, os quais teriam sido divididos pela natureza em gêneros infinitos” (De arch. 2.2.2 Ex his ergo congruentibus cum res omnes coire nascique videantur et hae in infinitis generibus rerum natura essent disparatae). Nesse pensamento, os elementos essenciais das coisas existem naturalmente e podem ser definidos pelas diferenças entre seus gêneros.

Na invenção retórica, a proporção (mais ou menos), a posição (antes ou depois; causa e consequência) e o tamanho (maior ou menor; gênero e espécie) são as categorias em que se dividem os tópicos (τοπικὴ; locus), definidos por Cícero como a matriz do argumento (Cic. Top. 8 locum esse argumenti sedem; De Or. 2.39.162 sedes et quasi domicilia omnium argumentorum). Se os tópicos ocupam o primeiro lugar na invenção ainda é matéria em discussão (cf. Reinhardt, 2003REINHARDT, T. (ed.) (2003). Cicero’s Topica. Oxford, Oxford University Press., p. 5), que não poderemos empreender aqui. Para o momento, basta dizer que Cícero insere os tópicos como elementos essenciais para a invenção retórica, dado o fato de que o orador, refletindo sobre o estado da causa, deve selecionar os tópicos que melhor se coadunam com ela (Cic. Or. 44-46; Reinhardt, 2003, p. 6).

Em comum com a arquitetura, a invenção retórica trata do achamento do que já existe na natureza - daí a ideia de inventário, que é palavra derivada de inventio e cabe à ideia mesma de tópico. Com efeito, os tópicos não deixam de ser um cabedal organizado em categorias a partir das quais os argumentos são elaborados. São, na fala de Antônio no De Oratore (Cic. De Or. 2.117), as fontes que o orador deve buscar em vez dos riachos, que são mais caudalosos e aos quais recorrem apenas os homens de natureza inepta: a metáfora para a definição de tópico também recorre à natureza a fim de ser materializada.

Dispositio

Na releitura da metáfora platônica sobre a mesa e o artífice, Flusser pondera o duplo movimento da criação da obra: se, de um lado, o carpinteiro impõe a forma à matéria, de outro, deforma a ideia de mesa quando distorce a madeira (Flusser, 2017FLUSSER, V. (2017). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, Ubu Editora. (Reimpressão da 1ed, 2007), p. 24). “Informar”, aí, implica não apenas “preencher formas”, como também “tornar o real aparente”.

Ora, a dicotomia platônica, reinterpretada por Flusser, já se encontra em Vitrúvio. Sendo a disposição (dispositio, Vitr. De arch. 1.2.2) definida como a correlação entre o preenchimento das formas e o efeito estético disso derivado, o termo que Vitrúvio utiliza para as espécies de disposição é ideae: a forma exterior que a obra assume uma vez colocadas as coisas adequadamente. À disposição, portanto, concernem o desenho da obra, a projeção do edifício no espaço, o tamanho e a cor das formas em relação ao todo e a harmonia das partes em relação ao eixo central. No tratado vitruviano, a disposição é derivada da ordenação, sendo essa última tomada quase como sinônimo de reflexão: a ordenação permite explicar o que não parece claro e dá a conhecer a novidade, que só pode ser formulada pela reflexão.

Exemplos dessa sucessão aparecem no início de cada seção destinada à explanação sobre os tipos de edifício. A escolha de um lugar de clima ameno, distante de pântanos e que receba a luz solar adequada antecede a construção das cidades e o levantamento de muralhas e fortalezas; a direção dos ventos deve ser estudada antes do alinhamento das ruas, do posicionamento do fórum, das casas e dos templos; o mesmo deve ser feito com relação à madeira, com a qual as casas são construídas, com a qualidade da terra, com que se fazem os tijolos, com as areias, a cal e as pedras na construção e na demolição de estruturas e paredes; sem discernir os tipos de colunas, sem ter em conta as diferenças entre o teatro grego e o romano, sem considerar a influência do calor e do frio não se constroem colunas, nem teatros, nem banhos públicos; sem o conhecimento do regime de tempestades não se constroem portos e ainda outras obras.

A concepção da dispositio como consequência da inventio e como preenchimento de formas, compositio, é também comum à retórica (Cic. De Or. 1.142 reperire primum quid diceret, deinde inuenta non solum ordine sed etiam momento quodam atque iudicio dispensare atque componere).5 5 De fato, assim como na arquitetura, a separação entre invenção e disposição retórica é didática, pois o argumento deve ser elaborado e disposto no discurso simultaneamente. Mesmo que ambas sejam as responsáveis pela coerência interna do discurso, a invenção, porém, não é evidente para a audiência, enquanto a disposição, a elocução e a ação a tornam sensível (Ferreira apud Figueiredo & Ferreira, 2016, p. 47). A matéria é disposta no lugar (ordine) e no tempo (momento), obedecendo ao critério da coerência (iudicio), do que derivam suas partes - exórdio, narração, partição, confirmação, refutação e peroração. A característica dessas partes não é apenas produzir a persuasão pela promoção da sequencialidade dos argumentos, mas igualmente conferir unidade e proporção à obra. Afinal, uma narração demasiado longa enfraquece a argumentação; o exórdio e a peroração descomedidos depõem contra a habilidade do orador, que não demonstrará saber os meios de captar a benevolência da audiência nem comovê-la pelo apelo às emoções.

A eurritmia (eurytmia), a comensurabilidade (symmetria) e o decoro (decorum), fazem pela obra arquitetônica o mesmo que as partes da retórica. Isso ocorre porque estão relacionadas com as partes da disposição - icnografia (ichnographia), ortografia (orthographia) e cenografia (scaenographia), que dão tridimensionalidade à obra. Enquanto essas consistem no desenho das formas, na adequação das formas à disposição da obra como um todo e na perspectiva das linhas em relação ao centro, aquelas determinam, respectivamente, a relação entre altura e largura, a espessura de colunas e demais estruturas e a conveniência de ornamentos para não ferir a solenidade do edifício (Vitr. De arch. 1.2.2-7; 6.2.5). Suas características essenciais são tanto mediar a elegância e o desempenho correto da(s) função(ões) da obra quanto compor uma edificação resistente. Na prática, é possível dizer que essas partes, como extensões da disposição, são as responsáveis por “tornar o real aparente”, pois seu efeito estético é inequívoco.

Elocutio, distributio

A distribuição (distributio) e a elocução (elocutio) são o resultado do cálculo de materiais que tornam a obra factível. Na retórica, esse cálculo, proveniente da escolha do vocabulário, resulta especificamente no ornato, de maneira que esse confira luz ao discurso (Cic. De Or. 3.25). Daí as qualidades próprias do estilo do orador - “encanto” em Isócrates, “precisão” em Lísias, “vivacidade” em Hipérides, “clamor” em Ésquines, “força” em Demóstenes etc. (Cic. De Or. 3.28-31) -, que denotam traços particulares de sua expressão.

Na arquitetura, a distribuição se aplica à dignidade e ao interesse do proprietário e à localização do edifício, o que determina os materiais de que será composto e o estilo que vai apresentar. Assim, as propriedades urbanas não terão o mesmo estilo de propriedades rurais, o mesmo sucedendo entre as residências de homens poderosos e humildes e entre construções públicas ou privadas. O estilo, seja na arquitetura seja na retórica, permite comparações - donde as qualidades, atributos, exemplos e modelos.6 6 Excetuando-se a descrição das ordens dórica, jônica e coríntia, Vitrúvio se detém pouco no ornato. Prefere concentrar-se na funcionalidade do traçado das ruas, na disposição dos edifícios, no estabelecimento das comensurabilidades e nos materiais construtivos. Dessa forma, seu trabalho é catalogar os tipos de construções e elencar materiais mais adequados para execução da obra - ou seja, em seu tratado a solidez e a funcionalidade ocupam mais espaço do que a beleza. Por isso, ficam em aberto questões relativas ao equivalente arquitetônico das figuras e tropos retóricos.

Do orador, espera-se a leitura de poetas e outros oradores para aprimorar o estilo, de modo que, em seus discursos, esse orador use uma linguagem correta e elegante sem incorrer na afetação (Cic. De Or. 3.39). Do arquiteto, não buscar materiais que não sejam comuns à região onde a edificação será erguida, para evitar gastos desnecessários com transporte e solucionar as carências que a construção venha a sofrer nesse sentido (Vitr. De arch. 1.2.8-9).

Claro está, porém, que elocutio e distributio não são a mesma coisa: sua analogia reside no respeito ao decoro pertinente a cada técnica, o que significa dizer que o decoro, na retórica, deve ser obtido com o vigor da obra, isto é, com a colocação de palavras (ordo), com o tamanho da oração (iunctura) e com o ritmo (numerus) (Quint. Inst. or. 9.4.22); já na arquitetura, o decoro deve ser obtido antes mesmo da construção, com a escolha da localização e com o planejamento dos custos da obra. Por essa razão, Vitrúvio dedica à distributio boa parte de seu tratado, sobretudo ao introduzir a explicação sobre os tipos de edificação e sobre a interferência dos fenômenos naturais (livros 2, 4, 6, 7 e 9), da posição dos astros (livro 8) e do funcionamento das máquinas (livro 10) em relação aos materiais e às demais condições em que a obra é construída. Eles compõem um conjunto de conhecimentos a partir dos quais o arquiteto forma um repertório básico de materiais e experiências necessárias para dar à obra solidez, funcionalidade e beleza, sendo esses propriamente o objetivo particular da técnica.

Gêneros da técnica

Considerada a relação de analogia entre retórica e arquitetura, essencialmente alicerçada na dicotomia entre significante e significado, o exercício (ou antes, a prática) incide sobre as partes de cada técnica para assim efetuar seu objetivo particular.

Na retórica, res e verba repartem-se nos officia oratoris de maneira que a inventio afeta a res; a elocutio, os verba e a dispositio, a ambos (Lausberg, 1967LAUSBERG, H. (1967). Manual de retórica literária. Vol. 2. Madrid, Gredos., § 454). Cada parte do discurso, portanto, é submetida a regras que direcionam a matéria no sentido de produzir a persuasão. Atendendo a essa finalidade, o orador utiliza expedientes distintos, que apontam ora para o intelecto, ora para as afecções da audiência (Cic. De Or. 2.27.115; cf. 2.28.121; 2.29.128; 2.77.310). Assim, na acomodação do discurso às regras da inventio, é conveniente (aptum; decorum) aplicar esses expedientes às partes do discurso de forma a captar a benevolência logo no exórdio, instruir o ânimo na narração e na confirmação e influenciar o ânimo do público no exórdio e na peroração - muito embora se reconheça que esse último recurso seja objeto de atenção, na verdade, do discurso como um todo (Lausberg, 1963, § 256-258).

Imbuído desses conhecimentos, o orador os emprega em categorias discursivas que dizem respeito ao papel do ouvinte, ao conteúdo do discurso, ao tempo considerado, ao propósito do discurso e ao estilo (Pernot, 2000PERNOT, L. (2000). Aristóteles e seus precursores. Para uma arqueologia do discurso deliberativo. Letras Clássicas 4, p. 63-76., p. 65). Daí procedem os gêneros da retórica, sistematizados já na Retórica a Alexandre e seguidos por Cícero, mesmo quando definidos por perífrase:

Tabela 1:
Definição dos gêneros da retórica (Fonte: Scatolin, 2009SCATOLIN, A. (2009). A invenção no Do orador de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., p. 37 adap.)

Como atividade pública, a oratória previa, para o discurso judiciário, o tribunal como cenário; para o deliberativo, a assembleia e, para o demonstrativo, outros espaços, incluindo-se aí os cenários dos demais gêneros de discurso. O conteúdo também variava, em conformidade com o cenário - o objetivo do discurso judiciário era acusar ou defender; o do deliberativo, exortar ou dissuadir e o do demonstrativo, elogiar ou censurar.

Na arquitetura, de maneira semelhante, significat e significatur repartem-se na architecti scientia de modo que a ordinatio afete o significatur, pois a medida da obra deve ser estabelecida antes de sua construção; a distributio afete o significat em conformidade com a definição vitruviana de estilo e a dispositio afete a ambos pelas noções de eurritmia, comensurabilidade e decoro que mencionamos acima. Essas partes são empregadas nos gêneros de obra, que consideram espécies e subespécies conforme as finalidades (Vitr. De arch. 1.3.1; 9.8.15; 10.1.5-6):

Tabela 2:
Gêneros, espécies, subespécies e finalidades da arquitetura

Note-se, porém, que as categorias discursivas não encontram equivalente na arquitetura senão pelo número, decerto porque, nessa, pelas partes mesmas de que é composta, não entram em jogo o papel do destinatário da obra e o tempo considerado. Por conta disso, enquanto o orador deve cativar, mover e ensinar a audiência (conciliare, commouere, docere),7 7 Optamos pela terminologia ciceroniana adotada no De Oratore (conciliare commouere docere; De Or. 2.27.115) em contraste com a terminologia que o mesmo Cícero utiliza em outras obras suas (Br. 197 ff.; Op. gen. or. 3), nas quais a substituição de commouere por delectare enfatiza o peso do estilo sobre a atividade do orador (cf. Montefusco, 1994). De acordo com essa terminologia, conciliare e commouere opõem um elemento patético ao elemento racional de docere (De Or. 2.27.114; 2.52.178), a partir do que entendo a enumeração das virtudes do aconselhador e do aconselhado nas Ep. ad Caes. Essa enumeração serve, ao mesmo tempo, para forjar o caráter do orador (effingere mores oratoris) e para expressar o caráter do cliente (exprimere mores), o que estabelece a fides (fides facere) ou a confiança necessária para a persuasão (cf. De Or. 2.43.182-184). cabe ao arquiteto orientar a construção da obra, de maneira que essa apresente solidez (firmitas), funcionalidade (utilitas) e beleza (venustas), como se verifica na passagem a seguir:

2. Haec autem ita fieri debent, ut habeatur ratio firmitatis, utilitatis, venustatis. Firmitatis erit habita ratio, cum fuerit fundamentorum ad solidum depressio, quaque e materia, copiarum sine avaritia diligens electio; utilitatis autem, <cum fuerit> emendata et sine inpeditione usus locorum dispositio et ad regiones sui cuiusque generis apta et conmoda distributio; venustatis vero, cum fuerit operis species grata et elegans membrorumque commensus iustas habeat symmetriarum ratiocinationes. (Vitr. De arch. 1.3.2)

2. Todas essas coisas devem ser realizadas de modo que se verifiquem os critérios da solidez, da funcionalidade e da beleza. Verificar-se-á o critério da firmeza quando houver a escavação dos alicerces até o fundo da terra e a escolha cuidadosa da quantidade de cada material sem restrição; o da funcionalidade, por sua vez, quando houver um arranjo do uso dos espaços correto e sem interdição, bem como a distribuição prática e adequada de cada tipo de obra às localidades; por fim, o da beleza quando o aspecto da obra for gracioso e elegante, e a medida das partes tiver a adequação justa das simetrias.

Completa-se, assim, o quadro geral da analogia entre as instituições da oratória e da arquitetura. De fato, essa analogia se verifica na definição do artífice, dos gêneros e partes das técnicas e dos fins de cada uma delas. Corresponde, em larga medida, a uma tentativa de apresentação da técnica como uma linguagem, cujos critérios de descrição foram estabelecidos tanto pela Academia de Platão quanto pela doutrina pitagórica. Graças a essa linguagem, o signo torna possível a convergência entre os discursos da arquitetura e da retórica, pois se manifesta como “superação” da natureza - posto que é passível de interpretação - em proveito do cálculo técnico/artístico (diremos hoje design) de que ambos os discursos fazem uso.

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  • VASCONCELOS, B. A. (2000). Educação oratória no De oratore de Cícero. Letras Clássicas 4, p. 179-190.
  • 1
    Todas as traduções latinas apresentadas são de responsabilidade do autor deste trabalho. Utilizamos o texto vitruviano estabelecido na edição de Krohn (1912KROHN, F. (ed.) (1912). Vitruvius Pollio. On Architecture. Lipsiae, Teubner.).
  • 2
    A utilização do termo sujeito aqui merece explanação, pois não recobre com propriedade (reconhecemo-lo) a noção de persona ou ἦθος que a retórica utiliza e a arquitetura infere na caracterização daquele que está preparado para empregar a técnica na elaboração da obra. O sujeito aqui é uma construção isenta de subjetividade (donde “orador ideal”, “artífice ideal”) porque atende à necessidade de formulação das regras técnicas. Isso quer dizer que o sujeito aqui existe em função do objeto, e não o oposto, como se poderia esperar.
  • 3
    Vitrúvio elenca as três partes que compõem a arquitetura em Vitr. De arch. 1.3.1: a edificação, relativa à construção de prédios; a gnomônica, relativa à construção de relógios e a mecânica, relativa à construção de máquinas. Cada parte possui princípios próprios, constituindo gêneros particulares. Tais particularidades se evidenciam nas espécies de cada gênero, que se aplicam a diferentes obras. As espécies da edificação são os edifícios públicos, privados e religiosos; a gnomônica possui as espécies dos relógios de sol e os de água e a mecânica, as espécies de máquinas tractórias, acrobáticas e aéreas. Na retórica, os gêneros arquitetônicos encontram analogia nos gêneros de discurso - o deliberativo, o demonstrativo e o judiciário - também organizados em tríade e subdivididos em espécies, como se verificará ao final deste trabalho.
  • 4
    O termo philologi deve ser entendido aqui etimologicamente como qualificativo daqueles que se interessam voluntariamente pelo estudo.
  • 5
    De fato, assim como na arquitetura, a separação entre invenção e disposição retórica é didática, pois o argumento deve ser elaborado e disposto no discurso simultaneamente. Mesmo que ambas sejam as responsáveis pela coerência interna do discurso, a invenção, porém, não é evidente para a audiência, enquanto a disposição, a elocução e a ação a tornam sensível (Ferreira apud Figueiredo & Ferreira, 2016FIGUEIREDO, M. F.; FERREIRA, L. A. (2016). A perspectiva retórica da argumentação: etapas do processo argumentativo e partes do discurso. ReVEL 14, n. 12, p. 44-59., p. 47).
  • 6
    Excetuando-se a descrição das ordens dórica, jônica e coríntia, Vitrúvio se detém pouco no ornato. Prefere concentrar-se na funcionalidade do traçado das ruas, na disposição dos edifícios, no estabelecimento das comensurabilidades e nos materiais construtivos. Dessa forma, seu trabalho é catalogar os tipos de construções e elencar materiais mais adequados para execução da obra - ou seja, em seu tratado a solidez e a funcionalidade ocupam mais espaço do que a beleza. Por isso, ficam em aberto questões relativas ao equivalente arquitetônico das figuras e tropos retóricos.
  • 7
    Optamos pela terminologia ciceroniana adotada no De Oratore (conciliare commouere docere; De Or. 2.27.115) em contraste com a terminologia que o mesmo Cícero utiliza em outras obras suas (Br. 197 ff.; Op. gen. or. 3), nas quais a substituição de commouere por delectare enfatiza o peso do estilo sobre a atividade do orador (cf. Montefusco, 1994MONTEFUSCO, L. C. (1994). Aristotle and Cicero on the Officia Oratoris. In: FORTENBAUGH, W. W.; MIRHADY, D. C.. Peripatetic rhetoric after Aristotle. New Jersey, Transaction Publishers, p. 66-94.). De acordo com essa terminologia, conciliare e commouere opõem um elemento patético ao elemento racional de docere (De Or. 2.27.114; 2.52.178), a partir do que entendo a enumeração das virtudes do aconselhador e do aconselhado nas Ep. ad Caes. Essa enumeração serve, ao mesmo tempo, para forjar o caráter do orador (effingere mores oratoris) e para expressar o caráter do cliente (exprimere mores), o que estabelece a fides (fides facere) ou a confiança necessária para a persuasão (cf. De Or. 2.43.182-184).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2018
  • Aceito
    10 Jan 2019
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