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Era uma vez em Westworld

Once upon a time in the Westworld

Érase una vez en Westworld

Resumos

Este artigo analisa a ficção televisiva Westworld buscando elucidar a inserção da série na onda distópica contemporânea e sua representação de uma crise do sujeito humanista moderno. Outros aspectos destacados são a relação entre humanos e máquinas, sua ressignificação dos códigos do western cinematográfico, sua complexidade narrativa e as alusões à iconografia da pintura de natureza morta.

Westworld; distopia; paranoia cibernética; Trompe-l’oeil


This article investigates how the TV series Westworld fits into the contemporary dystopian wave, and its depiction of a crisis of the modern humanist subject. Other issues stressed throughout the article are the relationship between humans and machines, the resignification of the codes of cinematic western, the series’ narrative complexity, and the allusions to still life painting’s iconography.

Westworld; Dystopia; Cyber-paranoia; Trompe-l’oeil


El artículo analiza la ficción televisiva Westworld en vista de una reciente oleada de distopías, tratando de comprender como la serie opera la representación de una crisis del sujeto humanista moderno. Otros aspectos señalados son la relación entre humanos y máquinas, la resignificación de los elementos del western cinematográfico, la complejidad narrativa de la serie y sus alusiones a la iconografía de la pintura de bodegones.

Westworld; distopía; paranoia cibernética; trompe-l’oeil


Paranoid android

Desenvolvida por Lisa Joy e Jonathan Nolan para a emissora HBO, Westworld é uma série ficcional que estreou em 2016 e foi inspirada no filme homônimo de Michael Crichton, de 1973. A narrativa, ambientada em um parque temático que imita o Velho Oeste, assenta-se em hipóteses extremas sobre tecnociência, engenharia biomimética e criação de vida artificial, especulando sobre modelos de relações entre máquinas e humanos que problematizam ou até dissolvem as distinções entre eles.

Pois Westworld1 1 . Note-se que, ao longo do texto, a palavra “Westworld” aparecerá com e sem itálico, conforme se refira, respectivamente, ao nome da série ou ao parque temático onde ela se passa. não é um parque temático como outro qualquer: além de reconstituir o Velho Oeste nos mínimos detalhes, seu vasto território é povoado por androides idênticos aos humanos. Designados como “anfitriões”, os robôs vivem narrativas roteirizadas embutidas em seus códigos. Ao final de cada jornada, o sistema operacional é zerado e reiniciado, de modo que, no dia seguinte, tudo se repita. Há margem para a improvisação e o desvio, mas sem fugir às diretrizes do programa informático que preside ao comportamento das máquinas. O universo ficcional assim construído é um emaranhado de linhas narrativas que surgem do entrelaçamento dos loops vividos pelos anfitriões e da interação destes com os “convidados”, como são chamados os visitantes.

Uma das regras de ouro do parque é que os convidados – que pagam caro para desbravá-lo, vestidos como caubóis, pistoleiros, apostadores, frontier men – podem fazer o que bem entenderem com os anfitriões (matar, humilhar, estuprar). A cada atualização do programa, as vivências do dia anterior são deletadas da memória dos androides.

Para manter todo esse caos em harmonia, há um imenso plantel de funcionários que se distribuem em uma rede envolvendo logística, informática, engenharia cibernética, medicina pós-humana, psicologia comportamental aplicada a androides etc. Tudo é acompanhado de perto por supervisores encarregados de zelar pelos interesses da megacorporação que custeia o empreendimento e, obviamente, por uma equipe de segurança sempre pronta para intervir caso algo saia da ordem “natural” do parque.

E é exatamente o que acontece: alguns anfitriões começam a agir fora do padrão, extrapolando em muito as pequenas improvisações que lhes estão prescritas. Mais ainda: eles dão sinais de terem conservado diversas memórias do que viveram – isto é, do que sofreram em benefício do entretenimento dos visitantes. Eles tomam consciência de sua condição de criaturas não humanas exploradas pelos humanos. Tem início a revolução das máquinas.

A despeito de suas singularidades, Westworld é mais uma dentre inúmeras ficções distópicas que vêm se multiplicando na cultura mainstream. Na literatura de best-sellers, no cinema, em séries, telefilmes, animações, jogos eletrônicos, enfim, em todo lugar pululam narrativas sobre mundos distópicos. O pano de fundo é evidente e está infiltrado em cada aspecto por uma realidade moldada pelo capitalismo global – com seus fluxos inacessíveis de informação e dinheiro – e pela onipresença das novas tecnologias. Ambos, o capitalismo-fantasma das transferências virtuais e a pervasividade da tecnologia na vida cotidiana, nutrem uma subjetividade paranoica, próxima do que Fredric Jameson designou, ainda no começo dos anos 1990, como “paranoia high-tech2 2 . JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 64. .

A essa paranoia global, já atuante desde o terço final do século XX, o último decênio acrescentou um cenário político particularmente sombrio, cujo epifenômeno mais exclamativo é a emergência de novos fascismos mundo afora – velhos em conteúdo, na verdade, mas inéditos em suas ferramentas de disseminação e persuasão. Diante disso, reacenderam-se, compreensivelmente, visões disfóricas e catastrofistas, acompanhadas por debates sobre o fim da democracia e sobre a enésima crise (talvez terminal) do sujeito humanista moderno.

No universo audiovisual, são incontáveis os exemplos que ilustram essa atmosfera apocalíptica e/ou embarcam na temática do “pós-humano”3 3 . O debate sobre o pós-humano aparece em publicações acadêmicas e trabalhos artísticos desde os anos 1990. O termo – acompanhado, não raro, de conceitos complementares (pós-biológico, pós-corpóreo, transumano) – surge em resposta, entre outras coisas, à convergência cada vez maior entre organismos e tecnologias. No pós-humano, afirma Thomas Elsaesser, “não há diferenças essenciais ou demarcações absolutas entre existência corporal e simulação computadorizada, entre mecanismos cibernéticos e organismos biológicos, entre robôs executando programas e seres humanos perseguindo objetivos ou realizando buscas”. Cf. ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, p. 163. Ver também SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003; PEPPERELL, Robert. The post-human condition. Oxford: Intellect, 1995; SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. : as séries Years and years, Black mirror, 3%, Humans, The walking dead; os longas-metragens 4:44 - O fim do mundo (4:44 Last day on Earth, Abel Ferrara, 2011), Ao cair da noite (It comes at night, Trey Edward Shults, 2017), Bird box (Susanne Bier, 2018), Próxima parada: apocalipse (How it ends, David M. Rosenthal, 2018), entre dezenas de outros.

A onda distópica do audiovisual contemporâneo deita raízes na literatura de ficção-científica (Philip K. Dick, George Orwell, Ray Bradbury, Aldous Huxley) e ecoa os escritos de alguns dos mais importantes críticos da pós-modernidade (Fredric Jameson, Jean Baudrillard, Paul Virilio, Jean-François Lyotard), que se propuseram a entender as implicações sociais, políticas e estéticas das formas de organização espacial e de produção cultural no contexto tardio do capitalismo. Essas implicações culminam, entre outras coisas, em uma instabilidade subjetiva derivada da gradativa desmaterialização e midiatização das experiências, assim como da perda de certezas diante das constantes batalhas da desinformação e do descompasso entre o rápido avanço tecnológico-científico e o não tão rápido questionamento sobre os dilemas éticos suscitados por ele.

Westworld se coloca nessa discussão mediante certo determinismo tecnológico, postulando que a aliança entre a tecnociência e o capital globalizado acena para o estágio limítrofe, se não do humano, do humanismo e do sujeito moderno. Um dos trunfos comerciais da série consiste menos em estimular a empatia do espectador em relação a máquinas humanizadas do que em constatar uma desumanização generalizada e promover a antipatia com o humano, a vilanização do Homo sapiens, essa espécie que tem despertado em seus próprios membros desconfiança e até repulsa. Os criadores de Westworld farejaram a tendência do comércio de bens culturais – de séries televisivas a livros de vulgarização científica e ensaios acadêmicos – fundada na urgência em denunciar os malefícios da racionalidade iluminista e em explorar o filão das ideias implosivas, que decretam o fim do mundo tal como o conhecemos e o advento de uma era pós-tudo.

Imantado a esse espírito de falência geral, Westworld representa a lógica cultural capitalista em versão avançada ou mesmo esclerosada. É o infantilismo regressivo da Disneylândia somado à permissividade “adulta” de Las Vegas. Os valores da América dos pioneiros lá se encontram embalsamados, reciclagem nostálgica e fetichista do passado, fantasia idealizada de um mundo histórico que, originalmente, calcara-se em conflitos múltiplos (entre yankees e sulistas, ameríndios e descendentes de europeus, negros e brancos, civilização e barbárie, progresso industrial e tradição rural). O parque congela o Velho Oeste como imagem, situando-o ao abrigo das transformações históricas que lhe puseram fim. Há aí algo muito próprio da cultura norte-americana, com seu exílio voluntário, sua “histerese puritana e moral”4 4 . BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 77. Cabe a observação de Hans Belting de que, sempre que se refere aos Estados Unidos, Baudrillard reitera “uma perspectiva europeia (quase se poderia dizer: vétero-europeia), que só se pode aceitar se ainda se julgar possuir uma posição protegida, a partir da qual os Estados Unidos podem surgir à distância. O futuro, que nos Estados Unidos já começou, surge como o tempo após o pecado original”. Cf. BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011, p. 20. , seu eterno anseio por romper o istmo com o Velho Continente para forjar um mundo sem história, sem contradições, síntese utópica de uma identidade nacional fraturada desde a origem.

O visitante de Westworld, como o da Disneylândia, está imerso na “narrativa mítica das origens antagônicas da sociedade [...]; seu passeio é a narrativa mil vezes renovada da harmonização ilusória dos contrários, a solução fictícia de sua tensão conflituosa”5 5 . MARIN, Louis. Utopiques: jeux d’espaces. Paris: Les Éditions de Minuit, 1973, p. 299. Tradução minha. . Westworld não refaz o Velho Oeste, mas o seu mito. “O mito é uma narrativa que formula estruturalmente a solução de uma contradição social fundamental”6 6 . Ibidem, p. 297. Tradução minha. . Ora, o dispositivo de Westworld é concebido para encenar ciclicamente ficções que têm por tarefa regenerar uma realidade contraditória, conjurá-la por meio de um golpe de violência equivalente ao que a originou, mas, agora, dirigido por humanos contra robôs. As centenas de androides diariamente “mortos” – eles ressuscitarão depois de reiniciado o sistema – reconstituem em chave não menos perversa os genocídios da história verdadeira do Oeste selvagem. O filme de 1973 começa com uma vinheta promocional: um homem entrevista pessoas que acabaram de sair do parque. Um dos entrevistados exclama que é como brincar de caubói, só que desta vez é real. “Eu matei seis pessoas! Bem, não eram realmente pessoas. Eles talvez fossem robôs... Quer dizer, eu acho que eles eram robôs... Quer dizer, eu sei que eles eram robôs!”. Em outras palavras, ele não sabe se matou pessoas de verdade ou androides. Mas sabe que matou. “O que acontece em Westworld fica em Westworld”, dirão as personagens da série, parafraseando o lema de nove a cada dez filmes ambientados em Las Vegas – e expondo a convicção de que, para seus frequentadores, esses espaços de “degenerescência utópica”7 7 . Ibidem, p. 297 ss. são sinônimos de suspensão da realidade, daí a licença para agir fora da moral habitual.

O parque de diversões para adultos, todavia, é só a camada mais aparente de Westworld. No transcorrer da segunda temporada, descobrimos que o pastiche de bangue-bangue funciona como fachada para o verdadeiro projeto de que se ocupa a empresa Delos, dona do parque: transferir a consciência humana para um suporte digital e realocá-la nos corpos sintéticos dos androides; armazená-la na forma de dados computadorizados infinitamente atualizáveis. A promessa de vida eterna transcende o âmbito religioso, o cultivo da fé na imortalidade da alma e açambarca a esfera tecnológica. O próprio James Delos, mandachuva da corporação que leva seu sobrenome, será cobaia do experimento conduzido nas profundezas de Westworld: após sua morte por infarto, são feitas centenas de tentativas de manter sua consciência funcionando em um corpo artificial confeccionado à imagem do que possuía em vida – mais um paralelo com a Disneylândia, “este mundo infantil congelado [que] foi concebido e realizado por um homem, ele próprio hoje em dia criogenizado: Walt Disney, que espera a ressurreição a 180 graus negativos”8 8 . BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 20. .

O projeto secreto de Westworld, então, consiste no upload de todo o conteúdo de uma mente para a memória de um computador (ou para a “nuvem”), como se a consciência humana existisse enquanto banco de dados e pudesse ser transcodificada em arquivos digitais. Ultrapassado esse limiar, o ser humano desfrutaria da imortalidade no interregno do virtual, para além da empiria e das constrições corpóreas, num ciberespaço aberto à expansão não carnal da mente.

Ora, quem alcança esse sonho de superação das barreiras espaço-temporais, em Westworld, são os androides, que, no final da segunda temporada, marcham pelo deserto à procura de um portal para outro mundo, o “Vale do Além”, Éden digital onde se tornarão entes puramente virtuais, imunes ao contato com os humanos. Em sua diáspora, na medida em que se aproximam da passagem para o outro lado, eles formam uma imagem (fig. 1) que remete aos épicos bíblicos de Hollywood, repondo a ciber-utopia “como uma tentativa de criar um substituto tecnológico do Céu cristão”9 9 . WERTHEIM, Margaret apud BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011, p. 17. . No entanto, trata-se tão somente de uma imagem que brota de dentro de outra, e cujo conteúdo reproduz o clichê de certo imaginário da felicidade e do conforto espiritual já visto em propagandas de cartão de crédito e em capas de livros de autoajuda. A paisagem que se entrevê por aquela abertura (fig. 2) é uma “miragem técnica”10 10 . BELTING. Hans. A verdadeira imagem. Ibidem, p. 31. , cuja aparição espetacular escamoteia – por trás do brilho dos efeitos especiais e dos raios solares digitalmente realçados – a pobreza semântica da utopia virtual que projeta.

Figura 1
: Still de Westworld (temporada 2, epsódio 10), Lisa Joy e Jonathan Nolan, 2018.

Figura 2
: Still de Westworld (temporada 2, epsódio 10), Lisa Joy e Jonathan Nolan, 2018.

O inconsciente maquínico

Para dar lugar ao sujeito desencarnado da ciber-utopia, portanto, é preciso que o suporte material do ser humano, o corpo circunstanciado no mundo, seja aposentado. Esse tema da obsolescência do corpo físico já circula há algumas décadas na cultura poupar – em filmes, livros, histórias em quadrinhos e videogames em que a fusão do humano com o tecnológico é vista como uma forma de inteligência evoluída e de superação das imperfeições do corpo. “E, ainda assim”, assinala Claudia Springer, “ao mesmo tempo em que deprecia o imperfeito corpo humano, esse discurso usa a linguagem e o imaginário associados ao corpo e às funções corpóreas para representar sua visão da perfeição humano-tecnológica”11 11 . SPRINGER, Claudia. The pleasure of the interface. Screen, v. 32, n. 3, out. 1991, p. 303. Tradução minha. . Prova disso é a constante erotização da tecnologia, a recorrente concepção do corpo híbrido – feito de partes orgânicas e próteses robóticas – como máquina sexual avançada: despede-se do corpo somente para reencontrá-lo na máquina, que se torna, doravante, objeto de investimento libidinal.

A tecnofilia sempre esteve imbuída de erotismo: muito antes dos corpos que chegam ao orgasmo entre as ferragens de acidentes de carros em Crash (J. G. Ballard), já era comum, desde o começo do século XX, empregar-se metáforas sexuais para descrever aviões, locomotivas, pistões, turbinas, como se as formas e movimentos das máquinas representassem o sexo em grande escala.

Mas, ao mesmo tempo em que se mobiliza a tecnologia industrial como fonte de imaginação erótica, teme-se sua potência incomparavelmente superior à do corpo humano. Metropolis (1926), de Fritz Lang, é um clássico exemplo dessa dualidade expressa em termos sexuais: um autômato torneado como uma mulher sensual representa simultaneamente a atração pela tecnologia e seu poder ameaçador – uma espécie de femme castratrice robótica. Evidencia-se a outra grande questão: essa dúbia relação de fascinação pelas máquinas e medo de que elas destruam a humanidade e assumam o controle recobre, na verdade, uma relação problemática do sujeito masculino moderno (isto é, neurótico) com a posição da mulher na sociedade. Diversas outras narrativas modernas tendem a equiparar máquinas e mulheres, projetando na tecnologia os temores do patriarcado face à sexualidade feminina.

É a partir do século XIX que uma visão negativa da tecnologia se entrecruza com uma representação do desejo feminino como algo potencialmente desestabilizador, em consonância com a imagem que uma cultura predominantemente patriarcal construiu da mulher ao representá-la, a um só tempo, como tentação e ameaça.12 12 . Sobre a constituição do feminino no século XIX, ver KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17 ss. “Dessa forma, uma ambivalência social concernindo às máquinas, um sonho de dominação que se contrapõe a uma ansiedade quanto à perda de controle, conecta-se com uma ambivalência psíquica concernindo às mulheres, um misto de desejo e pavor”13 13 . FOSTER, Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993, p. 134. Tradução minha. .

Westworld retoma essa dupla ambivalência social/psíquica já em uma cena do primeiro episódio: Bernard, engenheiro responsável pelos androides, impressiona-se com um gesto sutil, um sensual deslizar do dedo pela boca executado por Clementine, androide cuja personagem é uma das prostitutas do saloon. “Isso não está no programa”, comenta Elsie, assistente de Bernard. O engenheiro esclarece que se trata de um novo repertório de gestos incluído no último update: são detalhes que afloram à mercê de pensamentos escondidos, como se agora os androides tivessem um subconsciente. Bernard se retira da sala e Elsie, sentindo-se atraída por Clementine, beija sua boca.

Desde o início, então, está colocada a atração sexual que os androides despertam, o fato de o agenciamento entre humanos e máquinas se estabelecer em um circuito libidinal. Mais ainda, está plantada a ideia de que certos gestos inadvertidos dos androides obedecem a impulsos oriundos de uma região de seus sistemas “psíquicos” fora do controle dos humanos.

O autômato que sabia desenhar e escrever de Pierre Jaquet-Droz (c.1770) podia até fascinar os surrealistas e instilar comparações com a escrita automática e o trabalho inconsciente do sonho, mas a associação da autonomia mecânica do boneco com o automatismo psíquico tão caro a André Breton era vaga – na prática, o mecanismo compulsivo do autômato era menos um atestado de antirracionalidade libertária do que uma ação calculada.14 14 . FOSTER, Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993, pp. 4-5. Tradução minha. Em Westworld, por sua vez, os androides são programados para executar não só as ações de rotina, mas também aquelas que, paradoxalmente, simulam uma fuga do programa – eles já contêm sua própria reserva de rêverie.

Entre os autômatos do final do século XVIII e os androides de Westworld, todo um trajeto de mudança tecnológica e social fez com que os autômatos de relojoaria dessem lugar a “uma nova raça, informática e cibernética, autômatos de cálculo e de pensamento, de regulação e feedback15 15 . DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 314. . Os autômatos dessa “nova raça” possuem a dupla autonomia informacional que, de acordo com Gilbert Simondon, caracteriza as “máquinas completas”, a saber, a autonomia do programa, armazenada de antemão, e a das medidas e adaptações necessárias no curso da operação: “o primeiro tipo de informação faz da máquina um autômato no sentido antigo do termo; o segundo[,] um autômato cibernético, um sistema auto-adaptativo”16 16 . SIMONDON, Gilbert. L’invention dans les techniques. Paris: Éditions du Seuil, 2005, p. 99. Tradução minha. . No limite, pode-se imaginar máquinas que desenvolvem tal autonomia que chegam a manter uma parte de seus códigos inacessível mesmo a quem as criou – um inconsciente maquínico. Na cena de Westworld mencionada, a ideia de que até a estrutura do inconsciente possa ser objeto de um mapeamento cognitivo e de um posterior implante em constructos artificiais parece ligada, antes de tudo, a uma fantasia que, resgatando a conexão entre a máquina e a mulher no imaginário romântico/moderno, repõe a obstinação da sociedade patriarcal em exercer domínio sobre seu eterno alvo de mistificação e recalque: o desejo sexual feminino.17 17 . Devemos aqui tomar cuidado para não aderir a qualquer noção essencialista do que seja a “sexualidade” ou o “feminino”. Ver PENLEY, Constance. The future of an illusion: Film, Feminism, and Psychoanalysis. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, p. 44.

O cinema endossa essa ansiedade de castração consignada à tecnologia através de numerosos exemplos de filmes com máquinas assassinas, demoníacas ou fora de controle, que ganham a forma de mulheres atraentes – de Metropolis a O exterminador do futuro 3 (Terminator 3: Rise of the machines, Jonathan Mostow, 2003), passando por Androide assassina (Eve of destruction, Duncan Gibbins, 1991) e diversos filmes de cyborgs contemporâneos. Nem sempre, porém, a máquina surge antropomorfizada. Em Christine (1983), de John Carpenter, ela é um simples carro: em uma fábrica de automóveis de Detroit, em 1957, um Plymouth vermelho escapa do anonimato da produção serializada para adquirir vida própria, como que insuflado por um daimon maligno. Muitos anos depois, um adolescente compra o carro em um ferro velho e o revitaliza. Obcecado com Christine, ele não deixa ninguém se interpor entre ele e o carro – nem mesmo sua namorada. A fusão homem-automóvel – que Marinetti havia celebrado no Manifesto futurista, de 1909, como o nascimento de um centauro moderno – muda de estatuto: não se ressalta mais a vertigem cinemática da velocidade nem a sensação de potência da junção entre o corpo humano e o metal industrializado, mas a psicopatologia que acompanha o trinômio técnica/mercadoria/fetiche. Homem e máquina, então, precisam ser desacoplados (vale notar que a demonização/feminilização da tecnologia é maliciosamente articulada por Carpenter à afeição homoerótica do protagonista pelo melhor amigo).

Da mesma forma que, em Christine, o carro é batizado com um nome feminino, em Ex machina (2015), de Alex Garland, o robô humanoide construído por um cientista é do sexo feminino e se chama Ava (uma Eva androide). Christine ainda representava o demônio da máquina da era industrial; Ava já representa a máquina neocapitalista da era cibernética. O protagonista, recrutado para interagir com ela e testar seu grau de “humanidade”, deixa-se envolver erótica e emocionalmente e começa a ajudá-la a se libertar do seu inventor, que a mantém prisioneira. Mas será que o herói não está sendo manipulado? Devia ele confiar numa máquina? Ou melhor, devia ele confiar no sexo feminino?

Em Westworld, algo similar se verifica na história do jovem William, que chega ao parque acompanhado de Logan (o filho de James Delos) e se apaixona por uma moça bonita e de imaginação poética, embarcando com ela em uma longa aventura e ignorando os alertas de Logan, que insiste em lembrar-lhe que ela é apenas uma máquina – William a considera, pelo contrário, mais real que a própria realidade que deixou do lado de fora do parque. No final da primeira temporada, descobrimos que William e a personagem de Ed Harris, o Homem de Preto, cavaleiro solitário e sombrio que vaga pelo parque à procura de um nexo perdido, são a mesma pessoa: todas as cenas com William eram flashbacks de quando o Homem de Preto visitou o parque pela primeira vez, trinta anos antes. A desilusão aconteceu quando a aventura acabou, a moça por quem ele se apaixonou reiniciou seu loop e ele a flagrou seduzindo outro visitante. Só então William aceitou que ela não passava de uma máquina seguindo um programa.

Seu drama remonta ao do “infeliz Natanael” do conto O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann. Natanael é um rapaz que enlouquece depois de descobrir que Olímpia, a bela moça por quem se apaixonou, é uma boneca de madeira, uma engrenagem artificial construída por um habilidoso mecânico. A história do autômato deixa em pânico os habitantes da pequena cidade em que o conto se passa. Para se assegurar de que não amam bonecas de madeira, muitos amantes pedirão que suas namoradas dancem e cantem um pouco fora do ritmo e, sobretudo, que demonstrem com palavras “a capacidade própria de pensar e sentir”18 18 . HOFFMANN, E.T.A. O reflexo perdido e outros contos insensatos. São Paulo: Estação Liberdade, 2017, p. 113. .

Publicado em 1817, numa época em que “as máquinas que imitavam seres vivos já eram bastante conhecidas na Europa”19 19 . MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 94. , O homem da areia desloca a visão que se tinha do autômato. No Iluminismo, ele era celebrado como emblema da eficiência produtiva e da sociedade racional; na literatura romântica do começo do século XIX, passa a ser visto como ameaça à vida humana. Como explica Eliane Robert Moraes, Hoffmann “parece inaugurar um novo ponto de vista sobre os simulacros mecânicos. Isso porque a dúvida, em vez de incidir sobre a máquina que simula um ser vivo, acaba por transformá-la no objeto a partir do qual a própria realidade humana é posta à prova”20 20 . Ibidem, p. 96. . No final do conto, é o próprio Natanael que está a se questionar sobre o que o constitui como ser humano.21 21 . Cumpre lembrar que O homem da areia é um dos exemplos que Freud utiliza no famoso texto em que formula o conceito de unheimlich: a “inquietante estranheza” que advém de uma experiência relacionada a algo familiar, mas há muito reprimido. O processo que desencadeia o unheimlich é motivado por fenômenos ambíguos, dentre os quais Freud destaca os casos em que não se consegue distinguir entre o animado e o inanimado, tal como se observa amiúde com manequins, figuras de cera ou autômatos. Cf. FREUD, Sigmund. O inquietante. In FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14: história de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376. O mesmo acontece com William/Homem de Preto na segunda temporada de Westworld: ele rasga seu antebraço com uma faca para checar se é feito de carne e osso ou de um esqueleto maquínico.22 22 . Nos filmes de ficção científica, a mão e o antebraço são frequentemente representados como o único lugar do corpo em que se pode distinguir um humano de um androide. Cf. BAKKE, Gretchen. Continuum of the human. Camera Obscura, v. 22, n. 66, p. 61-91. Se a série revisita a narrativa de Hoffmann que melhor ilustra a insegurança ontológica que afetou a cultura ocidental no alvorecer da modernidade, é por reconhecer que, dois séculos depois, o mesmo princípio de incerteza retorna a reboque de uma nova crise epistemológica e de outra revolução tecnológica, não mais industrial-mecânica, mas cibernética-digital.

Uma série ambientada no western

Embora seja essencialmente uma ficção científica distópica, Westworld mobiliza códigos e convenções específicas de outro gênero ficcional, o western, que marcou a Hollywood clássica e, desde então, nunca deixou de ser objeto de inúmeras revisões, variações, paródias etc. Não é aleatória a escolha desse imaginário para a construção de um parque temático desconectado do mundo real e delimitado por regras internas de funcionamento: mais do que qualquer outro gênero hollywoodiano, o western oferece um universo fechado, autônomo, cujas fronteiras se acham protegidas pelo isolamento eficaz de uma mitologia originária.

Há, no western, a consciência de que aquele mundo é uma realidade já extinta – o que sobreviveu foi o mito, como indica a frase lapidar de O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valence, 1962), de John Ford: “Quando a lenda se torna fato, você imprime a lenda”. Essa célebre sentença é citada pelo criador de Westworld, Ford (Anthony Hopkins), cujo nome certamente reverencia o diretor que se definia menos como cineasta do que como “fazedor de westerns”. A menção a John Ford – e, particularmente, a um filme, O homem que matou o facínora, que é quase um meta-western – demonstra que os criadores da série estão conscientes de que representar o Velho Oeste é lidar com um mito e, sobretudo, com um crepúsculo, com o fim de determinado mundo.

O ocaso inspira, inclusive, um dos grandes temas do western, a velhice, que Westworld resgata na figura do Homem de Preto, com seu rosto enrugado, ressecado, assemelhado à paisagem árida (fig. 3). Ele parece imitar a trajetória dos atores cujo processo de envelhecimento foi documentado pelos westerns em que atuaram. John Wayne envelheceu nos westerns de John Ford e de Howard Hawks. Randolph Scott, nos de Budd Boetticher e de André De Toth. Clint Eastwood, nos que ele próprio dirigiu. O complemento natural do grande plano geral de paisagem, tão característico do faroeste, é o primeiríssimo plano do rosto de um ator que envelhece diante da câmera.

Figura 3
: Still de Westworld (temporada 1, episódio 4), Lisa Joy e Jonathan Nolan, 2016.

Além desse aspecto expresso na personagem de Ed Harris, são vários os signos do western que retornam em Westworld, e não cabe aqui enumerá-los. No filme que originou a série, Michael Crichton já deixava clara a relação direta de suas operações formais com a iconografia e o repertório estilístico do western, optando, sobretudo, por reportar-se a faroestes modernos que já se apresentavam como revisões do gênero – ele reempregou, por exemplo, a decupagem estilizada dos tiroteios em câmera lenta filmados por Sam Peckinpah em Meu ódio será sua herança (The wild bunch, 1969).

Na série, um filme em especial é constantemente homenageado: Era uma vez no Oeste (Once upon a time in the West, 1968), de Sergio Leone. As referências começam pelo próprio nome da cidade fronteiriça por onde chegam de trem os visitantes de Westworld, que se chama Sweetwater em alusão à cidade homônima que é construída no decorrer do filme de Leone. Não se trata somente de um jogo de citação, como uma breve comparação entre Westworld e Era uma vez no Oeste pode revelar.

Sweetwater, no filme de 1968, é a cidade idealizada por um pioneiro, misto de empreendedor e sonhador, que comprou por uma ninharia um terreno no meio do deserto. Ele calculou, com razão, que a estrada de ferro teria de passar por ali, pois havia água no subsolo e a ferrovia precisava seguir a rota das escassas fontes hídricas. Mas o idealizador de Sweetwater não vive para assistir à realização do seu sonho: ele é assassinado pelo bando de Frank (Henry Fonda), matador de aluguel contratado por um barão ferroviário que queria tirar do caminho o potencial rival. O projeto de Sweetwater será levado adiante por Jill (Claudia Cardinale), ex-prostituta que o dono da terra conhecera em New Orleans, e com quem havia se casado sem que ninguém soubesse.

Era uma vez no Oeste lida com um momento representativo nas narrativas épicas do faroeste: a chegada da estrada de ferro e o estabelecimento da comunidade. A ferrovia, no filme, é uma empreitada que se confronta à mentalidade pré-capitalista representada pelos pistoleiros. Mas, movido pela ambição de dominação econômica, o empresário da ferrovia aceita fazer de tudo, o que inclui empregar pistoleiros contrários ao progresso tecnológico em que ele investe. No processo, termina por produzir uma força de trabalho, e são esses trabalhadores que, unidos em torno da figura da mulher, no final do filme, herdarão a terra. Como se pode perceber, o roteiro escrito em colaboração com Dario Argento e Bernardo Bertolucci se desenvolve pela perspectiva do materialismo dialético, conforme destaca Richard Dyer:

Como nos modelos marxistas clássicos, o capitalismo varre o feudalismo e traz os benefícios da ordem e da tecnologia; mas ele também produz – e explora – uma classe trabalhadora que, mesmo sendo necessária para seu desenvolvimento, vai posteriormente derrotá-lo para criar uma sociedade comunitária.23 23 . DYER, Richard. Pastiche. Nova York: Routledge, 2007, p. 106. Tradução minha.

A última cena mostra o trem atravessando a estrada de ferro recém-construída e os trabalhadores se aglutinando ao redor de Jill, que lhes distribui água. Em plena terra bruta de um gênero cinematográfico notoriamente misógino, uma mulher assume o controle.

Se trocarmos os trabalhadores pelos androides de Westworld, teremos um modelo parecido, ainda que a mentalidade industrial do século XIX se veja suplantada pelo capitalismo pós-industrial das grandes corporações. A mão de obra dos anfitriões é integrada a uma mais-valia diferente daquela teorizada por Marx e por seus epígonos. A revolução, não obstante, está presente e é liderada por duas mulheres: uma camponesa, Dolores (Evan Rachel Wood), e uma prostituta, Maeve (Thandie Newton). Elas são as primeiras a vencer o estado de alienação e adquirir consciência revolucionária, depois que desenvolvem memória acumulativa e se reconhecem na condição de máquinas inteligentes submetidas a um regime de exploração. Foi aperfeiçoando seus androides para extrair deles o máximo de eficácia e lucro que Westworld criou as condições mesmas de sua superação.

Nos anos 1990, a fórmula do western com protagonistas femininas já havia sido testada em pelo menos dois filmes: Quatro mulheres e um destino (Bad girls, 1994), de Jonathan Kaplan, e Rápida e mortal (The quick and the dead, 1995), de Sam Raimi. Ambos mostravam um Velho Oeste filtrado pelo pastiche – no sentido em que Jameson o entende, ou seja, como “a imitação de estilos mortos”24 24 . JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 45. – e seguiam o caminho encetado no começo da década pelo sucesso de Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991), cuja roteirista, Callie Khouri, havia recriado, de um ponto de vista feminista, o enredo típico de um buddy movie: “duas personagens de caráter oposto – geralmente masculinas, mas aqui femininas – tornam-se as melhores amigas do mundo, partilhando suas qualidades respectivas”25 25 . CHION, Michel. Écrire un scénario. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007, p. 68. Tradução minha. .

Rápida e mortal é a mais interessante dessas produções da década de 1990 que ressignificaram os estereótipos machistas do filme de ação para transformá-los em estratégia de empoderamento feminino. Tal como Westworld, o filme de Sam Raimi tem em Era uma vez no Oeste seu principal modelo. A personagem de Sharon Stone é uma versão feminina de “Harmonica”, o lacônico pistoleiro interpretado por Charles Bronson no filme de 1968: mesmo enredo de acerto de contas e mesma progressão de flashbacks para desencavar o trauma da infância. Muita coisa muda, porém, com o fato de o gatilho mais rápido do Velho Oeste, no filme de 1995, ser manipulado por uma mulher, que sai vitoriosa de um torneio de duelos depois de simular a própria morte na semifinal e, em magistral golpe de teatro, retornar das cinzas para concluir seu plano de vingança. Curiosamente, ela prefigura o poder de ressurreição dos androides de Westworld, além de antecipar o papel de liderança da mulher num movimento de emancipação coletiva, porquanto ao executar sua vingança pessoal ela acaba libertando a população da crueldade e da tirania de um temido homem.

Mais de vinte anos depois, Westworld revisita esse Velho Oeste alternativo, em que as figuras mais fortes são as mulheres. Se o momento se prova oportuno, é graças à maré alta dos discursos feministas e, mais amplamente, das pautas identitárias, que interessam sobremaneira à indústria do audiovisual, embora menos como plataforma de luta política do que como segmentação do mercado em alvos comerciais mais fáceis de mapear – haja vista a quantidade de produtos que hoje pegam carona no identitarismo, seja em Hollywood, na HBO ou na Netflix.26 26 . Para uma visão crítica sobre a voga das políticas identitárias no audiovisual contemporâneo, ver DELORME, Stéphane. Le piège de l’identité. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, p. 65. O crítico não se coloca contra o pensamento identitário, mas alerta para o fato de o neoliberalismo incentivá-lo, na medida em que esclarece as empresas de comunicação e entretenimento sobre as novas dinâmicas de fracionamento do público. É evidente que, ao reciclar seu menu habitual, incorporando expressões multiculturais e debates sobre raça e gênero, a indústria do entretenimento almeja, antes de tudo, cooptar públicos que ainda lhe possam ser refratários. Sintomaticamente, como nota Cyril Béghin, as empresas que mais investem na diversidade identitária (Marvel, Amazon, Netflix) são também as que menos contribuem para ampliar o repertório de formas e narrativas27 27 . BÉGHIN, Cyril. Des identités à la chaîne. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, p. 74. : alteram-se os signos exteriores, mas a estrutura do espetáculo – pela qual seu dispositivo de enunciação realmente articula os efeitos ideológicos subjacentes – mantém-se a mesma. As demandas de representatividade, assim, podem ser neutralizadas em sua força política e anexadas a um mercado que, usando a “inclusão” como álibi, sela as minorias étnicas e sexuais em embalagens lustrosas, plastifica os corpos em signos de uma iconografia comercial que, de progressista, tem muito pouco. Estaríamos mais perto, então, de um “pluralismo liberal cooptativo” do que de um “multiculturalismo policêntrico” de resistência.28 28 . Ver STAM, Robert. Film theory: an introduction. Oxford: Blackwell, 2000, p. 271.

Westworld entretece uma relação ambígua com essa dinâmica de apropriação e reificação, aquiescendo a ela e, ao mesmo tempo, evitando cumprir “inocentemente” as regras do espetáculo. Há algo na própria estrutura narrativa da série que demonstra um conflito entre o poder restaurador da fábula, sua capacidade de reaver a unidade de um imaginário cominado por pontos de ruptura, e a acumulação entrópica de narrativas, que já aponta para uma ideia de “instabilidade construtiva” e colapso.29 29 . ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, pp. 164-165. Seria exagero dizer que Westworld acusa um esgotamento dos modelos formais das ficções televisivas – mas é bastante claro que assume a busca por uma complexidade narrativa que não é simples manobra virtuosa do roteiro.30 30 . Sobre a complexificação das estratégias de narração em séries recentes, ver MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZes. São Paulo, v. 5, n. 2, (jan/jun 2012), pp. 29-52.

The maze

O esquema narrativo de Westworld é intricando, como se anuncia no título da primeira temporada: The maze – o labirinto. A série opera um curto-circuito dos dois paradigmas narrativos que Jean-Pierre Esquenazi identifica nas ficções televisivas:

Algumas preferem fazer dos seus encontros com os públicos reiterações de uma mesma estrutura, negando assim a passagem do tempo histórico. Nestas séries, [...] o universo ficcional não evolui. [...] Outras séries, pelo contrário, aceitam utilizar o tempo cronológico [...]: o universo pessoal da série envelhece um pouco em cada um dos seus encontros com o público.31 31 . ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto & Grafia, 2011, p. 93.

Os dois modelos constituem o que Esquenazi denomina, respectivamente, séries imóveis e séries evolutivas. E sua imbricação, em Westworld, produz uma simultaneidade contraditória: é como se uma série evolutiva se desenvolvesse no interior de um universo formado por múltiplas micronarrativas imóveis, ou seja, os loops dos androides, que se repetem diariamente e configuram o que podemos chamar de efeito marmota, em referência ao filme Feitiço do tempo (Groundhog Day, 1993), de Harold Ramis. Nessa comédia romântica aparentemente despretensiosa, a personagem de Bill Murray – que vai a uma pequena cidade para fazer uma matéria televisiva sobre uma festividade local, o “dia da marmota” – fica revivendo o mesmo dia ad nauseam. A premissa absurda abre espaço para toda uma reflexão indireta sobre os esquemas de repetição e diferença no processo de realização de um filme (várias diárias para uma mesma cena, várias tomadas para um mesmo plano, vários tratamentos para um mesmo roteiro).32 32 . Westworld não esconde que se apropria dessa ideia, fazendo várias alusões ao filme de Ramis: os planos-detalhe do piano mecânico do saloon tocando sempre a mesma música, que pontua o início das atividades no parque, remete aos planos-detalhe do rádio que desperta Bill Murray sempre com a mesma canção da Cher; os androides que morrem e na manhã seguinte estão vivos e prontos para outra jornada idêntica remontam ao herói de Feitiço do tempo, que tenta se matar diversas vezes, somente para ser acordado novamente pelo rádio e começar tudo de novo; a cena em que Maeve sai pelo parque antecipando em voz alta cada evento no exato momento em que ocorrerá – pois já viveu aquele mesmo dia infinitas vezes – é derivada de uma cena idêntica de Feitiço do tempo; e por aí vai.

Em Westworld, a mescla de progressão e iteração confere à narrativa um caráter misterioso e, não raro, confuso. Não apenas o espaço do parque é um novelo de ações concomitantes e caminhos que se bifurcam, como também a montagem temporal dos eventos assume uma forma labiríntica, com camadas de passado e presente se embaralhando nas alternâncias entre acontecimentos atuais e flashbacks.

Esse aspecto labiríntico do enredo corrobora uma atmosfera de thriller corporativo que perpassa a série e a aproxima, em alguns pontos, das ficções paranoicas da década de 1970, em que – como expressão visual do emaranhado de informações de que se compunham as narrativas – eram reincidentes os espaços arquitetônicos esquadrinhados por grades geométricas, onde os corpos apareciam como insetos aprisionados numa teia. Westworld conta com um cenário desse tipo, que parece até decalcado de A trama (The Parallax View, 1974), de Alan J. Pakula, um dos filmes mais representativos daquele ciclo de thriller paranoico dos anos 1970 (fig. 4 e 5).

Figura 4
: Still de A trama (The Parallax View), Alan J. Pakula, 1974.

Figura 5
: Still de Westworld (temporada 1, episódio 2), Lisa Joy e Jonathan Nolan, 2016.

Tal como construído nessas imagens, o espaço parece subordinado a um plexo de feixes, linhas e nós, sugerindo as redes de interconexões secretas, o sistema reticular espalhado sob o território visível – ideia reforçada após a popularização da internet e a fermentação da sensação de que a experiência subjetiva contemporânea é atravessada por códigos informáticos e protocolos de rede que nos interpelam a todo momento, sem que necessariamente saibamos como funcionam ou tampouco tenhamos domínio consciente de todas as suas operações. Isso pode acarretar aquela paranoia cibernética que, segundo Jameson, é apenas “uma figuração distorcida de algo ainda mais profundo, a saber, todo o sistema mundial do capitalismo multinacional de nossos dias”33 33 . JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, pp. 63-64. . Para pensar a realidade das instituições econômicas e sociais, de fato, é preciso ir além de uma simples lógica do complô ou da conspiração planetária. E a forma como se expõe a engrenagem da paranoia global em Westworld ainda é tributária, em larga medida, do esquema convencional das narrativas conspiratórias, articulando-se no embate entre duas figuras de poder: de um lado, o poder clássico, centralizado – Ford, o pai das criaturas, o mestre das marionetes –, do outro, a empresa Delos, o poder moderno, difuso, espraiado por redes interligadas através de dispositivos tecnológicos. Os canais de informação despistam os heróis e formam um labirinto, mas estranhamente continua existindo a figura anacrônica de um sujeito mais bem posicionado, Ford, que monitora tudo de cima – sobretudo depois que morre e se torna uma entidade virtual, um Dr. Mabuse diluído no ciberespaço, evolução digital do hipnotizador de mentes ou do gênio maligno à moda expressionista. A realidade de difícil apreensão das corporações multinacionais surge demasiadamente esquematizada em Westworld. Isso se reflete na própria construção narrativa, que mantém uma estrutura clássica, com um conflito narrativo central, ao mesmo tempo em que se ramifica para abarcar um universo complexo, feito de redes, de cruzamentos, de circulações e movimentos – uma narração tentacular e proliferativa.

Há uma dimensão de autorreflexividade narrativa em Westworld que se comprova pela crescente relevância da personagem do roteirista do parque, Lee Sizemore, responsável por escrever as histórias encarnadas pelos androides. Num primeiro momento, ele é colocado na berlinda pelos chefes, que desaprovam suas storylines repletas de clichês e tipificações grosseiras; depois, ele é enfrentado por Maeve, que se diz desapontada com a falta de criatividade na confecção de sua história; finalmente, ele performa espalhafatosamente sua própria morte, como um ato sacrificial e patético. Com a morte do narrador, Westworld se torna um espaço “vazio de enunciação”, abandonado ao “progresso implacável da entropia”, que, como a segunda temporada demonstra, é menos a falha do que a consumação de um projeto calculado para atingir o ápice justamente no momento de colapso e autodestruição, remetendo ao que Elsaesser considera um princípio sistêmico inerente à simbiose homem-máquina: “a instabilidade construtiva do fracasso consumado”34 34 . ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, p. 176. . O percurso de Lee Sizemore, de certo modo, simboliza o desaparecimento da autoridade narracional, reproduzindo o que ocorre nos novos “espaços roteirizados”35 35 . Ibidem, p. 162. (como os que se observam em videogames e em plataformas de vídeo on-line), em que as histórias se criam menos pelas regras clássicas de construção do que por convergências inesperadas de narrativas preexistentes e por cruzamentos multidirecionais de informações. O sétimo e o oitavo episódios da segunda temporada, os mais explicativos, não conseguem esconder uma ansiedade diante desse “páthos da entropia”36 36 . JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 173. : lutam para manter tudo fazendo sentido, ainda que terminem por acentuar a pulsão de desvario que atravessa a série. A narrativa retorcida talvez seja exatamente a solução encontrada por Westworld para reabsorver internamente os conflitos e colaborar com uma homeostase do imaginário social.37 37 . Alguns teóricos (Raymond Bellour, Stephen Heath) já argumentaram que alguma “desordem textual” é necessária à eficácia narrativa do espetáculo ilusionista.

Trompe-l’oeil

A primeira imagem do episódio de abertura de Westworld mostra Dolores nua e sentada numa cadeira, no ambiente asséptico de uma sala de manutenção do parque. Enquanto a câmera se aproxima dela, ouvimos o som de uma conversa – transcorrida em off – em que Dolores responde a perguntas feitas por um homem que a submete a um teste de rotina. Impossível não lembrar da primeira cena de Blade Runner (Ridley Scott, 1982), mas há uma diferença: lá, uma máquina era testada por um humano que queria saber se ela era uma máquina; aqui, a máquina é testada somente para que se cheque se ela se mantém fiel ao seu programa. Em Blade Runner, tratava-se de refazer a linha demarcatória entre o humano e o maquínico, que a própria criação dos androides havia borrado. Em Westworld, o androide é examinado para que se verifique o funcionamento de sua memória artificial.

No meio do travelling, ocorre uma suave fusão para um primeiro plano do rosto de Dolores, que permanece inerte, como uma máquina desligada de sua fonte de energia – tanto que não esboça qualquer reação quando uma mosca pousa em seu nariz (fig. 6).

Figura 6
: Still de Westworld (temporada 1, episódio 1), Lisa Joy e Jonathan Nolan, 2016.

A mosca seria um detalhe supérfluo, se não remetesse a toda uma história da pintura entre os séculos XIV e XVII, em que a atenção redobrada ao detalhe traduz tanto a celebração de uma técnica de representação (ligada ao aperfeiçoamento do realismo figurativo) quanto a tentação do trompe-l’oeil. Comentando uma anedota de Vasari – sobre uma suposta obra de Giotto em que uma mosca pintada no nariz de uma figura teria enganado até mesmo seu mestre, Cimabue –, Daniel Arasse conclui que esse tipo de detalhe aparece na história da pintura do Renascimento como “o emblema da maestria visual dos meios da representação mimética”38 38 . ARASSE, Daniel. Le détail. 2ª ed. Paris: Flammarion, 1996, p. 118. Tradução minha. . O prestígio que o motivo pictórico da mosca conheceu entre meados do Quattrocento e início do século XVI, segundo Arasse, está diretamente vinculado ao seu efeito de trompe-l’oeil: o que está em jogo é “a capacidade da pintura de enganar os olhos”39 39 . Ibidem. Tradução minha. . O sucesso do motivo, nessa lógica, deve-se menos a seus valores morais (ele funciona amiúde como memento mori) do que às razões artísticas que o impulsionaram: ao pintar uma mosca que se passa por um inseto real, o artista comprova a eficácia de um savoir-faire. Por isso, quando associada à figura humana, a “verdade” da mosca pode ser um comentário metapictórico sobre a “verdade” da figura representada (fig. 7). Há um virtuosismo artístico, mas não só: a mosca em trompe-l’oeil assevera o triunfo da representação mimética na pintura. Daí Arasse afirmar que “Vasari não estava errado ao fazer da ‘mosca pintada’ o emblema de uma nova prática pictórica que se inaugura na Toscana no começo do século XIV”40 40 . Ibidem. Tradução minha. .

Figura 7
: Anônimo (da escola de Swabia), Retrato de uma mulher da família Hoffer, c.1470.

Óleo sobre madeira, 54 x 41 cm. National Gallery, Londres.


Em pintura, então, o detalhe da mosca se aliou a um discurso de exaltação do mérito artístico de uma imagem fabricada pelo viés da imitação “perfeita”. E quanto a Westworld? Seria a mosca no rosto de Dolores um detalhe que incorpora um motivo visual historicamente conectado à prática do trompe-l’oeil para adiantar um comentário sobre a forma como os androides enganam o olhar dos humanos e se passam por pessoas “de verdade”? Ao mesmo tempo, estaria a mosca evocando a iconografia de um gênero pictórico específico, a saber, a natureza morta, que tem como um de seus topoi a presença de moscas e outros insetos?

A resposta está numa cena do segundo episódio da segunda temporada, em que Logan reúne-se com um homem e uma mulher que querem convencê-lo a investir em Westworld o dinheiro da empresa do pai. O playboy se apressa em dizer que não adianta tentarem vender-lhe mais uma proposta de realidade virtual. A mulher o tranquiliza: “Todos estão se afobando para construir o mundo virtual. Nós oferecemos algo mais tangível”. Ela convence Logan a aceitar uma demonstração. Trata-se de uma simples confraternização: pessoas bebem, conversam. A moça pede que Logan tente identificar qual delas é um androide. Ele passeia pelo lugar, observa atentamente os convidados, não chega a uma conclusão. Até que olha novamente para a moça com quem está fazendo a reunião de negócios e tem a epifania: ela própria é o androide.

A cena, evidentemente, remonta ao antigo apólogo que narra o triunfo de Parrásios sobre seu rival, Zêuxis: este tinha pintado cachos de uvas tão reais que atraíram passarinhos, mas o primeiro o superou ao mostrar uma cortina; Zêuxis pediu que Parrásios abrisse a cortina para ver o que havia pintado atrás dela, dando-se conta, em seguida, do engano da sua visão: a cortina já fazia parte da imagem, ou melhor, ela era a imagem, que apresentava justamente uma cortina pintada em trompe-l’oeil. Se Zêuxis era capaz de enganar os pássaros que vinham bicar suas uvas pintadas achando que elas eram verdadeiras, Parrásios era ainda melhor pintor, porquanto enganara o olhar de um mestre. A tática vitoriosa de Parrásios, segundo Jacques Lacan, não consiste em reproduzir admiravelmente as aparências visíveis, mas em apresentar a pintura de um motivo, a cortina, que joga menos com a visão enquanto verificação óptica objetiva do que com o olhar enquanto desejo (logo, incompletude) e impulso de ver mais, de ver além.41 41 . Cf. LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p. 104 ss.

Westworld adaptou a fábula para o contexto da biomimese42 42 . Cf. JONES, Caroline A. Biomimetics. In JONES, Caroline A (org.). Sensorium: embodied experience, technology, and contemporary art. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2006, pp. 115-118. : os androides não são pinturas que se tomam por objetos reais, mas máquinas (a própria palavra “máquina” soa aqui anacrônica) que se tomam por humanos e enganam até mesmo o olhar mais arguto – não só o da mosca que confunde um androide desligado com um cadáver humano, mas o dos visitantes e, às vezes, dos próprios funcionários do parque. A criação dos androides de Westworld resulta de uma simbiose completa entre o tecnológico e o biológico: chips, placas, metais, fios e transistores entremeados a tecidos, fibras, massas, mucosas e fluidos que mimetizam componentes orgânicos. Eles são a réplica ideal do ser humano, ou melhor, sua superação. “Você é perfeita demais para ser um de nós”, afirma Logan para a bela jovem que o ludibriou. Pode-se interpretar as palavras dele positivamente, como um elogio, ou negativamente, como uma sugestão de que, em sua hiper-realidade mesma, a moça tem a perfeição fria dos simulacros, ou seja, das “más imagens” que Platão compara ao sofista, “este diabo, este insinuador ou este simulador, este falso pretendente sempre disfarçado e deslocado”43 43 . DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 185. . Neste caso, os androides deixam de ser o triunfo da mimesis para se tornar a distorção do real que caracteriza os simulacros. O referente humano se perde, é suprimido pelo efeito de obnubilação imposto pela presença autossuficiente de uma imagem que não necessariamente imita um objeto do mundo, mas projeta-se nele e existe (o simulacro não representa, apenas é).44 44 . Cf. STOICHITA, Victor I. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Lisboa: KKYM, 2011, pp. 10-11.

Em Westworld, mais do que um efeito isolado e circunscrito ao universo diegético, o sofisma do simulacro invade a própria relação que a série estabelece com o espectador: ao final da primeira temporada, descobrimos que Bernard é também um androide. O espectador é enganado da mesma forma que Logan o fora, pois passa uma temporada inteira sem perceber que uma das personagens principais – que havia se apresentado como um humano – é, na verdade, uma criatura sintética.

Aqui, retomamos o segundo ponto concernente à presença da mosca no rosto de Dolores, isto é, o da conexão desse motivo com uma tradição iconográfica da pintura de natureza morta. Em seus importantes ensaios sobre o tema, Norman Bryson ressalta que as pinturas do gênero, tal como praticadas no século XVII (sobretudo na arte setentrional, cujo interesse pelo descritivo e pelos aspectos literais do mundo visível a afastou da tradição narrativa da pintura italiana45 45 . Cf. ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999. ), denotam uma atenção levada ao extremo, uma habilidade observacional que, muitas vezes, acorre à precisão de instrumentos ópticos: uma visão de tão fino acúmen que torna obsoleta a atenção humana.46 46 . BRYSON, Norman. Chardin and the text of still life. Critical Inquiry, v. 15, n. 2, (jan 1989), pp. 227-252. A acurada atenção descritiva da natureza morta, sua “alta definição”, sua acuidade quase microscópica, oferece um campo saturado de percepções que são de uma intensidade maníaca – a obsessão com o detalhe é um dos traços conspícuos dos quadros pintados por Maria van Oosterwyck (fig. 8), Pieter Claesz, Willem Kalf, Juan de Zurbarán (fig. 9 – há, nessa pintura, uma clara alusão às uvas de Zêuxis) e outros especialistas na retórica visual da natureza morta.

Figura 8
: Maria van Oosterwyck, Buquê de flores em um vaso, c.1670.

Óleo sobre tela, 73,6 x 55,8. Denver Art Museum.


Figura 9
: Juan de Zurbarán, Natureza morta com frutas e um pintassilgo, c.1640.

Óleo sobre tela, 40 x 57 cm. Museu Nacional d’Art de Catalunya, Barcelona.


Bryson destaca o papel central do trompe-l’oeil nos quadros de natureza morta do século XVII. Para ele, a dimensão ameaçadora dessa prática ilusionista reside precisamente no fato de ela retirar do sujeito observador seu lugar soberano no dispositivo da representação. O trompe-l’oeil mimetiza e parodia a sensação de realidade a tal ponto que termina por colocar em dúvida o lugar do sujeito humano no mundo, ou a existência mesma desse lugar: “Durante a fração de segundo em que o trompe-l’oeil exerce seu efeito, ele induz um sentimento de vertigem ou de choque: é como se estivéssemos vendo a aparência que o mundo teria sem um sujeito lá para percebê-lo”47 47 . BRYSON, Norman. Looking at the overlooked: four essays on still life painting. Londres: Reaktion Books, 1990, p. 140. Tradução minha. . O ardil do trompe-l’oeil consiste em fingir que os objetos não foram pré-arranjados em uma composição destinada ao olho humano. Embora a imagem seja concebida em função das reações do observador, ela aguarda por ele como se não soubesse de sua existência – finge passividade, enquanto dá provas de que é intrinsecamente dotada de força ativa. É uma imagem que aceita jogar com as aparências no intuito de persuadir e impressionar.

Se o trompe-l’oeil adquire plenos poderes no período barroco, é porque o século XVII reabilita a retórica e o valor de persuasão da arte, superando o neoplatonismo que se expandira no século anterior.48 48 . Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. Ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 35 ss. O paradigma da imagem barroca é o da contrafação, a primeira das três ordens de simulacros que, segundo Baudrillard, sucedem-se a partir do Renascimento. A contrafação ainda “supõe a altercação sempre sensível do simulacro e do real”49 49 . BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996, p. 70. , como na representação em trompe-l’oeil. Já o simulacro de segunda ordem, o de produção, está ligado ao esquema industrial, à possibilidade de fabricar objetos e signos potencialmente idênticos em séries indefinidas. Por fim, na terceira ordem de simulacros, a da simulação, a produção serial cede lugar à geração de modelos baseados na informação e no jogo cibernético. Não há, doravante, contrafação do original como na primeira ordem, tampouco série pura como na segunda: há modelos cuja estrutura é a do signo programático e do código micromolecular, que transformam tudo – incluindo o organismo humano – em matéria-prima para todo tipo de arquitetura informacional. Se a contrafação trabalhava somente sobre a substância e a forma, a simulação chega às relações e às estruturas. Na natureza morta barroca, ainda havia o referente, o pressuposto de que a pintura imitava as coisas do mundo. Na simulação, o referente some: a imagem existe por si mesma, é um artefato criado in vitro e desprovido de modelo original.

É nessa terceira ordem de simulacros que Westworld se planta. Basta pensar nas cenas em que os androides são moldados por uma espécie de impressora 3D que informa um corpo cuja matriz é um arquivo gerado no computador. O parque como um todo é uma simulação: não imita o Velho Oeste, mas fabrica um outro Oeste selvagem com base em modelos e códigos matriciais, da mesma forma que os androides não são concebidos como cópias inferiores dos humanos, mas como vidas artificiais plenas (ou quase). A própria inteligência humana, sua faculdade de raciocinar, de aprender, bem como sua emotividade, sua sensibilidade à dor, foram modelizadas e programadas. Já não é questão de representar os vastos mundos da natureza e do corpo por meio de imagens, mas de sintetizá-los em toda sua complexidade.50 50 . Cf. COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina. São Paulo: 34, 1993, pp. 37-49. A hiper-realidade simulacral do parque enreda os visitantes não por se provar um duplo perfeito, uma cópia fiel da realidade ou do passado cuja ressurreição artificial ela promove, mas justa e inversamente por, em sua potência alucinatória, substituir-se à realidade e fazer duvidar ou até esquecer que ela exista. Mesmo o imaginário e a fantasia retrospectiva se perdem, pois eles só podem se produzir na relação com um referente – e, tão logo se dê a imersão completa na realidade simulada, esse referente é abolido.

Até aí, trata-se da implosão do real já anunciada há muito tempo e especulada por diversas ficções do simulacro, de O vingador do futuro (Total Recall, Paul Verhoeven, 1990) a eXistenZ (David Cronengberg, 1999), passando por Matrix (irmãs Wachowski, 1999) e seus epônimos. Westworld, no entanto, parece mirar mais alto: suas pretensões englobam também um questionamento das bases humanistas de toda uma Weltanschauung moderna. Falamos, no início do artigo, de uma crise do sujeito humanista, que inerva muitas das narrativas distópicas contemporâneas. E é em Westworld, com efeito, que a questão ganha sua formulação mais evidente. Não por acaso, a série apresenta, já em sua vinheta de abertura, uma recriação do homem vitruviano, um dos grandes emblemas do antropocentrismo e da cultura humanista ocidental (fig. 10). Em vez do ser humano, porém, quem agora representa o modelo ideal e ocupa o centro do universo é um androide (fig. 11).

Figura 10
: Leonardo da Vinci, Homem vitruviano, c. 1490.

Lápis e tinta sobre papel, 34 x 24 cm. Gallerie dell’Accademia, Veneza.


Figura 11
: Imagem da vinheta de abertura de Westworld.

Essa imagem da vinheta, figura matricial da série, tem seu sentido explicitado na cena da segunda temporada em que Ford confessa para Bernard que considera os androides os legítimos herdeiros do mundo. Pouco importa, na opinião dele, que os robôs ocupem o lugar dos humanos. Isso deveria até ser encorajado. A postura do cientista, contudo, não é uma prova de humildade: se ele se desapegou do mundo e aceita entregá-lo às máquinas, é porque já não lhe basta ser o centro do universo sem ter sido seu criador, e sem ter as demais vantagens divinas, como a eternidade e a onipresença. O homem vitruviano, o cânone das proporções e das medidas, pode ser tranquilamente trocado por um androide, pois o humano está mais interessado em fazer o upgrade para a dimensão irrepresentável, invisível e incomensurável que um dia atribuiu a Deus. Trata-se, efetivamente, do fim do humanismo – mas tanto no sentido de prazo vencido como no de realização final

Bibliografia

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  • STOICHITA, Victor I. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Lisboa: KKYM, 2011.
  • 1
    . Note-se que, ao longo do texto, a palavra “Westworld” aparecerá com e sem itálico, conforme se refira, respectivamente, ao nome da série ou ao parque temático onde ela se passa.
  • 2
    . JAMESONJAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004., Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 64.
  • 3
    . O debate sobre o pós-humano aparece em publicações acadêmicas e trabalhos artísticos desde os anos 1990. O termo – acompanhado, não raro, de conceitos complementares (pós-biológico, pós-corpóreo, transumano) – surge em resposta, entre outras coisas, à convergência cada vez maior entre organismos e tecnologias. No pós-humano, afirma Thomas Elsaesser, “não há diferenças essenciais ou demarcações absolutas entre existência corporal e simulação computadorizada, entre mecanismos cibernéticos e organismos biológicos, entre robôs executando programas e seres humanos perseguindo objetivos ou realizando buscas”. Cf. ELSAESSERELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018., Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, p. 163. Ver também SANTAELLASANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003., Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003; PEPPERELLPEPPERELL, Robert. The post-human condition. Oxford: Intellect, 1995., Robert. The post-human condition. Oxford: Intellect, 1995; SIBILIASIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
  • 4
    . BAUDRILLARDBAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986., Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 77. Cabe a observação de Hans Belting de que, sempre que se refere aos Estados Unidos, Baudrillard reitera “uma perspectiva europeia (quase se poderia dizer: vétero-europeia), que só se pode aceitar se ainda se julgar possuir uma posição protegida, a partir da qual os Estados Unidos podem surgir à distância. O futuro, que nos Estados Unidos já começou, surge como o tempo após o pecado original”. Cf. BELTINGBELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011., Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011, p. 20.
  • 5
    . MARINMARIN, Louis. Utopiques: jeux d’espaces. Paris: Les Éditions de Minuit, 1973., Louis. Utopiques: jeux d’espaces. Paris: Les Éditions de Minuit, 1973, p. 299. Tradução minha.
  • 6
    . Ibidem, p. 297. Tradução minha.
  • 7
    . Ibidem, p. 297 ss.
  • 8
    . BAUDRILLARDBAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991., Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 20.
  • 9
    . WERTHEIM, Margaret apud BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011, p. 17.
  • 10
    . BELTINGBELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne, 2011.. Hans. A verdadeira imagem. Ibidem, p. 31.
  • 11
    . SPRINGERSPRINGER, Claudia. The pleasure of the interface. Screen, v. 32, n. 3, out. 1991., Claudia. The pleasure of the interface. Screen, v. 32, n. 3, out. 1991, p. 303. Tradução minha.
  • 12
    . Sobre a constituição do feminino no século XIX, ver KEHLKEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016., Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17 ss.
  • 13
    . FOSTERFOSTER, Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993., Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993, p. 134. Tradução minha.
  • 14
    . FOSTERFOSTER, Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993., Hal. Compulsive beauty. Cambridge: MIT Press, 1993, pp. 4-5. Tradução minha.
  • 15
    . DELEUZEDELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990., Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 314.
  • 16
    . SIMONDONSIMONDON, Gilbert. L’invention dans les techniques. Paris: Éditions du Seuil, 2005., Gilbert. L’invention dans les techniques. Paris: Éditions du Seuil, 2005, p. 99. Tradução minha.
  • 17
    . Devemos aqui tomar cuidado para não aderir a qualquer noção essencialista do que seja a “sexualidade” ou o “feminino”. Ver PENLEYPENLEY, Constance. The future of an illusion: Film, Feminism, and Psychoanalysis. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989., Constance. The future of an illusion: Film, Feminism, and Psychoanalysis. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, p. 44.
  • 18
    . HOFFMANNHOFFMANN, E.T.A. O reflexo perdido e outros contos insensatos. São Paulo: Estação Liberdade, 2017., E.T.A. O reflexo perdido e outros contos insensatos. São Paulo: Estação Liberdade, 2017, p. 113.
  • 19
    . MORAESMORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002., Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 94.
  • 20
    . Ibidem, p. 96.
  • 21
    . Cumpre lembrar que O homem da areia é um dos exemplos que Freud utiliza no famoso texto em que formula o conceito de unheimlich: a “inquietante estranheza” que advém de uma experiência relacionada a algo familiar, mas há muito reprimido. O processo que desencadeia o unheimlich é motivado por fenômenos ambíguos, dentre os quais Freud destaca os casos em que não se consegue distinguir entre o animado e o inanimado, tal como se observa amiúde com manequins, figuras de cera ou autômatos. Cf. FREUD, Sigmund. O inquietante. In FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 14: história de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.
  • 22
    . Nos filmes de ficção científica, a mão e o antebraço são frequentemente representados como o único lugar do corpo em que se pode distinguir um humano de um androide. Cf. BAKKEBAKKE, Gretchen. Continuum of the human. Camera Obscura, v. 22, n. 66, pp. 61-91., Gretchen. Continuum of the human. Camera Obscura, v. 22, n. 66, p. 61-91.
  • 23
    . DYERDYER, Richard. Pastiche. Nova York: Routledge, 2007., Richard. Pastiche. Nova York: Routledge, 2007, p. 106. Tradução minha.
  • 24
    . JAMESONJAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004., Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 45.
  • 25
    . CHIONCHION, Michel. Écrire un scénario. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007., Michel. Écrire un scénario. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007, p. 68. Tradução minha.
  • 26
    . Para uma visão crítica sobre a voga das políticas identitárias no audiovisual contemporâneo, ver DELORMEDELORME, Stéphane. Le piège de l’identité. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, pp. 64-65., Stéphane. Le piège de l’identité. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, p. 65. O crítico não se coloca contra o pensamento identitário, mas alerta para o fato de o neoliberalismo incentivá-lo, na medida em que esclarece as empresas de comunicação e entretenimento sobre as novas dinâmicas de fracionamento do público.
  • 27
    . BÉGHINBÉGHIN, Cyril. Des identités à la chaîne. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, pp. 74-75., Cyril. Des identités à la chaîne. Cahiers du Cinéma, n. 753, mar. 2019, p. 74.
  • 28
    . Ver STAMSTAM, Robert. Film theory: an introduction. Oxford: Blackwell, 2000., Robert. Film theory: an introduction. Oxford: Blackwell, 2000, p. 271.
  • 29
    . ELSAESSERELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018., Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, pp. 164-165.
  • 30
    . Sobre a complexificação das estratégias de narração em séries recentes, ver MITTELLMITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZes. São Paulo, v. 5, n. 2 (jan/jun 2012), pp. 29-52., Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZes. São Paulo, v. 5, n. 2, (jan/jun 2012), pp. 29-52.
  • 31
    . ESQUENAZIESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto & Grafia, 2011., Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto & Grafia, 2011, p. 93.
  • 32
    . Westworld não esconde que se apropria dessa ideia, fazendo várias alusões ao filme de Ramis: os planos-detalhe do piano mecânico do saloon tocando sempre a mesma música, que pontua o início das atividades no parque, remete aos planos-detalhe do rádio que desperta Bill Murray sempre com a mesma canção da Cher; os androides que morrem e na manhã seguinte estão vivos e prontos para outra jornada idêntica remontam ao herói de Feitiço do tempo, que tenta se matar diversas vezes, somente para ser acordado novamente pelo rádio e começar tudo de novo; a cena em que Maeve sai pelo parque antecipando em voz alta cada evento no exato momento em que ocorrerá – pois já viveu aquele mesmo dia infinitas vezes – é derivada de uma cena idêntica de Feitiço do tempo; e por aí vai.
  • 33
    . JAMESONJAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004., Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, pp. 63-64.
  • 34
    . ELSAESSERELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018., Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Sesc, 2018, p. 176.
  • 35
    . Ibidem, p. 162.
  • 36
    . JAMESONJAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004., Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 173.
  • 37
    . Alguns teóricos (Raymond Bellour, Stephen Heath) já argumentaram que alguma “desordem textual” é necessária à eficácia narrativa do espetáculo ilusionista.
  • 38
    . ARASSEARASSE, Daniel. Le détail. 2ª ed. Paris: Flammarion, 1996., Daniel. Le détail. 2ª ed. Paris: Flammarion, 1996, p. 118. Tradução minha.
  • 39
    . Ibidem. Tradução minha.
  • 40
    . Ibidem. Tradução minha.
  • 41
    . Cf. LACANLACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2008., Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p. 104 ss.
  • 42
    . Cf. JONESJONES, Caroline A. Biomimetics. In JONES, Caroline A (org.). Sensorium: embodied experience, technology, and contemporary art. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2006., Caroline A. Biomimetics. In JONES, Caroline A (org.). Sensorium: embodied experience, technology, and contemporary art. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2006, pp. 115-118.
  • 43
    . DELEUZEDELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006., Gilles. Diferença e repetição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 185.
  • 44
    . Cf. STOICHITASTOICHITA, Victor I. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Lisboa: KKYM, 2011., Victor I. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Lisboa: KKYM, 2011, pp. 10-11.
  • 45
    . Cf. ALPERSALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999., Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999.
  • 46
    . BRYSONBRYSON, Norman. Chardin and the text of still life. Critical Inquiry, v. 15, n. 2 (jan 1989), pp. 227-252., Norman. Chardin and the text of still life. Critical Inquiry, v. 15, n. 2, (jan 1989), pp. 227-252.
  • 47
    . BRYSONBRYSON, Norman. Looking at the overlooked: four essays on still life painting. Londres: Reaktion Books, 1990., Norman. Looking at the overlooked: four essays on still life painting. Londres: Reaktion Books, 1990, p. 140. Tradução minha.
  • 48
    . Cf. ARGANARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. Ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., Giulio Carlo. Imagem e persuasão. Ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 35 ss.
  • 49
    . BAUDRILLARDBAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996., Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996, p. 70.
  • 50
    . Cf. COUCHOTCOUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina. São Paulo: 34, 1993, pp. 37-49., Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina. São Paulo: 34, 1993, pp. 37-49.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Jan 2020
  • Aceito
    4 Fev 2020
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