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Andy Warhol e o cinema como máquina da verdade.

Andy Warhol and the cinema as truth machine.

RESUMO

Em 1963, no momento em que vivia o auge de sua carreira como artista pop, Andy Warhol passou a realizar também filmes, produzindo-os em ritmo constante até 1968. Este artigo investiga as relações entre pintura e cinema na prática artística de Warhol. Propõe-se uma leitura da obra do artista com base nas noções de aparência, artifício e performance. Em seguida, veremos como essas questões são recolocadas pelos filmes, ao serem confrontadas com qualidades específicas do meio cinematográfico, como o realismo, o movimento e o tempo.

palavras-chave:
Andy Warhol (1928-1987); cinema de vanguarda; arte pop

ABSTRACT

In 1963, at the height of his success as a Pop artist, Andy Warhol started directing films, which he produced at a frequent pace until 1968. This essay investigates the relationships between painting and cinema in Warhol’s practice. At a first moment, I would like to propose a reading of Warhol’s work based the concepts of appearance, artifice, and performance. Subsequently, I intend to show how these issues are repositioned in the films when faced with the specific qualities of cinema as a medium, such as realism, movement, and time.

keywords:
Andy Warhol (1928-1987); avant-garde cinema; pop art

David Ehrenstein: Você gostaria de fazer um filme com Carroll Baker?

Andy Warhol: Uh… não.

D.E.: Por que não?

A.W.: Uh… Ela tem muita habilidade na interpretação… para mim.

D.E.: Pessoas com habilidade de interpretação não são o tipo que você precisa?

A.W.: Não, eu quero pessoas reais.1 1 WARHOL, Andy. An interview with Andy Warhol. Entrevistador: David Ehrenstein. Film Culture, New York, n. 40, p. 41, Spring 1966.

Em 1963, a carreira de Andy Warhol como artista plástico atravessava seu momento decisivo. No ano anterior, ele enfim conseguira realizar suas primeiras exposições individuais em galerias, nas quais apresentou as hoje célebres pinturas de latas de sopa Campbell, assim como alguns de seus primeiros trabalhos em serigrafia. Entre esses, estavam as primeiras telas de Marilyns e os primeiros Elvises. A serigrafia seria um divisor de águas na prática de Warhol como pintor, e com ela o artista criaria algumas de suas obras mais famosas. Esse momento de intensidade criativa coincidia com o reconhecimento - ansiado por Warhol há tempos - do meio artístico da época, que aos poucos parecia deixar para trás o apego aos paradigmas do expressionismo abstrato e começava a olhar a arte pop com outros olhos. Curiosamente, é também nesse momento, verão de 1963, que Warhol decide, num gesto ousado mas não exatamente incoerente, tornar-se também cineasta, e realiza seus primeiros filmes.

Filmados de maneira rápida e amadora, na “linha de montagem” da Factory, esses filmes constituem uma produção imensa executada em um curtíssimo período de tempo. São centenas de filmes das mais diversas durações, a maioria realizados entre 1963 e 1968. Uma produção mais diversa do que muitas vezes se supõe, e que vai dos ensaios cotidianos do início, em que Warhol registrava gestos banais repetitivamente (Kiss, Eat, Sleep, Drink), passando por Chelsea girls, pelas peças filmadas (Kitchen, Vinyl), até o erotismo flácido dos últimos filmes (Lonesome cowboys). Entre cada uma dessas fases, o cinema de Warhol encontra sua unidade na permeabilidade a pessoas, em especial àquelas que orbitavam em torno do artista e constituíam o universo efervescente e transgressor da Factory2 2 Um bom apanhado das figuras que compunham o ambiente radicalmente boêmio e não normativo da Factory dos anos 1960 encontra-se no capítulo 5 (“A primeira morte”) da monografia que Arthur Danto dedicou a Warhol. Cf. DANTO, Arthur C. A primeira morte. In: DANTO, Arthur C. Andy Warhol. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 127-160. . Nesse sentido, tem destaque também a produção de Screen tests, pequenos filmes-retrato com duração de um rolo 16 mm de cerca de quatro minutos cada, rodados com praticamente qualquer um que aparecesse na Factory. Anônimos ou famosos, artistas, celebridades do mundo da música ou da moda, todos tinham direito a seu Screen test3 3 Os Screen tests talvez sejam a expressão máxima, dentro da obra de Warhol, de sua famosa frase: “No futuro, todos serão famosos por quinze minutos”. . Segundo Thomas Sokolowski, antigo curador do Andy Warhol Museum, a produção de Screen tests de Warhol é estimada em cerca de quinhentos filmes4 4 BIESENBACH, Klaus et al. (ed.). Andy Warhol: motion pictures (catálogo da exposição). Berlim: KW Institute for Contemporary Art, 2004. .

Que tipo de relações a obra do Warhol pintor mantém com a obra do Warhol cineasta? Este artigo busca delinear semelhanças e rupturas entre o trabalho de Warhol na pintura e no cinema. Em um primeiro momento, proporemos uma leitura da obra de Warhol baseada nas noções de aparência, artifício e performance. Veremos como essas questões colocam-se nas telas e, em seguida, nos filmes. Uma vez que a aproximação de Warhol com o cinema foi marcada por um engajamento radical com o meio, em seus filmes essas questões veem-se confrontadas com aspectos específicos do meio cinematográfico, tais como o realismo, o movimento e o tempo. Isso produz rupturas em relação à sua obra como artista plástico, como argumentaremos. No entanto, antes de continuar, será preciso determinar o que o cinema introduz de novo, do ponto de vista da prática artística, no trabalho de Warhol.

Da pintura ao cinema: rompendo o cerco

As semelhanças formais e temáticas que os filmes de Warhol mantêm com seu trabalho na pintura são razoavelmente conhecidas. A principal delas reside na abertura à insipidez cotidiana. Como as telas, os filmes interessavam-se por motivos banais: Warhol pintava objetos do dia a dia, como latas de sopa e notas de dinheiro, e em seus primeiros filmes registrará gestos cotidianos (comer, dormir, beijar). Frequentemente, os filmes também desenvolvem uma veia retratista já presente nas telas. Essa retratística é patente nos Screen tests, mas também se revela em filmes como Chelsea girls (1966) ou Poor little rich girl (1965), que se estruturam em torno da persona de seus atores - as superstars de Warhol, como ele gostava de chamá-los5 5 Callie Angel nota que todos os filmes de Warhol têm “como preocupação central o ato de retratar”. Cf. ANGEL, Callie. Something secret: portraiture in Warhol’s films. Sidney: Museum of Contemporary Art, 1994. p. 2. . Por fim, a própria repetição presente nos filmes - decorrente, em parte, do hábito frequente de Warhol de recusar-se a cortar, incorporando a estrutura material do rolo de película como métrica para o filme - sugere um paralelo com a composição serial das telas.

Para além dessas homologias, no entanto, os filmes dão continuidade ao mesmo impulso em direção ao gesto automatizado já presente nas telas. Esse impulso, iniciado na pincelada fria e impessoal de algumas pinturas - como as latas de sopa Campbell e as chamadas advertising paintings, feitas a partir de anúncios publicitários, como a versão de 1962 da Coca-Cola -, encontra seu momento decisivo no “cancelamento” do gesto pela serigrafia. Nesse sentido, o cinema será apenas o passo seguinte, a próxima etapa de um ambicioso processo de adesão ao maquinal, sintetizado na célebre frase de Warhol “I want to be a machine” (“Quero ser uma máquina”). Para um artista que encontraria na reprodutibilidade das imagens técnicas a matriz fundamental de seu trabalho, o cinema revela-se uma etapa absolutamente coerente. Em toda a sua carreira, Warhol sempre se interessou por apetrechos tecnológicos e, a partir dos anos 1970, o projeto maquínico prosseguirá em outras práticas, com as polaroides, os gravadores de voz, o vídeo.

No entanto, a despeito de todas essas convergências, o cinema também representará uma ruptura na obra de Warhol. Essa ruptura é o que nos interessa aqui, pois ela está intimamente ligada ao que distingue, do ponto de vista da prática artística, cinema e pintura. Em que consiste essa diferença? Diferentemente da pintura, o cinema implica sempre um encontro, um embate direto entre o artista e a realidade contingente captada por ele. Isso por si só modifica a situação do fazer artístico. Entre pintar e filmar, não se trata apenas de substituir: a mão pelo olho, o pincel pela câmera. O próprio artista é reposicionado nesse processo. Isso porque a realidade diante da câmera possui uma existência autônoma em relação ao artista. Uma autonomia que não é apenas “para si”, longe das câmeras, mas subsiste durante a filmagem - pois há, digamos, um limite para o que o artista pode manipular uma vez ligada a câmera. Essa suspensão do gesto, do poder do artista no momento em que a câmera começa a rodar, constitui um lapso vital para o cinema. O artista deixa de ser um centro agenciador para ser posicionado na margem de fora da cena, atrás da câmera. Cinema e fotografia distinguem-se do trabalho plástico justamente por esse reposicionamento, pela constituição dessa fronteira que separa o lado de cá da câmera (o artista) e o lado de lá da realidade contingente. Evidentemente, essa fronteira pode ser transgredida de muitas formas, tanto de lá quanto de cá. Mas a própria existência dela, como elemento estruturador do trabalho do cineasta, provoca uma mudança na natureza do trabalho. É sobre essa linha que o jogo do cinema é jogado. É na fricção, no encontro entre um lado e outro, que a imagem se produz.

Nesse sentido, um filme é sempre um encontro - mesmo que uma das partes tente proteger-se por trás da câmera. Nos filmes de Warhol, são sobretudo pessoas que a câmera encontrará. Seus filmes são registros, transcrições diretas do encontro entre os personagens exibicionistas e desviantes da Factory, de um lado, e um autor que dissimula, que procura blindar-se por trás da câmera, de outro. São testemunhos desse encontro entre o artista-máquina e seus modelos vivos. Não à toa, os filmes aparecem mais ou menos na mesma época em que Warhol transfere seu ateliê para a primeira sede da Factory, na 47th Street. Mais do que um simples ateliê, a Factory se tornaria um espaço de convivência, onde circulava a fauna de indivíduos que, em algum momento, viria a figurar nos filmes.

O importante é destacar que o cinema inaugura para Warhol uma outra relação ontológica com o fazer artístico, baseada no encontro. Muito embora a fotografia já estivesse presente em sua obra por conta da serigrafia, até aquele momento o trabalho de Warhol com o meio fotográfico dava-se sobretudo pela apropriação de imagens pré-existentes, como nos quadros serigrafados de Marilyn, Elvis ou Elizabeth Taylor. Como prática direta, de embate com a realidade fugidia, a fotografia ganharia mais espaço alguns anos mais tarde, com as polaroides e outros projetos menores. Naquele momento, em 1963, porém, ela era uma ferramenta entre outras a serviço do trabalho do pintor isolado em seu ateliê. Como prática artística, é o cinema que irá encarnar o primeiro gesto de ruptura desse isolamento, enquanto uma arte que implica o agenciamento de uma coletividade. É a partir da Factory e dos filmes que a obra de Warhol começa, inclusive, a ganhar o contorno social, no sentido de autoespetacularização e performance, que só cresceria nas décadas seguintes.

Arte pop: aparência, superfície, performance

Em uma passagem no início de Popismo, Warhol comenta a ascensão da pop no mundo da arte dos anos 1960:

O expressionismo abstrato já havia se institucionalizado, e no final dos anos 1950 Jasper Johns, Bob Rauschenberg e outros começaram a trazer a arte de volta da abstração e da introspecção. Então Pop Art pegou o interior e o pôs para fora, pegou o exterior e o pôs para dentro [“Then Pop Art took the inside and put it outside, took outside and put it inside”].6 6 No original: “Then Pop Art took the inside and put it outside, took outside and put it inside”. WARHOL, Andy; HACKETT, Pat. POPism: the Warhol Sixties. Londres: Penguin Books, 2007. E-book. Tradução minha.

A última frase é um jogo de palavras deliciosamente ambíguo7 7 Na tradução brasileira, a frase aparece ligeiramente diferente: “Então a Pop Art pegou o interior e virou para o exterior, pegou o exterior e virou para o interior”. Cf. WARHOL, Andy; HACKETT, Pat. Popismo: os anos sessenta segundo Andy Warhol. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. p. 11. . A oposição entre interior e exterior remete ao antagonismo entre, de um lado, o expressionismo abstrato e suas aspirações metafísicas e, de outro, a pop e sua defesa da exterioridade e da aparência. A pop “pegou o interior e o pôs para fora, pegou o exterior e o pôs para dentro”. Inicialmente, a frase pode ser lida como um comentário sobre a perda de espaço do expressionismo abstrato para a pop no ambiente artístico da época. A pretensa “interioridade” do expressionismo abstrato teria sido destronada, colocada “para fora” pela pop, que contrabandeia para o domínio da arte as imagens ordinárias da sociedade de consumo (o “exterior”). Mas Warhol talvez esteja querendo dizer algo a mais. Ao afirmar que “a pop pegou o exterior e o pôs para dentro”, comentando a inversão de parâmetros entre interioridade e exterioridade realizada pela pop, ele talvez esteja sugerindo o seguinte: é preciso deixar as coisas do mundo (as superfícies vulgares da sociedade de consumo, a artificialidade das aparências) entrarem dentro de si e sentir através delas. Não se trata apenas sair da profundidade em direção à superfície, mas de, uma vez na superfície, senti-la por inteiro, botar nela o coração, comprometer-se por inteiro com a aparência das coisas. Aí residiria a inversão metafísica radical da pop.

Mais talvez do que qualquer outra tendência artística, a arte pop é marcada pelo apego à superfície. Ela vê a casca das coisas, procura sentido nessa casca. “Vejo tudo dessa forma, a superfície das coisas, uma espécie de braile mental, apenas passo a mão sobre a superfície das coisas”, diz Warhol em outra passagem8 8 BERG, Gretchen. Nothing to lose: an interview with Andy Warhol. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI, 1989. p. 54-61, tradução minha. . A arte pop acessa a realidade por meio das aparências. Seu objeto de fascínio são as formas que as coisas assumem na sociedade de consumo: o corpo reificado que se torna vedete, os objetos que, embalados pelo design e pelas cores da publicidade, tornam-se mercadoria. A pop entende aparência como essência, e é em torno da primeira que giram as suas reflexões.

Esse apego à aparência levou alguns autores a pensarem a pop - e a obra de Warhol em especial - com base na ideia de simulacro. Simulacros, na concepção baudrillardiana, são imagens sem conexão com um referente real (o que, aqui, equivale ao mesmo que essência). Imagens que se reportam apenas a si mesmas. Nessa perspectiva, na arte pop as imagens se limitariam a representar outras imagens, num circuito autorreferencial do qual o real foi excluído. O próprio Baudrillard irá afirmar que Warhol encarna, ele mesmo, o “simulacro incondicional”9 9 BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. In: MACIEL, Kátia (org.). A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 179. , trabalhando “no sentido de uma exterminação do real pela imagem”10 10 Ibidem, p. 188. .

Tal interpretação sugere um estreitamento do campo pela pop. Uma imagem que perdeu seu vínculo com a realidade só pode ser uma imagem sem profundidade. Mas essa perda de um elo orgânico com a realidade, no caso da pop, deve ser entendida não apenas em sua relação com o mundo, mas do ponto de vista da própria criação artística. Na pop, os artistas aderem às superfícies banais da sociedade de consumo a ponto de se confundirem com elas. O apagamento do gesto e a evasão de sentido presente no trabalho de Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, entre outros, sugere uma dissolução do ponto de vista, na qual o que parece ser eliminado é a própria dimensão de transcendência da criação artística. As obras tornam-se um testemunho ambíguo da cultura de massa, o que justificou as muitas reações perplexas à época, tais como a do crítico Peter Selz, que definiu a pop como uma arte “flácida” e “conformista”. “A razão para que essas obras deixem-nos tão insatisfeitos não reside em seus meios, mas em seus fins: a maior parte delas não tem absolutamente nada a dizer”, diz o crítico em um texto de 196311 11 SELZ, Peter. The flaccid art. In: MADOFF, Steven Henry (ed.). Pop art: a critical history. Berkeley: University of California Press, 1997. p. 85, tradução minha. Mais recentemente, essa percepção das imagens da pop como vazias informou leituras que a aproximavam do contexto da pós-modernidade, dentre as quais aquela realizada por Frederic Jameson é um caso exemplar. Cf. JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007. p. 35-37. .

Mas as coisas nunca são tão simples assim. A despeito da superficialidade ostensiva da pop, seria preciso enumerar as diversas operações que ela realiza com as imagens banais da sociedade de consumo. A começar por uma operação de agenciamento: o deslocamento dos objetos para a galeria ou museu, que por si só altera as condições de percepção do espectador. Em seguida, as diversas operações de formalização - mesmo ostensivamente impessoais e inexpressivas - com que essas imagens da sociedade de consumo são apresentadas: cor, técnica, materiais, escala, entre outros. Em um texto de 1980, Roland Barthes nota como os objetos, na pop, não são apresentados tal qual os conhecemos no mundo:

Em primeiro lugar, e muito frequentemente, a arte pop muda o nível da percepção: reduz, amplia, afasta, aproxima, aumenta o objeto dando-lhe as dimensões de um panô, ou o dilata como se visto através de uma lupa. Ora, do momento em que são mudadas as proporções, a arte surge (…): não é por acaso que Lichtenstein reproduz uma lupa e o que ela amplia: Magnifying glass é como que o emblema da arte pop.12 12 BARTHES, Roland. Esta coisa antiga, a arte… In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 185.

Essa operação de ampliação do objeto merece ser discutida. Acima de tudo, há uma inegável dimensão performativa na adesão dos artistas pop às superfícies e aos dispositivos da sociedade de consumo. Essa dimensão está presente mesmo quando o gesto artístico orienta-se para seu próprio apagamento, como é o caso da reprodução do reticulado benday por Roy Lichtenstein ou dos diversos avatares maquínicos que Warhol cria para sua obra. Lichtenstein e Warhol desejam “obedecer” à máquina, mas o fato é que artista e máquina nunca chegam a sobrepor-se perfeitamente. Entre um e outra há sempre um caminho a ser trilhado, repleto de fissuras, exageros, caricaturas, pastiches. Tudo isso constitui o elemento de performance da pop.

Assim, a pop realiza-se em uma espécie de teatro13 13 Não estamos longe aqui do sentido de teatro que o crítico Michael Fried identificava na experiência contingente da arte minimalista. . Ela nos oferece representações amplificadas: são pastiches de objetos da sociedade de consumo e de imagens dos meios de comunicação de massa. Mas esses pastiches não se limitam a evocar os motivos representados. Em sua amplificação e em seu exagero, eles nos deixam entrever a própria estrutura que constitui esses signos da modernidade e o modo como eles operam. O exemplo mais simples é aquele dos pontos benday de Lichtenstein, já mencionado por Barthes, que são deliberadamente ampliados: o artista mostra-nos a imagem, mas também a técnica por meio da qual a pintura é formada. A imagem apresenta-se ao mesmo tempo que exibe seu “código-fonte”, por assim dizer.

O exagero também marca o aspecto repulsivo dos doces de gesso e das esculturas murchas em tecido representando comidas presentes no trabalho de Claes Oldenburg. Se, na sociedade de consumo, os alimentos são empacotados pelo artifício a fim de criar deleite visual, basta um pequeno exagero, um erro de cálculo, para que essa artificialidade revele sua dimensão grotesca. Em 1961, em um gesto que não poderia ser definido senão como performativo, Oldenburg chegou a criar uma loja, batizada de The Store, na qual negociava suas peças repugnantes a preços módicos. Com isso, assimilava o trabalho das galerias de arte ao de um simples vendedor de objetos.

No entanto, nenhum artista pop levou essa dimensão performativa mais longe do que Warhol. Nele, a performance não se restringia a uma prática artística, mas tomava parte em sua própria vida. Poucos artistas de vanguarda uniram de forma tão permanente - e por isso mesmo tão trágica - arte e vida, e é em parte a radicalidade dessa permanência que faz da obra de Warhol uma fonte de questões para a arte até hoje14 14 Sobre essa questão, ver o artigo de Isabelle Graw: GRAW, Isabelle. Quando a arte sai para trabalhar: Andy Warhol. Tradução de Sônia Salzstein. ARS, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 244-261, 2017. . Para não extrapolarmos o escopo da discussão, no entanto, vamos nos ater à dimensão performativa presente em sua prática como artista plástico. Se, nas pinturas de latas de sopa Campbell, a repetição e a serialização implicavam um apagamento do artista por trás da linha de montagem industrial, nas diversas telas serigrafadas de Jackie Kennedy, por exemplo, o dispositivo incorporado por Warhol torna-se a indústria da mídia: as Jackies não apenas representam, mas refazem a exploração midiática do rosto da primeira-dama antes e após o assassinato do presidente Kennedy, em 1963. Tanto nas latas de sopa quanto nas Jackies, o que se tem é um artista que, fazendo-se passar por máquina, performa os dispositivos da cultura de massa (linha de montagem estandardizada, cobertura midiática), jogando luz sobre o funcionamento desses dispositivos ao longo do próprio processo.

Performance e pastiche são formas de agenciamento das aparências. São a maneira encontrada pelos artistas pop para lidar com as superfícies da sociedade de consumo que os atraíam sem se colocar à parte delas, como guardiões de uma profundidade que se manifestaria sob a forma de distância crítica. A performance e o pastiche implicam, ao contrário, uma adesão aos objetos e imagens que se quer representar. Mas, nesse processo de adesão, eles se revelam também testemunhos dessa mesma sociedade de consumo representada. Testemunhos de seus afetos, de sua potência a um só tempo excitante e destrutiva, bem como de sua beleza reificada e melancólica, de sua onipresença fantasmagórica.

O cinema como máquina da verdade

É curioso que, em sua passagem pelo cinema, Warhol não tenha realizado filmes que pudessem ser associados imediatamente a um imaginário “pop”. Embora algumas de suas últimas produções parodiem gêneros do cinema popular (Lonesome cowboys, San Diego surf), em sua imensa maioria seus filmes não fazem referência a imagens da cultura de massa15 15 Entre as notáveis exceções está Empire (1964), no qual a imagem do Empire State Building funciona como um evidente signo (fálico) do poder do capital. Outro filme de Warhol que se aproxima do imaginário pop é o pouco conhecido Soap opera (1964), que simula uma transmissão de TV na qual cenas de um melodrama B televisivo são intercaladas com anúncios publicitários voltados para o público feminino. . Mesmo a cor, traço característico da pop, aqui dá lugar ao preto e branco de alto contraste da película 16 mm. A colagem de imagens veiculadas na mídia, outro procedimento típico da pop - e que caracteriza alguns filmes que poderiam ser associados a uma genealogia pop do cinema, tais como A movie (1958), de Bruce Conner -, cede lugar a um realismo transparente, em que a película é entendida como transcrição direta do mundo. Se as telas de Warhol representavam artefatos cotidianos do mundo do consumo (notas de dinheiro, rótulos de mercadorias), seus filmes exibem um cotidiano nu: mostram corpos desornamentados, despidos, realizando gestos banais repetitivamente.

Na realidade, se é possível encontrar uma “veia pop” dentro do cinema de Warhol, ela aparece metamorfoseada sob uma outra forma: no camp. Camp e pop não são a mesma coisa, mas partilham o mesmo gosto pelo artificial, pela superfície e pelo pastiche. Como observou Susan Sontag, camp, a rigor, não é uma forma de arte, mas uma sensibilidade, um gosto. É uma atração pelo decorativo, pela estilização fora de lugar, ligeiramente bizarra, e que pode ser encontrada em vários estilos, da alta à baixa cultura. Essa atração pelo artifício e pelo excêntrico sempre esteve profundamente encarnada em Warhol, em seus gostos e na persona pública que o artista projetava. Warhol é - sempre foi - camp, e, se seus filmes reencontram o pop, é pela via indireta do camp16 16 Peter Wöllen nota muito bem que os filmes de Warhol fazem-se na intersecção entre duas tendências antagônicas: o minimalismo e o camp. Do primeiro, eles herdam a impessoalidade “fria” da composição serial; do segundo, o gosto “quente” pela performance. Cf. WÖLLEN, Peter. Raiding the icebox. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI, 1989. p. 14-27. .

Faz parte de uma atitude camp, entre outras coisas, a excitação com o adorno: o prazer de montar-se ou de observar alguém montado. Dizemos “montar” não apenas no sentido estrito de travestismo, mas no sentido amplo de paramentar-se, fantasiar-se. É o gosto pelo disfarce: “o Camp vê tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma ‘lâmpada’, não uma mulher, mas uma ‘mulher’. Perceber o Camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel”, diz Sontag17 17 SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 323, grifo meu. . No trabalho de cineastas tipicamente camp, como Jack Smith ou Kenneth Anger, o prazer de montar-se tem papel central. Filmes como Normal love (1963), de Smith, e Puce moment (1949), de Anger, exibem performances exageradas, nas quais os atores divertem-se ou deixam ver o prazer por estarem paramentados. Puce moment é literalmente um filme sobre essa excitação com o ornamento, o desejo pela roupa: nele, os rituais de uma mulher com seu guarda-roupa transportam-na, como num sonho acordado, de seu pequeno quarto para uma mansão com ampla vista, onde ela posa elegantemente para a câmera na companhia de cães de raça.

Esse prazer camp com o adorno está presente em alguns filmes de Warhol, como Mario banana #1 (1964), filme-retrato em cores de Mario Montez suntuosamente montado como drag queen. No entanto, mais do que no paramentar-se, reside no performar o elemento de artifício camp no cinema de Warhol: o artista dava espaço para que seus atores improvisassem, e estes respondiam com performances afetadas, tipicamente exibicionistas. Devido ao ambiente majoritariamente gay da Factory, um estilo de performance, em especial, ganhava espaço nos filmes de Warhol: aquela ligada a um certo desmunhecar, que Thomas Waugh definiu como o paradigma da queen, em oposição ao do hustler. Queen, aqui, não designa apenas a prática do drag, mas um tipo de performatização geral do feminino: “a queen é afeminada, intensa, produzida, oral, desejosa”, diz o autor18 18 WAUGH, Thomas. Cockteaser. In: DOYLE, Jennifer; FLATLEY, Jonathan; MUÑOZ, Esteban (ed.). Pop out: queer Warhol. Durham: Duke University Press, 1996. p. 54, tradução minha. . Esse tipo de performance pautava o comportamento tanto dos homens afeminados quanto de grande parte das mulheres presentes nos filmes de Warhol. A montação podia ou não tomar parte no show, mas, de maneira geral, é o performar que constitui o foco de interesse dos filmes de Warhol. Um interesse que ultrapassa a especificidade da queen e se abre ao artifício da performance em geral, entendida aqui no sentido de projetar uma imagem de si.

Esse performar, que nos filmes de Jack Smith e Kenneth Anger era sustentado pelo paramentar-se, nos filmes de Warhol, contudo, será submetido a outro processo: aquele de um desnudamento. Em outras palavras, os filmes de Warhol põem em cena a performance camp, com seus artifícios e exageros, mas para desmontá-la. O próprio Mario Montez será vítima desse processo num outro filme, Screen test #2 (1965), em que ele se coloca diante da câmera enquanto vozes vindas de fora-de-campo fazem de tudo para manipulá-lo e expô-lo, às vezes de maneira francamente perversa. Esse dispositivo será repetido por Warhol com Edie Sedgwick em Beauty #2 (1965), entre outros filmes.

Assim, os filmes de Warhol operam um violento processo de desconstrução da performance. Seus filmes não montam (uma pose, uma cena, uma unidade ficcional); eles desmontam. O cinema funciona como uma máquina de transparência que busca uma matéria para além da performance. São as “pessoas reais” a que ele se refere na entrevista que serve de epígrafe a este texto. Warhol prometia a suas superstars a beleza e a glória do cinema, mas em seus filmes o estrelato vem sempre inseparável de uma exposição, de um descortinar das fragilidades e dos limites de seus atores.

Se as telas de Warhol tinham como tema principal as superfícies maquiadas das mercadorias na sociedade de consumo, nos filmes essa camada do artifício vai abaixo e nos deixa entrever uma outra superfície, mais vital: a pele dos atores. Nos filmes de Warhol, os atores estão sempre seminus ou em vias de se despir. A câmera posiciona-se muito próxima e frontal em relação aos corpos, criando uma sensação de pregnância corpórea. Contribui para isso, ainda, o alto contraste da fotografia em preto e branco, que faz a pele dos atores saltar sobre o fundo escuro dos ambientes fechados (nota-se que os atores de Warhol, em sua imensa maioria, possuíam a pele branca). Praticamente todos filmes de Warhol são ensaios sobre a pele, e aí reside seu erotismo latente, que é completado pelo olhar voyeurista da câmera.

Esse sentido de nudez, física mas também psicológica e pessoal, é a principal marca do cinema de Warhol. Seus filmes desvelam personalidades, tiques pessoais, poses, artifícios a partir do próprio contato entre a câmera e aqueles que se colocam diante dela. Aqui, a longa duração dos planos desempenha papel fundamental. Filmadas por tempo demais, um tempo que as excede, todas as tentativas de performar terminam por ruir. Nesse falhar, essas performances revelam a matéria de que são feitas, os artifícios que as põem para funcionar.

Mesmo quando há um roteiro a ser seguido (como em Kitchen ou Vinyl), os atores de Warhol são incapazes de sustentar uma unidade ficcional. Não por falta de habilidade ou profissionalismo (ainda que ambos também fossem patentes), mas porque Warhol deliberadamente retirava os meios para que essa performance pudesse sustentar-se. Primeiro, pela opção em deixar a câmera sempre rodando, sem cortar: o tempo não “socorrido” pelo corte arruína qualquer performance. Segundo, por algumas intervenções discretas no set, no mais das vezes disfarçadas sob o trabalho de alguns assistentes-colaboradores (Chuck Wein, Paul Morrissey), que procuravam criar interações deliberadamente explosivas, sempre no sentido de tensionar e friccionar a performance, estabelecendo uma dinâmica de entropia em que as cenas sempre tendiam ao caos. Entre os exemplos, estão as citadas provocações vindas de fora de campo em Beauty #2 e Screen test #2, ou o momento de Chelsea girls em que Ondine, um dos atores, descontrola-se e passa a insultar sua companheira de cena. O descontrole era parte essencial do método de desmontagem da performance conduzido por Warhol. Seus filmes realizam-se em uma dialética permanente entre a tentativa de performar e o fracasso dessa performance.

Em seu despojamento, os filmes de Warhol colocam-se neste lugar limite em que a performance nasce para, em seguida, desfazer-se, ao ser submetida ao tempo. A câmera catalisa o gesto de performar, que realizamos, de maneira mais ou menos consciente, em qualquer situação social. No laboratório da Factory, porém, esse performar é submetido a condições ideais, que são aquelas da cena, preparada e rodada em ambiente fechado. Isolando e amplificando a performance, a câmera revela sua artificialidade. O cinema funciona como uma máquina da verdade que corrói poses e o teatro sensível que produzimos diariamente para nos apresentarmos diante do mundo.

Os Screen tests são os filmes de Warhol em que esse processo de desconstrução torna-se mais cristalino. Nesses filmes-retrato, não havia texto a ser representado, nem uma orientação do que fazer para aqueles diante da câmera. Os retratados eram convidados a permanecer imóveis diante da câmera, apenas sendo “eles mesmos”. Em sua maioria, as respostas são carregadas de desconforto. Encarados persistentemente pela câmera, sem objetos de cena em que se apoiar ou um texto atrás do qual se esconder, os retratados hesitam entre o embaraço autoconsciente e a tentativa de performar, de montar uma pose. Como ser “eu mesmo” diante da câmera? Isso é possível? O “eu mesmo” existe?

Alguns retratados tentam responder à câmera congelando uma pose artificial. Lou Reed segura fixamente uma barra de chocolate Hershey’s, tal como um garoto-propaganda em um still publicitário. Ann Buchanan realiza o mais estático dos Screen tests: petrificada, ela luta para não piscar diante da câmera. Mas o tempo inviabiliza a pose: Lou Reed se move, pisca as pálpebras, e Ann Buchanan, justamente por não piscar, deixa escorrer uma lágrima (Fig. 1 e 2). O tempo traz consigo o movimento, e o artifício da pose é corroído pelas funções orgânicas vitais dos retratados - respirar, equilibrar-se, lacrimejar.

Fig. 1
Still de Screen Test: Lou Reed (Hershey) (1966), Andy Warhol, Estados Unidos.

Fig. 2
Still de Screen Test: Ann Buchanan (1964), Andy Warhol, Estados Unidos.

Em outros casos, o confronto com a câmera cria uma sucessão de poses inquietas e hesitações, como nos Screen tests da cantora Nico e do ator Dennis Hopper. Nico (Fig. 3) vez ou outra graceja para a câmera, mas, durante a maior parte do tempo, hesita, alterna poses, como se se perguntasse qual delas é a melhor: que máscara devo projetar? Já Dennis Hopper exibe uma pose compenetrada, uma máscara cerrada, numa tentativa de esconder as emoções e sustentar um eu em toda a sua dignidade (Fig. 4). Tanto em um quanto em outro, é nítida a impressão de sofrimento com o longo tempo de exposição diante da câmera. Por quanto tempo é possível sustentar uma pose? Quem vai ganhar a aposta? A máscara será vencida? É bem evidente que ela vai ruir. Mas a pergunta mais importante é: o que há além da máscara? Alguma verdade sairá dessa escavação facial?

Fig. 3
Still de Screen Test: Nico (1966), Andy Warhol, Estados Unidos.

Fig. 4
Still de Screen Test: Dennis Hopper (1964), Andy Warhol, Estados Unidos.

A angústia de Nico, Dennis Hopper e outros diante da câmera nos lembra as reflexões de Barthes sobre aquele que é retratado, que se pergunta sobre sua imagem que “vai nascer”:

Vão me fazer nascer de um indivíduo antipático ou de um “sujeito distinto”? Se eu pudesse sair sobre o papel como numa tela clássica, dotado de um ar nobre, pensativo, inteligente etc.! Em suma, se eu pudesse ser “pintado” (por Ticiano) ou “desenhado” (por Clouet)! No entanto, como o que eu gostaria que fosse captado é uma textura moral fina, e não uma mímica, e como a fotografia é pouco sutil, exceto nos grandes retratistas, não sei como, do interior, agir sobre minha pele (…). Eu queria, em suma, que minha imagem, móbil, sacudida entre mil fotos variáveis, ao sabor das situações, das idades coincidisse sempre com meu “eu” (profundo, como é sabido).19 19 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 18-19.

O que os filmes de Warhol captam é justamente essa imagem “móbil, sacudida entre mil fotos variáveis” de que fala Barthes. Eles capturam - e nisso reside sua força - esse tecido fugidio, contingente da performance. Aqui poderíamos ser tentados a dizer que, se as telas de Warhol dedicaram-se a estudar o artificial, as superfícies da sociedade de consumo, seus filmes buscam ir além dessa casca congelada, transcender a superfície para encontrar uma suposta verdade. Uma verdade que seria revelada pelo realismo intrínseco da imagem cinematográfica. Mas essa interpretação arrisca ser demasiado simplista. Pois como falar de “verdade” em filmes nos quais tudo é pose, artifício, superfície? Onde está a verdade em filmes que nos mostram uma sucessão de performances, de poses? Existe um “natural” além da pose?

Se há uma verdade nos filmes de Warhol, no sentido de uma correspondência com uma interioridade, é bem evidente que esta é uma verdade ausente. Ela está na passagem entre uma pose a outra, numa hesitação, ou mesmo na mudança de um fotograma a outro. Está sempre nesse “entre” que nunca chegamos a agarrar propriamente. Pois todo o resto é aparência: performance, gesto, pose, e mesmo a pele - a fronteira final, a última superfície. Tudo é aparência, e tudo é falso - admiravelmente falso, diria Warhol. A verdade só pode estar ausente porque, uma vez presente, ela é necessariamente aparência, portanto falsa.

No entanto, em Warhol, a aparência raramente constitui um tecido perfeito. Já era assim nas serigrafias, nas quais a mesma imagem era replicada ao longo da extensão da tela, mas a passagem entre uma reprodução e outra era sempre falhada, o que criava certa sensação de movimento. Apesar de lisa, a superfície carregava os acidentes intrínsecos ao processo. A máquina nunca foi perfeita. Nessas falhas, nas manchas involuntárias que surgiam fruto das reproduções de uma máquina desastrada, era possível sentir, como diria Hal Foster, um real (entendido no sentido lacaniano) que retornava e, rompendo o anteparo, nos atingia, como uma flecha20 20 FOSTER, Hal. O retorno do real. In: FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 123-158. . No performar dos filmes, essa falha adquire os contornos de um humanismo, colocando-nos frente a frente com a verdade daquelas figuras retratadas.

Bibliografia

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  • WÖLLEN, Peter. Raiding the icebox. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI , 1989. p. 14-27.
  • 1
    WARHOL, Andy. An interview with Andy Warhol. Entrevistador: David Ehrenstein. Film Culture, New York, n. 40, p. 41, Spring 1966.
  • 2
    Um bom apanhado das figuras que compunham o ambiente radicalmente boêmio e não normativo da Factory dos anos 1960 encontra-se no capítulo 5 (“A primeira morte”) da monografia que Arthur Danto dedicou a Warhol. Cf. DANTO, Arthur C. A primeira morte. In: DANTO, Arthur C. Andy Warhol. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 127-160.
  • 3
    Os Screen tests talvez sejam a expressão máxima, dentro da obra de Warhol, de sua famosa frase: “No futuro, todos serão famosos por quinze minutos”.
  • 4
    BIESENBACH, Klaus et al. (ed.). Andy Warhol: motion pictures (catálogo da exposição). Berlim: KW Institute for Contemporary Art, 2004.
  • 5
    Callie Angel nota que todos os filmes de Warhol têm “como preocupação central o ato de retratar”. Cf. ANGEL, Callie. Something secret: portraiture in Warhol’s films. Sidney: Museum of Contemporary Art, 1994. p. 2.
  • 6
    No original: “Then Pop Art took the inside and put it outside, took outside and put it inside”. WARHOL, Andy; HACKETT, Pat. POPism: the Warhol Sixties. Londres: Penguin Books, 2007. E-book. Tradução minha.
  • 7
    Na tradução brasileira, a frase aparece ligeiramente diferente: “Então a Pop Art pegou o interior e virou para o exterior, pegou o exterior e virou para o interior”. Cf. WARHOL, Andy; HACKETT, Pat. Popismo: os anos sessenta segundo Andy Warhol. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. p. 11.
  • 8
    BERG, Gretchen. Nothing to lose: an interview with Andy Warhol. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI, 1989. p. 54-61, tradução minha.
  • 9
    BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. In: MACIEL, Kátia (org.). A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 179.
  • 10
    Ibidem, p. 188.
  • 11
    SELZ, Peter. The flaccid art. In: MADOFF, Steven Henry (ed.). Pop art: a critical history. Berkeley: University of California Press, 1997. p. 85, tradução minha. Mais recentemente, essa percepção das imagens da pop como vazias informou leituras que a aproximavam do contexto da pós-modernidade, dentre as quais aquela realizada por Frederic Jameson é um caso exemplar. Cf. JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007. p. 35-37.
  • 12
    BARTHES, Roland. Esta coisa antiga, a arte… In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 185.
  • 13
    Não estamos longe aqui do sentido de teatro que o crítico Michael Fried identificava na experiência contingente da arte minimalista.
  • 14
    Sobre essa questão, ver o artigo de Isabelle Graw: GRAW, Isabelle. Quando a arte sai para trabalhar: Andy Warhol. Tradução de Sônia Salzstein. ARS, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 244-261, 2017.
  • 15
    Entre as notáveis exceções está Empire (1964), no qual a imagem do Empire State Building funciona como um evidente signo (fálico) do poder do capital. Outro filme de Warhol que se aproxima do imaginário pop é o pouco conhecido Soap opera (1964), que simula uma transmissão de TV na qual cenas de um melodrama B televisivo são intercaladas com anúncios publicitários voltados para o público feminino.
  • 16
    Peter WöllenWÖLLEN, Peter. Raiding the icebox. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI , 1989. p. 14-27. nota muito bem que os filmes de Warhol fazem-se na intersecção entre duas tendências antagônicas: o minimalismo e o camp. Do primeiro, eles herdam a impessoalidade “fria” da composição serial; do segundo, o gosto “quente” pela performance. Cf. WÖLLEN, Peter. Raiding the icebox. In: O’PRAY, Michael. Andy Warhol: film factory. Londres: BFI, 1989. p. 14-27.
  • 17
    SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 323, grifo meu.
  • 18
    WAUGH, Thomas. Cockteaser. In: DOYLE, Jennifer; FLATLEY, Jonathan; MUÑOZ, Esteban (ed.). Pop out: queer Warhol. Durham: Duke University Press, 1996. p. 54, tradução minha.
  • 19
    BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 18-19.
  • 20
    FOSTER, Hal. O retorno do real. In: FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 123-158.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2019
  • Aceito
    11 Jun 2019
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