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A (DES)CONSTRUÇÃO DA AGENDA POLÍTICA DE CONTROLE DOS AGROTÓXICOS NO BRASIL

Resumo

Este artigo apresenta um retrospecto histórico da criação da Lei Federal de controle da produção, do comércio e do uso de agrotóxicos no Brasil. Resgata a iniciativa dos movimentos ambientalistas que levaram à criação de leis estaduais de controle dos agrotóxicos. Essas leis contribuíram para que a agenda de controle dos agrotóxicos fosse pautada em nível federal. Apresenta as principais inovações e limitações de implementação da lei. E identifica as principais tentativas de desconstrução desta, por meio de projetos de lei que visam inibir as competências dos órgãos públicos, vinculados à redução dos efeitos adversos dos agrotóxicos à saúde e ao meio ambiente.

Palavras-chave:
agrotóxicos; agenda; regulação; Brasil

Summary

This article provides a history of the creation of Brazil's federal law governing pesticide production, commerce and use. It begins with initiatives by environmental movements that led States to adopt pesticide control laws, thus helping put the issue on the federal agenda. It discusses major innovations and limitations to the law's enforcement and identifies the main attempts to deconstruct it, through bills aimed at suppressing the powers of public authorities to reduce adverse effects of pesticides on human health and the environment.

Key words:
pesticides; agenda; regulation; Brazil

Resumen

Este artículo presenta un breve histórico de la ley federal de control de producción, comercio y uso de pesticidas en Brasil. Rescata la iniciativa de los movimientos ambientalistas que llevaron a la creación de leyes estaduales de control de los pesticidas. Esas leyes contribuyeron para que la agenda del control de pesticidas fuese adoptada en nivel federal. Además, el texto identifica las principales tentativas de desconstrucción de la ley federal por medio de proyectos de ley que intentan inhibir las competencias de las agencias públicas responsables por la reducción de los efectos adversos de los pesticidas en la salud humana y el medioambiente.

Palavras clave:
pesticidas; agenda; regulación; Brasil

Introdução

Desde os anos 2000, o Brasil tem apresentado a maior taxa de aumento das importações de agrotóxicos em nível mundial (760%), fazendo com que se tornasse o segundo maior mercado mundial a partir de 2008 (COMTRADE, 2014). Em 2013, as vendas desses insumos no país foram da ordem de US$ 11,5 bilhões (SINDIVEG, 2014), atrás apenas dos EUA com vendas estimadas em US$ 14 bilhões (USDA, 2014).

A intensificação do consumo mundial de agrotóxicos no Brasil remete ao período compreendido entre os anos 1950 e 1970 com a adoção de uma política de modernização da agricultura baseada nos princípios da Revolução Verde. O modelo tecnológico preconizava o incentivo ao uso intensivo de insumos químicos (agrotóxicos e fertilizantes), biológicos (sementes melhoradas) e mecânicos (máquinas e implementos agrícolas) para a agricultura. Teve o apoio financeiro direto do governo federal, por meio de isenção de impostos para a instalação de fábricas no país e a criação de linhas de crédito rural que incentivassem o uso dos agrotóxicos. Nesse período, a expansão da oferta e da demanda de agrotóxicos beneficiava-se de um decreto (21.114/1934) historicamente defasado, no qual não havia qualquer menção aos efeitos adversos dessas substâncias à saúde humana e ao meio ambiente.

Na medida em que esses efeitos adversos tornaram-se cada vez mais evidentes, grupos ambientalistas mobilizaram-se no sentido de questionar a imposição desse modelo de produção e demandar um controle sistemático sobre a produção e o uso desses insumos. A Lei de Agrotóxicos vigente (7.802/89), que completou 25 anos em 2014, foi elaborada em um contexto de intensas disputas entre grupos de interesse com lógicas diversas: a do uso intensivo de insumos agrícolas, voltado ao aumento da produtividade do agronegócio versus a de preservação da saúde humana e do meio ambiente, baseada no controle desse modelo de produção. A síntese deste debate resultou na atual política de agrotóxicos que, ao substituir a regulação feita pelo Decreto de 1934 e portarias esparsas, representou um avanço significativo, ao instituir regras de avaliação de impacto ambiental e à saúde do trabalhador e do consumidor. Contudo, longe de resolver os conflitos existentes durante sua elaboração e gerar uma política estabilizada, a Lei acabou por desencadear uma série de disputas no âmbito de sua regulamentação. Tais disputas tendem a se acentuar com o aumento da participação do agronegócio na pauta de exportações brasileiras, cujos representantes têm exercido fortes pressões para a substituição do marco regulatório vigente por outro mais flexível, no que tange ao controle dos impactos à saúde e ao meio ambiente.

Este artigo se propõe a resgatar o processo histórico de construção e de transformação da agenda política em torno do controle do uso dos agrotóxicos. O referencial de análise adotado contempla o tema da formação da agenda, baseado no Modelo de Múltiplos Fluxos de John Kingdon (1995), na perspectiva de investigar como determinada questão passa a ser relevante para o governo em um momento histórico específico.

Para resgatar a história da evolução da agenda política, no que tange à regulação dos agrotóxicos, procedeu-se a um trabalho de pesquisa baseada em fontes primárias de documentos oficiais como: projetos de lei; atas de reuniões parlamentares e da comissão especial criada para elaborar o pré-projeto da Lei Federal de agrotóxicos; e pareceres disponíveis nos sítios eletrônicos do poder legislativo no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Foram também utilizadas fontes secundárias no que tange às notícias do contexto político brasileiro à época da formulação da lei, e às posições e declarações de entidades representantes da indústria de agrotóxicos e de órgãos de governo. Essas fontes estão disponíveis em artigos de jornais, de revistas e livros especializados, em sítios eletrônicos e notas técnicas de agências reguladoras.

A dinâmica do modelo de múltiplos fluxos

O ciclo de políticas públicas descrito por Kingdon (1995) é formado por um conjunto de processos autônomos, o qual compreende: o estabelecimento de uma agenda; a especificação das alternativas a partir das quais as escolhas são feitas; uma escolha final entre as alternativas disponíveis; e a implementação da decisão (CAPELLA, 2007CAPELLA, A. (2007) Perspectivas Teóricas sobre o Processo de Formulação de Políticas Públicas. In: Hochman, Gilberto; Arretche, Marta; Marque, Eduardo. (Org.). Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 87-122.). Na descrição do modelo de múltiplos fluxos (multiple streams) o autor atém-se às duas primeiras etapas: a formação da agenda governamental (agenda-setting) e as alternativas para a formulação das políticas (policy formulation), nas quais se propõe a explicar por que alguns temas adentram a agenda de políticas públicas, tornando-se importantes para um governo, e outros não.

Para tanto, considera a análise de três fluxos dinâmicos: o dos problemas (problem stream), o das alternativas e soluções (policy stream) e o da arena política (political stream). No fluxo dos problemas (problem stream), filtra-se o conjunto de temas que são alvo de atenção por parte das autoridades em um dado momento. Kingdon considera os problemas como construções sociais ou interpretações das situações vividas e identificadas como relevantes pelos atores envolvidos em políticas públicas. Nesse sentido, a formulação do problema passa a ser uma atividade fundamental que pode determinar o sucesso da inclusão de uma questão na agenda de governo.

Apesar de algumas situações atraírem a atenção dos governantes, estas podem não ser incluídas na agenda de discussões. Existe aí um processo de construção ou de formulação de respostas a possíveis problemas, o qual ocorre ao longo do fluxo de alternativas e soluções (policy stream). Tal processo restringe o conjunto de alternativas possíveis, a partir do qual, determinadas soluções são selecionadas. Kingdon utiliza-se de uma analogia com a seleção natural. Defende que ao serem geradas ideias por uma comunidade de especialistas (policy communities) - que nem sempre é unânime quanto à análise da situação - elas passam por um processo de depuração. Isto envolve a produção de artigos científicos, o debate entre os pares, a exposição a testes empíricos, etc. As ideias em debate, assim como organismos biológicos em evolução, permanecem no que os biólogos denominam por ''caldo primitivo''. Podem, eventualmente, vir à tona em função de determinadas conjunturas favoráveis associadas, por exemplo, a uma crise ou a mudanças de governo. Por isso o autor afirma que as ideias flutuam em um '''caldo primitivo de políticas'' (policy primeval soup). Elas não flutuam, de forma estática, mas combinam-se com outras ideias, sendo que algumas sobrevivem e outras são descartadas. Nessa fermentação de ideias, as que se mostram viáveis tecnicamente, as que têm custos toleráveis, assim como aquelas que representam valores compartilhados, encontram menos resistência. Isto tende a ampliar a sua aceitação em um processo denominado softening up (KINGDON, 1995, p. 138).

No fluxo da arena política (political stream), três elementos exercem influência sobre a agenda governamental. O primeiro é chamado por Kingdon de ''clima'' ou ''humor'' nacional (national mood), no qual a percepção de um humor favorável pelos participantes do processo decisório pode levar à promoção de algumas questões, ao mesmo tempo em que pode desestimular outras ideias (IBIDEM). O segundo elemento do fluxo político é composto pelas forças políticas organizadas, exercidas principalmente pelos grupos de pressão. O terceiro fator a afetar a agenda são as mudanças dentro do próprio governo (turnover) como: substituições de pessoas em cargos estratégicos de empresas públicas; alterações na composição do Congresso; ou transformações na jurisdição em que se debate certo tema (IDEM, pp160-162).

A mudança da agenda política, permitindo o surgimento de políticas públicas novas, incide principalmente em ocasiões que possibilitam a convergência dos três fluxos políticos (coupling) - problemas, soluções e dinâmica política. Tal convergência representa uma janela de oportunidade (policy window) para os que advogam em prol de determinada causa ofereçam soluções que lhes interessem, ou chamem atenção para problemas que julguem especiais (IDEM, p. 173).

A abertura da policy window de agrotóxicos: o protagonismo gaúcho

Os fatores que proporcionaram a abertura de uma policy window nacional, para o acesso à agenda de pautas problematizadas, sob a ótica da proteção ao meio ambiente e à saúde humana, têm sua origem nas mobilizações sociais e políticas que vinham ocorrendo no Rio Grande do Sul, notadamente a partir da criação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), em 1971. Dentre essas, uma foi de especial importância: a contaminação do Rio Guaíba, em maio de 1982, por produtos organoclorados usados como inseticidas nas culturas agrícolas da região.

Este evento aglutinou várias entidades representativas da população (Associação Democrática Feminina Gaúcha - ADFG; o Centro de Estudos de Toxicologia do RS; a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - AGAPAN; a Federação das Associações de Bairros do RS - FRACAB; Movimento de Justiça e Direitos Humanos; Sociedade de Agronomia; Sociedade de Engenharia; Instituto de Direito Ecológico; Fundação Balduino Rambo; Associação dos Farmacêuticos Químicos; Associação Gaúcha dos Sociólogos; Centro dos Professores do RS; Associação de Preservação da Natureza do Vale Gravataí; Instituto dos Arquitetos do Brasil e Sindicato dos Arquitetos), sob a liderança da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural. Estas passaram a se reunir periodicamente junto à Comissão de Direitos Humanos, órgão da Assembleia Legislativa do Estado, na qual estabeleceram um fórum sobre o tema (FERRARI, 1985, p. 53).

A contaminação do Rio Guaíba foi um desastre que gerou uma crise, no sentido definido por Kingdon (1995). Muitas vezes os problemas precisam de um ''pequeno empurrão'' para obter a atenção das pessoas e do governo. Dessa forma, para fazer um item mover-se de uma arena menos visível a fim de integrar a agenda governamental, algo deve acontecer. E o acontecimento pode ser uma crise real - o tipo de coisa que os tomadores de decisão do governo não podem ignorar. Ferrari (1985, p. 53) ressalta as razões apontadas pelas entidades no sentido de enfatizar a importância da crise ambiental em questão:

... em primeiro lugar, o fato de que os organoclorados são produtos químicos de longa persistência, de ação cumulativa e pequena degradabilidade no ambiente, cujo consumo continuado implicaria a elevação dos Índices de contaminação das águas do Guaíba; em segundo lugar, o fato de que a Bacia do Jacuí, responsável pelo fornecimento de 35% das águas do Guaíba, abrange uma área onde se verifica o mais elevado índice de utilização de organoclorados no Estado. A Bacia do Jacuí abrange 33% da área do Estado e 66% da população, ou seja, mais de 5 milhões de pessoas;

Os objetivos iniciais do referido fórum eram: a) proibir a comercialização e uso, no território Estadual, dos compostos organoclorados; b) reivindicar ao governo do Estado, por meio da Secretaria da Saúde e Meio Ambiente, estudos sobre os efeitos toxicológicos dos organoclorados, uma vez que não havia informações consistentes sobre isso; c) instituir o Receituário Agronômico (RA) (IBIDEM).

Esta última reivindicação surgiu de recomendação dos engenheiros agrônomos, que há anos debatiam o tema. Em abril de 1978 organizaram o 1º Curso sobre Fundamentos do Receituário Agronômico, promovido pelo Centro Gaúcho de Estudos Toxicológicos. Buscava-se que o engenheiro agrônomo, intermediário entre a indústria e o usuário, fosse além das informações prestadas pelas empresas, já que a prescrição do RA exigia o estudo contínuo da tecnologia disponível, bem como a análise dos aspectos ecológicos (locais e regionais) e toxicológicos para o homem, animais, plantas e meio-ambiente (ALVES FILHO, 2002ALVES FILHO, J. (2002) Uso de agrotóxicos no Brasil: controle social e interesses corporativos. São Paulo: Annablume/FAPESP.). Esse rol de exigências fez com que a prescrição de receituário agronômico se tornasse uma prioridade para os ambientalistas. Ao mesmo tempo, essa racionalização crítica do uso intensivo dos agrotóxicos, contribuiu para reduzir a resistência ao controle dessa prática produtiva (softening up) por meio de políticas públicas.

A partir dos pontos defendidos na Comissão de Direitos Humanos, construiu-se o Projeto de Lei nº 155/1982, no qual foram contempladas importantes reivindicações da sociedade civil organizada, quais sejam:

  • a) condicionou a distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos, se resultantes de importação, a uso autorizado nos países de origem;

  • b) instituiu a obrigatoriedade de realização e publicidade da classificação toxicológica do produto, bem como cadastro junto à Secretaria de Saúde e Meio Ambiente;

  • c) inaugurou o direito das entidades civis de impugnar registros de produtos;

  • d) garantiu a obrigatoriedade do Receituário Agronômico.

O processo de construção da Lei nº 7.747/82 refletiu na tratativa do tema em outros Estados da federação, especialmente porque parlamentares gaúchos compunham a entidade denominada ''União Parlamentar Interestadual'', que se reunia uma ou duas vezes ao ano. Nela havia uma Comissão do Meio Ambiente, cujos deputados levaram a iniciativa para os seus Estados. Esta mobilização resultou na criação de leis estaduais de controle dos agrotóxicos nos estados do Paraná (Lei nº 7.827/1983), Santa Catarina (Lei nº 6.452/1984), Minas Gerais (Lei nº 4.002/1984), São Paulo (Lei nº4.002/84), Espírito Santo (Lei nº 3.706/84).

Contrária às normas inauguradas no Estado do Rio Grande do Sul, a Associação Nacional de Defensivos Agrícolas (Andef) promoveu, por meio da Procuradoria Geral da República, a Representação de Inconstitucionalidade nº 1153 e a de nº 1150 perante o Supremo Tribunal Federal - STF. Nelas sustentou-se a inconstitucionalidade da Lei Estadual. A tese central do pleito da Andef foi a de incompetência dos Estados em legislar e fiscalizar a produção, o comércio e o uso dos agrotóxicos, cujo atributo seria exclusivo da União. A procuradoria do Estado posicionou-se contra essa tese, defendendo a constitucionalidade da Lei gaúcha sob o argumento da competência supletiva dos Estados (FERRARI, 2013).

Em maio de 1985, o STF decidiu sobre a constitucionalidade da Lei de Agrotóxicos do Rio Grande do Sul. Conquanto tenha sido declarada constitucional, os dispositivos mais importantes haviam caído. O Estado não poderia realizar o registro e cadastramento de produtos, nem estabelecer normas e critérios para classificação toxicológica. Continuaram em vigor, no entanto, os poderes de controlar a venda dos agrotóxicos por meio do receituário agronômico.

A construção da Lei Federal de agrotóxicos

O contexto histórico de formulação da Lei Federal de agrotóxicos congrega importantes variáveis, tais como a difusão de leis estaduais sobre o tema, os diversos pleitos judiciais a ele relativos e o fortalecimento mundial das pautas de proteção ao meio ambiente e à saúde humana. Não obstante, deve-se destacar, nesse contexto histórico, o fim da ditadura militar e o advento de uma nova Constituição.

A Constituição da República foi promulgada após mais de vinte anos de ditadura militar, período normativamente regido por Atos Institucionais que vedavam de maneira expressa a manifestação popular, a participação deliberativa e a construção social de um projeto político para o país (SILVA, 2012SILVA, J. (2012) Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 35ª ed. , p.88-89). O ambiente de reforma constitucional foi bastante propício à agenda de proteção ambiental, ao lhe dedicar um capítulo exclusivo pela primeira vez na história.

Logo após ser nomeado Ministro da Agricultura em 1985, Pedro Simon (PMDB-RS) reuniu uma Comissão Especial para elaborar o anteprojeto de lei sobre agrotóxicos, que substituiria o Decreto nº 24.114/1934. Essa atitude figurou como resposta à demanda social por uma regulação de agrotóxicos mais rígida, inspirada na Lei Estadual nº 7.747/82 do Rio Grande do Sul.

Dos debates realizados na referida Comissão sobreveio o anteprojeto encaminhado à Presidência da República, por meio da Exposição de Motivos nº 005 em janeiro de 1986. Posteriormente, com a nomeação de Iris Rezende para o Ministério da Agricultura, em fevereiro de 1986, o anteprojeto elaborado pela Comissão Especial foi reexaminado, sob o argumento de sanar inconstitucionalidades. E, em junho de 1986, foi submetido à consideração da Presidência da República. Mas até a edição do Decreto nº 96.944 de 1988, que criou o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal, conhecido como Programa Nossa Natureza, o anteprojeto permaneceu parado na Casa Civil, sem análise.

O Programa Nossa Natureza foi originário das lutas dos seringueiros da Amazônia, em prol da preservação de seu modo de vida e pela defesa do meio ambiente. Ele atuou, no entanto, como resposta internacional do Brasil ao assassinato do líder ambientalista Chico Mendes. Isso trouxe importantes reflexos não apenas para a região amazônica, mas para a proteção ambiental no Brasil inteiro (RICHARD, 2013RICHARD, I (2013). "Morte de Chico Mendes abre caminho para a questão ambiental no país". Agência Brasil, 20/12/2013. Available at: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil /noticia/2013-12-20/morte-de-chico-mendes-abre-caminho-para-questao-ambiental-no-pais> Access on: 10/11/2013.
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil ...
).

A situação político-ambiental era bastante conflituosa na época. Um ano após Chico Mendes receber o ''prêmio global 500'' das Nações Unidas, em 1987, e o prêmio ''por uma vida melhor'', conferido pela Sociedade Americana para Ecologia, ele foi assassinado. Tal evento teve forte repercussão em nível internacional (SIMONS, 1988SIMONS, M. (1988) "Brazilian who fought to protect amazon is killed". New York Times, December 24, 1988. Available at: <http://www.nytimes.com/1988/12/24/world/brazilian-who-fought-to-protect-amazon-is-killed.html.> Access on: 15/10/2013.
http://www.nytimes.com/1988/12/24/world/...
).

O Programa Nossa Natureza não apresentava qualquer proposição legislativa sobre o controle de agrotóxicos. No entanto, o contexto internacional, gerado pela morte de Chico Mendes, demandou um posicionamento ativo do governo brasileiro em prol da proteção ambiental. Isto contribuiu para o que o anteprojeto debatido pela Comissão Especial, designada em 1986, voltasse à agenda política como prioridade nacional. O ex-presidente José Sarney menciona a importância dessa crise de credibilidade do Brasil quanto à preservação ambiental:

Em agosto de 1988 foram queimados, por dia, cerca de mil quilômetros quadrados de mata. As críticas e a pressão internacional aumentaram sobre o Brasil e levaram a uma reação do governo. Ainda em 1988, Sarney lançou o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal, o chamado APrograma Nossa NaturezaP, com a finalidade de estabelecer condições para a utilização e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais renováveis na Amazônia Legal. (SARNEY, 2011SARNEY, J. (2011) "Meio Ambiente no Governo Sarney". Available at: <http://josesarney.org/o-politico/presidente/politicas-do-governo/meio-ambiente-no-governo-sarney/.> Access on: 12/10/2013.
http://josesarney.org/o-politico/preside...
)

O anteprojeto foi então tratado em regime de urgência pelo Poder Executivo, que o incluiu no Programa Nossa Natureza. E, em abril de 1989, o Poder Executivo submeteu à deliberação do Congresso Nacional o reexame do texto. Assim como a contaminação do Rio Guaíba operou como um ''pequeno empurrão'' para a construção da Lei gaúcha de agrotóxicos, o assassinato de Chico Mendes e a instituição do Programa Nossa Natureza constituíram-se em elementos importantes para que o anteprojeto de lei, parado na Casa Civil, passasse a integrar a agenda governamental.

Em menos de três meses o Projeto de Lei nº 1924/1989 foi aprovado pela Câmara dos Deputados, seguindo para apreciação do Senado que o aprovou em julho de 1989, sem modificações. Nesse mesmo mês, o presidente José Sarney sancionou a Lei Federal nº 7.802/89, que inaugurou a nova política de agrotóxicos do Brasil.

As inovações da lei de agrotóxicos

A Lei nº 7802/89, conhecida como Lei de Agrotóxicos, passou a definir o objeto da regulação como ''agrotóxico'', conceito que já era utilizado pelo legislador constituinte para se referir a tais produtos e que foi positivado na Constituição de 1989, em seu art. 220, § 4º. Este termo foi inicialmente utilizado por, Adilson Paschoal (1979PASCHOAL, A. (1979) Pragas, praguicidas e a crise ambiente - Problemas e soluções. Rio de Janeiro: Editora FGV., p. 34-35), professor de ecologia da USP, ao questionar o termo ''defensivo'', utilizado majoritariamente pela indústria e por grande parte da comunidade acadêmica:

A expressão defensivo agrícola ecologicamente é uma utopia, uma vez que os produtos ali integrantes não podem ser encarados como instrumentos de defesa, mas sim de destruição e perturbação do equilíbrio da biosfera. Diante da ausência de uma terminologia mais adequada, sugere-se o termo agrotóxico, que tem sentido geral para incluir todos os produtos químicos usados nos agroecossistemas para combater pragas e doenças.

A Lei estabeleceu regras mais rigorosas para o controle de agrotóxicos, ampliando a gama de insumos fiscalizados. Antes dela, somente os produtos tóxicos destinados a fins agrícolas e saneantes domésticos possuíam controle, pelo Decreto 24.114/34 e pela Lei 6.360/76, respectivamente. Por meio do seu art. 2º a Lei incluiu novos produtos para o controle toxicológico e agronômico, como para uso em pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes hídricos, industriais e urbanos (ANVISA, 2004).

A Lei instituiu avanços com relação à proteção à saúde e à preservação do meio ambiente, tais como: a possibilidade de impugnação ou cancelamento do registro do produto por solicitação de entidades representativas da sociedade civil, hipótese que remonta à participação popular e à democracia como formas de controle do uso de agrotóxicos; a proibição do registro, caso o Brasil não disponha de métodos de desativação da ação dos componentes tóxicos sobre o homem e o meio ambiente; a proibição do registro de novos agrotóxicos, caso a ação tóxica dele não seja igual ou menor do que a de outros produtos já existentes destinados a um mesmo fim; o cadastro compulsório de produtores, comerciantes e aplicadores dos produtos nos órgãos competentes dos Estados ou Municípios, no intuito de maior rastreabilidade das infrações causadas pelos agrotóxicos; a criação de normas e padrões das embalagens, assim como as normas, padrões, e instruções dos rótulos dos produtos; a atribuição de responsabilidades administrativas por qualquer dano causado pelos agrotóxicos; e a obrigatoriedade do receituário agronômico para a venda de agrotóxicos, até então disposta apenas por normas de alguns Estados.

A Lei instituiu a estrutura tripartite de regulação dos agrotóxicos, com competências específicas atribuídas aos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura. O registro de agrotóxicos passou a depender da autorização dos três entes envolvidos: o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) é responsável pela avaliação da eficiência e da necessidade agronômica do produto candidato a registro; o Ministério da Saúde (MS)/Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem a competência de verificar os testes toxicológicos, compreendendo os impactos relacionados à saúde humana; e o Ministério do Meio Ambiente (MMA)/Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) deve avaliar os estudos de impactos ao meio ambiente.

Além do controle compartilhado entre os três Ministérios, a legislação incorporou a avaliação de perigo ao determinar a proibição de registros de agrotóxicos que revelem características carcinogênicas, teratogênicas, mutagênicas e que causem distúrbios hormonais. A análise de perigo faz parte da avaliação toxicológica desses produtos, na qual se considera, por meio de análises laboratoriais, a evidência de perigo. Se ela for comprovada, restringe-se ou se proíbe a utilização do agrotóxico (SILVA, 2013SILVA, L. (2013) (Re)avaliaçao de agrotóxicos no brasil e as estratégias das empresas. Dissertação do Mestrado Profissionalizante em Toxicologia Aplicada à Vigilância Sanitária. Departamento Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina, 144 p., pp. 43-44).

A aprovação deste requisito, já em 1989, demonstra a vanguarda da legislação brasileira, uma vez que este critério só passou a ser adotado pela União Europeia, por meio do Regulamento nº1107/2009, que entrou em vigor em junho de 2011. Nos Estados Unidos, por exemplo, o critério utilizado para o registro de agrotóxicos baseia-se preliminarmente na análise de perigo. Verificado o dano potencial, buscam controlá-lo a partir da identificação do que seria uma dose segura, baseada na análise e na gestão do risco de se utilizar uma substância perigosa, como explicado por Pelaez, Silva e Borges (2013SILVA, L. (2013) (Re)avaliaçao de agrotóxicos no brasil e as estratégias das empresas. Dissertação do Mestrado Profissionalizante em Toxicologia Aplicada à Vigilância Sanitária. Departamento Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina, 144 p., p. 654):

A avaliação do risco pressupõe que, mesmo com a constatação de um perigo intrínseco à substância, o mesmo pode ser gerenciado, ou seja, considerado seguro por meio do modo de aplicação, da dose máxima a ser permitida para uso e limites que podem ser ingeridos, pelo estabelecimento da ingestão diária aceitável e limites máximos de resíduos. Esta análise é legitimada pela ponderação dos benefícios obtidos com a utilização desse tipo substância na proteção das culturas agrícolas contra organismos indesejáveis. Essa análise permite que muitos agrotóxicos com características intrínsecas inaceitáveis, pela sua periculosidade, podem obter a autorização para uso, mediante o ''gerenciamento'' do risco.

Os limites de ação dos órgãos reguladores

A Lei proporcionou diversos avanços em prol de um maior rigor para a concessão dos registros, preocupando-se com os possíveis efeitos nocivos dos agrotóxicos sobre o meio ambiente e a saúde humana. Contudo, alguns aspectos importantes permaneceram em aberto. A validade dos registros aprovados manteve-se por tempo indeterminado, cabendo aos entes reguladores reavaliar os agrotóxicos que apresentem indícios de efeitos prejudiciais à saúde, ao ambiente, ou de perda de eficácia agronômica (art. 5º, § 1º). Nesse caso, a reavaliação impõe o ônus da prova à agência reguladora. Esta deve ser capaz de demonstrar que os critérios de avaliação adotados, quando da concessão do primeiro registro, se foram equivocados ou encontram-se defasados em função do avanço do conhecimento científico sobre determinado ingrediente ativo. Apenas se as suspeitas forem confirmadas, o procedimento da reavaliação pode resultar em restrições de uso ou de comercialização do produto, até o cancelamento do registro.

No desempenho da regulação tripartite na política de agrotóxicos, apenas a área de saúde contempla uma agência reguladora como ente público responsável. A regulação quanto às áreas de agricultura e meio ambiente é desempenhada pelo respectivo Ministério. Isso faz com que, na teoria, a Anvisa seja o único ente regulador independente, por sua própria natureza de autarquia especial, marcada pela autonomia em relação ao poder ao qual está legalmente vinculada. Todavia, no caso da regulação de agrotóxicos, não se evidenciam diferenças práticas entre a regulação desempenhada pela Anvisa, como agência reguladora, e a realizada pelos Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura e Pecuária, subordinados ao Presidente da República, em ligação direta entre o poder político e a administração pública federal.

Nenhum dos três entes reguladores é isento da influência de políticos eleitos no desempenho de sua atividade, visto que mesmo a autonomia legal conferida à Anvisa costuma ser relativizada. Os poderes constituídos podem, por exemplo, praticar a adoção de mecanismos políticos e financeiros de controle, tais como a redefinição de competências e jurisdição, a definição de orçamento, ou a nomeação de sua diretoria. A Anvisa acaba submetida, inclusive, a ações específicas de políticos que atuam na representação de grupos de interesse vinculados ao setor regulado (PELAEZ, SILVA e BORGES, 2013SILVA, L. (2013) (Re)avaliaçao de agrotóxicos no brasil e as estratégias das empresas. Dissertação do Mestrado Profissionalizante em Toxicologia Aplicada à Vigilância Sanitária. Departamento Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina, 144 p., p. 650).

Outrossim, o elevado grau de assimetria de informação vis-à-vis o agente regulado afeta a competência técnica, tanto da Anvisa quanto do MAPA e do Ibama. Isto porque a avaliação e o controle, feitos pelos entes reguladores, são baseados nas informações aportadas pelos agentes regulados, tais como dados de desempenho agronômico e de toxicologia humana e ambiental, obtidos por estudos patrocinados pelas próprias fabricantes dos insumos. À diversidade e ao volume desses testes somam-se ainda o elevado número de solicitações de novos registros, os quais incluem a avaliação de novos ingredientes ativos em diferentes formulações e embalagens. Nessas condições, a possibilidade de replicação pelos órgãos reguladores, dos estudos apresentados pelas empresas, é economicamente inviável para o setor público (idem, p. 654). Este limita-se, portanto a uma revisão dos dados apresentados pelas partes interessadas. Tal revisão é também limitada pelo reduzido quadro de funcionários responsáveis por essa tarefa. Pelaez, Silva e Borges (2013SILVA, L. (2013) (Re)avaliaçao de agrotóxicos no brasil e as estratégias das empresas. Dissertação do Mestrado Profissionalizante em Toxicologia Aplicada à Vigilância Sanitária. Departamento Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina, 144 p., p.653) destacam a escassez de recursos humanos para avaliação de agrotóxicos no Brasil, em comparação à mesma atividade desempenhada pela Environmental Protection Agency (EPA), nos EUA:

A EPA conta também com um quadro significativo de funcionários voltados especificamente à regulação dos agrotóxicos. São cerca de 850 pessoas, vinculadas ao Office of Pesticide Programs (OPP), responsáveis pelas avaliações e registro de agrotóxicos. O OPP conta ainda com quatro comitês assessores, integrados por especialistas ad hoc (...) Diferente do extenso quadro de funcionários da EPA, os três órgãos reguladores do Brasil contam com cerca de 50 funcionários para a execução das mesmas atividades de avaliação e registro de agrotóxicos.

A falta de infraestrutura regulatória faz com que haja uma crescente demanda, por novos pleitos de registro, não atendida pelas agências. Em junho de 2014, eram 1500 pleitos em fila de espera para análise (ANVISA, 2014). Isto reflete em pressões do setor regulado, nos espaços institucionais de discussão, ou por meio de lobby junto aos poderes executivo e legislativo, no sentido de agilizar o processo regulatório. Como as avaliações mais complexas dizem respeito aos impactos ambientais e à saúde humana, estas levam muito mais tempo para serem concluídas, tornando-se o alvo principal das insatisfações de parte do setor regulado. Dentre as propostas existentes está a criação de uma agência reguladora única, como indicado em ofício enviado à câmara setorial de insumos agropecuários do MAPA, subscrito conjuntamente pela Associação Brasileira de Defensivos Genéricos (AENDA), o Sindicato Nacional das Empresas de Defensivos Agrícolas (SINDAG) e a Associação Nacional de Defesa Vegetal (ANDEF):

A edição da lei 7802/89 criou condições para que o Brasil caminhasse para se tornar líder na produção de alimentos, fibras e energia renovável. (...) Entendemos que a criação de uma agência nacional de registro de produtos fitossanitários, vinculada ao MAPA, com a alocação de pessoal competente da Anvisa, Ibama e MAPA poderia agilizar o processo de registro, abreviando sobremaneira o tempo despendido entre o pedido e a concessão do registro. Além disso os atos regulamentadores, tão atrasados no sistema atual, seriam editados com maior presteza porque não haveria a necessidade de aprovação de três ministérios. (grifo nosso) (AENDA, SINDAG e ANDEF, 2005).

A atuação dos grupos de interesse: tentativas de redefinição do problema

As demandas pela agilização do processo de registro evidenciam conflitos entre as associações de interesses dos fabricantes de agrotóxicos. Duas em especial se destacam: a ANDEF que representa as maiores empresas da indústria de agrotóxicos; e a AENDA que representa as empresas de menor porte voltadas à produção e importação de produtos com patente vencida.

A ANDEF (2008) propugna uma priorização dada pelos órgãos reguladores na tratativa dos registros de ingredientes ativos novos, no sentido de valorizar seus investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento:

É preocupante o reduzido número de produtos fitossanitários modernos, à base de ingredientes ativos (i.a.) novos, à disposição dos agricultores brasileiros. (...) Os órgãos registrantes de produtos fitossanitários devem priorizar a análise de solicitação de registro de ativos novos. Eventuais dificuldades técnicas devem ser solucionadas da maneira mais rápida possível, inclusive com a colaboração da indústria e dos pesquisadores de diferentes órgãos oficiais.

Já a AENDA (2013) atua para diminuir o tempo de avaliação de produtos ''genéricos'', sob o argumento de que isso reduziria a atual concentração de mercado e ampliaria a concorrência nesta indústria. Defende a necessidade de se eliminar ''burocracias'' para o registro de agrotóxicos, o que reduziria os custos desses insumos para os agricultores e possibilitaria uma maior produção agrícola nacional:

O governo precisa entender que este é um mercado de forte oligopolização e com tendência cada vez mais concentradora, bastando observar o movimento das grandes corporações químicas em processo de fusões e adquirindo vorazmente as companhias de sementes, na disputa por espaço do mercado de defesa vegetal, via biotecnologia. (...) Com esse cenário, faz-se necessária uma política industrial que tenha como um dos objetivos prioritários o incentivo à concorrência e como estratégia, o estímulo à fabricação local e a preservação das empresas de genéricos.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) posiciona-se frequentemente ao lado da AENDA, reforçando o discurso de tratar como prioridade os registros dos agrotóxicos ''genéricos'' para a redução do custo de alimentos. A presidente da entidade à época (senadora Kátia Abreu), chegou a acusar nominalmente servidores da Anvisa de gerarem uma reserva de mercado à ANDEF:

Essas três pessoas estão na ANVISA (...) três figuras sinistras que há dez anos impedem dos defensivos genéricos serem registrados nesse país. (...) Lá no IBAMA eu confesso que eu observo muito mais uma questão ideológica do que uma corrupção, uma proteção, um lobby, uma reserva de mercado. Eu sinceramente enxergo lá muita ideologia. Mas com relação a esses três cidadãos, e eu aqui desafio aos três a virem aqui, com as empresas que tentam registrar produtos, para um debate firme aqui dentro. Esses três protegem a ANDEF. A ANDEF é a poderosa Associação Nacional das Multinacionais responsáveis por quatro bi e meio de comercialização anual neste país. (ANVISA, 2007, p.2).

Cotejando-se os posicionamentos dessas associações, nota-se que a ANDEF dos anos 2000, tem um discurso diferente da ANDEF das décadas de 1970 e 1980. Ao longo dos anos incorporou o discurso de parte do segmento ambientalista, em especial quanto à necessária qualidade e segurança dos alimentos. Passou a defender a rigidez na política brasileira de agrotóxicos, ao criticar pleitos que buscam flexibilizar os procedimentos de registros de insumos com patente vencida. Em uma de suas manifestações sobre a simplificação do registro para agrotóxicos equivalentes a ANDEF (2007), por meio de seu presidente executivo, afirmou:

Na possibilidade de começarmos a ver o Brasil jogar pelo ralo uma legislação sempre aprimorada, construída sobre os pilares da experiência e das exigências dos mercados interno e externo, para abrir as portas da sua agricultura a apenas um suposto benefício comercial. A ANDEF e suas associadas confiam na seriedade das nossas autoridades na condução criteriosa no tocante a aprovação de produtos genéricos. A pretendida rapidez não pode prescindir da avaliação judiciosa que deve nortear os procedimentos, entre os quais se inclui a aprovação toxicológica dos produtos fitossanitários, como forma de garantia da qualidade dos produtos químicos e da qualidade dos alimentos ofertados ao mercado.

A recondução da agenda de regulação dos agrotóxicos

Nesse cenário de constantes questionamentos sobre a competência dos órgãos reguladores, notadamente da Anvisa e do Ibama, os vinte e cinco anos de vigência da Lei de Agrotóxicos parecem ter acentuado os interesses privados em garantir o rápido acesso ao segundo maior mercado mundial de agrotóxicos. Foi possível identificar o trâmite no Congresso Nacional de mais de trinta e cinco projetos de lei (PLs) em prol da alteração da Lei de Agrotóxicos e de seus regulamentos. Os PLs propõem mudanças semelhantes, como: a concentração da regulação em um só ente público, eliminando-se a atual faceta tripartite entre MAPA, Anvisa e Ibama; a concessão de apoio estatal ao uso de agrotóxicos, notadamente por meio de isenção fiscal; a redução dos estudos exigidos para os pleitos de registros, no intuito de acelerar o trâmite avaliatório para logo se disponibilizar o produto no mercado; o intento em barrar restrições dos entes reguladores ao uso de agrotóxicos rentáveis economicamente; e a tentativa em alterar a denominação legal do insumo para ''defensivo agrícola'' ou ''agroquímico'', eliminando o atual conceito de ''agrotóxico''.i

Nota-se que grande parte das propostas destoa da racionalidade de proteção à saúde e ao meio ambiente, determinada pela legislação em vigor. Considerando-se os últimos quarenta anos da política de agrotóxicos no Brasil, e todas as conquistas obtidas pela militância ambientalista no que tange à proteção à saúde e ao meio ambiente, a atual conjuntura revela um período de retrocesso na agenda política de preservação do meio ambiente.

Como observa Leuzinger (2013LEUZINGER, M. "Avanços e retrocessos no direito ambiental brasileiro". XVIIº Congresso Brasileiro de Advocacia Pública, Águas de Lindóia, novembro de 2013.), as décadas de 1960, 1980 e 1990 foram marcadas pela edição de leisii que conformam a base do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, consagrado pela Constituição Federal de 1988. Todavia, a partir de 2005, começou a evidenciar-se um movimento contrário, tendente à desconstrução do Direito Ambiental. Destaca-se: a alteração da Lei de Biossegurança, em 2006, a qual passou a conferir poder deliberativo à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, em detrimento das competências dos órgãos reguladores (Anvisa e Ibama); a redução e a flexibilização do plantio de organismos geneticamente modificados das áreas do entorno das Unidades de Conservação, em 2006 e 2010, previstas originalmente na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; e, talvez o mais importante, a revogação do Código Florestal de 1965 pela Lei 1251/2012 que concedeu ampla anistia à prática do desmatamento realizada em todo o país (LEUZINGER, 2013LEUZINGER, M. "Avanços e retrocessos no direito ambiental brasileiro". XVIIº Congresso Brasileiro de Advocacia Pública, Águas de Lindóia, novembro de 2013.).

A flexibilização da legislação ambiental conta com a destacada participação da Frente Parlamentar de Apoio à Agricultura (Bancada Ruralista) no Congresso Nacional, representada por 158 parlamentares, o que corresponde a 31% de deputados e 22% de senadores, no mandato 2011-14 (DIAP, 2011). A ação dessa Frente é respaldada pelos indicadores de desempenho econômico do agronegócio que foi responsável por 41% das exportações brasileiras em 2013 (BRASIL, 2014). Com esses indicadores, os atores vinculados à lógica de redução de barreiras ambientais à expansão da agricultura têm ganhado cada vez mais legitimidade e poder político, tanto na redefinição do problema quanto na seleção de soluções mais favoráveis aos seus interesses.

Considerações Finais

Este artigo procurou resgatar a história da construção da lei federal de agrotóxicos, e de sua possível desconstrução, sob a ótica do modelo de múltiplos fluxos. A partir do problem stream pode-se constatar a importância das crises no desencadeamento de discussões que levaram os agrotóxicos à pauta governamental de defesa da saúde e do meio ambiente. No caso do Rio Grande do Sul, foi uma crise ambiental associada à poluição do Rio Guaíba. No caso do governo federal, foi uma crise política internacional associada ao assassinato de um líder ambientalista. Tais crises não teriam uma repercussão política sem o respaldo de uma sociedade civil organizada, por meio de associações de defesa do meio ambiente mas também de associações dos agrônomos. Os indicadores de risco e de poluição, gerados por essas comunidades de leigos e especialistas, foram também fundamentais para a sustentação de decisões tanto no policy quanto no politics stream.

Ambas as crises podem ser interpretadas como janelas de oportunidade, cujo oportunismo só poderia existir a partir de uma mobilização política de grupos de interesse organizados. A mobilização da sociedade civil, que levou à construção de uma legislação avançada em termos de proteção à saúde e ao meio ambiente, parece, no entanto, ter perdido força face à organização de associações de classe da indústria de agrotóxicos e de segmentos do setor agrícola. O esvaziamento da agenda ambiental em benefício do desempenho econômico do país no curto prazo, parece indicar uma forte tendência ao retrocesso do marco legal que regulamenta a produção, o comércio e o uso dos agrotóxicos no Brasil. Esse ambiente político, respaldado pelo desempenho econômico do agronegócio e pela relevância das forças políticas organizadas no Congresso (policy stream), faz com que a agenda ambiental seja suavizada (softening up), ou literalmente esquecida.

Períodos de recessão econômica e de mudanças de governo, como o que agora vivenciamos, sugerem crises ainda mais oportunas para o afastamento da preservação ambiental da agenda de governo. O grande desafio da sociedade civil passa a ser portanto o de recolocar a preservação ambiental, não como um entrave ao desenvolvimento econômico, mas como uma solução de sustentabilidade de longo prazo.

References

  • i
    Os PLs que propõem maiores mudanças, na Câmara dos Deputados, são: PL 3125/2000; PL 6189/2005; PL 4166/2012; INC 27007/2012. E no Senado Federal: PL 6299/2002; PL 209/2013.
  • ii
    Remontam a este período as Leis: Código Florestal de 1965; Proteção à Fauna Silvestre de 1967; Política Nacional do Meio Ambiente de 1981; Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997; Crimes Ambientais de 1998; Sistema Nacional de Unidades de Conservação de 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2015
  • Aceito
    14 Mar 2016
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