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Cultura visual japonesa: a intersecção entre arte e o design gráfico.1 1 . O presente texto é resultado de investigação realizada para minha tese, intitulada Análise e interpretação da comunicação gráfica japonesa contemporânea.

Japanese visual culture: the intersection between art and graphic design

Resumos

Neste artigo, será abordada a relação e as influências estéticas entre as artes tradicionais do Japão e a comunicação visual contemporânea, em especial o design gráfico japonês. A arte desenvolvida durante o período de isolamento do Japão tem notável influência na linguagem estética da comunicação comercial. Para investigar essa relação, a questão sobre a abordagem investigativa das artes e do design gráfico será problematizada para definir um caminho metodológico a ser seguido. Posteriormente, o desenvolvimento de três linguagens artísticas japonesas (ukiyo-e, sumie e rinpa) será contextualizada para criar análises e relações visuais com trabalhos na área do design gráfico japonês.

Japão; artes gráficas; ukyo-e; sumie; rinpa


This paper will address the relationship and aesthetic influences between the traditional art of Japan and the contemporary visual communication, especially the Japanese graphic design. The art developed during Japan's period of isolation has significant influence in the aesthetic language of commercial communication. To investigate this relation it will be first addressed and problematized issues about the investigation approach to arts and graphic design in order to define a methodological path to follow. Later, the development of three Japanese artistic languages (ukiyo-e, sumie and rinpa) will be contextualised to create analysis and visual relationships with work in the field of contemporary Japanese graphic design.

Japan; graphic arts; ukyo-e; sumie; rinpa



Masahiro Shinoda, cartaz do filme Duplo suicídio, 1969

Há ainda por preencher o espaço de investigação acerca das artes gráficas dos países fora do eixo Estados Unidos/Europa. Considerando as questões da globalização e do consumo, o Japão é um objeto de estudo que possui interesse por seu papel econômico, histórico e de expansão cultural no Ocidente. Dentro do contexto asiático, as artes visuais japonesas, em suas diferentes manifestações, são uma das poucas a possuírem reconhecimento histórico fora das fronteiras continentais. Segundo Wen Huei Chou2 2 . CHOU, Wen Huei. The reorganization of graphic design history. In: The wonderground international conference 2006. Lisboa, 2006, p. 4. , outros países da Ásia, como China e Taiwan, eram considerados imitadores do estilo moderno de vida e dos valores de cultura material dos países desenvolvidos do Ocidente. Dessa forma, não houve suficiente interesse acadêmico para investigar a história das artes visuais, principalmente do design gráfico nesses países de maneira mais aprofundada. Contudo, de forma alguma isso indica qualquer falta de material histórico relevante sobre a criação nativa de artefatos que visavam a resolver ou facilitar as tarefas diárias.

A afirmação de Chou pode ser também verificada no campo das artes gráficas e da comunicação visual. Em meados do século XIX, a definição de design gráfico ainda não era clara e as fronteiras entre arte/expressão subjetiva e design/comunicação eram obscuras. Richard Buchanan3 3 . BUCHANAN, Richard. Wicked problems in design thinking. In: Margolin, V. & Buchanan, R. (eds.). The idea of design: a design issues reader. Cambridge: The MIT Press, 1995, p. 9-10. afirma que o design gráfico era uma espécie de arte a serviço comercial. Com a Teoria da Comunicação e com a Semiótica, o designer tornou-se um agente criador de mensagens as quais cabia ao público decodificá-las. Se antes era esse o profissional que possuía um gosto estético apurado e capacidades artísticas suficientemente aguçadas na utilização de artifícios decorativos para melhor apresentar uma mensagem da forma mais agradável possível, posteriormente, o designer gráfico passou a ter um papel persuasivo na sociedade. Tais conhecimentos são indiretamente integrados na peça gráfica com o objetivo de criar argumentos visuais e textuais que irão interagir sinergicamente para torná-la mais convincente e com uma mensagem efetiva ao público alvo.

Um dos períodos a que Buchanan se refere é o Art Nouveau. A vertente gráfica desse estilo foi uma das mais claras demonstrações de arte comercial no Ocidente. Visto como uma espécie de contra movimento em relação à Revolução Industrial e à produção em massa, o Art Nouveau possui características relevantes, tanto para a história do design gráfico ocidental como japonês. Apesar de ter surgido na França, na década de 1890, rapidamente tornou-se um movimento pan-europeu e com características específicas em cada país. Conhecido, por exemplo, como Jugendstil na Alemanha, Modernista na Catalunha, Secessão na Áustria, Stile Liberty (ou Arte Nuova) na Itália e Arte Nova em Portugal. O estilo era adaptado ao gosto local, mas mantinha características estilísticas que as unificavam, como a importância da linha, formas orgânicas, utilização de motivos inspirados na natureza, assimetria, preferência pela composição diagonal e dinâmica, paleta de cores reduzidas, não utilização de luz e sombra para representar volume, e, especificamente no campo das artes gráficas, a utilização da tipografia manual e de estilo livre. Contudo, uma importante característica a ser notada é sua gênese e, especificamente, a influência das artes japonesas na Europa. Segundo Michael Sullivan4 4 . SULLIVAN, Michael. The meeting of eastern and western art (2 ed.). Los Angeles: University of California Press, 1998, p. 240. , o Art Nouveau pode ser considerado uma espécie de “Japonismo” primitivo com estética do Art and Crafts. E também é evidente a influência que o Art Nouveau teve no design gráfico japonês através de Hisui Sugiura (1876-1965) que colaborou com o avanço da profissionalização do designer gráfico no Japão, não só através de seu trabalho e sua linguagem vanguardista para a época, mas também com sua revista Affiches (1927), que era dedicada à pesquisa e divulgação de pôsteres japoneses e ocidentais, bem como à educação visual e sensibilização do público em relação ao design gráfico5 5 . NAGOYA GINKŌ. Posters/Japan 1800's-1980's. Nagoya: Nagoya Ginkō, 1989, p. 109 e 113; WEISENFELD, Gennifer. Japanese Modernism and consumerism: forging the new artistic field of "shôgyô bijutsu" (commercial art). In: Tipton, Elise K. & Clark, John. (eds.). Being modern in Japan: culture and society from the 1910s to the 1930s. Honolulu: University of Hawaii Press, 2000, p. 75-98. .

O termo “Japonismo” se refere às influências japonesas nas artes europeias, mais notoriamente visíveis no Impressionismo e Art Nouveau. Em uma das mais completas investigações sobre o tema, Lionel Lambourne refere-se ao termo, criado em 1872, como designador de uma área de estudo das artes ocidentais que são influenciadas, especificamente, pela cultura japonesa. Observa-se nos trabalhos de Mucha, Toulouse-Lautrec, Beardsley, Grasset, Steinlen, e outros artistas da mesma época, a fusão do período descrito por Buchanan – em que imperava uma divisão obscura entre arte e design gráfico – e as influências do Japonismo. Os pôsteres desses artistas exemplificam tanto a influência do Japão na linguagem visual europeia como de uma nova forma de comunicação visual que se destacava pela linguagem mais abstrata, com liberdade representativa e, principalmente, com novas formas de integração entre texto e imagem graças à substituição dos tipos móveis pela caligrafia manual. Foi a partir do contato com as gravuras ukiyo-e que artistas gráficos puderam observar novas possibilidades de comunicação visual nas quais imagem e texto criavam uma sinergia comunicativa (influência essa que tem origem na China, onde texto e imagem eram complementares um ao outro)7 7 . THORNTON, Richard Smith. The graphic spirit of Japan. New York: Van Nostrand Reinhold, 1991, p. 27. . Posteriormente, e de forma irônica, a linguagem artística e gráfica desenvolvida pelos europeus, graças ao contato com o ukiyo-e, influenciou toda uma geração de designers e artistas gráficos japoneses.

Para uma investigação acerca das artes e comunicação gráfica de um país que é distante tanto geograficamente como culturalmente dos contextos americano e europeu, é necessário conhecer o estado da arte dos métodos utilizados pelos investigadores ocidentais na tentativa de autodefinição da área das artes gráficas e do design. Por ser uma disciplina cuja autoafirmação e investigação científica é relativamente recente, a cristalização do método já aplicado às artes não sugere necessariamente um caminho para a compreensão integral do design gráfico. Sua natureza transdisciplinar em muito difere das artes e é na inclusão dessas diferentes áreas que virá a surgir uma maneira mais eficaz de compreender o design gráfico e as artes gráficas. A inter-relação de fatos e acontecimentos cronológicos ou geográficos externos à cultura e à linguagem visual pode parecer pouco óbvia em um primeiro momento para tentar compreender a linguagem gráfica de culturas distantes. Entretanto, como visto anteriormente, é necessária uma abordagem holística para localizar indicações teóricas que auxiliem, em um primeiro momento, nessa compreensão e, em seguida, fornecer instrumentos para a análise e interpretação de peças gráficas produzidas no Japão.

Não há um consenso sobre a forma mais eficiente na abordagem investigativa das artes visuais de caráter comercial. Historicamente, os métodos eram obtidos a partir de outras disciplinas correlacionadas, como ciências sociais e artes, para serem então adaptadas. Ao transportar essa problemática ao contexto japonês, outras questões devem ser adicionadas à investigação, uma vez que os paradigmas socioculturais diferem dos países ocidentais, os quais ainda lideram a discussão sobre a investigação acerca do design gráfico e das artes gráficas. No caso de áreas ainda pouco exploradas, novas camadas são necessariamente adicionadas à investigação. É preciso antes reconhecer as diferenças, os valores locais, os costumes, a cultura e a história sociopolítica com a finalidade de definir pontos críticos para determinar o que é importante informar e investigar. A escassez de material acadêmico (principalmente em língua portuguesa) que trata das artes gráficas japonesas, em especial do design gráfico, sob uma abordagem holística, deve ser considerada como elemento dificultador às investigações atuais. É aconselhável, também, (re)considerar as diferenças (e também semelhanças) entre Ocidente e Oriente, conhecer as particularidades e redimensionar os preconceitos orientalistas, criados tanto pela cultura acadêmica europeia dos séculos XIX e XX como pelo comércio cultural permitido pela expansão globalizadora.

Da história das artes e do design gráfico japonês

As primeiras manifestações visuais na região que hoje é o Japão possuem origens remotas que datam de cerca de 13 mil anos, período conhecido como Jōmon (13.000 - 300 a.C.). Não se diferenciando da evolução cultural em outras partes do mundo, o desenvolvimento nas técnicas e linguagens visuais do povo japonês, ao longo da história, é diversificado e complexo. Em estudos extensos e generalistas como o de Meggs, haveria espaço para investigar as manifestações artísticas dos períodos Jōmon, Yayoi (300 a.C.-300 d.C.), Kofun (250-538 d.C.) e seguintes cronologicamente, até os tempos atuais. Neste artigo, contudo, os estilos artísticos estarão restritos às suas manifestações historicamente menos antigas, como ukiyo-e, rinpa e sumi-e, por apresentar reverberações visuais mais diretas nos trabalhos gráficos japoneses contemporâneos.

No Japão, a diferenciação entre arte, artesanato e design não era tão clara como na Europa. Durante o período de modernização do país, os termos europeus fine arts e crafts foram importados e traduzidos, respectivamente como bijutsu e kōgei, para diferenciar os artefatos produzidos para essas finalidades, em substituição ao termo genérico gigei (arte técnica). Em 1886, o Museu Imperial tinha definido as seções bijutsu (artes plásticas), bijutsu kōgei (artes e ofícios) e kōgyō (produtos industriais)8 8 . KIKUCHI, Yuko. Japanese modernisation and Mingei Theory: cultural nationalism and oriental orientalism. London: RoutledgeCurzon, 2004, p. 81. para categorizar essas diferentes vertentes do design e da arte. Foi após isso que o termo zuan (図案), originalmente criado por Kaijirō Nōtomi (provavelmente em meados do século XIX), foi utilizado para se referir ao termo “design”9 9 . Ibidem. . Somente em 1951, o termo graphic designer foi introduzido no Japão através do designer gráfico Yusaku Kamekura (1915-1997), em substituição ao termo japonês zuan-ka10 10 . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 65. . Na Europa, o termo começou a ser utilizado no século XX, mais precisamente após sua criação, em 1922, pelo designer de livros estadunidense William Dwiggins11 11 . MARGOLIN, Victor. Toward a history of graphic design: interview with Victor Margolin (2000). Disponível em: <http://victor.people.uic.edu/articles/interview.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2013; MEGGS, Philip B. & PURVIS, Alston W. Meggs’ history of graphic design (5 ed.). New Jersey: John Wiley & Sons, 2012, p. 192. .

O Japão iniciou o processo de transição de império para estado a partir da renúncia do imperador Michinomiya Hiroito (1901-1989) à sua divindade e poder político; o país foi, então, ocupado militarmente e culturalmente pelos países aliados, com destaque para os Estados Unidos e, inevitavelmente, o uso do katakana e de palavras estrangeiras aumentou consideravelmente. Para o design gráfico, especificamente para a área tipográfica, essa mudança é importante, pois indica a quebra de um paradigma na relação dos japoneses com sua língua. Ainda no âmbito tipográfico, foi a partir da Segunda Guerra Mundial que o sistema de leitura da esquerda para a direita (no caso de textos horizontais) foi definido como padrão pelo governo japonês, sob forte influência americana12 12 . Ibidem, p. 55. .

No design, tanto gráfico como industrial, o desejo dos japoneses nos primeiros anos do pós-guerra era aprender novas linguagens com os designers gráficos ocidentais e, eventualmente, superá-los em qualidade13 13 . SAIKI, Maggie Kinser. 12 Japanese masters. New York: Graphis Inc., 2002, p. 9. . O design também serviu de ferramenta econômica e estratégica para as exportações. Thornton14 14 . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 93. explica que, após anos de produção industrial com objetos de baixa qualidade, o governo, em meados da década de 1950, passou a obrigar as indústrias a desenvolver políticas de fomento e desenvolvimento do design. Especificamente no caso da comunicação visual, a paisagem desoladora e cinzenta que a guerra deixou no país, incentivava a produção de trabalhos com uso de cores, apelo à beleza e os designers não poupavam esforços para deixar temporariamente seu país, à procura de influências externas para utilizar na comunicação visual15 15 . SAIKI, M. K. Op. cit., p. 43. . As influências artísticas ocidentais pararam de chegar ao Japão com o mesmo vigor durante parte do período Meiji (1867-1912), por questões logísticas, econômicas e nacionalistas. Era uma época de reconstrução do país e de tentativa de minimizar as marcas da guerra. No contexto mundial, cabe citar Frascara16 16 . FRASCARA, Jorge. Graphic design: fine art or social science? In: Margolin, V. & Buchanan, R. (eds.). Op. cit., p. 50. , que menciona avanços importantes nos sistemas de comunicação visual durante o período da Segunda Guerra Mundial, por causa da necessidade de aumentar, por questões econômicas e bélicas, sua eficiência. Teorias de informação, semióticas e demais elementos teóricos da comunicação foram desenvolvidos e hoje servem de apoio para análise de imagens, das quais esta investigação faz uso.

Kenya Hara17 17 . HARA, Kenya. Designing design. Baden: Lars Müller Publishers, 2007, p. 308-309. (1958-) considera que, se o Japão não tivesse procurado se modernizar seguindo os moldes ocidentais durante o período Meiji, os japoneses inevitavelmente desenvolveriam uma cultura visual e de design única, mesclando tradições locais com avanços científicos ocidentais. A maneira abrupta com que as ideias ocidentais ingressaram no Japão, ainda segundo Hara, quebraram um ciclo natural de desenvolvimento que possivelmente resultaria em uma linguagem visual com qualidade equiparada (ou superior, segundo ele) à do Ocidente. São afirmações arrojadas, vindas de um dos principais nomes do design contemporâneo japonês. Provavelmente, nunca será possível validar sua teoria, pois o Japão se caracteriza por períodos de criações, releituras e adaptações ao longo da sua história. Isso não pode ser mudado. As artes visuais japonesas que se desenvolveram, principalmente no período de isolamento do Japão, são, em muitos aspectos, responsáveis pela linguagem estética dos designers gráficos japoneses modernos. Apesar das artes visuais serem a matriz à qual a primeira geração de designers gráficos japoneses recorreu para posteriormente desenvolver sua linguagem gráfica, deve-se sempre considerar que a apreciação da linguagem gráfica ocidental, suas técnicas e tecnologias foram vitais para o desenvolvimento consistente da cultura visual japonesa. No caso do design gráfico, a cultura japonesa de releitura e adaptação significa também reverenciar uma tradição visual criada pelos japoneses e que evoluiu durante séculos. O que pode ser confirmado na citação de Hara é que, durante a época diretamente anterior ao período Meiji, o Japão viveu o período Edo (1603-1867), no qual permaneceu quase que totalmente fechado às influências externas e marcado por uma profusão criativa em diversas áreas.

A cidade de Edo (atualmente Tókio) vivia uma época de paz, sem ameaças externas, e durante essa época se transformara em um centro de intensa atividade comercial; segundo Kenneth Henshall18 18 . HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 91. , era a maior cidade do mundo nesse período, contando com cerca de um milhão de habitantes. Os mercadores tornaram-se os novos ricos e com isso o consumo cultural se modificou, migrou de um gosto mais refinado da alta aristocracia para linguagens mais populares. Henshall19 19 . Ibidem. explica ainda que as preferências migraram das sofisticadas peças de teatro noh para as mais exibicionistas e coloridas peças do teatro kabuki, ou das histórias apresentadas pelos bonecos do teatro bunraku. Preferiam literaturas mais populares, simples e curtas, como o haiku ou senryu. Ou ainda, no campo das artes visuais, as gravuras de madeira, ou ukiyo-e, eram preferidas em relação às onerosas e raras pinturas (frequentemente utilizando ouro) que inundavam os palácios japoneses. A temática era o dia a dia da cidade, as relações humanas, belas mulheres, as peças kabuki, atores populares e a arte erótica (essa última também conhecida como shunga).

Sobre o ukiyo-e

O ukiyo-e surge como referência estilística e estética no design gráfico japonês de duas maneiras distintas: de forma direta, pela influência doméstica, e indireta, pela influência internacional dos pôsteres produzidos pelos artistas do Art Nouveau. O estilo ukiyo-e também possui influências ocidentais, introduzidas através dos artistas do yōfuuga (洋風画), que eram treinados para copiar as pinturas ocidentais levadas pelos portugueses, espanhóis e holandeses para o Japão; e também procuraram absorver novas técnicas representativas, como as paisagens, jogos de luz e sombra, perspectiva, cores e a densidade de tinta sobre a tela20 20 . JAANUS. Youfuuga, 2003c. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/u/ukiyoe.htm>. Acesso em: 20 maio 2003. . É claro que as influências ocidentais estão muito bem dissolvidas sob o filtro japonês de adaptação e releitura das influências vindas de outros países.

Os artistas do ukiyo-e eram considerados artesãos no Japão. Era um estilo que valorizava a expressividade da linha, formas simples e expressivas, as cores chapadas, o uso de silhuetas, a abstração, códigos iconográficos, o não uso da perspectiva (ponto de fuga) e vários padrões decorativos que já eram tradicionais na arte têxtil dos kimonos japoneses. Observa-se que, tanto nos trabalhos comerciais contemporâneos de comunicação visual japonês como nas suas tradicionais linguagens artísticas, a sutileza e a sugestão, ao invés do excesso e revelação, são características comuns das mensagens visuais. Tal característica exige erudição visual e conhecimento cultural para a decodificação da obra ou peça gráfica. Para um artista japonês, a intuição e a transmissão das sensações são mais importantes que o pensamento analítico e técnico, que é visto com mais regularidade nas artes ocidentais, ao menos até o período moderno.

As gravuras ukiyo-e inspiravam-se na vida boêmia do bairro de Yoshiwara em Edo. Por ser um bairro fechado, dedicado ao entretenimento adulto e aos prazeres efêmeros, era conhecido como “mundo flutuante” durante o período Edo (1603-1868). Com a paz estabelecida no período Edo, os samurais passaram a ser desnecessários, porém mantiveram na sociedade japonesa certo estatuto social e algum poder político como burocratas. Os mercadores, por sua vez, eram, tecnicamente, uma casta inferior e não possuíam privilégios políticos, mas contavam com grande poder econômico. Por estarem proibidos de lutarem, os samurais frequentemente intimidavam os mercadores apenas por diversão, proporcionando uma tensão social entre classes. Os mercadores, por sua vez, em posse de recursos financeiros, procuravam as diversões e prazeres de Yoshiwara, “mundo flutuante” onde os samurais eram proibidos de entrar. Contudo, alguns destes usavam disfarces para infringir essa regra21 21 . DISCOVERY CHANNEL. Artifacts II: prints of the floating world [Video]. Estados Unidos, 2001. . Em uma descrição da vida e espírito do bairro de Yoshiwara, escrita por Asai Ryoi (1612-1961), um samurai que se tornara o primeiro escritor profissional do Japão no período Edo, lia-se: “Vivendo apenas para o momento, admirando a lua, a neve, as cerejeiras e as folhas de outono, apreciando o vinho, mulheres e a música e apenas deixar ser carregado pelas correntes da vida como uma garrafa flutuando rio abaixo”.22 22 . NATIONAL GALLERY OF VICTORIA. Pictures of the floating world. Disponível em: <http://www.ngv.vic.gov.au/ngvschools/FloatingWorld/artworks>. Acesso em: 22 maio 2009.

Através de uma linguagem gráfica descomplicada, as gravuras ukiyo-e apresentavam, de maneira acessível e com grande cobertura de distribuição, os temas mais desejados pelo povo. Consistiam em narrativas visuais sucintas que eram acompanhadas de texto. Aliás, em sua origem, o ukiyo-e é oriundo das ilustrações de livros e com o tempo foram ocupando cada vez mais lugar nas publicações, passando a mensagem escrita a preencher espaços mínimos das páginas23 23 . JAANUS. Ukiyo-e, 2003b. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/u/ukiyoe.htm>. Acesso em: 20 maio 2003. .

O ukiyo-e era uma linguagem artística apreciada pelos homens comuns e a demanda exigia larga produção. A técnica de xilogravura permitia a impressão em grande número e era ideal para a comercialização da arte. A partir do século XVII, a demanda por publicidade fez com que surgissem o hikifuda (folhetos e flyers) e o ebira (pôsteres), nos quais se apresentavam imagens e técnicas ao estilo ukiyo-e mas com espaços em brancos para que fosse possível a inserção posterior de um texto publicitário. Apesar de não anunciar um artigo ou um estabelecimento em particular, durante a produção da imagem, a popularidade do ukiyo-e era suficiente para agregar valor comercial ao produto anunciado, da mesma forma que na publicidade moderna utilizam-se pessoas famosas para valorizar artigos comerciais ou marcas. Era uma forma de divulgação com apelo visual impactante que tinha como vantagem a possibilidade de pequenos estabelecimentos tornar seus produtos conhecidos com custos de divulgação acessíveis. Tanto quanto a serviço da publicidade, como para a fruição estética na forma de arte, as gravuras, o ukiyo-e possuíam um forte apelo comunicativo para as massas e já abria caminho para a comunicação gráfica comercial no Japão.

O detalhe necessário, que ainda não estava contemplado para obter uma comunicação visual mais efetiva comercialmente, era a prática de colocar a imagem e o texto em uma relação sinérgica para a promoção comercial. No caso do hikifuda, os dois elementos comunicativos trabalhavam de forma independente, tendo a imagem uma função puramente estética e o texto, uma função informativa. Pode-se considerar que a publicidade impressa japonesa do período Edo e Meiji tinha estreitas relações com a arte, já que sua raiz visual se encontra nas linguagens artísticas.

Há de se considerar que a utilização de artistas/artesãos na produção de imagens para a comunicação publicitária não faz dessas peças obras de arte, nem no âmbito do design gráfico nem no da publicidade. Não havia, nesse período, a lógica do pensamento do design gráfico, que só viria a ser introduzida na metade do século XX; nem havia a preocupação em criar metáforas visuais ou jogos de significados entre imagem e texto para persuadir o público a consumir determinado produto ou serviço. A arte na publicidade consiste em utilizar os vários elementos disponíveis dentro de uma determinada mídia, ou em um conjunto de mídias no caso de uma campanha transversal, para gravar na memória do público informações ou sensações de um produto, serviço ou empresa. No contexto do design gráfico, o hikifuda possui o mérito de solucionar o problema da comunicação entre o comércio e os consumidores através da solução de espaços livres para a posterior aplicação de textos personalizados. É um detalhe gráfico que funciona perfeitamente em conjunto com a tecnologia de produção xilográfica e litográfica, de imagens para grandes tiragens. A forma do texto a ser impresso posteriormente deveria harmonizar o conteúdo da informação a ser transmitida com o espaço disponível na imagem para comportar o texto. Esse é um trabalho que ainda é realizado nas peças gráficas atuais, sob a responsabilidade do designer gráfico.

Por se tratar de imagens genéricas que procuravam agradar ao público, ao invés de trabalhar em função do produto, o hikifuda possui um valor social e histórico para a investigação das artes gráficas. Valor social, pois era através dessas imagens, massivamente distribuídas ao público, que eram retratadas tendências sociais, novidades tecnológicas ou diversos tipos de informação cotidiana. Especialmente após 1868, período de abertura do Japão para o mundo, as novidades ocidentais e os novos meios de transporte, como barcos a vapor, aviões e locomotivas, eram retratados nessas mídias24 24 . NAGOYA GINKŌ. Posters/Japan 1800's-1980's. Nagoya: Nagoya Ginkō, 1998, p. 47. . O valor histórico se dá pelo fato de ser documentado visualmente nessas peças publicitárias a sociedade japonesa ao longo das décadas, pois são temas que talvez não tivessem espaço ou valor estético no campo das artes, no qual os tópicos mais poéticos e apelativos à sensibilidade humana tinham espaço preferencial.

A estética das obras ukiyo-e e a técnica de xilogravura eram amplamente utilizadas na materialização de mensagens visuais comerciais. Aplicavam-se, igualmente, nos jogos de cartas japoneses, conhecidos como hanafuda. Os jogos de cartas foram levados ao Japão pelos portugueses durante as primeiras expedições e tornaram-se populares entre os nipônicos. Porém, com a expulsão dos missionários europeus do arquipélago, os jogos de cartas também foram proibidos no país. A partir de então novos estilos visuais de cartas foram criados pelos japoneses, trocando a abordagem lógica dos números do baralho europeu por representações gráficas inspiradas na natureza e nas estações do ano25 25 . JAPAN PUBLICATIONS. Hanafuda: the flower card game. Tokyo: Nichibo Shuppan-sha, 1980, p. 17. . A popularidade do hanafuda mantém-se até hoje. A Nintendo, uma das maiores empresas de jogos eletrônicos do mundo, iniciou suas atividades produzindo cartas hanafuda em 1889 e ainda hoje, 125 anos depois, ainda mantém em produção dessa série de cartas que é a mais popular da história da empresa, cujo nome é Daitouryou.

Outro elemento sociocultural que teve reverberações visuais consistentes durante o período Edo e, consequentemente, ganhou espaço no imaginário pictórico do ukiyo-e, foi a representação das mulheres japonesas, principalmente as cortesãs e atrizes, sob a forma de bijin-ga. O termo bijin-ga usado atualmente foi cunhado apenas no período Meiji, que é posterior ao período Edo. Anteriormente o termo em uso era onna-e ou bijin-e26 26 . JAANUS. Bijin-ga, 2003. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/b/bijinga.htm>. Acesso em: 20 maio 2003. . Mesmo o termo sendo diferente, o sentido permanece semelhante: e (絵) ou ga (画), ambos podem indicar a ideia de “imagem”, onna (女) significa mulher e bijin (美人), termo mais frequentemente usado para mulheres, significa “pessoa linda”. Torii Kiyonaga (1752-1815), Kitagawa Utamaro (1753-1806) e Hosoda Eishi (1756-1829) são três artistas de destaque dessa temática visual.

Da mesma forma que as outras gravuras ukiyo-e, as imagens bijin-ga tinham apelo comercial no período Edo. De certa forma, essa tendência na exploração comercial da imagem feminina ainda hoje é frequente na publicidade japonesa ao se considerar o fenômeno kawaii (figura 1). Durante os séculos XVIII e XIX, essas imagens serviam aos homens como veículo de divulgação das cortesãs mais belas do bairro de Yoshiwara e, eventualmente, servia para atraí-los aos bordéis. Para as mulheres, essas imagens eram uma espécie de catálogo de moda em que se podiam visualizar os tecidos, estampas e novos modelos de roupas femininas27 27 . GROSS, A. Japanese beauties. Köln: Taschen Verlag, 2004, p. 22. . Já no século XX, a utilização das belas mulheres era tão proeminente que o foco principal da peça gráfica era a beleza da modelo ilustrada, deixando o produto e a marca em segundo plano através de uma breve referência visual e textual28 28 . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 36. .

Fig. 1
Autor desconhecido. Anúncio “Sakura Biiru”, sem data. Fonte: A. Gross, 2004, s/p.

As características gerais do universo visual do ukiyo-e que foram utilizadas colaboraram para o estilo visual do que viria a ser produzido na área do design gráfico japonês. Um dos maiores expoentes na utilização dessa linguagem e no resgate de elementos gráficos característicos da história gráfica japonesa é Tadanori Yokoo (1936-). Yokoo é artista plástico, cineasta, ator, escritor e designer gráfico (apesar de ser esta sua principal atividade profissional). Ele possui importância para a história do design gráfico por causa da abordagem disruptiva de suas obras dentro do âmbito visual. Ele não apenas faz uso da estética ukiyo-e como também dos motivos tradicionais que faziam parte do imaginário do Japão, como as ondas de Katsushita Hokusai (1760-1849), o Monte Fuji, tatuagens de yakuza, o sol nascente, o céu em gradações de cores, o portão flutuante de Miyajima, entre outros itens da cultura tradicional. Posteriormente, apropriou-se da imagem do shinkansen (trem de grande velocidade japonês) para torná-la um novo motivo visual em sua peças, que buscavam traduzir visualmente o Japão moderno. Sofreu também influências dadaístas e construtivistas, usou diversas técnicas como litografia, colagem, silkscreen, manipulação fotográfica manual, litografia e computação gráfica.

Yokoo é um dos representantes da abordagem pop e lúdica na arte gráfica japonesa. Seu estilo peculiar, sua despretensão ao tratar com aparente leviandade imagens tradicionais do Japão e suas composições supostamente descuidadas já renderam a Yokoo duras críticas de seus pares, que pregavam uma abordagem mais austera ao design gráfico. Foi acusado em 1966 de, inconsequentemente, banalizar o design gráfico ao levá-lo a um nível popular e sem requinte. Ainda durante a década de 1960, Masaru Katzumie (c. 1930), influente designer gráfico e contemporâneo de Yokoo, deixara explícito seu descontentamento ao ver os pôsteres de Yokoo fazendo uso de imagens japonesas típicas e que ignoravam os ensinamentos teóricos de composição oriundas do Ocidente. Após essas críticas, Yokoo passou a alimentar algum desprezo pelas tendências internacionais do design da sua época e a se expressar fazendo uso mais frequente das imagens típicas do Japão com uma carga irônica incomum aos costumes nipônicos daquela época.

Os pôsteres John Silver: amor em Shinjuku e John Silver: continuação foram criados em 1967 e 1968, respectivamente, para a companhia de teatro Jokyo Gekijo, que tinha como líder Juro Kara (1940-), conhecido nome do teatro moderno japonês que era entusiasta do movimento vanguardista ocidental, mas sem perder de vista a inspiração das tradições japonesas de teatro e dança, nomeadamente o kabuki e butō29 29 . ORTOLANI, Benito. The Japanese theatre. Leiden: Brill Academic Publishers, 1990, p. 246. . A ligação de Yokoo com Juro Kara, e os admiradores do avant-garde, extrapola o campo puramente profissional. Por ser um dos artistas que foram responsáveis pela tradução visual do espírito vivido na década de 1960 no Japão, Yokoo foi convidado a participar, junto com Kara e seu grupo teatral, em um filme dirigido em 1969 por Nagisa Oshima (1932-2013), intitulado Diário de um ladrão de Shinjuku (Shinjuku Dorobō Nikki), sobre o espírito jovem daquela época30 30 . GOODMAN, David G. Angura: posters of the Japanese avant-garde. New York: Princeton Architectural Press, 1999, p. 10. . Na composição visual dos dois pôsteres há uma clara mistura na aplicação dos elementos visuais do ukiyo-e anteriormente apresentados, nomeadamente o hanafuda, o bijin-ga, o céu em degradê e o sol nascente.

A figura feminina é o tema central do pôster. É comum encontrar referências sexuais na cultura visual do ukiyo-e através de imagens eróticas ou explícitas de cenas de sexo entre homens, mulheres e mesmo animais. Yokoo resgata de forma sutil, mas insinuante, essa sexualidade que até os dias atuais persiste na sociedade japonesa, principalmente na forma de soft porn. Na década de 1960 e 1970, a liberação e a luta contra a repressão sexual eram notáveis na sociedade japonesa e a comunicação visual dos pôsteres teatrais da cena underground estampava essa luta contra os padrões sociais em relação à sexualidade. Segundo Vera Mackie31 31 . MACKIE, Vera. The spectacle of woman in Japanese underground theatre posters. Performance paradigm, n. 2, p. 91 e 98, 2006. , os pôsteres eventualmente estampavam a nudez feminina mesmo não tendo nenhuma relação narrativa com a peça de teatro em questão. Ainda segundo a autora, nas décadas do pós-guerra, o corpo e a figura feminina eram uma opção, ou mesmo uma fuga à figura masculina desgastada pelas falhas militares e políticas, ambas moralmente derrotadas na relação com os Estados Unidos. A figura feminina pode remeter tanto à liberdade como à segurança maternal. A silhueta da mulher da figura 2 mostra um penteado muito usado pelas geishas no período Edo, conhecido por nihongami. A palavra nihongami é a junção de Nihon (Japão) com kami (cabelo).

Fig. 2
Nihongami, sem data. Disponível em: <www.d.umn.edu/~carr0415>. Acesso em: 10 fev. 2014.

Sua posição é de sutil conotação sexual, o que é sugerido pelas mãos possivelmente amarradas às costas e pela ausência de kimono (figura 3). Não há nudez explícita, pois Yokoo permite apenas a visualização da silhueta do corpo, deixando os detalhes gráficos para o cabelo e seu penteado. A falta de volume nessa imagem, ao mesmo tempo em que distancia a representação do corpo feminino da realidade, faz ampliar o teor erótico ao despertar no observador o imaginário narrativo. Yokoo escolheu um gradiente típico das gravuras ukiyo-e, tanto na forma como nas cores. O círculo branco ao fundo dirige o olhar para as pernas que são realçadas através desse contraste.

Fig. 3
Shinkichi Yamada, pôster para o filme Crime e Punição, c. 1924. Fonte: Nagoya Ginkō, 1989, p. 127.

Impresso nas extremidades laterais e superiores do pôster, há os hanafuda, ou cartas japonesas, que Yokoo já utilizara em outros trabalhos. O uso do hanafuda nesse pôster tem apelo estético apenas. Faz parte do estilo de Yokoo o uso e a reutilização de elementos tradicionais japoneses em seus trabalhos mesmo que eles não se relacionem com a mensagem que se pretende transmitir. O uso dos hanafuda fornece para o pôster uma atmosfera tipicamente japonesa que, apesar de não ser tão óbvia a um olhar estrangeiro, como seria no caso de um elemento como a caligrafia, é de similar eficiência visual por se tratar de um estilo ligado à tradição gráfica nipônica. No âmbito tipográfico, Yokoo foi versátil ao unir tipos góticos em katakana para o nome da peça, caligrafia ao estilo Ming para o nome dos atores, estilo cursivo tradicional para o texto que descreve a peça e letras romanas para anunciar o patrocinador do evento32 32 . GOODMAN, D. G. Op. cit., p. 10. . Um último elemento gráfico de destaque nesse pôster é a imagem de Juro Kara inserida no espelho. De forma semelhante ao pôster A balada dedicada à amputação do dedo mínimo, de 1966, Yokoo homenageia Juro Kara inserindo sua foto no pôster de divulgação da peça teatral.

Yokoo conectava suas criações ao seu estilo de vida em peças por vezes autorreferenciais e isso pode ser em parte explicado pelas suas obras direcionadas para as áreas artísticas, como o teatro, em um período de grandes transformações culturais e quebras de paradigmas sociais, como as décadas de 1960 e 1970. A calamidade provocada pela guerra pode também ter influenciado sua linguagem transgressora e nacionalista. Yokoo é aparentemente o único designer gráfico japonês de renome internacional que conseguiu criar uma biografia visual através dos seus pôsteres comerciais. O grau de subjetividade que há em seus trabalhos pode ser comprovado com um pequeno detalhe em um dos seus trabalhos e que ultrapassou a função comunicativa da peça gráfica ao público: devido à ocorrência de um atraso, o pôster para o espetáculo John Silver: Amor em Shinjuku não foi entregue com a antecedência necessária para poder fazer a divulgação apropriada. Yokoo sentiu a necessidade de se desculpar a Juro Kara pelo ocorrido e o fez escrevendo um pedido de desculpas no próprio pôster e formalizando com sua assinatura, como se tratasse de uma carta pessoal a um amigo33 33 . Ibidem. .

O trabalho de Yokoo é extenso e abrange várias linguagens e mídias. Em mais de meio século de atividade profissional, Yokoo é atualmente um ícone cultuado no Japão com uma abordagem lúdica, livre e extremamente pessoal em relação aos trabalhos que realizou (e ainda realiza) em diversas áreas artísticas. O estilo visual de Yooko possui influências ocidentais tanto das artes em geral, do design gráfico, do Dadaísmo, do Psicodelismo, bem como soluções visuais ao estilo de Milton Glaser e Peter Max. A forma de utilização dos preceitos visuais do ukiyo-e, aliada à liberdade autoral e a modernidade do Japão no pós-guerra, faz com que suas obras sejam ícones do estilo visual japonês transposto para um novo contexto econômico, artístico e social. A cultura pop em seu trabalho é ironicamente traduzida pelo uso de imagens clássicas de um dos estilos visuais mais populares da história gráfica do Japão, o ukiyo-e.

A liberdade visual de Yokoo, demonstrada na apropriação de estilos e na construção narrativa por vezes caótica de seus pôsteres, reflete o experimentalismo no design gráfico japonês de sua época, sem deixar de lado a tradição gráfica construída ao longo dos séculos no Japão. Apesar de ser amplamente difundido, o ukiyo-e não é o único estilo da cultura visual japonesa que influenciou, e ainda influencia, os designers gráficos japoneses.

Sobre sumi-e e rinpa

As diferenças entre o Japão e a Europa, no que se refere à maneira de representar o mundo pela pintura, são notórias e largamente estudadas. Essas diferenças são perceptíveis na representação de volume, perspectiva, expressão facial, veracidade anatômica e paleta cromática verossímil, entre tantas outras que podemos aqui citar. A arte europeia clássica ansiava pela mimese da natureza através do domínio científico e racional da arte. O artista pintor alcançava os resultados esperados através do estudo da anatomia, geometria, aritmética, religião, filosofia, história, astronomia, gramática, botânica e o que mais pudesse interferir na veracidade representativa da arte. Era um exercício intelectual intermodal.

O mesmo não se aplicava às artes japonesas tradicionais. Primeiramente, a organização histórica e estilística na pintura japonesa obedece a uma lógica diferente da ocidental. Os estilos espalham-se por períodos e por escolas estilísticas que se estendiam por vários períodos históricos, como a escola Kanō, na qual os artistas seguidores passavam a incluir “Kanō” em seu nome. Havia também o bunjinga ou nanga, que definia os adeptos da arte literata, que eram pessoas cultas, não necessariamente artistas, pertencentes à alguma escola que, através de técnicas mais limitadas e maiores liberdades estilísticas, representavam mais frequentemente motivos bucólicos. Outros estilos são uta-e, que misturava imagens e poemas, nanban-e que retratava os “bárbaros do sul”, ou os primeiros europeus portugueses, espanhóis e holandeses que chegaram ao Japão, ou mesmo o genji-e, que eram pinturas inspiradas no Genji monogatari (ou Contos de Genji), pintadas em diversas mídias como libretos, biombos e rolos de papel (handscroll).

É importante levar em consideração que a maneira nipônica de retratar o mundo na superfície bidimensional do papel dava-se de maneira distinta da ocidental, principalmente na abordagem intelectual perante à arte. Naomi Okamoto34 34 . OKAMOTO, Naomi. Japanese ink painting: the art of sumi-e. New York: Sterling, 1995, p. 8. , ao se referir ao estilo sumi-e, explica que a representação realista do mundo não faz parte do ideal estético dessa linguagem, mas pretende transmitir a essência e a percepção do pintor perante o tema. O ato de criar uma sugestão visual ao invés da denotação objetiva é um ponto central no sumi-e. Ainda segundo Okamoto35 35 . Ibidem. , o não uso de cores é uma característica peculiar na arte japonesa, em que as tonalidades de cinza mais do que caracterizar a superfície e auxiliar na identificação do tema, sugerem sutilmente uma paleta de cores, produzindo uma superficial consciência cromática.

Em linhas gerais, o sumi-e é um estilo de pintura originada da caligrafia shodō, que é a arte de desenhar os caracteres japoneses. Há, tanto no shodō como no sumi-e, uma grande presença da filosofia zen. Como nas artes modernas ocidentais – no Impressionismo, no Cubismo e no Expressionismo, por exemplo, a intenção do artista é direcionada, preferencialmente, para a impressão sobre um tema qualquer do que para a sua representação pictórica fidedigna. Apesar da aparente simplicidade do traço, as pinturas sumi-e guardam em si os pormenores do gesto da expressão do artista, traduzida na maestria em lidar com o pincel e a tinta. Essa expressividade, apesar de espontânea, é dominada devido a anos ou mesmo décadas de prática no uso do pincel e tem um valor estético que geralmente é maior do que o próprio tema retratado.

É uma linguagem composta por elementos minimalistas: papel branco, tinta preta e gradações de cinza. A ferramenta é o pincel que, junto com uma técnica precisa, produz traços característicos. Não há profundidade, cores, perspectivas ou regras rígidas em relação às proporções. O artista, mais do que representar, deve conhecer em profundidade o tema, compreendê-lo em sua essência e interpretá-lo em linhas feitas com vigor e certeza. As linhas servem não só para construir as formas, mas também são traduções temporais e visuais do ímpeto do artista e de sua maestria. Uma pintura sumi-e, após iniciada, é terminada em poucos minutos, pois o artista tem interiorizado em sua mente e corpo todos os aspectos e técnicas necessárias para realizar a obra. Não há observação, não há como fazer correções, não há dúvidas; há apenas um impulso intuitivo e a segurança na compreensão da sensação a ser retratada. Segundo a filosofia zen, há um estado de vazio espiritual denominado mushin, que é uma palavra composta por dois ideogramas que significam “vazio” e “coração” ou “espírito”, e a tradução seria algo como “sem o ego”. A intenção do mushin é deixar a mente livre de todo e qualquer conhecimento teórico ou preconcepções e ter a mente limpa para que, dessa forma, seja possível atuar livremente de acordo com o estado de espírito e, aparentemente, sem intervenções teóricas durante o ato da criação. Se há a possibilidade humana de uma criação artística sob esses moldes, essa é outra discussão a ser realizada em outro momento. Em tese, o domínio da linha, das formas e do espaço em branco não são teorizados, mas sim interiorizados para depois serem exteriorizados na superfície. Ao apreciar uma pintura sumi-e supõe-se que o espectador aprecie esses códigos estéticos e estilísticos, sendo então o tema retratado um pretexto para a apreciação da arte.

O conceito de vazio é aplicado visualmente de maneira proeminente nas artes visuais japonesas. Com alguma relação com o mu e seu conceito de vazio, há na filosofia zen o conceito de espaço, também conhecido em japonês por ma. Segundo Michiko Okano36 36 . OKANO, Michiko. MA: entre-espaço da comunicação no Japão. Um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. 2007. Tese de doutorado. PUC-SP, São Paulo, p. 22. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/infotec/teses07-08/resumo_7536.html>. Acesso em: 12 maio 2013. , o ma representa para os japoneses não só a ideia de tempo-espaço, mas um conceito (ou um modus operandi) que permeia os mais diversos campos do conhecimento, da linguística à arquitetura, da psicologia à dança. Na vida cotidiana, não construir um ma adequado é falta de refinamento; por exemplo, como aconteceria em uma conversa na qual as pausas não são bem colocadas ou nas formas de inserção do silêncio na música. O ma, mais do que a sua tradução de espaço, é um modo de agir e pensar estético, religioso e social. Portanto, pensar o conceito de ma apenas como espaço físico, ou no caso do design gráfico, como espaço branco, traduz apenas o sentido de simplicidade e limpeza da construção da imagem, mas não traduz o ideal estético japonês. No âmbito estético Lauren Prusinski37 37 . PRUSINSKI, Laura. Wabi-sabi, mono no aware, and ma: tracing traditional Japanese aesthetics through Japanese history. Studies on Asia, v. 2, n. 1, 25-49, p. 29, 2012. define o ma como a representação da beleza no vazio e na ausência de forma, ambos em interação com o ambiente circundante.

O ma contempla também o conceito de intervalo por relação sinestésica e compreende também o silêncio, que pode ser considerado o “espaço entre dois sons”. O silêncio, que arquiteta os espaços sonoros na música e na fala, tem seu congênere gráfico no branco, no espaço não impresso ou de função neutra dentro da superfície bidimensional. O silêncio do espaço vazio é preenchido por pinceladas que criam linhas e suaves graduações de cinza. Pintar é uma extensão da escrita no contexto japonês tradicional. Tecnicamente, as pinceladas aprendidas na caligrafia são as mesmas utilizadas na pintura38 38 . AUGUSTO, Jordan. Sumie – um caminho para o zen (2002). Disponível em: <http://www.bugei.com.br/bugei/mentais/sumieecaligrafia.asp>. Acesso em: 10 abr. 2002. . A apreciação estética, tanto na pintura como na caligrafia, baseia-se na força e caráter da linha, na economia de traços, na utilização parcimoniosa de tinta e na expressividade das pinceladas. A relação entre a escrita e o minimalismo pictográfico do sumi-e resultam em características gráficas evidentes, ao reduzir as particularidades ao seu mínimo: o traço e a mancha. O pincel, como intermediário estético com características gráficas peculiares, ao ser utilizado pelo artista/calígrafo cria traços característicos que podem ser encontrados no design gráfico japonês contemporâneo, seja em logotipos com apelo tipográfico tradicional, seja contextualizado digitalmente junto a elementos gráficos contemporâneos.

A pintura como extensão da escrita ainda encontra ecos no design gráfico contemporâneo japonês e, culturalmente, encontra formas de se comunicar estética e sentimentalmente com o público que compartilha esses valores. Para o designer gráfico, o resgate ao sumi-e e ao shodō passa a ser um artifício gráfico para comunicação visual com grande apelo estético junto ao povo japonês. Apesar do ukiyo-e possuir textos em suas composições, a importância da linguagem escrita para o sumi-e é maior do que apenas composicional, faz parte da sua gênese e do seu universo cromático e estilístico. Sublinha-se ainda o fato de o sistema de escrita japonês não favorecer a criação de tipos móveis, devido aos milhares de caracteres necessários para criar textos. A caligrafia foi uma necessidade e seu estatuto foi elevado ao estatuto de arte.

O rinpa origina-se por volta do século XVII em Kyoto, então capital do Japão. O termo origina-se a partir do nome do seu criador, Kōrin Ogata (1658-1716), ao isolar o kanjirin” proveniente do seu nome e adicionar “pa”, que significa “grupo” ou “escola”, para então designar as obras feitas pelo grupo de pessoas que pintava ao estilo de Kōrin. O rinpa tornou-se popular no período Edo e é uma arte decorativa que, diferente do ukiyo-e ou sumi-e, era utilizada em diversas superfícies, bi ou tridimensionais, objetos de cerâmica, laca, tecido, metal e papel.

Os artistas do estilo rinpa foram evidentemente influenciados pelas obras artísticas do yamato-e, surgidas em meados da Era Heian (794-1185), que designa as pinturas com temas e estilo tipicamente japonês em oposição às pinturas estrangeiras, principalmente chinesas. Diferentemente da escola Kano, o estilo rinpa não era passado de geração para geração, como uma linhagem familiar nas quais os artistas herdavam o sobrenome do mestre – Motonobu Kano, Sansetsu Kano, Eino Kano e o fundador, Masanobu Kano (1434-1530) são alguns artistas de destaque da escola Kano. No rinpa o estilo era partilhado livremente entre os seus apreciadores.

O estilo figurativo é recorrente na arte japonesa e no rinpa continua presente; contudo, é uma figuração com um olhar sensível e desobrigado em relação ao realismo. Tem cores intensas e um apuramento sintético das formas, que abstrai a essência dos objetos e retrata-os de maneira a excluir toda e qualquer sugestão de tridimensionalidade. O resultado de sua visibilidade plástica, mais do que qualquer outra escola artística japonesa, transmite o estudo subjetivo, não científico e esteticamente sincero dos temas pintados; é uma escola impressionista de arte39 39 . Cf. FENOLLOSA, Ernest. Epochs of Chinese and Japanese art (vol. 2). London: Willian Heinemann, 1921, p. 128. . Visualmente, a linha é um dos mais importantes elementos estéticos dentro das obras no estilo rinpa. A forma de utilização da linha e a sua linguagem formal na construção da imagem têm um apelo único nas artes japonesas. As linhas podem marcar o contorno das figuras de maneira sutil ou criar texturas através de formas sinuosas e complexas. As formas são fluídas, em alguns casos abstratas, com temas bucólicos, qualidade onírica na representação da natureza, tendência à simplificação e uso extravagante de ouro e prata. Ao retratar o mar ou as ondas, os artistas rinpa abstraíam as suas formas visíveis e pintavam padrões de linhas que se distribuíam uniformemente por toda a superfície azul que representava a água40 40 . Cf. KAISER, Andrew. Constructing Modernity: Japanese graphic design from 1900 to 1930. 2006. Dissertação de Mestrado, University of Cincinnati, Cincinnati, p. 36. .

Historicamente, as obras do estilo rinpa possuíam um estatuto mais elevado que as gravuras ukiyo-e. Primeiramente, por serem obras de arte únicas, pintadas com materiais nobres pela mão do artista. Obviamente a divulgação do ukiyo-e era muito facilitada, tanto pela maior tiragem de peças como pelo seu caráter funcional e de não arte. Os japoneses, mesmo após séculos, preferem o estilo erudito e sofisticado do rinpa às imagens populares das gravuras ukiyo-e para representar o que melhor se entende por arte e sofisticação visual no Japão.

Há semelhanças estilísticas entre rinpa e ukiyo-e apontadas por John Carpenter41 41 . CARPENTER, John. Designing nature: the rinpa aesthetic in Japanese art. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012, p. 35. , são elas: figuras achatadas sem volumetria, perspectivas não convencionais, figuras e paisagens apresentadas de maneira mais gráfica do que realista, abstenção de uso de sombras, motivos gráficos simplificados de plantas e animais, e uso arrojado das cores. Essas características fazem também parte da estética flatness, muito recorrente ainda hoje no design gráfico japonês.

Diferentemente do sumi-e, em que o artista compreende o objeto e captura sua essência antes de iniciar a pintura com pinceladas rápidas, simples e apenas com tinta preta sobre o papel branco, no rinpa o processo é mais demorado. O fundo geralmente é dourado e o desenho é aplicado também em objetos além da tela. É uma arte decorativa que, diferentemente do ukiyo-e, tinha um apelo elitizado em parte devido à sua sofisticação e suntuosidade no emprego dos materiais. De modo geral, o rinpa tinha um maior refinamento e polidez se comparado ao ukiyo-e, apresentando um compromisso figurativo e um acabamento mais complexo que o sumi-e.

Essa noção de sofisticação e tradição cativou o respeito do povo japonês pelo rinpa. Seus motivos e sua estética estão presentes nos trabalhos de artistas visuais contemporâneos e são revisitados com frequência para criar uma visualidade própria e altamente influenciadora. Segundo Thornton42 42 . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 21-22. , a utilização de cores ligadas à terra, como os verdes de tons audaciosos encontrados na natureza, laranjas intensos como o sol em seu poente, a sobreposição de camadas planas sem sugestão tridimensional, as formas geométricas para representar elementos da natureza, os padrões abstratos ou texturizados e linhas com tratamento pictórico são indícios de releituras contemporâneas do estilo rinpa, que possui maior influência sobre o design gráfico moderno que o ukiyo-e.

No design gráfico moderno, Kazumasa Nagai (1929-) foi influenciado pelas artes japonesas e o rinpa é um dos estilos artísticos que podem ser detectados em sua obra. A linha, para Nagai, possuía suficiente apelo estético para que fosse explorada à exaustão ao longo da sua carreira como designer gráfico. A linha, seja de maneira mais precisa e geométrica, seja de forma orgânica e expressiva, esteve presente em seus trabalhos desde a década de 1960. Em muitos casos, a relação visual com o rinpa é inevitável. Os casos mais notáveis são seus pôsteres inspirados na fauna e flora japonesa.

O uso de animais como identidade nacional era recorrente durante o século XX43 43 . Cf. POWERHOUSE MUSEUM. 'Japan' poster by Kazumasa Nagai. 2006. Disponível em: <http://www.powerhousemuseum.com/collection/database/?irn=358138>. Acesso em: 23 maio 2003. . Nagai utilizou com esse propósito uma tartaruga, um sapo, uma cobra e um peixe (todos inspirados no folclore japonês). O pôster para divulgar o Japão internacionalmente, criado por Nagai em 1988 é um exemplo claro do uso da estética rinpa no design gráfico.

Em Japan, de 1988 (figura 4), há um fundo em verde escuro, com vários círculos concêntricos sobrepostos, definido com finas linhas douradas, que são visualmente semelhantes às tradicionais Ondas de Matsushima feitas por Kōrin Ogata (figura 5). Esses círculos não apresentam qualquer função pictórica, formam apenas um padrão para o fundo da imagem, com características abstratas. Uma textura semelhante pode ser vista na cabeça da tartaruga, onde os mesmos círculos dourados concêntricos estão sobre um fundo preto. Apesar de também serem círculos não figurativos, eles funcionam como um índice visual e induzem o observador a crer em uma representação visual da textura da pele da tartaruga, causando no observador uma impressão trans-sensorial entre visão e tato. Apesar de a tartaruga marinha ser representada por um ponto de vista superior, o rosto é apresentado lateralmente, como é possível notar pelos olhos e boca, em uma tentativa extrema de bidimensionalidade e rejeição das regras de perspectiva.

Fig. 4
Kazumasa Nagai, pôster “Japan”. 1988. Disponível em: <www.douban.com/group/topic/37251543>. Acesso em: 20 nov. 2013.

Fig. 5
Korin Ogata, painel Ondas de Matsushima, c. 1700. Disponível em: <www.mfa.org>. Acesso em: 10 dez. 2016.

O casco da tartaruga é extremamente ornamentado. A parte mais externa em preto com detalhes em dourado faz referência às lacas japonesas com pinturas decorativas do estilo rinpa. A parte mais central faz lembrar uma flor, com as linhas circulares a representar pétalas. As nadadeiras possuem padrões abstratos que representam texturas da pele e são diferentes de cada lado. No entanto, em ambos os lados, há representações de luas e nuvens em mais uma referência ao rinpa, não somente pelo tema que remete à natureza, mas pela forma simples e estilizada em que estão apresentadas, em especial as nuvens com suas curvas estilizadas e linhas expressivas. A sua cauda segue o mesmo esquema das ilustrações decorativas das nadadeiras, dessa vez com riqueza de variedades. A cauda preta é maior que todas as outras e também se situa mais ao centro criando uma extensão do casco da tartaruga. Essa cauda com vários pedaços diferentes fornece para a tartaruga uma impressão festiva e a variedade de ilustrações demonstra a riqueza visual nipônica. São padrões e motivos típicos da arte japonesa e muito utilizados na ornamentação da laca pelos artistas do rinpa. No canto inferior direito, a palavra “Japan” está escrita em dourado acompanhado por um peixe que está atrás da tartaruga. As cores predominantes do pôster são verde-escuro, laranja, dourado e preto, cores da paleta rinpa com a única diferença de que Nagai não deu ao dourado todo o espaço que era dado às obras rinpa originais.

Em uma segunda obra, o resgate à tradição também é detectado. O pôster de 1975, para a “Exposição Marítima Internacional” em Okinawa (figura 6), possui características tanto modernas como tradicionais para a época em que foi produzido. A partir da década de 1960 a fotografia passa a ser cada vez mais comum na publicidade japonesa, após décadas de uso de ilustração litográfica. O uso de fotografia era possível anteriormente, mas a maturidade publicitária e os avanços tecnológicos propiciaram novos caminhos técnicos e estilísticos para a comunicação visual japonesa.

Fig. 6
Kazumasa Nagai, pôster para “Exposição Marítima Internacional”, em Okinawa, 1975. Disponível em: <www.ndc.co.jp/en/people/polylogue01.html#2>. Acesso em: 14 dez. 2013.

Contudo, o elemento de interesse é a ilustração das ondas. É inevitável a comparação com uma das mais emblemáticas imagens da cultura visual japonesa: a onda criada por Katsushika Hokusai em xilogravura ao estilo ukiyo-e, por volta de 1830. As linhas sinuosas criam planos de texturas que se sobrepõem, dando a sensação de profundidade, mesmo que não haja perspectiva, sombra ou qualquer elemento gráfico indicador dessa sensação. As linhas organizam camadas achatadas e a quebra na direção dessas linhas é visualmente suficiente para a organização das camadas. É a mesma lógica visual das Ondas de Matsushima. A diferença entre Hokusai e Kōrin Ogata, em relação às ondas é o protagonismo que há no primeiro caso. Nagai utiliza a imagem de mar duas vezes em diferentes linguagens para enfatizar o tema central do cartaz. A fotografia por si só já comunica claramente a ideia de mar ou oceano, afinal 3/4 da área do pôster é ocupado pelo azul do mar. Contudo, a ilustração que sobrepõe a foto invoca a japonicidade do evento por remeter a um ícone visual japonês, nomeadamente a xilogravura de Hokusai. As ondas ilustradas sobre a fotografia do mar criam uma micronarrativa com diferentes linguagens estéticas (foto e ilustração).

O pôster de Ryuichi Yamashiro (1920-1997), para a “Bienal Internacional de Xilogravura de Tókio” de 1960, oferece uma base estilística necessária para fins comparativos (figura 7). A linguagem da linha é distinta em relação a Nagai, aproximando-se mais da expressão estilística do ukiyo-e. Essas duas ondas, retratadas de forma semelhante tanto em relação à localização, a partir da base do pôster, quanto ao direcionamento e protagonismo narrativo no contexto de ambos os trabalhos, demonstram como a linguagem gráfica e artística japonesa pode variar na abordagem de um elemento básico como a linha, mesmo estando relacionado ao mesmo assunto e imagem de inspiração (ondas de Hokusai).

Fig. 7
Ryuichi Yamashiro, pôster para a “Bienal Internacional de Xilogravura de Tókio”, 1960. Fonte: Nagoya Ginkō, 1989, p. 216.

Considerações finais

Nos três estilos artísticos que foram aqui abordados, a característica transversal é a qualidade flatness (sem volumetria) dos elementos que compõem a peça gráfica/visual. A importância dada ao espaço e a utilização de uma perspectiva distante dos cânones ocidentais também são características transversais ao ukiyo-e, rinpa e sumi-e. Essas características devem ser levadas em consideração na interpretação visual das imagens produzidas no Japão, principalmente no âmbito do design gráfico.

A influência das artes tradicionais é apenas uma parte do que poderia ser considerado característico na cultura visual japonesa contemporânea. Outra parte que deve ser investigada para a construção do panorama das artes gráficas japonesas atuais é a mudança de foco dos designers gráficos nipônicos para as ideias ocidentais, principalmente os conceitos modernos europeus e estadunidenses de arte comercial, Dadaísmo, Construtivismo, Futurismo, Art Déco, Expressionismo, Art Nouveau, Bauhaus etc. Surgia no design gráfico japonês novas possibilidades de utilização dessas ideias estéticas para além do âmbito das artes. Esses estilos estavam em via de serem aplicados na comunicação visual pelos designers gráficos japoneses.

  • 1
    . O presente texto é resultado de investigação realizada para minha tese, intitulada Análise e interpretação da comunicação gráfica japonesa contemporânea.
  • 2
    . CHOU, Wen Huei. The reorganization of graphic design history. In: The wonderground international conference 2006. Lisboa, 2006, p. 4.
  • 3
    . BUCHANAN, Richard. Wicked problems in design thinking. In: Margolin, V. & Buchanan, R. (eds.). The idea of design: a design issues reader. Cambridge: The MIT Press, 1995, p. 9-10.
  • 4
    . SULLIVAN, Michael. The meeting of eastern and western art (2 ed.). Los Angeles: University of California Press, 1998, p. 240.
  • 5
    . NAGOYA GINKŌ. Posters/Japan 1800's-1980's. Nagoya: Nagoya Ginkō, 1989, p. 109 e 113; WEISENFELD, Gennifer. Japanese Modernism and consumerism: forging the new artistic field of "shôgyô bijutsu" (commercial art). In: Tipton, Elise K. & Clark, John. (eds.). Being modern in Japan: culture and society from the 1910s to the 1930s. Honolulu: University of Hawaii Press, 2000, p. 75-98.
  • 6
    . LAMBOURNE, Lionel . Japonisme: cultural crossings between Japan and the West. London: Phaidon Press, 2007.
  • 7
    . THORNTON, Richard Smith. The graphic spirit of Japan. New York: Van Nostrand Reinhold, 1991, p. 27.
  • 8
    . KIKUCHI, Yuko. Japanese modernisation and Mingei Theory: cultural nationalism and oriental orientalism. London: RoutledgeCurzon, 2004, p. 81.
  • 9
    . Ibidem.
  • 10
    . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 65.
  • 11
    . MARGOLIN, Victor. Toward a history of graphic design: interview with Victor Margolin (2000). Disponível em: <http://victor.people.uic.edu/articles/interview.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2013; MEGGS, Philip B. & PURVIS, Alston W. Meggs’ history of graphic design (5 ed.). New Jersey: John Wiley & Sons, 2012, p. 192.
  • 12
    . Ibidem, p. 55.
  • 13
    . SAIKI, Maggie Kinser. 12 Japanese masters. New York: Graphis Inc., 2002, p. 9.
  • 14
    . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 93.
  • 15
    . SAIKI, M. K. Op. cit., p. 43.
  • 16
    . FRASCARA, Jorge. Graphic design: fine art or social science? In: Margolin, V. & Buchanan, R. (eds.). Op. cit., p. 50.
  • 17
    . HARA, Kenya. Designing design. Baden: Lars Müller Publishers, 2007, p. 308-309.
  • 18
    . HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 91.
  • 19
    . Ibidem.
  • 20
    . JAANUS. Youfuuga, 2003c. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/u/ukiyoe.htm>. Acesso em: 20 maio 2003.
  • 21
    . DISCOVERY CHANNEL. Artifacts II: prints of the floating world [Video]. Estados Unidos, 2001.
  • 22
    . NATIONAL GALLERY OF VICTORIA. Pictures of the floating world. Disponível em: <http://www.ngv.vic.gov.au/ngvschools/FloatingWorld/artworks>. Acesso em: 22 maio 2009.
  • 23
    . JAANUS. Ukiyo-e, 2003b. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/u/ukiyoe.htm>. Acesso em: 20 maio 2003.
  • 24
    . NAGOYA GINKŌ. Posters/Japan 1800's-1980's. Nagoya: Nagoya Ginkō, 1998, p. 47.
  • 25
    . JAPAN PUBLICATIONS. Hanafuda: the flower card game. Tokyo: Nichibo Shuppan-sha, 1980, p. 17.
  • 26
    . JAANUS. Bijin-ga, 2003. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp/~jaanus/deta/b/bijinga.htm>. Acesso em: 20 maio 2003.
  • 27
    . GROSS, A. Japanese beauties. Köln: Taschen Verlag, 2004, p. 22.
  • 28
    . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 36.
  • 29
    . ORTOLANI, Benito. The Japanese theatre. Leiden: Brill Academic Publishers, 1990, p. 246.
  • 30
    . GOODMAN, David G. Angura: posters of the Japanese avant-garde. New York: Princeton Architectural Press, 1999, p. 10.
  • 31
    . MACKIE, Vera. The spectacle of woman in Japanese underground theatre posters. Performance paradigm, n. 2, p. 91 e 98, 2006.
  • 32
    . GOODMAN, D. G. Op. cit., p. 10.
  • 33
    . Ibidem.
  • 34
    . OKAMOTO, Naomi. Japanese ink painting: the art of sumi-e. New York: Sterling, 1995, p. 8.
  • 35
    . Ibidem.
  • 36
    . OKANO, Michiko. MA: entre-espaço da comunicação no Japão. Um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. 2007. Tese de doutorado. PUC-SP, São Paulo, p. 22. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/infotec/teses07-08/resumo_7536.html>. Acesso em: 12 maio 2013.
  • 37
    . PRUSINSKI, Laura. Wabi-sabi, mono no aware, and ma: tracing traditional Japanese aesthetics through Japanese history. Studies on Asia, v. 2, n. 1, 25-49, p. 29, 2012.
  • 38
    . AUGUSTO, Jordan. Sumie – um caminho para o zen (2002). Disponível em: <http://www.bugei.com.br/bugei/mentais/sumieecaligrafia.asp>. Acesso em: 10 abr. 2002.
  • 39
    . Cf. FENOLLOSA, Ernest. Epochs of Chinese and Japanese art (vol. 2). London: Willian Heinemann, 1921, p. 128.
  • 40
    . Cf. KAISER, Andrew. Constructing Modernity: Japanese graphic design from 1900 to 1930. 2006. Dissertação de Mestrado, University of Cincinnati, Cincinnati, p. 36.
  • 41
    . CARPENTER, John. Designing nature: the rinpa aesthetic in Japanese art. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2012, p. 35.
  • 42
    . THORNTON, R. S. Op. cit., p. 21-22.
  • 43
    . Cf. POWERHOUSE MUSEUM. 'Japan' poster by Kazumasa Nagai. 2006. Disponível em: <http://www.powerhousemuseum.com/collection/database/?irn=358138>. Acesso em: 23 maio 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2016
  • Aceito
    26 Fev 2012
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