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A função-curador: discurso, montagem, composição

Curator-as-function: discourse, montage, composition

Curador como función: discurso, montaje, composición

Resumos

O artigo procura analisar o modo como a curadoria foi se transformando ao longo das últimas décadas. De organizador de exposições, o curador assumiu-se como agente propositor de narrativas históricas alternativas. Nesse aspecto, a montagem de exposições passou a incorporar elementos da atividade crítica, sendo que, paradoxalmente, a curadoria atua no interior das instituições museológicas e muito próxima do mercado de arte. Pretendemos compreender esse processo não apenas sob a óptica da captura institucional da crítica, mas também como inexorável a um mundo globalizado, atento a perspectivas históricas heterogêneas.

arte contemporânea; estudos curatoriais; crítica institucional


The article focuses on the development of curatorship in the last decades. Acting primarily as exhibition planners, curators started dedicating themselves also to the proposal of alternative historical narratives. Accordingly, the process of installing an exhibition has incorporated some critical elements, albeit the curatorial task takes place inside the institutional space of museums and in tandem to the art market. Our purpose here is to understand this process considering it not only in relation to the capture of criticism operated by institutions, but also as an inevitable movement inside a globalized art world which is significantly affected by multiple historical perspectives.

Contemporary Art; Curatorial Studies; Institutional Critique


El artículo busca analisar la manera como la práctica del curador ha cambiado en las últimas décadas. De mero organizador de exposiciones, el curador ha asumido la tarea de proponen narrativas históricas alternativas. Así, la montaje de exhibiciones pasó a incorporar elementos de la actividad crítica, aunque, pradójicamente, el trabajo curatorial sea desempeñado al interior de las instituciones museológicas y muy cerca del mercado del arte. Intentamos comprender ese proceso no sólo desde el fenómeno de captura institucional de la crítica, sino también cómo algo inevitable en el mundo globalizado y atento a perspectivas históricas heterogéneas.

arte contemporánea; estudos curatoriales; crítica institutional


Deve existir uma maneira

de exercer a empatia que gere o

efeito de um estranhamento.

- Harun Farocki

É sabido por todos o quanto a curadoria assumiu um protagonismo exagerado no meio de arte nas últimas décadas. Não obstante o exagero, que é real, trata-se de um fenômeno que responde a certas características do nosso tempo. Uma quantidade superlativa de novos museus, centros culturais e bienais foi aparecendo por todos os lados. A lógica do entretenimento demanda um gestor competente, que pense uma agenda variada de exposições. Além disso, uma economia pautada em serviços e consumo pressupõe outra lógica produtiva, mais ligada às escolhas e à experiência. Essas são características que dão à propagação das curadorias um acento problemático, no sentido de refletir uma adequação sistêmica sem qualquer atrito crítico.

Por outro lado, vimos, desde pelo menos a década de 1960, instalar-se uma crise inequívoca da narrativa histórica teleológica, tal qual definida pelo relato modernista. Essa crise acabou por liberar a multiplicação de relatos, produzindo camadas de temporalidades simultâneas. Como explicitou o teórico Hans Ulrich Gumbrecht, “entre os passados que nos engolem e o futuro ameaçador, o presente transformou-se numa dimensão de simultaneidades que se expandem”1 1 . GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 16. . A razão de ser dos museus e das exposições foi deveras transformada a partir daí e mais claramente desde os anos 1980. Para o bem e para o mal. Há que se rearticular, a partir dessa nova situação, o vínculo entre historicidade e experiência; melhor dizendo, o modo como as múltiplas narrativas históricas se inscrevem no corpo e na cultura, produzindo, paradoxalmente, empatia e estranhamento, pertencimento e divisão. É no meio desse conjunto diferenciado de problemas que devemos rever os sentidos do que chamamos de arte, das suas possibilidades de interferir no mundo e os modos de fazermos e avaliarmos as exposições.

Minha intenção é discutir os desafios da curadoria, do fazer curatorial, tendo em vista a crise da historicidade moderna da arte. Uma historicidade marcada pelo viés teleológico e pela unidade temporal com pretensões universalizantes. Mesmo que seja uma unidade construída a posteriori, ela se disseminou na crítica e na historiografia e marcou a montagem das principais exposições de acervo dos museus de arte moderna até a década de 1980.

Isso posto, cabe dizer que assumiremos o gesto curatorial não pelo fascínio da experiência anestésica do espetáculo, mas enquanto forma de pensar a articulação entre arte, exposição e produção de conhecimento que tem, no dispositivo da montagem, sua razão de ser. Nesse aspecto, há que se considerar o modo como a curadoria pode carregar alguma dimensão crítica, implicando uma discussão sobre como a crise dessa historicidade moderna hegemônica desdobrou-se na redefinição do modo de ser da crítica, de suas possibilidades e seus usos. A prática que buscava definir as várias condições de possibilidade do artístico e suas especificidades parece ter perdido lugar e se enfraquecido desde a década de 1980. Em certa medida, pode-se dizer que tal enfraquecimento tem relação com o protagonismo curatorial. Relação sem determinação, uma vez que há que se perceber algum vigor crítico na atividade curatorial. Expandindo o objetivo inicial, pretendo tratar da crise da crítica e da tarefa da curadoria diante dessa crise.

Outro ponto que surge aí é a reavaliação do que podemos esperar hoje tanto da dimensão crítica da arte quanto da própria crítica de arte. Uma reconsideração, portanto, a respeito não apenas dos modos como a prática artística pode ainda mobilizar transformações estéticas, políticas e sociais, mas também da atividade crítica como avaliadora de um sentido histórico e transformador da arte. A maneira como a dimensão crítica da arte na modernidade responde a certa ideia de historicidade e a suas respectivas crises traz à cena o gesto curatorial. Tendo em vista que a arte está capturada pelo museu, em que medida a experiência que temos dela dentro desses espaços pode apontar para além do ambiente institucional e ajudar a produzir novas formas de percepção e eventual transformação do mundo comum? É por conta dessa circulação institucionalizada da arte, de ser mais fácil o “mundo” ir para dentro do museu do o contrário, que a função curatorial passa a ter um papel relevante. Relevância que pode levar ao deslumbre estéril, como já apontamos.

A crítica de arte nasceu no século XVIII, junto com a crise do modelo de produção artística tradicional, acadêmico, pautado no sistema das belas-artes. Kant, Goya e o romantismo estão na genealogia desse processo, que constitui o regime estético da arte, na terminologia Rancieriana. A ligação entre o saber técnico, o endereçamento poético e a forma de experienciar, que determinava o que se podia fazer e esperar da arte, estava subjacente ao sistema das belas-artes e funcionava também como parâmetro avaliativo. Isso começa a ruir com a Crítica do Juízo kantiana, a produção poética romântica e uma nova tarefa crítica que surgia a partir daí. Vemos, assim, que há uma coincidência entre o aparecimento da dimensão crítica e da ideia de liberdade política – ambas são filhas do acontecimento revolucionário. Ambas marcam também a necessidade de invenção de novas instituições, que deem conta desses novos modos de fazer, de perceber e de compreender o que era feito enquanto arte (e também enquanto política).

Como observou Jacques Rancière,

[...] a arte, como noção que designa uma forma específica de experiência, só começou a existir no ocidente a partir do século XVIII. Seguramente, todos os tipos de arte, as várias técnicas e procedimentos já existiam, algumas inclusive gozando de status privilegiado entre as artes liberais e, mais tarde, entre as belas-artes. Mas a Arte, no singular e com maiúscula, a arte como esfera de experiência específica, não existia antes do século XVIII.2 2 . RANCIÈRE, Jacques. La modernidade estética: uma noción por repensar. In Estudios artísticos: revista de investigación creadora, Bogotá, v. 4(5), pp. 176-190, 2018. Disponível em: <https://revistas.udistrital.edu.co/index.php/estart/article/view/13492/13900>. Acesso em: 2 de agosto de 2019. Tradução minha.

As críticas de Baudelaire, já meio século depois, tentavam responder a essa experiência singular, a essa crise do modelo tradicional, ou seja, respondiam a um modo de ser da arte que escapava a todo tipo de normatividade – seja relacionado ao tema, ao contexto cultural, ao período histórico. A crítica surge da constituição singular da arte, quando esta perde contato com um saber técnico tradicional, singulariza-se enquanto experiência e constitui para si este lugar indeterminado entre poder ser qualquer coisa e não ser uma coisa qualquer.

É de dentro dessa indeterminação do artístico, em que a fronteira entre arte e não arte é constantemente redesenhada, que o regime estético das artes impõe ao ajuizamento seu compromisso de afirmar diferenças sem fixar critérios. É aí que o regime estético se faz político, apostando que, sem conceitos a priori, a experiência sensível constitui seus próprios parâmetros de orientação, forjando ou formando, na percepção do que é singular, um sentido comum. Esse é o jogo denominado por Kant como um sentir subjetivo com pretensão de universalidade. Uma universalidade aberta, disponibilidade ao outro que se faz a partir da possibilidade assumida a priori de que qualquer um está apto a sentir a intensidade da experiência estética, do belo e do sublime (segundo Kant).

Essa questão da pretensão de universalidade do ajuizamento estético é dos pontos mais originais, complicados e polêmicos da Terceira Crítica kantiana. Muitos enxergam aí, nessa universalidade, o sinal da arrogância iluminista, etnocêntrica e insensível às diferenças culturais. Não vejo assim. A ousadia de querer um assentimento universal não passa de uma pretensão, de uma busca, de um lançar-se na direção do outro por acreditar na possibilidade de compartilhamento daquilo que é sentido de forma intensa e inespecífica. Um sentir que mobiliza o que Kant chama de voz universal e torna qualquer um apto a sentir o belo e o sublime. Assumir essa voz implica recusar todo tipo de hierarquia, no que tange ao modo como nossas faculdades são afetadas e nos ajuizamos esteticamente. Como observou Giorgia Cecchinato, “o compartilhamento universal do juízo de gosto é assumido então por quem julga, como se falasse por meio de uma voz universal e serve como pedra de toque para o juízo efetivo”3 3 . CECCHINATO, Giorgia. O dever de compartilhar e a necessidade de discutir. Sobre a finalidade intersubjetiva do gosto. In: PAZETTO, D. CECCHINATO; G. COSTA, R. Os fins da arte. Volume 1. Belo Horizonte. Relicário Edições, 2018, p. 2. Cito aqui da versão encaminhada pela autora antes da publicação, seguindo a paginação do texto dela. .

Não se trata, portanto, de uma universalidade que obriga todos a concordarem com o meu sentir/juízo. Aqui, no caso dos juízos estéticos, não se trata de todos, mas de qualquer um estar apto ao ajuizamento, desde que disponível ao seu campo de sentidos. A universalidade fechada dos juízos de conhecimento ou do imperativo categórico, porquanto pautada em conceitos, constrange todos os sujeitos racionais a acompanharem seus enunciados. Já a universalidade que se insinua no belo é de outra natureza, seria mais uma pluriversalidade, a abertura para um sentir em comum que se dá no seio da indeterminação inerente à experiência estética. Trata-se de uma disposição para sentir, de afecções não determinadas por interesses, de pôr-se à prova, de se engajar no compartilhamento e, por isso, de buscar as palavras que traduzam essa experiência.

A crítica vem nos ajudar a habitar essa indeterminação. Ela não pretende resolver a indeterminação. Se assim o fizesse, iria restitui-la ao regime representativo, ao sistema tradicional das artes. Indo mais além, podemos dizer que a crítica é tanto uma atividade profissional como uma resposta ativa ao modo de sentir específico e heterogêneo diante das obras que nos mobilizam. No limite, lidar com a arte e sua indeterminação obriga o espectador a se mobilizar. Mobilizar, aqui, é sempre se ver obrigado a fazer algo com aquilo que se vê enquanto arte. Produzir relações, fazer associações com outras obras presentes na história da arte e com outras formas de experiências não artísticas. Ser afetado e pensar junto às obras.

Para muitos, esse “pensar junto” da crítica retiraria dela a sua dimensão genuína de combate e de ajuizamento. Restariam condescendência e docilidade, impondo ao texto crítico (e, consequentemente, à curadoria em seguida) uma submissão acrítica ao mundo da arte – e, mais perigosamente ainda, ao mercado. Não nego que riscos existem, mas o ponto principal é requalificar a relação entre crítica e juízo e o estatuto do juízo no desdobramento de sentido da arte, no modo pelo qual as obras são legitimadas historicamente e produzem novas formas de sentir e novos dispositivos judicativos. O que quero enfatizar é que ajuizar não implica a deliberação hierárquica, devendo ser visto mais como um “pôr em relação” que sublinha diferenças. Assim, a recepção crítica desdobra-se em uma espécie de fazer criativo em que se trabalha a experiência, transformando afetos opacos em possibilidade de sentido. Essa busca de sentido na experiência inerente à crítica resvala no fazer curatorial, visto que opera aproximações de montagem, deslocando sentidos instituídos e multiplicando formas de sentir e pensar a partir das obras.

Cabe discutir aqui o quanto essa prática crítica pode restituir a historicidade característica à arte na modernidade (ou no regime estético das artes) sem aprisioná-la no historicismo próprio à tradição de ruptura das vanguardas e do modernismo. Como salientou Jacques Rancière, “uma coisa é a historicidade própria a um regime das artes em geral. Outra, são as decisões de ruptura ou antecipação que se operam no interior desse regime”4 4 . RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2005, p.27. . De um lado, a arte nos coloca diante de um território de possibilidades e expectativas intrínseco a cada época; do outro, de uma tirania do progresso capaz de unificar as camadas heterogêneas do tempo que atravessam cada momento histórico e o compromisso da arte em produzir essas heterogeneidades. Mais pontualmente, podemos dizer que esse vínculo entre arte e história carrega uma dimensão política própria aos modos como nossa sensibilidade se deixa transformar e desloca as formas de pensar e estar no mundo. Ou seja, abre possibilidades emancipatórias sem que estas dependam de uma ruptura revolucionária ou de qualquer conscientização ideológica que as viabilize. Não há garantia, há potencialidade emancipatória relativa à experiência estética e ao modo pelo qual a arte nos faz produzir sentidos inesperados.

Sem fazer um desvio muito longo e radical, gostaria de retomar Jacques Rancière, em seu livro O mestre ignorante, que propõe caminhos alternativos para pensarmos a emancipação diante da crise do modelo que a associava ao corte revolucionário e, portanto, ao direcionamento conceitual e histórico que iluminava o caminho até essa ruptura. O que me interessa, portanto, é o descolamento entre emancipação e corte revolucionário. Para Jacotot, o pedagogo que protagoniza, no livro, a discussão sobre modelos de aprendizado não hierarquizados, o processo pedagógico constituía-se a partir do abandono da tradicional perspectiva de uma transmissão vertical do saber – pela qual se ensinaria apenas aquilo que já é sabido àqueles que nada sabem – em prol de um tipo de conhecimento horizontal e relacional. Para além da viabilidade operacional desse novo processo, o que se sobressai é a redefinição de modos de formação mais participativos e focados nas experiências adquiridas, com o intuito de trabalhar partilhas e diferenças entre sujeitos e grupos sociais. Uma formação que não passaria pelos conteúdos ensinados, mas pelo processo de produzir conhecimento através do compartilhamento de vivências distintas e pela troca de perspectivas de compreensão do que está sendo ensinado.

Em seguida, ampliando seu raciocínio na direção de revalidar o lugar (ativo) do espectador na experiência estética, Jacques Rancière, a meu ver, pode nos ajudar a compreender os caminhos percorridos pelo juízo reflexionante kantiano – tão importante para o que veio a ser entendido como exercício crítico –, que busca compartilhar sentido a partir de experiências singulares. Segundo ele, o caminho da emancipação intelectual do aluno e do espectador

[...] é simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto, que pode aprender não para ocupar a posição do intelectual, mas para praticar melhor a arte de traduzir, de pôr suas experiências em palavras e suas palavras à prova, de traduzir suas aventuras intelectuais para uso dos outros e de contratraduzir as traduções que eles lhe apresentam de suas próprias aventuras.5 5 . RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 15.

Esse jogo entre saber e não saber, entre sentir e procurar traduções, entre traduzir e inventar abre uma nova perspectiva para inserirmos a atividade crítica junto ao trabalho curatorial. De início, parte-se de um quadro de referência, de um conjunto de saberes adquiridos que são postos em jogo pela experiência – seja aquela do aprender ou do confronto com as obras de arte. As tarefas do pedagogo, desdobrando-se naquelas do crítico e do curador, combinariam elementos da tradução e da encenação, ou seja, da montagem. O que se sobressai aqui é a necessidade de pensar a função crítica desse gesto de pôr em cena, de montagem, de dispor as obras (e não obras) e compor relações significantes.

Como observou a crítica e teórica Dorothea Von Hantelmann, “toda obra de arte produz algum tipo de experiência estética. Mas, desde os anos 1960, a produção de experiências tem sido característica determinante das obras de arte”6 6 . HANTELMANN, Dorothea. The Experiential Turn. In: CARPENTER, Elizabeth (org). On Performativity. Vol. 1 of Living Collections Catalogue. Minneapolis: Walker Art Center, 2014, p.1 Disponível em: <http://walkerart.org/collections/publications/performativity/experiential-turn>. Acesso em: 25 de julho de 2019. Tradução minha. . Desde esse momento, mais especificamente a partir do minimalismo, o modo a partir do qual lidamos com as obras leva em consideração menos o que se imagina ser o conteúdo específico de cada trabalho e mais sua forma de articulação com o espaço externo e com o corpo de quem o confronta. A noção de obra se transforma, ganha novas materialidades e procura outras formas de articulação com o mundo bruto e as imagens que circulam à sua volta. Em vários movimentos artísticos a partir da década de 1960, vemos um deslocamento do objeto para o espaço, para a instalação, além de uma recuperação experimental da imagem para além da mera figuração.

Em seguida, diante do desafio de pensar as fronteiras oscilantes entre arte e não arte para além da inflação espetacular de afecções estéticas pelo entretenimento e pela publicidade, Von Hantelmann se pergunta: “O que aconteceu? Como uma experiência pode se tornar algo como um significante artístico na arte contemporânea? Como as experiências são criadas, moldadas, refletidas em obras de arte e como elas produzem sentido?”7 7 . HANTELMANN, Dorothea. Idem, p.1 . Esse processo, no qual a obra passa a assumir múltiplas formas e materiais e se dissemina pelo espaço instalativo, coincide com o surgimento da figura do curador como propositor de projetos expositivos e que assume, através da montagem, uma intenção criadora. Não se trata da substituição do artista pelo curador, mas de perceber uma potência criativa no processo de pôr a obra em cena. Significa montar uma exposição e ver nesse gesto um desdobramento, um levar adiante do processo criativo que movimenta as obras e transtorna sentidos estabelecidos, multiplicando as formas de sentir e agir no mundo. A função-curador começa a ganhar sentido no meio da arte a partir daí. Ele já não é mais o organizador de exposições, mas, parafraseando Foucault, passa a ser um disparador de discursividades e de formas outras de ver as obras – formas essas que se de dão no interior do campo semântico proposto pela montagem e suas articulações estéticas e conceituais.

A montagem é uma operação que aproxima o curador do diretor de teatro e do cineasta. Como apontou Didi-Huberman, “a montagem separa coisas habitualmente reunidas e conecta coisas habitualmente separadas. Ela cria um abalo e um movimento”8 8 . DIDI-HUBERMANN, Georges. Quando as imagens tomam posição. 1ª reimpressão. Belo Hoprizonte: Editora UFMG, 2017, p.123. . Por meio da montagem, o curador pode combinar a individuação das obras com sua inserção em uma narrativa articuladora, ou seja, o abalo e o movimento inerentes ao jogo de tensões entre as partes e o todo. Em certa medida, é na constituição das relações específicas de uma montagem que a obra pode desvelar sentidos anteriormente velados, sentidos que se constituem na experiência relacional das obras vistas em conjunto. Esse é um aspecto relevante da transição da obra de arte individualizada e objectualizada para aquilo que Von Hantelmann chama de “estética da experiência”.

Cada montagem expositiva nos obriga a reajuizar as obras dentro de um contexto específico, a vê-las sendo consumidas pelo arbítrio conceitual do curador, risco inerente a esse gesto, ou abrindo-se a novas possibilidades de sentido derivadas das relações propostas pela curadoria. A força poética das obras e nossa capacidade de percepção e afecção mobilizada pela curadoria não necessariamente se contradizem. O que quero apontar aqui é que nem sempre o gesto curatorial atravessa e eclipsa o vigor próprio aos trabalhos. Uma exposição, se bem pensada e montada, torna-os complementares. As interpretações/sugestões/afecções produzidas no interior de uma proposta curatorial bem-sucedida articulam o que é específico às obras ao que é particular à experiência conjunta que se desenvolve no interior da exibição. O enquadramento curatorial não pretende normatizar, ditar uma interpretação única das obras, mas buscar formas novas de percebê-las, circunscritas ao interesse específico daquela montagem. Esse foco específico da proposta expositiva pode também revelar elementos ainda não percebidos daquelas mesmas obras.

Tocamos aqui na questão do que cabe ao curador e do quanto há de criação possível no seu gesto. A existência de artistas-curadores tem aumentado a autonomia de criação dessa operação. A redefinição da prática curatorial, sua inserção efetiva enquanto modo de pensar o “pôr-se em obra” das exposições vem acompanhada, como já apontamos, pelo surgimento das instalações e pela disseminação do acontecimento artístico no próprio espaço expositivo. Conforme enfatizou a historiadora da arte Claire Bishop, as trajetórias das instalações e das curadorias estão claramente cruzadas, levando a interpretação curatorial para a montagem da exposição e seus dispositivos9 9 . Para desdobramentos do argumento de Bishop, cf. BISHOP, Claire. Qué es um curador? El ascenso (y caída?) del curador auteur. In: Criterios, La Habana, n. 7, mayo 2011. .

A curadoria, para além de se misturar ao que seria a tarefa da crítica – o pensar junto aos trabalhos, dando-lhes reverberações de sentido não percebidas anteriormente –, muitas vezes assume uma dimensão autoral, com instalações expositivas tomadas quase enquanto obras de arte. Esta era já a acusação feita por Daniel Buren a Harald Szeeman, quando o último foi curador da Documenta de Kassel de 1972: de que a própria exposição de arte se transformava em uma espécie de obra de arte total. Em uma entrevista de 2015, Artur Barrio afirmou que o curador é uma necessidade desnecessária10 10 . Essa citação de Artur Barrio encontra-se na Revista SELECT, nº 22, fev 2015, p. 31. Disponível em: <https://www.select.art.br/edicao/edicao-22/>. Acesso em: 28 de novembro de 2019. . Críticas e polêmicas à parte, parece-me importante entender a presença do curador e sua crescente relevância como parte de um sistema da arte mais plural, mais descentralizado, baseado em formas heterogêneas de produção de sentido e narrativas históricas menos determinadas por um viés teleológico.

A curadoria, como tentamos explicitar no começo deste artigo, ganha força respondendo a transformações não só na arte, mas na economia e sociedade contemporâneas, e conduzindo a novas políticas institucionais, o que compreende a produtiva incorporação institucional da crítica e a atuação mais radical e propositiva da dimensão educativa das práticas curatoriais. As narrativas propostas pelas montagens das coleções de museus importantes como o Centro Pompidou, a Tate e, principalmente, o Museu Centro de Arte Reina Sofia sugerem cruzamentos culturais inauditos, uns mais bem-sucedidos e críticos do que outros, reverberando a dinâmica de um mundo globalizado que “não pode mais ser estruturado apenas em termos de centro e periferia” e onde “coexistem inúmeros centros interessantes, que se relacionam entre si não obstante suas diferenças”11 11 . HALL, Stuart. Modernity and difference. Londres: Iniva, 2001, p.21. .

Nesse sentido, o curador é um agente determinante na multiplicação das formas de exposição a partir da qual, e somente então, a arte se apresenta e se constitui historicamente. Portanto, cabe tentar pensar o gesto curatorial na sua capacidade concomitante de dar-a-ver e criar, ou seja, em se assumir como aquele que leva à cena uma montagem sem a qual a arte não se mostra, não se expõe, como um diretor teatral que pensa a articulação entre dramaturgia, espacialidade, afecções e crítica. A tese de que as obras de arte “falam por si”, de que devem ser protegidas da discursividade curatorial, parece-me um tanto enganosa. Obviamente, cada obra produz efeitos específicos, demandando uma resposta sensível e intelectual própria; entretanto, elas sempre se inscrevem dentro de narrativas históricas previamente definidas, tendendo a reorganizar os termos e as relações discursivas a partir de seus dispositivos conceituais e efeitos sensoriais particulares.

Para além disso, sabemos que os sentidos dados às obras de arte constituem-se em termos comparativos, mobilizando outras obras ou experiências para servirem como exemplos, parâmetros, balizamentos; isto é, sejam quais forem esses sentidos, eles estão sempre em disputa, sujeitos ao modo como seus efeitos se inscrevem cultural e historicamente. Sempre é levado em conta o que já sabemos, as expectativas de mudanças que disponibilizamos e algum possível abalo proveniente de uma experiência inesperada. Tudo isso se dá a partir de nossa capacidade de associar livremente o que sentimos, sabemos e imaginamos. É aí, dentro desses jogos de linguagem, que as obras “podem falar”. Parte desse jogo se desenvolve e é posto em movimento pelo modo como expomos as obras e as relações que passam a ser percebidas e sugeridas a partir desse gesto. Curadoria é isso: produzir relações conceituais, afetivas, históricas, políticas, formais, enfim, fazer ver semelhanças no seio das diferenças e constituir diferenças onde tudo parece idêntico.

Parte importante da história do modernismo se constituiu a partir do modo como o MoMA construiu suas narrativas desde a década de 1930 e das aquisições de Alfred Barr, continuadas depois por William Rubin. Entretanto, desde a década de 1980, as narrativas históricas dos museus de arte moderna foram sendo reescritas a partir das montagens extraídas dos debates pós-modernos e pós-coloniais, iniciadas pelo Centro Pompidou e, em seguida, pela Tate e pelo crescente movimento de afirmação das curadorias independentes. Paralelamente, uma arte mais globalizada foi sendo inserida nas coleções dos principais museus do ocidente. Em parte, como estratégia de mercado e em função da sua voracidade por novos artistas ainda com preços acessíveis; em parte, também, como abertura para outras narrativas históricas, que pudessem rever os processos de modernização e multiplicar seus modos de formalização – dando a ver a complexidade e a pluralidade, características tão caras à modernidade e tão sacrificadas pelo modernismo.

Como salientou Dorothea Von Hantelmann no artigo citado, as exposições talvez sejam a principal invenção da época moderna. O entendimento da arte enquanto imbricada ao contexto expositivo e dele dependente vem pelo menos desde Benjamin, constituindo o que ele denominou de valor de exposição das obras de arte em oposição ao seu valor de culto. Ou seja, trata-se de uma relação efetivamente moderna, sendo que as narrativas históricas modernistas pretenderam retirar das exposições um valor propositivo relevante, depositando toda a razão de ser da arte na autonomia formal das obras e no desenvolvimento inexorável da figuração para a abstração. O que o foco na exposição implica é justamente o fato de que as obras se constituem, cultural e historicamente, dentro de um campo discursivo relacional, no qual seus sentidos resultam muito mais do que elas produzem no interior desses territórios narrativos do que eventualmente dizem por “si mesmas”.

Um último ponto a ser abordado concerne o modo como o gesto curatorial, na sua vocação relacional, indica outra forma de crítica, que estaria menos interessada na especificidade, na delimitação das condições de possibilidade de uma disciplina do que no modo como podemos combinar elementos desarticulados para gerar um tipo de compreensão e de experiência imprevisto. Não estamos, assim, voltando a uma confusão pré-crítica, mas arriscando uma composição pós-disciplinar. Como salienta o filósofo e antropólogo Bruno Latour, para redefinir a tarefa da crítica diante da crise do negacionismo ambiental, é preciso visar a uma atuação que saiba multiplicar e não apenas subtrair. Ou seja,

[...] o crítico não é aquele que desmascara, mas aquele que reúne. Não é aquele que levanta o tapete debaixo dos pés dos crentes ingênuos, mas aquele que oferece uma arena para os participantes se juntarem. O crítico não é aquele que alterna arbitrariamente entre o antifetichismo e o positivismo, como o bêbado iconoclasta desenhado por Goya, mas aquele para quem, se algo é construído, é porque esse algo é frágil e precisa de atenção e cuidado12 12 . LATOUR, Bruno. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern, Critical Inquiry, Chicago, v. 30, p.246, Winter, 2004. .

Quiçá, o que parece ser proposto aqui, nessa perspectiva que busca compor, em vez de delimitar, é que se associem as tarefas da crítica àquelas da curadoria.

Enfim, não há um modelo a ser seguido e nem uma defesa incondicional do gesto curatorial. O que pretendi salientar aqui é que a presença crescente desse agente não está apenas a serviço da espetacularização e da mercantilização da arte, mas é o desdobramento de transformações no modo como a arte assume sua historicidade e redefine suas pretensões críticas e políticas. Curadorias experimentais interessam pelo risco. Indicam, acima de tudo, que há sempre na curadoria, na montagem de uma exposição uma vontade de experiência concomitante ao direcionamento narrativo proposto, e que assume que se deva buscar uma equação possível, e sempre contingente, entre empatia e estranhamento.

Bibliografia

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  • GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
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    . RANCIÈRERANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2005., Jacques. La modernidade estética: uma noción por repensar. In Estudios artísticos: revista de investigación creadora, Bogotá, v. 4(5), pp. 176-190, 2018. Disponível em: <https://revistas.udistrital.edu.co/index.php/estart/article/view/13492/13900>. Acesso em: 2 de agosto de 2019. Tradução minha.
  • 3
    . CECCHINATO, Giorgia. O dever de compartilhar e a necessidade de discutir. Sobre a finalidade intersubjetiva do gosto. In: PAZETTOPAZETTO, D. CECCHINATO; G. COSTA, R. Os fins da arte. Volume 1. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2018., D. CECCHINATO; G. COSTA, R. Os fins da arte. Volume 1. Belo Horizonte. Relicário Edições, 2018, p. 2. Cito aqui da versão encaminhada pela autora antes da publicação, seguindo a paginação do texto dela.
  • 4
    . RANCIÈRERANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. São Paulo: Autêntica, 2007., Jacques. A partilha do sensível. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2005, p.27.
  • 5
    . RANCIÈRERANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. São Paulo: Autêntica, 2007., Jacques. O espectador emancipado. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 15.
  • 6
    . HANTELMANN, Dorothea. The Experiential Turn. In: CARPENTERCARPENTER, Elizabeth. On Performativity. Vol. 1 of Living Collections Catalogue. Minneapolis: Walker Art Center, 2014., Elizabeth (org). On Performativity. Vol. 1 of Living Collections Catalogue. Minneapolis: Walker Art Center, 2014, p.1 Disponível em: <http://walkerart.org/collections/publications/performativity/experiential-turn>. Acesso em: 25 de julho de 2019. Tradução minha.
  • 7
    . HANTELMANN, Dorothea. Idem, p.1
  • 8
    . DIDI-HUBERMANNDIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. 1ª reimpressão. Belo Hoprizonte: Editora UFMG, 2001., Georges. Quando as imagens tomam posição. 1ª reimpressão. Belo Hoprizonte: Editora UFMG, 2017, p.123.
  • 9
    . Para desdobramentos do argumento de Bishop, cf. BISHOPBISHOP, Claire. Qué es um curador? El ascenso (y caída?) del curador auteur. In: Criterios, La Habana, n. 7, mayo 2011., Claire. Qué es um curador? El ascenso (y caída?) del curador auteur. In: Criterios, La Habana, n. 7, mayo 2011.
  • 10
    . Essa citação de Artur Barrio encontra-se na Revista SELECT, nº 22, fev 2015, p. 31. Disponível em: <https://www.select.art.br/edicao/edicao-22/>. Acesso em: 28 de novembro de 2019.
  • 11
    . HALLHALL, Stuart. Modernity and difference. Londres: Iniva, 2001., Stuart. Modernity and difference. Londres: Iniva, 2001, p.21.
  • 12
    . LATOURLATOUR, Bruno. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern, Critical Inquiry, Chicago, v. 30, Winter, 2004., Bruno. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern, Critical Inquiry, Chicago, v. 30, p.246, Winter, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2019
  • Aceito
    15 Nov 2019
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