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Conflitos sociais em tempos de ambientalismo: direito vivo à terra em assentamentos com enfoque conservacionista

Resumos

Neste trabalho analisaremos os conflitos sociais relacionados à implementação de políticas agrárias e ambientais na história do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Virola Jatobá no município de Anapu, Estado do Pará. As práticas sociais e jurídicas das famílias camponesas constituíram a base para a apreensão da noção de direito vivo à terra. Nos processos de ocupação, criação e implementação do PDS observou-se a renovação desse direito partindo da noção do direito a terra para quem nela trabalha, reforçado por noções de autonomia relativa e de cuidado com a mata. A descrição desse direito vivo evidencia as estratégias de resistência e autonomia do campesinato na luta por acesso a terra e nas negociações com o poder público para garanti-lo. O apelo ambiental da modalidade PDS não suplantou os problemas institucionais na efetivação dessas políticas na rodovia Transamazônica, ocultando ainda os conflitos sociais pela imposição de normas sob o paradigma da sustentabilidade.

Conflitos sociais; Políticas agrárias e ambientais; Direito Vivo; Projeto de Desenvolvimento Sustentável; Campesinato


In this paper, we discuss the social conflicts linked to agrarian and environmental policies in the history of the Virola Jatobá Sustainable Development Project (SDP), in the municipality of Anapu, State of Pará. The social and legal practices of family units living in the SDP were used as the basis for understanding the concept of land rights under living law. During the processes of occupation, creation and implementation of the SDP, we observed the renewal of the living law concept which originally emanated from the notion of land belonging to those who work it, reinforced by notions of relative autonomy and environmental care. The description of living rights reveals the peasants' resistance strategies in their struggles for land and negotiations with government to guarantee their land rights. The environmental appeal of the SDPs did not manage to overcome the institutional problems of implementing these policies in the Transamazonica region, rather it masked social conflicts by imposing rules justified by sustainability.

Social conflicts; Agrarian and environmental policies; living law; Sustainable Development Project; Peasants


En este trabajo analizaremos los conflictos sociales relacionados a implantación de políticas agrarias y ambientales en la historia del Proyecto de Desarrollo Sostenible Virola Jatobá en el municipio Anapu, en el Estado Pará. Las prácticas sociales y jurídicas de las familias campesinas constituirán la base para aprehensión de la noción del derecho vivo a la tierra. En los procesos de ocupación, creación e implementación del PDS se ha observado la renovación de este derecho empezando por la noción del derecho a la tierra para quien en ella trabaja, reforzado por nociones de autonomía relativa y de cuidado con el bosque. La descripción de este derecho evidencia las estrategias de resistencia y autonomía de campesinos en la lucha por acceso a la tierra y en negociaciones con el poder público. La apelación ambiental del PDS no suplantará los problemas institucionales en la efectividad de estas políticas en la carretera Transamazonica, ocultando los conflictos sociales por imposición de normas bajo el paradigma de sustentabilidad.

Conflictos sociales; Políticas agrarias y ambientales; Derecho vivo; Proyecto de Desarrollo Sostenible; Campesinos


Introdução

Neste artigo, discutiremos os conflitos sociais decorrentes da influência de políticas agrárias e ambientais no modo de vida das unidades familiares do PDS Virola Jatobá em Anapu, estado do Pará.

As práticas sociais e jurídicas dessas famílias camponesas demonstraram sua noção de direito vivo a terra no decorrer dos processos sociais de ocupação da terra, criação oficial do PDS e implementação do assentamento com a atividade do manejo florestal comunitário (MFC).

O direito vivo a terra dessas famílias pode ser expresso na noção de direito à terra para quem nela trabalha, a qual posteriormente foram incrementados pela politização dos aspectos da autonomia relativa e do cuidado com a mata. Tal noção foi apreendida a partir de entrevistas semiestruturadas com 25 famílias no PDS, coletadas entre dezembro de 2010 e setembro de 2011, além de diálogos informais, participação de espaços coletivos e da convivência durante a pesquisa de campo.

O direito vivo que se trata nesse trabalho tem referência o teórico Eugen Ehrlich (1986, p. 378)EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986., que rompe com a concepção de direito restrito à prescrição das leis e decisões judiciais (jurisprudência), mas afirmado justamente porque é "aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida".

As práticas sociais e jurídicas que fundamentam a noção de direito à terra, conforme efetivamente vivido pelos grupos locais, sofreram influência ao longo do tempo pelas ações das instituições do poder público na execução de políticas agrárias e ambientais, o que resultou na resistência e na negociação dos próprios camponeses com o poder público. A pouca efetividade ou mesmo a discordância das ações do poder público alegadamente baseadas no discurso de desenvolvimento sustentável integrou a construção desse direito vivo.

O processo de ocupação do PDS e o direito à terra para quem nela trabalha

O processo de ocupação e mobilização social nas terras que viriam a ser o município de Anapu esteve intimamente ligado à construção da Rodovia Transamazônica (BR-230) na década de 1970. Tal rodovia incorporava o Projeto de Integração Nacional (PIN), com sua política fundiária efetivada através dos Projetos Integrados de Colonização (PIC) e, posteriormente, dos Projetos de Assentamento Dirigido (PAD), instrumentalizados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Oliveira (1994)OLIVEIRA, Francisco. A reconquista da Amazônia. In: D'INCAO, Maria Ângela; SILVEIRA, Isolda M. da (orgs.). A Amazônia e a crise da modernização. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1994. assevera que a ocupação da região era tratada como um processo de "reconquista" do território amazônico, que estava sob o "domínio" dos povos indígenas. O governo militar desse período criou uma doutrina de intervenção interna específica para a região amazônica, na qual o foco era a ocupação do território por camponeses sem terra, principalmente do nordeste, por meio de intervenção,para "tamponar fronteiras" com a abertura das estradas e, acima de tudo, para promover o desenvolvimento do capitalismo na região.

A "abertura oficial da fronteira amazônica", como expõe Hébette e Marin (2004)HÉBETTE, Jean; MARIN, Rosa E Acevedo. . Colonização espontânea, política agrária e grupos sociais. In: HÉBETTE, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Volume I: migrações, colonização e ilusões de desenvolvimento. Belém: Editora Universitária UFPA, 2004., se caracterizou como um processo econômico de expansão capitalista, utilizando-se de um projeto governamental que aliava uma política de colonização dirigida para camponeses e empreendimentos agropecuários para fazendeiros e empresários. Estes últimos, além da aquisição de terras, ainda podiam contar com os recursos dos projetos para empreendimentos econômicos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), como destaca Sauer (2005)SAUER, Sérgio. Anapu: recursos públicos, grilagem e alternativas de desenvolvimento. In: SAUER, Sérgio. Violação dos direitos humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense. Goiânia: CPT; Rio de Janeiro: Justiça Global; Curitiba: Terra de Direitos, 2005 P. 83-101. .:

Pelo menos 15 destes projetos foram aprovados para a região de Anapu, resultando em mais um motivo de deslocamento para a região, desta vez, atraindo fazendeiros (conhecidos como sudanzeiros) interessados nos altos valores designados para o plano de financiamento. Esses projetos foram responsáveis por grandes desmatamentos, pois grande parte dos incentivos financeiros era direcionada à exploração da madeira ou a projetos agropecuários. Foi exatamente entre os projetos agropecuários que se concentrou o maior número de insucessos da política de incentivos implantada na região, com perda irrecuperável de recursos públicos(SAUER, 2005, p. 86).

As áreas ao entorno da BR-230 eram destinadas à ocupação sendo divididas em: áreas de 3000 hectares ou de 500 hectares contratadas (Contrato de Alienação de Terras Públicas), por meio de licitação para fazendeiros e empresários que quisessem instalar empreendimentos agropecuários, e áreas de 100 hectares distribuídas para as famílias de agricultores sem terra. Todas as áreas careciam de infraestrutura, especialmente as distantes da rodovia principal.

Com o incentivo do slogan governamental "Terras sem homens para homens sem terra", inúmeras famílias camponesas se deslocaram para a Transamazônica, cujo esquema de colonização não logrou abrigá-los. Segundo informações de servidores do INCRA e de um dos ex-assessores jurídicos da CPT, também houve problemas com os empresários: as áreas eram licitadas, mas os contratados nem sempre pagavam pela terra, tampouco a ocupavam e quando pagavam às vezes não desenvolviam os empreendimentos agropecuários com que tinham se comprometido. Tal descumprimento impulsionou a grilagem dessas terras para exploração madeireira.

Devido ao impulso desenvolvimentista para região amazônica, como destacam Hébette e Marin (2004)HÉBETTE, Jean; MARIN, Rosa E Acevedo. . Colonização espontânea, política agrária e grupos sociais. In: HÉBETTE, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Volume I: migrações, colonização e ilusões de desenvolvimento. Belém: Editora Universitária UFPA, 2004., o direito à terra adotado na política de colonização era norteado pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4540/64) e se consolidaria pelo beneficiamento da terra com o desmatamento da cobertura florestal e implantação de pasto e cultivos agrícolas.

Essa noção produtivista que garantiria o direito formal a terra contrariava as práticas sociais de trabalho livre de "fazer roça" das famílias camponesas, que iam chegando sem apoio do poder público. Além disso, havia uma disparidade entre a quantidade e qualidade de terras destinadas aos camponeses do Norte e Nordeste, em comparação aos fazendeiros e aos agricultores mais afeitos à economia de mercado, especialmente aqueles provenientes do Sul e Sudeste. Entre as primeiras famílias que começaram a ocupar o trecho da Transamazônica que compreendia o município de Anapui, encontravam-se muitos camponeses maranhenses e paraenses.

As famílias autodenominadas de pioneiras auxiliavam as outras famílias que chegavam ao município e buscavam uma terra para trabalhar, porém as terras já haviam sido indevidamente apropriadas pelos fazendeiros ou já eram alvo de grilagens. Foi assim que, em 1984, ocorreu um dos conflitos mais violentos entre fazendeiros e camponeses na tentativa de ocupação da Fazenda União:

(...)Foram baleados 22 companheiros nossos, foi um terror! (...) Era uma dificuldade sair um servidor do INCRA para vir atender o povo e a gente fazia por conta, media com corda 400 metros e plantava um marco e assim foi ocupando essas terras de 500 hectares. Daí começaram os conflitos, porque o dono tava lá no sul, mas tinha comprado um documento na mão do INCRA, se comprometido com o projeto do governo e o governo tinha se comprometido com o projeto deles também e nenhum dos dois fizeram (Agricultor pioneiro do projeto de colonização, Anapu, Pará).

No decorrer desses conflitos, os agricultores começaram a se organizar em associações, grupos de mulheres junto a entidades da Igreja Católica, como a Comissão Pastoral da Terra, onde tiveram contato com a missionária Dorothy Stang, já na década de 1980.

A articulação destas entidades com outras também possibilitou aos camponeses a revisão de seus sistemas de produção, a capacitação dos agricultores em cursos de recuperação de áreas degradadas, formação política para as lideranças, organização da produção, entre outros. Segundo os próprios agricultores pioneiros, isto possibilitou a melhoria de vida que tanto as famílias buscavam quando se deslocaram para a Transamazônica:

trazíamos cursos para os agricultores para ensinar a plantar, colher, a devastar menos, e através dessas reuniões que ela (Irmã Dorothy)trazia esses profissionais de fora e nós começamos a enxergar a besteira que nós estávamos fazendo com a terra, com a floresta! (Agricultora pioneira do projeto de colonização, 52 anos, Anapu, Pará).

Após as capacitações e a busca constante de formas alternativas de sobrevivência frente à ausência do Estado, as lideranças criaram associações locais e a articulação com movimentos sociais mais amplos ao longo da rodovia Transamazônica com demandas relativas ao desenvolvimento econômico e da agricultura familiar na região (SOUSA, 2007SOUSA, Fledys N. Participação social e alternativas de desenvolvimento na Transamazônica: a ONG ASSEEFA e os PDS's de Anapu. 2007. 120 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará, Belém/ PA.).

Dada a insuficiência de terras destinadas às famílias camponesas e de condições de infraestrutura, as lideranças das organizações locais junto a CPT passaram a reivindicar novos instrumentos de distribuição de terras: além do acesso a uma terra de trabalho, buscava-se a preservação do meio ambiente nos moldes dos debates conduzidos nos cursos de formação e capacitação.

Como enfatiza Acselrad (2004)ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo de conflitos ambientais. In:_________. (org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich Böll, 2004., os atores envolvidos nos conflitos sociais associados ao meio ambiente são influenciados de acordo com seus interesses e poder na sociedade, uma vez que a "questão ambiental" é indissociável da questão econômica, política e social.

No caso de Anapu, o debate ambiental foi apropriado também como estratégia política pelas lideranças para garantir os recursos florestais ameaçados pelo contínuo desmatamento decorrente da exploração legal e ilegal de madeira no município. Havia um diálogo com instituições do poder público, que já tinham incorporado o discurso ambiental em suas metas e ações institucionais e em ressonância, a necessidade de um desenvolvimento sustentável dos recursos tornou-se argumento das reivindicações locais:

começamos a pensar em um projeto de assentamento que tivesse mais vigor, que tivesse mais lei (...) que o povo usasse de forma comunitária para que sustentasse um pouco de mata no município de Anapu (Agricultor pioneiro do projeto de colonização, Anapu, Pará).

A noção de direito vivo a terra para quem nela trabalha constituída pelas lideranças dos agricultores pioneiros por influência da Igreja Católica, norteou a necessidade de criação de novos instrumentos de acesso a terra para famílias camponesas, junto a proposta de um assentamento "diferenciado", que envolvesse a "questão ambiental" para conservação das florestas do município e a manutenção dessas famílias com atividades que garantissem essa conservação.

Em 1999 (Portaria nº 477 do INCRA) foi criada a modalidade de assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) que, em tese, era adequada à realidade que as lideranças das organizações sociais locais e a missionária Dorothy Stang almejavam no município. Mediante negociações e cumprimento de normas institucionais, foi criado em 2002 (Portaria INCRA 1.040) o PDS Anapu, dividido em PDS Esperança e PDS Virola Jatobá.

Um dos agricultores assentados no PDS ressalta a mudança na concepção que orientava os servidores do INCRA na distribuição de terras para as famílias camponesas demonstrando ainda a estranheza dos agricultores às regras do PDS, percebidas como se estivessem "pagando" por uma repressão ao desmatamento que não lhes "pertence":

Para todo o colono num lugar que pertence a PDS, estranhou um pouco porque nós, o pequeno agricultor, não foi ele que poluiu a natureza, a participação dele foi pouca, os grandes fazendeiros, as grandes companhias, os grupos empresariais foram eles que fizeram isso. E o INCRA, o Governo Federal, foi o primeiro de tudo, porque naquele tempo quando você recebia uma terra o INCRA dizia: 'Olha, tu vais para dentro', mas 'eu não tenho nada!', 'Tu tens que ir, se tu não fores nós damos para outro, se não colocares um serviço lá, não derrubar, tu vais perder a tua terra! (Agricultor assentado no PDS Virola Jatobá, 59 anos, Anapu, Pará).

Uma vez criado o PDS de Anapu, guiadas pela busca de "arrumar uma terra para trabalhar" e de que "em Anapu estavam dando terra", novas famílias camponesas sem terra começaram a se deslocar para o município. As lideranças pioneiras junto com Irmã Dorothy se encarregaram em orientá-las sobre as regras do PDS. Porém, muitos concebiam sua permanência em um assentamento da reforma agrária naquela região da Transamazônica a partir da noção de direito à terra para quem nela trabalha,sem admitir que restrições devidas à conservação ambiental seriam exigidas e foi assim que muitas famílias desistiram e outras permanecem até hoje.

As famílias que permaneceram e ocuparam as áreas sofreram represálias e entraram em conflito com os fazendeiros e madeireiros da região que cobiçavam essas áreas. Esses conflitos se renovam até hoje. A criação de um assentamento da reforma agrária com 52.480,5057 hectaresii ii Conforme o documento MDA/INCRA (2007) o PDS Virola Jatobá (PDS Anapu III e IV) possui uma área de 32.345,1815 hectares com a proposta inicial de abrigar 284 famílias. contrariava os investimentos dos madeireiros da região, pois nessas áreas estava a floresta que planejavam explorar no intenso e rentável comércio de madeiras na região.

Os conflitos sociais nesse processo de ocupação da área do PDS possuem um histórico anterior junto a própria construção da rodovia Transamazônica, em que a contraposição de lógicas sociais, ambientais e econômicas transpareciam na luta pela terra. Portanto, as famílias que compuseram o PDS construíram esse direito em situação de extremo antagonismo, lutando por sua autonomia contra o jugo dos setores ligados à exploração madeireira e à pecuária.

Essa autonomia não era ameaçada apenas pelo setor privado, mas também pelo próprio Estado. A noção do direito à terra vivido pelos camponeses pioneiros, apoiados pela missionária Dorothy Stang, foi confirmada pelas diversas famílias que migraram para o PDS para ter direito sobre a terra na qual trabalham. E mesmo que aceitassem, gradativamente uma noção de direito à terra, ao ser formalizado, também incorporavam certas restrições pelas regras da modalidade de assentamento PDS, as famílias reafirmaram nessa noção os estatutos da autonomia camponesa.

O processo de criação oficial do PDS e o Direito para quem nela trabalha com autonomia

A própria criação da modalidade de assentamento PDS é resultado de uma discussão política e jurídica de adequação das normas e políticas públicas brasileiras ao paradigma da sustentabilidade.

Entretanto, ressalte-se que o discurso sobre sustentabilidade e os mecanismos para sua satisfação não é somente institucional, mas também de reivindicações de diversos grupos sociais desde a Assembleia Constituinte (87/88) como relembra Santili (2005)SANTILI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. 1ª ed. São Paulo: Peirópolis, 2005.. Esses grupos não apenas começaram a constituir organizações de representação diferenciada, mas também passaram a exigir mecanismos específicos para a regularização fundiária e ambiental das terras que ocupavam.

Apesar de inúmeras organizações sociais exercerem pressão social sobre o Estado na busca por direitos que contemplassem suas especificidades com relação à questão ambiental, no caso de Anapu, a incorporação desse discurso ambiental pelas famílias foi adotado como estratégia para garantir acesso à terra e demais recursos naturais em uma região bastante conflituosa.

Um dos episódios marcantes nessa relação conflituosa entre os camponeses, lideranças da Igreja e de organizações no município em confronto com os fazendeiros e madeireiros da região foi o assassinato da missionária Dorothy Stangiii iii A missionária Dorothy Stang foi assassinada no dia 12 de fevereiro de 2005 dentro da área do PDS Esperança no Município de Anapu, cujo executor e um dos mandantes do crime ainda estão respondendo judicialmente pelo crime. . Nesta época, buscava-se que as próprias famílias assumissem a função de lideranças do PDS.

As famílias que permaneceram sofreram inúmeras ameaças dos fazendeiros e madeireiros dos arredores da área do PDS, já que a criação do assentamento em uma área com uma diversidade de recursos florestais de alto potencial de comercialização ameaçava o comércio madeireiro na região e a grilagem das terras nas áreas de pretensão a PDS, em parte se aproveitando da fiscalização ineficaz no combate aos conflitos sociais na região.

Desse modo, com o apoio das lideranças pioneiras e da CPT as famílias do PDS se organizaram e criaram uma entidade que servisse de instrumento de reivindicação de seus direitos, criação de regras coletivas, intermediação junto ao INCRA até porque o acesso a terra em assentamento perpassa pela constante reivindicação/negociação com o poder público:

É, o PDS é diferenciado porque deve ter garantia de moradia digna, água, luz, estrada, entre outras coisas. Se você for olhar o PDS, você vê: nós não somos PDS, nem PA, só estamos jogados aqui às cobras! Se nós, os agricultores, não tivéssemos nos organizado com a força dos movimentos sociais, como o caso da Dorothy que nos orientou demais e depois que ela foi, ficou o resto do pessoal nos orientando, hoje nem sabia como nós estaríamos aqui dentro, com a associação 'colocando o carro na frente dos bois', com vontade própria, de luta, a gente diz que vai fazer e faz (...) (Agricultor assentado no PDS Virola Jatobá, 42 anos, Anapu, Pará).

A Associação Virola Jatobá foi criada em 2003 e contava em sua diretoria com lideranças que se destacaram no processo de ocupação da área do PDS. As negociações com o poder público nem sempre eram harmoniosas, pois as famílias percebiam a necessidade de manter sua autonomia. Assim, a noção de direito à terra para quem nela trabalha incorporava também o aspecto da autonomia camponesa, apesar das famílias viverem agora em um PDS.

A criação de uma entidade juridicamente reconhecida para representação coletiva das famílias de agricultores no PDS constitui o aparato burocrático que serviu de intermediário nas negociações junto às instituições do poder público, nesse caso o INCRA. Essa formalização visava, principalmente, a garantia do acesso a terra e aos instrumentos que possibilitassem a permanência das famílias na área, como os benefícios e créditos enquanto beneficiárias da reforma agrária.

Todavia, tal como ressaltam Leite et al. (2004, p. 111)LEITE, Sérgio et al. Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural - NEAD. São Paulo: Editora UNESP, 2004., após a criação do assentamento é estabelecida uma nova dinâmica na relação "para fora" do assentamento: com o poder público municipal, na política local e, particularmente, no caso dos PDS's, na relação com o poder público federal e entidades não governamentais.

Nessas relações, as famílias sofreram pressão de órgãos governamentais como INCRA e IBAMA devido ao intenso desmatamento nessa região da Transamazônica, tal controle foi percebido como contrário à prática social do trabalho livre, o trabalho sem patrão dos camponeses, uma vez que culturalmente, cabe a eles mesmos controlar o trabalho da unidade familiar de produção sobre a terra sem patrão.

Alguns teóricos que estudaram o campesinato como Alexander Chayanov (1981)CHAYANOV, Alexander V. Sobre a teoria dos sistemas econômicas não capitalistas. In: SILVA, José Graziano da.; STOLCKE, Verena. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981., Theodor Shanin (2005)SHANIN, Theodor. A definição de camponês: conceituações e desconceituações - o velho e o novo em uma discussão marxista. Revista NERA, Presidente Pudente/SP, Ano 8, n° 7, p. 1-21, Jul/Dez 2005. e Eric Wolf (1976)WOLF, Eric. Sociedades Camponesas. Tradução de Oswaldo C.C. da Silva. 2ª ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1976. destacam justamente entre os aspectos econômicos desse grupo social, a busca da autonomia produtiva da unidade familiar em relação ao trabalho e aos resultados da produção, para garantir sua autonomia relativa face à sociedade, sem subordinação a patrão em uma terra sem dono.

Porém, conforme os agricultores devido a pressão pelo combate ao desmatamento, servidores do IBAMA questionaram por vezes o sistema de corte-e-queima em seus cultivos rotativos e, entre os anos de 2004 e 2005, foram pressionados pelo governo a submeter um Plano de Manejo Florestal Comunitário. Tradicionalmente, a mata é percebida como fonte de recursos para a implantação de uma boa roça, contudo, para atender às normas do PDS, deveriam subordinar sua forma de utilização dos recursos florestais de acordo com as regras do IBAMA e ao que o governo propunha como atividade predominante no assentamento: o manejo florestal.

Vale ressaltar que a modalidade de assentamento PDS prevê lotes individuais para cada família com tamanho de 20 hectares, constituem áreas de uso alternativo. A área restante, considerada uma reserva legal de domínio comunitário seria utilizada coletivamente por todos os assentados, por meio do Manejo Florestal Comunitário.

A implementação da proposta do desenvolvimento do PDS contrariava a noção de direito vivo a terra dos agricultores, que visavam o trabalho livre sem patrão e guiado pela autonomia produtiva da família. Entretanto, o próprio tamanho do lote individual de cada família já se apresentava como uma limitação ao trabalho, pois era desse lote que cada família produziria os alimentos necessários para seu consumo e posterior, comercialização.

Durante várias gestões, numa relação conflituosa e confusa, os servidores e prestadores de serviço do INCRA eram referidos pelas famílias como uma espécie de dono e de patrão devido à imposição das regras que deveriam ser estritamente seguidas a permanência na terra:

Teve uma reunião aí no barracão que foi só bate boca que Seu Roberto Andradeiv, funcionário do INCRA, juntamente com a Irmã Dorothy fizeram para explicar as regras do PDS. Muitas pessoas não concordavam com as regras do PDS, principalmente com uso de somente 20%, muitas famílias foram embora por causa disso. [...] Aí Dr. Roberto falou que aqui era PDS e quem não quisesse podia arrumar suas malas e ir saindo (Agricultor assentado no PDS Virola Jatobá, 64 anos, Anapu, Pará)."

Na busca pela autonomia camponesa, Velho (1995)VELHO, Otávio. Besta-Fera: recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. salienta a relação entre cativeiro e libertação. Os agricultores percebem a importância do direito formal a terra proporcionada pela inserção em um assentamento da reforma agrária, associando-o a uma forma de livrar-se do cativeiro do patrão. No entanto, atribuem uma relação de cativeiro com o INCRA, porque nessa terra formalizada em favor das famílias buscavam ter a autonomia/liberdade em relação ao trabalho que nela desenvolviam.

Decorrente dessa relação formal com a terra, o fato de serem categorizados como beneficiários da reforma agrária ou estar na "lista de RB" configura como consequência do reconhecimento formal do direito à terra vivido por cada família. Outra consequência importante era o acesso aos benefícios da política agrícola, necessário para a própria permanência no assentamento.

Apesar das famílias ressaltarem a importância do reconhecimento do direito formal a terra pelo INCRA, o recebimento da cesta básica, o benefício de apoio inicial (fomento), entre outros, o aspecto mais importante era o sustento da família decorrente dos produtos frutos de seu trabalho na terra que ratifica a noção de direito vivo a terra, de quem só tem direito quem nela trabalha:

Eu não sei se já 'entrei em RB', mas eu não vou procurar porque eu tenho muita coisa para fazer. (...) Eu estou toda vida no sofrimento quer dizer, aqui já saiu umas cestas básicas, mas o meu problema mais sério aqui é meu trabalho! Meu trabalho é que vem me sustentando! (Agricultor assentado no PDS Virola jatobá, 74 anos, Anapu, Pará).

É por isso que, ser beneficiário da reforma agrária consagra a sua relação de direito vivido a terra em uma relação direta com o Estado, este por sua vez limitando a autonomia produtiva e de trabalho na terra contraria o modo de vida dos camponeses.

Limitações que, de acordo com Chayanov (1981)CHAYANOV, Alexander V. Sobre a teoria dos sistemas econômicas não capitalistas. In: SILVA, José Graziano da.; STOLCKE, Verena. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981., inibem a autonomia da unidade familiar em escolher aonde quer se instalar, o que e como desenvolver seu trabalho para satisfação das necessidades de consumo e comercialização da família. Todavia, para permanecer na terra subordinaram-se às regras estabelecidas: "a gente se adaptou nesse limite, recebendo esse limite de trabalhar em pouca terra de 4 alqueires [20 hectares]. Eu achei bom e também respeitando as áreas de APPv que é muito importante também!". No entanto, como veremos adiante, essa alegada "adaptação" não teve as consequências esperadas pelo Estado.

O processo de implementação e o Direito à Terra para quem nela trabalha com autonomia e cuidado com a mata

As lideranças do PDS relataram que desde a época em que a missionária Dorothy Stang orientava os agricultores sempre falava do manejo florestal comunitária como forma de conservação da floresta e de obtenção de uma renda complementar para as famílias, além do obtido em seus lotes individuais.

Eu ouvia a Irmã (Dorothy Stang) falar: 'daqui a algum tempo vocês vão ter o manejo, aí vocês vão tirar madeira de lá e vai ajudar vocês a sobreviverem para não desmatarem o resto do lote'. Isso era um sonho distante! [...] Agora, eu acho que deu certo! Eu acho que falta organização só aqui da comunidade mesmo, nós tínhamos que partir de igual para igual com a empresa! (Agricultora assentada no PDS Virola Jatobá, 45 anos, Anapu, Pará).

Aliada à vontade da missionária estava principalmente a necessidade de cumprimento de metas institucionais pelos órgãos públicos competentes, como o Ministério do Meio Ambiente por meio do IBAMA e do Serviço Florestal Brasileiro, bem como entidades nacionais e internacionais em projetos de conservação da floresta amazônica.

Exemplo disso foi a implantação do Programa "Apoio ao Manejo Florestal Sustentável na Amazônia" (PROMANEJO) do Ministério do Meio Ambiente, que tinha como objetivo apoiar iniciativas de manejo florestal sustentável.

No debate teórico e prático sobre manejo florestal no Brasil entre os especialistas, Schulze, Grogan e Vidal (2008, p. 169)SCHULZE, Mark; GROGAN, Jimmy; VIDAL, Edson. O manejo florestal como estratégia de conservação e desenvolvimento socioeconômico na Amazônia: quanto separa os sistemas de exploração madeireira atuais do conceito de manejo florestal sustentável. In: BENSUSAN, Nurit; ARMSTRONG, Gordon. (Coords.) O manejo da paisagem e a paisagem do manejo. Brasília: Instituto Internacional de Educação do Brasil, 2008 P. 163-203 . destacam o "duelo de ideologias" que sustentam as iniciativas de manejo florestal e a continuidade da devastação. A primeira aparece como alternativa de uso dos recursos florestais capaz de proporcionar benefícios sociais, econômicos e ambientais, enquanto na segunda o manejo seria um entrave ao progresso da exploração incessante dos recursos florestais.

Dessa forma, o manejo florestal sustentável integrava as políticas públicas brasileiras como melhor ferramenta de gestão dos recursos florestais dentro do paradigma da sustentabilidade, tal como se verifica nas mudanças no Código Florestal, na Lei das Unidades de Conservação (SNUC Lei nº 9.985/00) e Lei de gestão de florestas públicas (Lei nº 11.284/06).

Certamente iniciativas que garantissem a sustentabilidade do PDS seriam fundamentais, entretanto, no contexto em que foram implementadas, a proposta do IBAMA de um manejo florestal executado por meio de acordo empresa/ comunidade foi entendida como benefício maior à empresa do que à própria comunidade. Percebeu-se que, afinal, o manejo florestal serviria apenas para a devida apropriação dos recursos naturais e viabilização de sua exportação ao mercado. A Associação do PDS Virola Jatobá aceitou a proposta apenas para evitar que madeireiros clandestinos saqueassem ainda mais seus recursos florestais.

Nesse sentido, cabe revisitar as críticas de Ost (1995)OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa/Portugal: Instituto Piaget, 1995. sobre a relação homem e natureza, uma vez que o autor atribui o estado atual de deterioração da natureza ao fortalecimento da concepção moderna de propriedade, na qual a apropriação da natureza é legitimada. Os desdobramentos dessa deterioração da natureza são as catástrofes naturais. A solução para tanto, no Estado intervencionista, é criar leis, sanções e medidas para prevenir novas catástrofes.

O autor ressalta que, além do Estado se apropriar da natureza,ele passa a inventá-la e gerenciá-la também, a partir do momento em que as leis, decisões judiciais baseadas em relatórios técnicos passaram a imprimir uma visão tecnicista sobre a natureza, regulamentados na linguagem jurídica (OST, 1995OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa/Portugal: Instituto Piaget, 1995.).

Tal como parece não termos inventado a natureza senão no dia em que começamos a destruir, o direito administrativo e regulamentar do ambiente aparece, mais frequentemente, como o álibi de uma sociedade que se obstina a encerrá-lo num copo graduado. Compensação tardia e sempre insuficiente, por uma destruição que nada parece poder parar. Alguns propõem então, o regresso aos instrumentos do liberalismo econômico: o contrato e a propriedade. E eis as duas novas figuras da regulamentação jurídica da natureza: um direito do ambiente negociado e uma apropriação privativa das coisas comuns. Novos modelos, novas interrogações (OST, 1995, p. 104).

Entre o direito do ambiente negociado e uma apropriação privada dos recursos naturais comuns está o caso do PDS Virola Jatobá. Os direitos dos agricultores foram reivindicados por eles e negociados com as instituições do poder público. Nessa negociação, teve influência a ausência do Estado em combater a exploração ilegal de madeira da área coletiva do PDS pelos fazendeiros e empresários da região.

No assentamento, o PROMANEJO por meio do IBAMA para inserção do manejo florestal comunitário sugeriu a Associação Virola Jatobá que fizesse um acordo empresa-comunidade. Assim, o IBAMA em tese, se resguarda de fiscalizações sobre uma área de 29.334,66 hectares, delegando aos agricultores a sua proteção por meio do manejo florestal comunitário cuja responsabilidade, na prática, torna-se da empresa e da associação (e da Cooperativa, a COOPAF).

Entretanto, as relações entre homem e natureza são distintas para os diferentes grupos sociais, e a polissemia do termo natureza se expressa com toda sua força nos conflitos sociais por essas diferenças (Ost, 1995OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa/Portugal: Instituto Piaget, 1995.; Acselrad, 2004ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo de conflitos ambientais. In:_________. (org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich Böll, 2004.). Para o manejo florestal no PDS, enquanto o IBAMA se referendava na natureza gerada com disposições técnicas e legais e visava cumprir suas metas institucionais, os agricultores enxergavam nessa atividade que jamais tiveram contato a possibilidade de melhoria de vida, como complemento da renda na unidade familiar, cuja principal atividade continuava a ser a "ambientalmente incorreta" roça de corte-e-queima. A natureza exuberante do PDS era vislumbrada como precursora de boas roças.

o pressuposto de arrumar uma terra para trabalhar porque lá (Estado do Maranhão) onde nós estávamos não tínhamos essa floresta bonita como a gente tem aqui! Eu tinha vontade de trabalhar numa área de mata, porque eu ouvia falar em mata, mas lá eu não conhecia (...) (Agricultor assentado no PDS Virola Jatobá, 46 anos, Anapu, Pará).

Porém, havia também outras concepções. Na perspectiva de futuro das lideranças das organizações locais junto à CPT, a implantação do manejo florestal era necessária para manter parte considerável dos recursos florestais do assentamento e a garantia de uma renda complementar para as famílias assentadas. Entretanto, existiam inúmeras famílias no PDS que discordavam da inserção dessa atividade tanto porque desconheciam quanto pelo receio de interferência no modo de vida no seu lugar de morada e trabalho.

Mesmo assim, alguns agricultores participaram de diversas capacitações técnicas teóricas e práticas sobre manejo florestal promovidas por ONG's de apoio ao manejo florestal e entidades nacionais e internacionais parceiras, a exemplo do GTZvi vi A sigla GTZ é chamada no Brasil de Cooperação Técnica Alemã (Deutsche Gesellschaft für Internationable Zusammenarbeit). e da Universidade (UFPA), assim também como entidades locais como a ASSEEFA.

Depois nós conseguimos aquele projeto, o Promanejo, para que desse uma certa sustentabilidade para a situação financeira do povo lá dentro e o povo do Virola aceitou com mais carinho [...]Criaram o plano de manejo florestal na reserva que vem dando uma sustentação, eles já tem o caminhãozinho deles, um dinheiro aqui e acolá que vem sustentando a associação, dividiram um pouco de dinheiro ano passado que pessoal comprou uma motinha [...]" (Agricultor pioneiro do projeto de colonização, Anapu, Pará).

O acordo empresa/comunidade e o respectivo contrato entre a Associação do PDS Virola Jatobá e a empresa selecionada, a Vitória Régia, foi analisado por parceiros e lideranças das organizações sociais para garantir os direitos dos agricultores. O contrato sofreu inúmeras alterações, com auxílio do Ministério Público Federal, IBAMA, INCRA, e posteriormente do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Pará (IDEFLOR).

Após a aprovação do plano de MFC no assentamento, a empresa passou a executar a atividade e os seus respectivos rendimentos. O primeiro recurso foi utilizado de forma coletiva para os assentados e para o funcionamento eficiente da Associação na compra de uma motocicleta, um computador e um caminhão.

Posteriormente, parte dos recursos derivados da venda das toras do Projeto de MFC foi repassado diretamente às famílias cabendo a cada uma delas valores que variaram entre R$1.500,00 a R$3.500,00 dependendo da quantidade de madeira retirada e o preço na qual era vendida. Para essa divisão do recurso entre as famílias, novas regras foram criadas para integrar o estatuto da Associação: a exigência de moradia ininterrupta por um ano em um lote no PDS e o pagamento contínuo da contribuição mensal à Associação.

Além da resistência inicial das famílias com a implantação do Manejo Florestal no PDS, com a sua execução iniciaram-se outros conflitos com a empresa devido a desconfiança no montante repassado à Associação após a venda da madeira, o atraso da empresa no repasse do recurso, e os conflitos internos entre as unidades familiares em desconfiança com os representantes da Associação que estavam diretamente envolvidos nas negociações com a empresa.

Apesar de tudo isso, devido ao contexto das invasões e saques de madeira, as famílias reconheciam a importância da vigilância realizada pelos funcionários da empresa nas áreas do manejo no combate à exploração ilegal de madeira:

Se a gente não tivesse com a Vitória Régia aqui dentro, estaria igualmente aos outros anos. (...) dois anos anteriores aliás, o Reginaldovii em um ano ele tirou 35.000 e no outro ano ele tirou 45.000 metros cúbicos de madeira, quase 100.000 metros cúbicos de madeira, ele tirou do PDS e jogou na maré! O IBAMA chegou a prender [a madeira]e agora vai lá caçar o cipó, não tem onde ele prendeu isso. (...) E mesmo assim, com todas as ajudas da Vitória-Régia, a gente já pediu para que eles colocassem vigia nos perímetros do PDS. E aí, mesmo com todos os vigias, eles detectaram os movimentos do pessoal tirando madeira. O próprio Reginaldo, no ano que a gente tirou 4000 m³, ele tirou 8000 m³, mais do que a empresa, mesmo com muitas denúncias. O pessoal da empresa limpou a área para o IBAMA chegar até lá, vimos arrastão deles e madeira na beira do arrastão e da estrada que dava em média uns 2000 m³. Para fazer isso, eles interromperam as estradas, derrubaram bastante árvores de uns 5 km de estrada que fizeram, e botaram trator, motosserra e carregadeira para depois limpar a estrada para o IBAMA e a Polícia Federal chegarem, foram lá 3 vezes e não encontraram ninguém. [...] Como eles viram que a gente tava de olho e qualquer coisinha chamava a Polícia Federal, isso prejudicava tanto eles como os outros donos de serraria, então como a área tava dando muito problema para ele, resolveram deixar quieto e tirar madeira em outro lugar (Agricultor assentado no PDS Virola Jatobá, Anapu/Pará).

A exploração ilegal de madeira pelos empresários e fazendeiros da região continuou, mesmo com a vigilância promovida pelos funcionários da empresa em conjunto com ações da Associação. As práticas jurídicas para a proteção do recurso, como a criação de novas regras, instalação de uma guarita e uma corrente na entrada do PDS após conflitos violentos dentro do PDS ainda foram insuficientes.

Devido a esses conflitos e a violação de direitos dos agricultores diante da burocracia estatal, as lideranças do assentamento promoveram junto aos seus parceiros diversas denúncias reivindicando seus direitos enquanto beneficiários da reforma agrária, solicitando a fiscalização pelo IBAMA das áreas que estavam sendo desmatadas, e também a regularização das demais áreas de pretensão a PDS, entre outras reivindicações.

O esforço empreendido pelos assentados por meio da AVJ junto aos seus parceiros no combate à exploração ilegal de madeira se configurava pelos impactos ambientais que um desmatamento causava dentro do assentamento e porque era essa mata que proporcionava as melhorias de vida que tanto as famílias almejavam quando entraram no PDS e que agora poderiam obtê-las de forma coletiva.

Embora em um primeiro momento houvesse a rejeição em relação à atividade do MFC pelas famílias do assentamento, gradativamente as famílias incorporaram novas práticas sociais como o discurso ambiental do cuidado com a mata pela importância do recurso proveniente da venda da madeira para a melhoria de vida. Interessante observar a associação entre os recursos provenientes do manejo e os novos investimentos nas áreas destinadas às roças. O recurso possibilitou a compra de bens, ferramentas de trabalho e o investimento em cultivos agrícolas rentáveis na região.

E, o receio das famílias em relação à possível interferência da atividade do manejo nos lotes individuais dos assentados se concretiza com a entrada em vigor da Instrução Normativa do INCRA nº 65 de 2010. A IN nº 65/2010 prevê um novo dever: executar diretamente o Manejo Florestal Comunitário, de acordo com o art. 28 os beneficiários da reforma agrária deveriam executar diretamente a atividade mesmo que tivessem auxílio de terceiros.

Devido a isto, as famílias questionaram novamente a validade do direito formal à terra, comparando-o com sua própria noção de direito vivido, visto que o poder público impõe um novo dever aos assentados. Discute-se que, por um lado, a execução do projeto de manejo pelos próprios moradores seria interessante pela experiência ruim do acordo empresa/comunidade, por outro lado, a Instrução Normativa obriga os assentados a assumirem uma atividade de alto custo, investimento e capacidade técnica que os agricultores não possuem e a maioria nem tem interesse para tanto.

Tal situação conduz as famílias a uma situação de subordinação para adequação às novas regras ou um novo plano de MFC não poderá ser aprovado novamente. Certamente, a partir dessa norma, as famílias terão que se dedicar bastante a atividade florestal em detrimento da atividade agrícola. É exatamente essa a meta do governo.

A implicação prática da dedicação das unidades familiares seria maior investimento na capacitação técnica e organizacional. Entretanto, para, além disso, a prática social e agrícola da "roça" deixaria de ser atividade principal e passaria a ser secundária, tal como ressaltou um dos técnicos do Serviço Florestal Brasileiro no assentamento que as atividades extrativistas deveriam ser prioridade.

É, atualmente, esse o conflito que influencia diretamente o modo de vida das unidades familiares do PDS que se encontram ainda hoje, entre as práticas sociais do campesinato que demarcam a lógica produtiva dessas famílias, como a necessidade de "fazer roça" que orientam o seu direito vivido a terra e a necessidade de obediência e subordinação às regras e desmandos dos órgãos do poder público, que criam novas regras cujo descumprimento ameaça o direito formal a terra.

Considerações finais

Na breve descrição dos diferentes processos que constituíram o histórico do PDS Virola Jatobá percebe-se que foram permeados de conflitos sociais por terra e demais recursos naturais. As lógicas distintas que orientam os atores sociais nesses conflitos, como ressalta Acselrad (2004)ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo de conflitos ambientais. In:_________. (org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich Böll, 2004., se intensificam quando os camponeses estão diante da garantia entre um direito vivo a terra e um direito formal.

Tendo como pressuposto o seu direito vivo à terra observado em suas práticas sociais e em determinada relação com a natureza, os agricultores para se manterem no PDS passam a incorporar novas práticas sociais, como o discurso ambiental de seus parceiros, como estratégia de permanência e de abertura para negociação com o poder público. Assim também como práticas jurídicas para a proteção dos recursos e funcionamento da organização em meio ao gerenciamento de uma atividade coletiva.

A motivação individual das famílias do PDS de "arrumar uma terra para trabalhar" é a busca de uma "terra de trabalho" como exprime Garcia Junior (1983, p. 219)GARCIA JR., Afrânio R. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.: "é onde os homens podem obter sua subsistência mediante a fecundação da terra". Contudo, no caso do PDS, à terra de trabalho individual soma-se uma terra coletiva, com cobertura florestal, sujeita a inúmeras restrições, mas também com promissoras oportunidades. O grupo social enfrenta ainda hoje extrema dificuldade para decidir e negociar quando e como explorá-la, para garantir assim sua reprodução social e autonomia produtiva.

O direito formal a terra e o direito vivo à terra se confrontam justamente quando as famílias, para garantir a permanência na terra, têm que se subordinar às regras e imposições das instituições do poder público que contrariam a base de sua noção de direito vivo. A subordinação tolhe a autonomia organizacional e produtiva das famílias e as regras apesar de criar novos deveres, como no caso da IN nº 65/2010 do INCRA, impõe as prioridades e consequentemente, interfere diretamente no modo de vida das famílias.

Nesse sentido, Lopes (2004, p. 17)LOPES, J.S. L. A ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. destaca que tais situações caracterizam-se como conflitos sociais mascarados pelo viés da "ambientalização". Na "interiorização das diferentes facetas da questão pública do meio ambiente", camponeses e Estado incorporam o discurso ambiental com interesses distintos.

Os processos sociais descritos demonstram a contradição entre situações de ausência e omissão do poder público e, simultaneamente, de atuação insidiosa e por vezes atrapalhada do poder público.

Por um lado, o Estado se utiliza de tal discurso para impor políticas públicas e cumprir metas institucionais no rumo ao desenvolvimento sustentável global, por outro lado, o grupo social do PDS se utiliza também do discurso para estrategicamente negociar com o Estado e defender seus direitos com base em seu direito vivo à terra, isto é, a noção de direito à terra para quem nela trabalha, mas com autonomia e cuidado com a mata.

A própria criação da modalidade de assentamento "especial" PDS decorre de cumprimento de metas institucionais e de uma adequação do INCRA à uma agenda ambiental e de pressão social exercida pelos diversos grupos sociais em busca de modalidades de assentamento condizentes com seu modo de vida. A imposição da política de manejo florestal comunitário no PDS é outro exemplo, da pressão global sobre a região amazônica e que, em tese, o PDS seria o instrumento "perfeito" para aplicá-la, uma vez que a fiscalização e combate a exploração ilegal de madeira do IBAMA no PDS eram insuficientes.

A multiplicação de conflitos sociais ora por terra e recursos florestais, construção de barragens, entre outros se observa o caos instaurado no estado do Pará que contraditoriamente, impulsiona políticas ambientais e fundiárias pautadas na sustentabilidade que não sabe exprimir e também políticas de desenvolvimento como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na exploração das águas em desrespeito de territórios de povos indígenas e de comunidades tradicionais.

Dessa forma, sob a faceta da sustentabilidade o estado por um lado implementa políticas públicas contraditórias que influenciam em novos conflitos sociais, e por outro lado, os camponeses renovam sua luta e resistência na defesa de seu modo de vida testando até onde podem negociar em face à violação de seus direitos e violência simbólica exercida pelo Estado sobre sua cultura e modo de vida.

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  • i
    Especificamente o Km 120 da rodovia Transamazônica.
  • ii
    Conforme o documento MDA/INCRA (2007) o PDS Virola Jatobá (PDS Anapu III e IV) possui uma área de 32.345,1815 hectares com a proposta inicial de abrigar 284 famílias.
  • iii
    A missionária Dorothy Stang foi assassinada no dia 12 de fevereiro de 2005 dentro da área do PDS Esperança no Município de Anapu, cujo executor e um dos mandantes do crime ainda estão respondendo judicialmente pelo crime.
  • iv
    Nome fictício do servidor do INCRA.
  • v
    O agricultor se refere às áreas de preservação permanente (APP) que são itens obrigatórios de conservação, assim como a Reserva legal, impostos no Código Florestal Brasileiro (Lei nº12.651/12).
  • vi
    A sigla GTZ é chamada no Brasil de Cooperação Técnica Alemã (Deutsche Gesellschaft für Internationable Zusammenarbeit).
  • vii
    Nome fictício dado a um dos empresários da região que promove a exploração ilegal de madeira no PDS VJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2014
  • Aceito
    23 Jan 2015
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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