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A Gramática de Artur Lescher

Artur Lescher's Grammar

Resumo

O artigo visa contribuir para a caracterização da obra ou imaginário artístico de Artur Lescher. Destaca que a pureza de suas formas resulta de estruturas não-compositivas, embora integre sua gramática, elementos de tensão, tanto entre materiais em uma mesma obra, quanto entre as obras uma vez dispostas na galeria. Procura associar, ainda, essa gramática a uma semântica, relacionando-a ao imaginário infantil, pois algumas de suas formas reenviam a brinquedos antigos, enquanto outras, à ideia de repetição, própria ao jogo. Face essa obra de matriz construtiva, que se abre, contudo, à alegoria, o fruidor é instado a desentranhar o enigma da imagem, no intento de aplacar a inquietude que resulta daquilo que, sendo familiar é também estranho (Das Unheimliche). É nesse aspecto que reside o poder de negatividade, de crítica social ou política de sua arte.

palavras-chave:
Artur Lescher; arte brasileira; arte construtiva, gramática; alegoria

Abstract

The article aims at contributing to the characterisation of the works or artistic imagery of Artur Lescher. It highlights the purity of its forms that results from non-compositional structures while integrating in its grammar elements of tension, both between materials in the same work and among the works in the gallery they are once arranged. It also associates this grammar to semantics, relating his works to the child's imagination, since some of its forms refer back to old toys, while in others refer to the idea of repetition, to the game itself. Given this array of constructive work that leads, however, to the allegory, the spectator is asked to unravel the puzzle image, in an attempt to quell the unrest that results from what is also familiar and strange to (Das Unheimliche). It is in this aspect that the power of negativity, social or political criticism of his art resides.

keywords:
Artur Lescher; Brazilian art; constructive art, grammar; allegory


Procurarei ordenar impressões amealhadas nas exposições de Artur Lescher de 1986 a 2013, no intento de contribuir para a caracterização de sua obra ou imaginário artístico. De início, recordo depoimento do artista no qual dizia que há em seus trabalhos, quando os considera em conjunto, sem sobra ou resto, "uma gramática"1 1 . LESCHER, Artur. Artur Lescher. In: Documenta Vídeo Brasil; s/d. Enciclopédia Itaú Cultural Artes Vídeos, 2005 (disponível em www.itaucultural.org.br.). Cf., igualmente, entrevista do artista em: Artur Lescher e o seu pensamento pantográfico na galeria Nara Roesler em São Paulo. Entrevista a Camila Belchior e Lívia Debbané. In: Banboo: plataforma: site, mídias sociais e revista impressa, 27/08/2013 (disponível em www.banboonet.com.br.). . Sem prescrever, tentarei caracterizá-la recorrendo quando necessário a artistas com os quais Lescher respira ar de família, para no jogo de suas semelhanças e diferenças, evidenciar a singularidade dessa gramática.

São evidentes no artista design e desígnio próprios. Seus trabalhos, intento e traço, são claros, limpos, de boa forma - de gestalt cristalina - na tradição da arte construtiva. De seus projetos, executados com precisão arquitetural, resultam formas mínimas, exatas, quase irredutíveis, sem excesso, ornato ou adorno, em diversos materiais. Sem o intuito de reduzi-las a epigonismo, haja vista que essas formas são o avesso de todo maneirismo ou efeito fácil, pois nada nelas é efeitismo, é possível situá-las - no meio artístico no Brasil - face à arte concreta; ou, mais genericamente, à arte construtiva dos anos 1950 e 1960 que aliou a experimentação artística ao primado da construção, herdados de Max Bill e Piet Mondrian. Formou-se no país, desde então, uma tendência construtiva na arte, como se sabe, que reuniu artistas tão diversos como os do Grupo Ruptura, de 1953, como Hércules Barsotti, Hermelindo Fiaminghi, Judith Lauand, ou Mauricio Nogueira Lima; e do Grupo Frente, de 1955, que se desdobraria na arte neoconcreta de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Reinaldo Jardim, Franz Weissmann ou Amílcar de Castro. Recorde-se ainda que a esses grupos de São Paulo e Rio de Janeiro, somou-se, no curso do tempo, na constituição dessa linhagem construtiva da arte, artistas tão diversos como Lygia Pape, que integrou o movimento neoconcreto, de 1959, e Waltércio Caldas ou Carmela Gross, que nos anos 1970 aproximaram a arte construtiva tanto da pop art como da conceptual art.

É possível, portanto, situar Artur Lesher (sem h, nele, significante desnecessário, puro gasto a fundo perdido como já aludiu outro Arthur) nessa tradição construtiva; mas com o senão de que sua arte não é concreta, neoconcreta, tampouco popcreta, lembrando o artifício dessas taxionomias de viés positivista, defendidas no calor da hora vanguardista por artistas e críticos com régua ou pena em riste2 2 . NESTROVSKI, Arthur. Silêncio e matéria. In: Artur Lescher. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 15. . Tampouco, nada contribui dizê-lo minimalista, para evocar outro ismo, embora em algumas obras suas haja seriações (como nas de Luiz Sacilotto, ou nas primeiras obras de Waldemar Cordeiro ou Hermelindo Fiaminghi); porque mesmo quando a forma matricial em Lescher é cubo, caixa ou cilindro - como, nesse último caso, em Armadilha para Baby [fig. 1] de 2002 - o efeito não é o da repetição mecânica de uma mesma unidade como ocorre nas faixas, caixas, lâmpadas ou tijolos de Frank Stella, Donald Judd, Dan Flavin, ou Carl André, respectivamente. Pois a seriação de unidades idênticas, dispostas a intervalos regulares, marca da mininal art, produz como efeito a monotonia; enquanto as formas de Lescher surpreendem pelo ineditismo de suas configurações, em função de uma espécie de détourne ou desvio, resultante da produção de tensão, como veremos, em formas tão concisas. Além disso, essas formas não se limitam a ostentar sua própria materialidade como certa arte minimal que, segundo alguns críticos teria assassinado a metáfora. Porque perante suas formas puras o fruidor não vive a experiência da assemia, enquanto tabula rasa do sentido, mas, ao contrário, a do fluxo incessante de significação, no sentido da alegoria. Não se pode afirmar, também, que sua obra seja conceitual, uma vez que sua materialidade não se reduz à condição de suporte sensível para a veiculação de uma ideia, seja sobre a própria arte como em Ad Reinhardt ou Joseph Kosuth; sobre o espaço da natureza ao modo de Michael Hezer, ou Robert Smithson; sobre a cidade, como em Daniel Buren ou Christo; sobre a mitologia do artista ao modo de Joseph Beuys; ou, por fim, sobre o comportamento, no sentido existencial ou contracultural, como em Yoko Ono ou o grupo Fluxus.

Figura 1:
Armadilha para baby, 2002. Porcelana e madeira, 250 x 90 X 9 cm

É evidente, no entanto, que as obras de Lescher possuem algo de minimal se tomamos o termo como formas elementares - como osso, só essência. Pois são formas mínimas, como dizíamos, em razão de sua limpidez ou inteireza que adquirem, nele, dimensão ética. Em outros termos, há em suas obras, como em artistas aparentados, uma imbricação entre os planos ético, estético e técnico que remonta, vale frisar também aqui, ao projeto moderno da arte construtiva. Por ora, basta destacar, no entanto, que suas formas são puras, na palavra de ordem das vanguardas históricas, no sentido de que nelas "Il n'y a point de détails dans l'exécution", como afirmava Paul Valéry a propósito do arquiteto Eupalinós3 3 . VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o Arquiteto. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996, p. 99. . Insisto: sua obra não é maneirista porque não busca o procedimento meramente eficaz; mas essencialista, posto que Lescher firma fé em forma sem resto.

Só siso engendra essa gramática de formas limpas ou polidas. Nelas não se veem, muita vez, emendas e tampouco composição ou hipotaxe, pois não há subordinação de elementos. Recorde-se, por exemplo, de Pião [fig. 2], de 1993, e Elipse [fig. 3], de 2002. Nessas obras o todo não é a soma de partes, pois só há todo sem partes. São obras, em suma, inteiriças, como também "Barca" e "Mar", de In door landscape [fig. 4], também de 2002. Afinal não há nelas centro ou ponto focal em cuja direção suas partes estariam voltadas, ou em relação ao qual seriam dispostas, o que nos remete, também nesse aspecto, sem sombra de emulação, ao intento de certos artistas norte-americanos dos anos 1960, de evitarem a "composição relacional, baseada toda no equilíbrio de elementos", característica segundo Frank Stella da "arte europeia" até então. Em síntese, destaco que a pureza das formas de Lescher resulta de estruturas não-compositivas, embora integre sua gramática, elementos de instabilidade ou tensão, tanto entre materiais em uma mesma obra, quanto entre as obras uma vez dispostas na galeria.

Figura 2:
Pião, 1993. Mercúrio e ferro, 65 X 65 cm

Figura 3:
Elipse, 2002. Madeira, 300 x 174 x 35 cm

Figura 4:
In-door landscape, 2002. Barca: madeira 7 x 5 x 0,45 m; mar: lona vinícola e água, 6 x 6 x 0.15 cm

Essa tensão que não se resolve em composição, enquanto unidade na multiplicidade de elementos, pode ser evidenciada por verbos que indiciam uma efetuação da forma. 1. Cortar: Elipses [fig. 5], de 2001, no Campus da Universidade Cruzeiro do Sul, são elipses não apenas porque figuras geométricas, ou lugares geométricos, mas também porque nelas há supressão de parte (como na elipse enquanto figuras de estilo na literatura). São elipses, enfim, porque há secantes - arco ausente. 2. Sulcar: Do carretel ou arado em "Sem Título" (ou "Daqui para mais além") [fig. 6], exposto na Tomie Othake, em 2006, situado entre objeto, escultura e instalação, resulta - supondo certa recepção - lavra geométrica ou sulco concreto. Nessa charrua a tensão está no rasgo exato, aqui imaginado, do ancinho no chão. Estreitando a relação com a literatura, ou mais precisamente com a poesia, pode-se ainda supor que o sulco do arado deixe desenhado no chão o poema "terra" de Décio Pignatari4 4 . PIGNATARI, Décio. Poesia Pois É Poesia. São Paulo: Ateliê Editoral, 1996, p. 126. . Paralelo que se justifica, a meu ver, porque Lescher enfatiza, em outras obras, a palavra enquanto materialidade do significante, na tradição da poesia concreta; como se evidencia tanto na escritura abrasiva da vídeo-instalação Memória, de 1998; quanto nas imagens-enigmas da instalação Cinco imagens: o vapor, o brás, o peixe; o encontro das águas e a poesia, exibida em "Arte/Cidade 2", em 1994, em parceria com Lenora de Barros; Cássio Vasconcelos e Renato Cury. 3. Encravar: Em mega-estruturas como Diálogo: 0X0 [fig. 7], exposta, em 2000, no Memorial da América Latina; ou em "Cote à Cote", na CAPCMusée de Bordeaux, em 2001, a tensão é fruto do encrave de peças macho-fêmea como se diz em marchetaria, pois não decorre de puro ajuste - como em um simples puzzle - mas de encaixe por perfuração. 4. Alçar: Nos Aerólitos [fig. 8], de 1987, exposto no pavilhão de Oscar Niemeyer, na XVII Bienal Internacional de São Paulo, assim como na peça "Sem Título", de 1998, exposta na galeria Roesler, têm-se formas suspensas, que gravitam no espaço de exposição. 5. Picar: As paisagens mínimas [fig. 9], da mesma exposição, são obras que remetem a estalactites, lanças, agulhas ou raios, pois, destituídas de peso, ou, extremando, situando-se no limiar do imaterial, só apontam para o piso. 6. Desenrolar: Cachoeira, de 2006, obra que é faixa que se desdobra, ou Rio-Máquina [fig. 10], de 2010 que é "malha de aço derramada, como dobra que flui por cilindros de aço pelo chão"5 5 . BRAGA, Paula. Rio-Máquina. São Paulo: Galeria Nara Roesler, 2008 (disponível em www.nararoesler.com.br.). . É no efeito de fluxo contínuo dessas lâminas de metal, de pororoca da engenhoca, que reside, nesse último caso, a tensão da obra. De modo análogo, a fruição do observador que se desloca ao seu redor também se desenrola, mas como sensação bruxuleante, que nunca cessa, em função do reflexo de luz nas chapas metálicas, como em um espelho d´água; remetendo, aqui, ao efeito óptico, ou cinético, de Jesus Soto ou Jules Le Parc.

Figura 5:
Elipses, 2001. Bronze, 300 x 174 x 5 cm

Figura 6:
Sem título (ou "Daqui para mais além"), 2006. Fios de aço sobre saibro, dimensões variáveis

Figura 7:
0X0, 2000. Madeira e inox, 400 x 60 x 60 cm.

Figura 8:
Aerólitos, 1987. Lona, vinílica e hélio, 3.0 x 3.0 x 11 m.

Figura 9:
Sem título, 1998. Madeira, cobre e azeite.

Figura 10:
Rio-Máquina, 2010. Aço inox, dimensões variáveis.

Essa enumeração de ações, indiciada nos verbos, que introduzem tensão, como elemento gramatical, é apenas indicativa. Pode-se também associar essa gramática a uma semântica, relacionando as obras de Lescher ao imaginário infantil. Essa ênfase em "figuras da infância" pode significar, no artista, "libertação - enquanto reação à banalização de uma existência insuportável", na caracterização da brincadeira por Walter Benjamin6 6 . BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2002, p. 92. . Recuando ao "Pintor da vida moderna", pode-se evocar ainda a afirmação de Baudelaire, na aurora da modernidade, em chave romântica, que o "gênio é a infância redescoberta sem limites"7 7 . BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da vida Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 28. ; o que comprovariam, cabe acrescentar, no correr da arte moderna do século XX, as obras de Marc Chagall, Joan Miro, Henri Rousseau, algum Paul Klee, certo Pablo Picasso, César, Niki de Saint Phalle; ou Jean Tinguely.

Essa semelhança entre as obras de Lescher e os brinquedos ou jogos infantis à moda antiga é visível tanto do ponto de vista da forma como, no caso das peças modulares, na ideia de repetição - que é próprio ao brincar ou ao jogo. Nada torna a criança mais feliz, afinal, do que, outra vez, rodar o pião, soltar o balão, desenrolar o carretel, subir e descer escada, ou lançar a espada, raio, ou cometa como se fosse Deus ou Zeus. Pois

a obscura compulsão por repetição não é aqui, no jogo - diz Benjamin - menos manhosa do que o impulso sexual no amor (...) De fato, toda e qualquer experiência mais profunda - continua o filósofo - deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial8 8 . BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 96. .

Destaque-se ainda que para Benjamin "entre todos os materiais, nenhum é mais apropriado ao brinquedo do que a madeira" - material usual, ao lado do metal, em Lescher - "em virtude de sua resistência"9 9 . Idem, p. 93. . Por fim, assinala o autor que "quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta nos brinquedos tanto mais se desvia da brincadeira viva", o que nos permite aproximá-los, do caráter sintético, nada anedótico, ainda que alusivo, das peças do artista10 10 . Idem, p. 97. .

Nesse sentido Aerólitos, de 1987 reenvia a balão de Julio Verne, pipa, ou Zepelin. Nas Apropriações do Paço das Artes, em 1990; ou em "Sem Título", de 1991, na galeria Millan, temos grade, em madeira e ferro, que remete à cerca, portinhola ou portão [fig. 11]; estrado de cama, ou engradado [fig. 12] de refrigerantes. Outras obras, sem títulos, evocam caixas, gavetas, escaninhos [fig. 13], que remetem ao fascínio das crianças pelos esconderijos; há ainda peças que sugerem setas, flechas, lápis, varetas ou raios; e entre as obras, com títulos, temos Escada [fig. 14], de 1998, que remete a escada; ou, ainda, Pião, de 1993, que envia à pião; ou, por fim, Ditirambos [fig. 15], de 1993, caniço de areia, que alude à flauta de Pã.

Figura 11:
Sem título, 1990. Madeira, aço e motor elétrico, 4.08 x 0.90 x 1.20 m.

Figura 12:
Sem título, 1991. Madeira e ferro, 94 x 14 x 94 cm.

Figura 13:
Sem título, 1991. Madeira, 115 x 39 x 50 cm.

Figura 14:
Escada, 1998. Metal cromado, 158 x 16,8 cm.

Figura 15:
Ditirambo, 1993. Areia, 12 x 95 x 12 cm.

Destaque-se, ainda, como elemento da gramática de Lescher, que mobiliza o imaginário infantil, suas "casas" [fig. 16]; como as abrigadas, em 1991, na Galeria Millan: tanto as dispostas no chão com telhado de duas águas, como as "casas-ninhos", relevos junto à parede. Face essas casas é possível afirmar, aproximando a atividade artística da filosofia da desconstrução, que Lescher quebra a articulação de um "signo-sistema", na expressão de Jacques Derrida - entendido, aqui, como o quadrado ou cubo: signo de base das vanguardas construtivas - para investigar em que medida essas formas geométricas podem, ainda, ser desdobradas, segundo sua própria estrutura, em imprevistas formas artísticas, no presente: ou seja, pós-tudo, ou ainda depois do fim das vanguardas artísticas.

Figura 16:
Sem título, 1991. Madeira e zinco, 88 x 35 x 88 cm.

Tome-se a "casa", com telhado de duas águas, máquina de não-morar, posto que lacrada, em madeira e zinco. Nessa "casa", Lescher incorpora do funcionalismo arquitetônico de extração geométrica, sua atuação instrumental no espaço; mas, simultaneamente, em um libelo anticorbusiano, rejeita-o, ao lacrar a casa, tornando-a anti-funcional. Sua casa é assim, paradoxalmente, fria, posto que clausura feita de módulos, e "casa-síntese" ou "casa-arquétipo", como notou Aracy Amaral; ou seja, casa-imago-infantil como a dos jogos de armar de arquitetos mirins11 11 . AMARAL, Aracy. A tática da elegância: entre o espacial e o serial. In: Artur Lescher. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 7. . Essa efetuação, não destituída de ironia, em relação à tradição da arquitetura de viés "racionalista" permite, inclusive, aproximar a casa de Lescher da arquitetura da desconstrução de Peter Eisenman ou Michael Graves. Nesse sentido, a crítica interna ou imanente dessa tradição - haja vista que o artista se insere, como vimos, nessa linhagem da arte geométrica e construtiva da qual derivou o funcionalismo arquitetônico - é visível também no "construtivismo favelar" de "Sem Título" (ou "Se Movente") [fig. 17], em madeira e zinco, instaurado no prédio da Bienal, em 198912 12 . COCCHIARALE, Fernando. Da contemplação ao suprassensorial. In: Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010, p. 30. .Temos aqui palafita de extração popular ladeado por pilotis ou pilastras do "prédio do IV Centenário", de extração lecorbusiana. Relação que nos remete, até mesmo, aos "Penetráveis" dos 1960 ou 1970 de Hélio Oiticica; ou seja, à arquitetura das favelas apropriada pela estética construtiva de Mondrian. Por fim, a desconstrução dos elementos tectônicos da arquitetura moderna é perceptível na acidez das colunas com fuste e capitel menos que dórico, posto que tosco, erguidas inutilmente, como um Atlas sem emprego, em "Sem Título" [fig. 18], de 1991, na Galeria Millan. Trata-se de colunas junto à parede, de ferro, zinco e papelão, que como a arquitetura historicista dita pós-moderna de um Charles Moore, remete, em chave irônica, a arquitetura clássica, neoclássica, ou dos "grandes líderes" (Füehrerarchitektur).

Figura 17:
Sem título (ou "Se movente"), 1989. Madeira e zinco, 30 x 2,70 x 1,80 cm

Figura 18:
Sem título, 1991. Ferro, zinco e papelão, 4 x 0,4 x 4 m

Essa relação de Lescher com a arquitetura não se resume, entretanto, à desconstrução do funcionalismo, pois suas obras intervêm também no próprio espaço expositivo. É o que ocorre nas instalações Aerólito, de 1987, ou "Se Movente", de 1989, que atuam na estrutura do pavilhão da Bienal de São Paulo, ou em esculturas sem título (aqui consideradas como "campo expandido" no sentido de Rosalind Krauss) que atuam, em diversas mostras, sobre o cubo branco da galeria. As obras de Lescher, em suma, atuam sobre o espaço, ou antes, o constituem; pois não são instalações em espaços já dados, como galeria ou museu, mas "instaurações" - no achado verbal do artista Tunga - de espaços qualitativamente diversos. Limito-me, no momento, a pensar essa "instauração", ou positividade atribuída por Lescher ao espaço circundante em relação às obras de Waltércio Caldas. É possível aproximar, por exemplo, a escada em metal cromado do artista (Escada, de 1998) das esculturas de Caldas em aço inoxidável, em ferro de pouca espessura, em tiras de madeira ou até em fios de lã ou nylon. Porque, nos dois casos, temos desenhos tridimensionais que conduzem o olho de cá para lá, impedindo-o de fixar-se num ponto que o ancore. Em Caldas temos lâmina de vidro sustentada por fios de nylon, e, em Lescher, lança de madeira que pende do teto com cabo de aço ("Sem título", 1998), sendo que nos dois casos, as duas peças - fio ou lança - jamais tocam o chão. E mais: face as grafias no ar de Caldas, ou, no caso de Lescher, frente as obras mínimas distribuídas no espaço da galeria, o olhar errante do observador de tanto experimentar as distâncias, acaba por atribuir densidade ao vazio [fig. 19]. Centrando-se no lapso entre as linhas, em Caldas, ou entre as peças, em Lescher, ou seja, dissolvendo a compacidade do mundo, o observador faz do espaço que circunda as obras, ou da distância que as separa, "presença". As peças de Lescher e Caldas incitam, assim, o observador a ressemantizar o entorno, à medida que se desloca pelo espaço da exposição, mas não a deslanchar suas vivências pela participação sensório-motora, no sentido da tradição de raiz neoconcreta que remonta às proposições de Lygia Clark, Lygia Pape ou Hélio Oiticica dos anos 1960.

Figura 19:
Sem título, 1998. Madeira, 200 x 200 x 12 cm

Dito de outro modo: face às figuras filiformes, aríetes ou aguilhões, de Lescher - como as obras expostas na galeria Roesler, em 1998 -, o observador mede a contração, por exemplo, do espaço entre a ponta da agulha e o chão, sua distensão acima dele, e a tensão entre a ponta da agulha e o teto, e então os relaciona ao entorno sempre em busca do segredo da leveza. Tanto em Lescher quanto em Caldas há, portanto, a busca do mínimo, acentuada pela ausência da cor, salvo nas obras em azul e verde em sal marinho ou sal de cobre [fig. 20], de 1993 e 1995. Para caracterizar essas obras que dão positividade ao vazio, pode-se evocar como figuras a reflexão de Lucrécio, que introduziu o vácuo no coração da matéria; a ontologia negativa de Lacan que rasgou o ser com sua falta simbólica; a brancura da página de Un Coup de Dés de Stéphane Mallarmé, poema fechado à prosa do mundo, porém aberto ao espaço sem nome; "O quadrado branco sobre fundo branco" de Kasimir Malevich; ou, por fim, o silêncio de John Cage.

Figura 20:
Sem título, 1993. Ferro e sal de cobre (2 x) 50 x 50 x 10 cm

No tocante aos materiais, Lescher utiliza, entre outros, madeira, ferro, zinco, bronze, porcelana, fotografia, lona vinícola, sal marinho, sal de cobre, areia, e até mesmo luz, hélio e água. Por vezes há incrustação de materiais como em "Sem título" [fig. 12] de 1990, e "Sem título" de 1991, em que aço e motor elétrico, no primeiro caso, e cilindros de ferro, no segundo, são envolvidos em gradis de madeira; ou em Armadilha para Baby [fig. 1], de 2002, já citado, em que a madeira é envolta por porcelana. Em outras obras, os materiais são apenas justapostos como "paisagem interior (In door landscape)" em que madeira (casco de barco) ladeia água em lona (onda). Mesmo ocorrendo, nesses casos, combinação (amálgama ou justaposição) de materiais, não há que se falar, no artista, do procedimento da bricolage indiciando pensamento mágico, ao modo dos bric-a-brac dadá ou naif. Vale destacar, também, que em trabalhos como "Sem Título" [fig. 20], de 1993 e "Sem Título", de 1995 Lescher emprega materiais que passam uns nos outros, como ferro, sal marinho e sal de cobre; ou seja, nessas obras a passagem do tempo exsuda da vida da matéria. Nessa direção, associando mutações alquímicas a alterações de ânimo, Paulo Venâncio alude à "vontade do ferro" ou ao "humor da madeira" nas obras do artista; ou, ainda, a propósito dos materiais, refere-se ao "metal líquido" de Rio-Máquina, de 201013 13 . VENÂNCIO FILHO, Paulo. Metal Líquido. São Paulo: Galeria Nara Roesler. 2008 (disponível em www.nararoesler.com.br). .

Essa ênfase na vida dos materiais imersos na torrente do tempo - presente também na escritura calcinada da vídeo-instalação Memória, de 1998 - não aproxima, todavia, as obras de Lescher da arte processual, ou da arte como formless no sentido de Yve-Alain Bois ou Rosalind Krauss; porque há, nelas, container ou grade que contém a matéria impedindo-a de verter-se no entorno. É preciso examinar, e de modo análogo, como se articula, no imaginário do artista, a relação entre o artifício (tékhne) e a natureza (phýsis); ou, ainda, a relação entre o mundo da máquina (metonímia para a racionalidade instrumental, técnico-científica, no sentido de Theodor Adorno ou Max Horkheimer) e o mundo natural, manifesto nas obras citadas, na passagem do tempo nos materiais.

Essa relação é nítida em Rio-Máquina [fig. 10], de 2010, em que malha de aço inoxidável, suspensa por cilindros metálicos, flui caudalosamente. Nessa queda de aço há algo de engenharia gaiata; de máquina-irônica ou de "inutensílio", no sentido de Marcel Duchamp, Francis Picabia; ou Jean Tinguely; ou, ainda, dos bichos metálicos de Lygia Clark. Nessa instauração, elaborada com fino rigor construtivo o artista parece tirar séria onda (como em Sete ondas, de Amélia Toledo, de 1995) da aposta cega nos poderes supostamente emancipadores da racionalidade tecnocientífica. Não existe, portanto, nessa obra de matriz construtiva o encômio da técnica ou da máquina, seja da linha de montagem no sentido fordista, ou da robótica, pós-fordista; pois o que se tem é máquina irônica: uma forma híbrida, magma entre o mundo mecânico e o mundo orgânico - indiciada no próprio título: Rio-Máquina - que opera, acidamente, em chave lúdica. Pode-se perceber, também aqui, o procedimento do desvio; pois essa obra assume o mundo da máquina para efetuar uma crítica ao imaginário futurista e funcionalista, como na casa-clausura, já citada; ou ainda, em Aerólito que figura a visão de futuro que se teve no passado, ou seja, de futuro do pretérito: a única visão possível de futuro, segundo, alguns autores, em tempos pós-utópicos.

Esse desvio em relação à utilidade dos objetos faz com que das obras de Lescher resulte como efeito, o insólito: Casa sem porta; escada a Lewis Carroll; Pião parado; pilar que é só cenário; metal-líquido, entre outros, produzem estranhamento ("Das Unhheimliche" ou "esquisita familiaridade", no sentido de Sigmund Freud, Franz Kafka, ou E. T. A. Hoffmann)14 14 . FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil (`O Homem dos Lobos`), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 358. Esse efeito de inquietude não é, contudo, o mesmo dos objets trouvés, pois suas obras são construídas regiamente segundo projeto; e, nesse aspecto, nada possuem de dadá ou neodadá; ou seja: embora compartilhem com as vanguardas oníricas ou destrutivas, a crítica ao descarrilamento da razão científica em sua pretensão em quantificar a vida, dessas se distanciam, pois se fundam, em aparente contradição, em design construtivo. Frente à estranheza dessas obras, que nunca soçobra, o observador reage, muita vez, com um sorriso, que não é nem riso desbragado, nem riso mascado; mas discreto esgar de lábios de quem, intrigado, teve o imaginário acionado pela "vertigem de analogias", como diz Valéry15 15 . VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 139. . Dito de modo brutalista: o fruidor da obra de Lescher, que não é simbólica, mas alegórica - tomando-se a alegoria, aqui, como usina de sentido - deve desentranhar o enigma da imagem, no intento de aplacar a inquietude que resulta daquilo que, sendo familiar, é também estranho.

É o que está presente também, em suas últimas obras, como Inabsencia [fig. 21]: uma cúpula invertida de 12 x 14 m, em latão e madeira, que ocupou em 2012 o átrio octogonal da Pinacoteca do Estado de São Paulo, revestido por uma claraboia desde sua reforma de 1998. É uma instalação em site specific, que remete à majestosa cúpula neorrenascentista projetada, mas nunca edificada, por Ramos de Azevedo, para o antigo Liceu de Artes e Ofício, inaugurado, incompleto, em 1900. Esta cúpula cujos arcos convergem para uma agulha central metálica - forma recorrente em Lescher - que aponta não para o céu, mas para o chão, produz, também aqui, estranhamento, pois o observador toma de início esta inversão por mera bizarria. Só no curso da observação, quando imaginariamente devolve o objeto ausente (a cúpula de Ramos de Azevedo) ao edifício, tal inversão se muda em mirabilia. Este espelhamento que afeta a percepção que o observador tem do espaço circundante também está presente, porém de outro modo, na obra de 2011, Pantográfico #2, da série Metaméricos. Nesta obra a dobra não resulta da relação entre o dito "real" e o "projetivo", como na especularidade de Inabsencia, mas do caráter expansível e retrátil de um pantógrafo, aparelho de origem seiscentista, articulado por dobradiças que permite, como se sabe, ampliar ou diminuir desenhos. Nestas obras temos diferentes níveis de dobras que mobilizam, nas palavras de Lescher, o "pensamento pantográfico" do observador, ou seja, sua "capacidade de estender e retrair o pensamento", ou, como aqui preferimos, o riocorrente das significações, em busca de decifrações.

Figura 21:
Inabsencia, 2012. Latão e madeira, 12 x 14 m

Em vinte e cinco anos de atividade, Lescher construiu, em vários materiais, uma obra una e múltipla a partir de projetos certeiros dos quais resultaram formas depuradas, matutadas, substantivas. Tudo, nele, é claro e parece fácil. Lescher parece nutrir, em suma, desprezo pelas coisas vagas, porque nada em sua obra é volteio, diadema ou corolas. Não há que se falar, nele, em modismo ou pavoneada: "Certamente, o fácil o enfada. E é o difícil que o guia" (Paul Valéry via Augusto de Campos)16 16 . VALÉRY, Paul. Les Cahiers de Paul Valéry: A serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 72. . O fácil é o espetaculoso, o pomposo. O difícil é a pureza, o rigor: a forma aberta, clara. Sua obra é, enfim, admiravelmente exata: mas "que há de mais misterioso", enigmático ou primaveril - como indagava Valéry - "que a claridade?"17 17 . Ibidem, p. 75. . Dessa gramática salta, nessa direção, claro enigma, pois o artista introduz em cada forma um desvio ou tensão, como vimos, que, impedindo a pronta significação, abre-a à alegoria.

A obra de Lescher está entre as raras que enfrentam questão cara à teoria da arte, a saber: a do destino ou sentido da imagem (ou forma artística) na contemporaneidade. Sua busca é a de um signo que escape ao simulacro, na expressão de Jean Baudrillard furtando-se, desse modo, à hiperrealidade dos signos, ou ainda, à pletora de imagens estandardizadas que, paradoxalmente, produzem cegueira em nossa sociedade do espetáculo: ou, em outros termos, Lescher examina, com sua gramática clara, se é possível devolver ao olho saturado de signos da cultura de consumo, o ato de ver enquanto percepção, ao mesmo tempo, natural e cultural. Nesse último caso, se aceitarmos a ideia da desconstrução da tradição construtiva, acima sugerida, pode-se concluir que o artista penetra no âmago de cada código para então desprogramar suas bulas e posologias. É nessas efetuações, inclusive, que reside o poder de negatividade, de crítica social ou política de sua arte. Basta destacar, por exemplo, que o espaço como presença do vazio em sua obra se opõe à concreção física, estrepitosa e agressiva do mundo da moeda e da mercadoria. É nesse sentido que sua obra cria um espaço que está em sintonia com outras formas de resistência por vir. Mas essa é apenas uma face de sua lúcida força.

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    Créditos das imagens 1 a 19: Artur Lescher. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Créditos das imagens 20 e 21: Galeria Nara Roesler (disponível em www.nararoesler.com.br).
  • 1
    . LESCHER, Artur. Artur Lescher. In: Documenta Vídeo Brasil; s/d. Enciclopédia Itaú Cultural Artes Vídeos, 2005 (disponível em www.itaucultural.org.br.). Cf., igualmente, entrevista do artista em: Artur Lescher e o seu pensamento pantográfico na galeria Nara Roesler em São Paulo. Entrevista a Camila Belchior e Lívia Debbané. In: Banboo: plataforma: site, mídias sociais e revista impressa, 27/08/2013 (disponível em www.banboonet.com.br.).
  • 2
    . NESTROVSKI, Arthur. Silêncio e matéria. In: Artur Lescher. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 15.
  • 3
    . VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o Arquiteto. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996, p. 99.
  • 4
    . PIGNATARI, Décio. Poesia Pois É Poesia. São Paulo: Ateliê Editoral, 1996, p. 126.
  • 5
    . BRAGA, Paula. Rio-Máquina. São Paulo: Galeria Nara Roesler, 2008 (disponível em www.nararoesler.com.br.).
  • 6
    . BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2002, p. 92.
  • 7
    . BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da vida Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 28.
  • 8
    . BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 96.
  • 9
    . Idem, p. 93.
  • 10
    . Idem, p. 97.
  • 11
    . AMARAL, Aracy. A tática da elegância: entre o espacial e o serial. In: Artur Lescher. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 7.
  • 12
    . COCCHIARALE, Fernando. Da contemplação ao suprassensorial. In: Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010, p. 30.
  • 13
    . VENÂNCIO FILHO, Paulo. Metal Líquido. São Paulo: Galeria Nara Roesler. 2008 (disponível em www.nararoesler.com.br).
  • 14
    . FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil (`O Homem dos Lobos`), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 358.
  • 15
    . VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 139.
  • 16
    . VALÉRY, Paul. Les Cahiers de Paul Valéry: A serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 72.
  • 17
    . Ibidem, p. 75.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2015
  • Aceito
    15 Maio 2015
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