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Segurança hídrica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro: contribuições para o debate

Resumo

O presente artigo tem como objetivo contribuir com as discussões promovidas sobre a gestão dos recursos hídricos com enfoque nos elementos associados à segurança hídrica. A discussão que se apresenta tem dois norteamentos principais, o primeiro, na apresentação do referencial teórico-conceitual que norteia as discussões sobre a segurança hídrica e, o segundo, nos elementos constituintes do atual cenário de gestão hídrica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), abrangendo as discussões sobre a dependência do abastecimento hídrico desta região no rio Paraíba do Sul, e o papel dos organismos e instrumentos de gestão das águas do estado e na manutenção da segurança hídrica. Os elementos apresentados demonstraram, através da investigação sobre a situação dos mananciais de abastecimento público e dos instrumentos existentes no presente território, um contexto de constante insegurança hídrica na RMRJ.

Palavras-chave:
Gestão de recursos hídricos; Segurança hídrica; Conflitos hídricos; Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Abstract

This article aims to contribute to discussions on the management of water resources and the elements associated to water security. The discussion has focused on two main aspects, first, in the theoretical frame about discussions of water security and second, in the presentation of the elements which composes the current scenario of water management in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro (RMRJ), based in the discussions about the centrality for Rio de Janeiro's water supply focused in Paraíba do Sul river, and in the role of agencies and organisms associated to water management in this territory. Based in the researching about the water availability and quality in Rio de Janeiro and the mechanisms presents in this State, the elements presented in this article demonstrated a context of water insecurity in RMRJ.

Palavras-chave:
water management; water security; water conflicts; Metropolitan Region of Rio de Janeiro

Resumen

Este artículo tiene como objetivo contribuir a los debates promovidos en la gestión de los recursos hídricos con un enfoque en los elementos asociados a la seguridad hídrica. La discusión se ha centrado en dos aspectos principales: en la presentación del marco teórico y conceptual que guía las discusiones sobre la seguridad hídrica y, en los elementos constitutivos de la situación actual de la gestión del agua en la Región Metropolitana de Río de Janeiro (RMRJ), incluyendo discusiones sobre la dependencia del abastecimiento de agua de esta región en el río Paraíba do Sul, el papel de los organismos e instrumentos de gestión del agua del Estado y el mantenimiento de la seguridad hídrica. Los elementos presentados demostraron, a través de la investigación sobre la situación de las fuentes de agua potable pública y los instrumentos existentes en este territorio, un contexto de inseguridad hídrica en RMRJ.

Palavras-chave:
Gestión de los recursos hídricos; seguridad hídrica; conflictos del agua; Región Metropolitana de Río de Janeiro

Introdução

A partir do reconhecimento pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) do acesso à água potável como um direito humano, em julho de 2010, fomentaram-se novas discussões sobre aspectos constituintes da agenda das águas, tais como a garantia ao acesso da água a todos e a segurança hídrica das regiões e países. Em pesquisa realizada por Cook e Bakker (2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. Global Environmental Change, 22, p. 94-102, 2012.) no portal Web of science, os autores apontaram que houve um crescimento exponencial do uso do termo "water security" no periódicos, especialmente na última década. A pesquisa apontou ainda que em cada um dos cinco artigos mais citados no portal, a ocorrência do termo "water security" foi identificada.

Tal crescimento pode ser explicado por dois fatores principais: o reconhecimento da água como um direito humano, e a introdução de uma acepção mais integrativa do conceito de segurança hídrica, que se deu a partir dos anos 2000, com a realização do Segundo Fórum Mundial do Global Water Partnership (GWP). Tal acepção incluía o fácil acesso à água para suprir as necessidades humanas, da saúde e ecológicas conforme apontam Cook e Bakker (2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. Global Environmental Change, 22, p. 94-102, 2012.).

No entanto, o Brasil somente passou a posicionar-se mais expressamente sobre este debate no ano de 2012, quando deu início a concepção do Plano de Segurança Hídrica Nacional (PNSH). O PNSH, cujo objetivo é definir as principais intervenções estruturantes e estratégicas na gestão dos recursos hídricos visando garantir a oferta de água para o abastecimento humano e para o uso em atividades produtivas, e, reduzir os riscos associados a eventos críticos, ainda está em fase de elaboração e vem sendo elaborado no âmbito do Projeto Interáguas conjuntamente pela Agência Nacional de Águas (ANA), o Ministério da Integração e o Banco Mundial.

Não obstante às preocupações do governo com a elaboração de um Plano Nacional de Segurança Hídrica, a partir do final de 2013, o estado de São Paulo enfrentou uma crise para viabilizar o abastecimento hídrico da região da Macrometrópole Paulista, a qual recebeu expressiva divulgação nos veículos da mídia, e, culminou em uma tensão entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Tal crise, cujas hipóteses a respeito de sua origem transitaram entre os argumentos associados à falta de chuvas na região ou aqueles relacionados à gestão deficiente do recurso, eclodiu em uma tensão quando foi anunciado pelo governo paulista em março de 2014 a intenção de realização de uma (nova) transposição no rio Paraíba do Suli i Notas O rio Paraíba do Sul atravessa três estados da federação: Minas Gerais, Rio de Janeiro e São PauloDisponível em: <http://www2.ana.gov.br/Paginas/servicos/outorgaefiscalizacao/RioParaibadoSul.aspx>. Acesso em: 09 jan. 2015. .

O anúncio sobre a intenção de realização de uma nova transposição das águas do rio Paraíba do Sul para suprimento do Sistema Cantareira (complexo composto por seis represas, as quais abastem 55% da Região Metropolitana de São Paulo)ii ii Disponível em: <http://www.daescs.sp.gov.br/index.asp?dados=ensina&ensi=cantareira>. Acesso em: 22 nov. 2014. gerou descontentamento nos agentes envolvidos na gestão da água no estado do Rio de Janeiro em decorrência, sobretudo, da dependência da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) nas águas do rio Paraíba do Sul - passando o rio, assim, a configurar objeto de disputa entre os dois estados da federação.

Tal descontentamento esteve associado ao fato de o abastecimento da RMRJ somente ser viabilizado em razão de uma obra de transposição das águas do rio Paraíba do Sul para a bacia do rio Guandu, localizado no estado do Rio de Janeiro. A partir desta transposição, a bacia do rio Guandu passou a servir de veículo de transporte das águas que abastecem a RMRJ cuja vazão inicial não era suficiente para suprimento da demanda instalada.

Uma semana após o pronunciamento realizado pelo governo de São Paulo sobre a nova transposição, o órgão ambiental estadual do Rio de Janeiro, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), publicou a Nota Técnica DIGAT/INEA nº 01-A/2014, apresentando o posicionamento contrário do estado do Rio de Janeiro à realização da obra para transposição de novas vazões do Paraíba do Sul visando o suprimento do Sistema Cantareira.

A divergência dos estados sobre a promoção de novas intervenções no rio Paraíba do Sul foi judicializada através do ajuizamento de uma Ação Civil Pública cujo polo ativo foi o estado do Rio de Janeiro, e, e teve seu "desfecho" com a realização de uma audiência de mediação no Supremo Tribunal Federal, em novembro de 2014, a qual resultou em um acordo entre os governadores dos três estados atravessados pelo rio em disputa - embora o acordo celebrado não tenha dado fim aos questionamentos a respeito dos reais impactos da realização de nova transposição de vazão deste manancial.

Tal contexto enseja duas perspectivas de investigação, as quais serão discutidas no presente artigo, o contexto de (in)segurança hídrica da RMRJ, em razão da dependência do abastecimento hídrico da RMRJ em um manancial em disputa, e, por outro lado, o desafio imputado a bacia hidrográfica do rio Guandu e aos organismos a ela associados no processo de gestão hídrica da RMRJ, já que esta bacia passa a servir de veículo da transposição das águas do rio Paraíba do Sul - viabilizando assim o abastecimento hídrico de 85% da RMRJ (SONDOTÉCNICA, 2007SONDOTÉCNICA - SONDOTÉCNICA ENGENHARIA DE SOLOS S.A. Plano Estratégico de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica dos rios Guandu, da Guarda e Guandu Mirim - Relatório Gerencial. Rio de Janeiro: Sondotécnica/Comitê Guandu/ANA, 2007.).

A discussão que se segue está organizada em quatro partes. Na primeira, é apresentada a revisão bibliográfica que fundamentou a elaboração deste artigo. A segunda parte foi estruturada a partir da apresentação do atual cenário de demanda hídrica da RMRJ. A apresentação dos organismos e instrumentos de gestão das águas no Rio de Janeiro consiste na terceira parte do artigo. E, por fim, a quarta parte do artigo reside na análise sobre a conjuntura da segurança hídrica da RMRJ e os desafios imputados ao Comitê Guandu (RJ), em razão deste colegiado ser responsável pela gestão da bacia responsável pela veiculação das águas transpostas do rio Paraíba do Sul, conforme supramencionado.

A metodologia que embasou as discussões aqui propostas contemplou dois métodos principais, a revisão da literatura já existente sobre a temática abordada e o levantamento de informações sobre os instrumentos e mecanismos de gestão hídrica do estado do Rio de Janeiro, bem como de seu funcionamento. A revisão da literatura centrou-se na leitura de bibliografia cuja temática versasse sobre as discussões acerca do conceito de segurança hídrica e gestão dos recursos hídricos no contexto brasileiro.

O levantamento de informações buscou contemplar os seguintes aspectos: (i) atual situação de disponibilidade hídrica do estado do Rio de Janeiro - levantamento realizado através da consulta aos documentos técnicos disponibilizados pelo órgão ambiental do estado do Rio de janeiro, Instituto Estadual do Ambiente (INEA), (ii) identificação e levantamento dos instrumentos e mecanismos presentes no sistema de gerenciamento de recursos hídricos do estado do Rio de janeiro - através da leitura da legislação hídrica estadual e informações disponibilizadas pelo INEA, e, (iii) análise da estrutura e funcionamento do fórum de deliberação a respeito da gestão hídrica da RMRJ, o Comitê Guandu, que se deu a partir do seu sítio na Internet e do trabalho de Santos (2014SANTOS, B. B. M. Governança das águas e negociação de conflitos socioambientais: o caso do comitê de bacia hidrográfica do Guandu face à Central de Tratamento de Resíduos Santa Rosa (RJ). Dissertação. Rio de Janeiro: PPGG/UFRJ, 2014.), que versou sobre o fórum como arena de negociação de conflitos socioambientais.

Arcabouço legal institucional da gestão hídrica brasileira à luz da discussão sobre a segurança hídrica

A abordagem sobre o tema da segurança hídrica, segundo interpretação realizada por Cook e Bakker (2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. Global Environmental Change, 22, p. 94-102, 2012.), tem quatro enfoques principais. O primeiro quadro versa sobre essa problemática apoiado nas preocupações quanto à quantidade e à disponibilidade de água - buscando, por exemplo, discutir ferramentas de avaliação de segurança da água.

O segundo enfoque centra-se nas discussões sobre as vulnerabilidades associadas à água, ilustradas pelas situações de seca e inundações e suas consequências.

Uma terceira abordagem da literatura que versa sobre a segurança hídrica enfoca as discussões nas necessidades humanas associadas às águas, a qual inclui uma vasta gama de problemáticas como, por exemplo, o próprio acesso à água (potável), a segurança alimentar e demais elementos associados ao desenvolvimento humano.

A sustentabilidade consiste no quarto enfoque do tema, o qual é bem ilustrado pelo conceito de segurança hídrica trazido pelo Global Water Partnership (GWP, 2000GWP - Global Water Partnership. Towards Water Security: A Framework for Action. Global Water Partnership, Stockholm, Sweden, 2000.): "em qualquer escala, seja da residência até a escala global, significa que cada pessoa tenha acesso à água segura suficiente e a custo acessível, de maneira que possa prover uma vida limpa, saudável e produtiva enquanto também assegure que o ambiente natural seja protegido e aperfeiçoado".

Além da leitura do GWP, este conceito também é discutido pelos autores Grey e Sadorf (2007GREY, D.; SADOFF, C. Sink or Swim? Water security for growth and development. Water Policy, v. 9, n. 6, p. 545-571, 2007.), o qual o entendem como "A disponibilidade de uma quantidade e qualidade da água para a saúde, meios de subsistência, os ecossistemas e produção aceitável, juntamente com um nível aceitável de riscos relacionados com a água para as pessoas, o ambiente e as economias".

Conceito semelhante é defendido pela UN-Water (2013)UN-WATER - The United Nations Inter-Agency mechanism on all freshwater related issues, including sanitation. Water security. 2013. Available in: <http://www.unwater.org/topics/water-security/en/>. Accessed in: January, 25 2015.
http://www.unwater.org/topics/water-secu...
, a qual define segurança hídrica como:

A capacidade da população de garantir o acesso seguro e sustentável a quantidades adequadas de água de qualidade aceitável para sustentar os meios de subsistência, bem-estar humano e desenvolvimento socioeconômico, para assegurar a proteção contra a poluição transmitidas pela água e os desastres a ela relacionados, e, para a preservação dos ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política (UN-WATER, 2013UN-WATER - The United Nations Inter-Agency mechanism on all freshwater related issues, including sanitation. Water security. 2013. Available in: <http://www.unwater.org/topics/water-security/en/>. Accessed in: January, 25 2015.
http://www.unwater.org/topics/water-secu...
).

As discussões realizadas por Cook e Bakker (op. cit.) norteiam-se pelo entendimento da importância da reflexão sobre o tema de forma ampla, ou seja, que leve em consideração a escala global e questões mais abrangentes do que apenas relacionadas com a gestão hídrica, tais como os fatores políticos e socioeconômicos.

Os autores compreendem que um conceito amplo de segurança da água e boa governança podem ser simbióticos, uma vez que cada um destes conceitos e os objetivos que o abarcam facilitam o alcance do outro, a segurança da água estabelece metas para a governança, e a boa governança é necessária para se avançar no nível operacional (COOK; BAKKER, 2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. Global Environmental Change, 22, p. 94-102, 2012.).

No Brasil, com a promulgação da Lei 9.433/1997 - Lei das Águas, o país passa por um processo de reforma no seu modelo de gestão hídrica. Este novo arcabouço legal-institucional traz em sua redação princípios visando à promoção de uma gestão equânime das águas.

Conforme aponta Ioris (2010IORIS, A. A. R. Da foz às nascentes: análise histórica e apropriação econômica dos recursos hídricos no Brasil. In: ALMEIDA, A.W.B. de et al. (Orgs.) Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010, p. 211-255.) o novo marco regulatório trazido com a implementação da Lei das Águas incorpora diversos preceitos da metodologia internacional de gestão integrada das águas, apoiando-se em três eixos principais: a necessidade de autorização prévia para a utilização da água (através do instrumento de outorga), o pagamento de taxas equivalentes ao impacto ambiental causado pelo uso e a constituição de fóruns que possibilitem a participação social nas deliberações a respeito deste recurso (os comitês de bacias hidrográficas).

Esse novo modelo é classificado como um modelo sistêmico de integração participativa (CAMPOS; FRACALANZA, 2010CAMPOS, V. N. O.; FRACALANZA, A. P. Governança das águas no Brasil: Conflitos pela apropriação da água e a busca da integração como consenso. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. XIII, n. 2, p.365-382, jul./dec. 2010.), pois aproveita os aspectos positivos dos modelos hídricos anteriores a ele e adota alguns procedimentos e mecanismos inovadores como, por exemplo, a adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento do sistema de gerenciamento hídrico, permitindo novos processos de tomada de decisão e a descentralização do gerenciamento hídrico.

Outro importante aspecto a ser destacado sobre este novo modelo se refere à sua centralidade na noção de escassez, conforme apontado por Ioris (op. cit.), que segundo o autor se expressa através da implementação do instrumento da cobrança pelo uso da água. O norteamento pela noção de escassez também é refletido na definição de usos prioritários na Lei das Águas, segundo o art. 1º, inciso III, o qual versa: "em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais".

Dentre os elementos previstos na Lei das Águas os quais é possível se apontar como aqueles que contribuem para assegurar a segurança hídrica do país, destacam-se os instrumentos previstos em seu art. 5º e a previsão da criação de organismos participativos na promoção da gestão dos recursos, a saber: os conselhos e comitês de bacia hidrográfica.

Entende-se que os primeiros, alinham-se com as preocupações no tocante à segurança hídrica segundo um enfoque centrado na quantidade e disponibilidade de água, conforme apontado por Cook e Bakker (2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. Global Environmental Change, 22, p. 94-102, 2012.). O segundo, está mais diretamente associado às preocupações com a segurança hídrica em sentido mais amplo - também como proposto por Cook e Bakker (op. cit.), associado à governança.

Cumpre destacar a previsão de usos prioritários centrados nas necessidades humanas, tal como previsto no art. 1º, inciso III supramecionado - um outro enfoque da legislação que se alinha com os argumentos apresentado por Cook e Bakker sobre a segurança hídrica. Contudo, não há um instrumento específico na Lei das Águas que vise assegurar tal priorização. Também cabe destacar que o aspecto tocante à segurança alimentar não é abordado de forma clara na redação desta Lei.

Aos comitês de bacia hidrográfica são atribuídas diversas competências no âmbito do funcionamento do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos instituído a partir da Lei das Águas, dentre as quais é importante frisar o seu papel na promoção do debate das questões relacionadas a recursos hídricos, a arbitragem dos conflitos relacionados aos recursos hídricos, o acompanhamento da execução dos planos de recursos hídricos das bacias e estabelecimento de mecanismos de cobrança pela água.

Embora exista um arcabouço legal-institucional já consolidado, o qual enseja importantes embasamentos para a elaboração de um cenário de gestão hídrica em consonância com a seguridade desejada no gerenciamento deste recurso, o Brasil somente passa a atentar-se para as discussões sobre segurança hídrica na atualidade.

Ainda que o norteamento da elaboração da política de gestão de águas encontre centralidade nos conceitos de escassez hídrica e uso racional das águas, conforme aponta Ioris (op. cit.), a crise vivenciada pelo estado de São Paulo evidenciou um cenário de vulnerabilidade na gestão hídrica brasileira.

A ausência de preocupações expressas com as situações de escassez pode ser atribuída a aparente remota possibilidade de enfrentamento de situações de stress hídrico, já que o país que representa 12% das reservas de água doce do mundo (ANA, 2007ANA - AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS. GEO Brasil Recursos Hídricos: Sumário Executivo. 2007. Available in: <http://arquivos.ana.gov.br/wfa/sa/GEO%20Brasil%20Recursos%20H%C3%ADdricos%20-%20Resumo%20Executivo.pdf>. Accessed in: November, 20 2014.
http://arquivos.ana.gov.br/wfa/sa/GEO%20...
).

No entanto, ocorre que grande parte deste potencial hídrico está situado na região Norte do país, enquanto que é na porção Sudeste do território que se concentra a maior parte da população urbana brasileira (ANA, op. cit.). E, soma-se a esta conjuntura, a qualidade comprometida dos mananciais superficiais localizados na parte Sudeste do país.

Assim, a disputa pelo acesso à água vem sendo intensificada, uma vez que os principais mananciais utilizados para o abastecimento público são impactados diretamente por diferentes (e novos) usuários, principalmente os usos agropecuários e industriais, além das cargas de efluentes provenientes de tais atividades.

Outro elemento importante para as reflexões sobre o cenário de segurança hídrica da agenda ambiental brasileira, também evidenciado pela situação de escassez hídrica no estado de São Paulo, esteve relacionado ao incremento à exploração de reservas subterrâneas através de poçosiii iii Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/04/exploracao-sem-controle-dos-pocos-artesianos-pode-piorar-crise-hidrica.html>. Acesso em 23 jan. 2015. - realizado de forma irregular e desordenada, ratificando a necessidade de atenção sobre a importância que as reservas subterrâneas representam como ativos importantes na agenda hídrica brasileira.

É possível afirmar-se que a gestão das águas subterrâneas encontra lacunas na agenda da gestão das águas brasileiras. Segundo Hager et al. (2002HAGER, F. P. V. et al. A problemática da gestão das águas subterrâneas no Brasil. In: XII Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas, 2002, São Paulo, Anais..., São Paulo: ABAS, 2002.), a Lei das Águas pode ser considerada como uma legislação que trata exclusivamente das águas superficiais. Somente mais recentemente tem ocorrido um aumento da percepção sobre a necessidade de se contemplar as águas subterrâneas no bojo das discussões sobre o gerenciamento hídrico brasileiro, especialmente em virtude das qualidades já comprometidas de grande parte dos mananciais que abastecem às áreas urbanas, aspecto já mencionado.

A legislação brasileira considerou, por um longo período, as águas subterrâneas como uma extensão do terreno, as quais podiam ser naturalmente apropriadas pelos proprietários de terras. Embora as águas subterrâneas sejam utilizadas por cerca de 50% da população brasileira, a sua importância só é evidenciada em situações de escassez, geralmente, marcada por conflitos (HAGER et alHAGER, F. P. V. et al. A problemática da gestão das águas subterrâneas no Brasil. In: XII Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas, 2002, São Paulo, Anais..., São Paulo: ABAS, 2002.., op. cit.).

O atual domínio das águas subterrâneas foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988, os quais foram atribuídos aos estados através do art. 26 "incluem-se entre os bens do Estado: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, nesse caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União".

Compete à Coordenação de Águas Subterrâneas, vinculada ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) o gerenciamento das questões relativas às águas subterrâneas em escala nacional.

Com objetivo de superar as dificuldades enfrentadas neste campo da gestão das águas brasileiras foi criado o Programa de Águas Subterrâneas, pelo Ministério de Meio Ambiente (MMA), vinculado à Secretaria de Recursos Hídricos. O objetivo do programa é a formulação de uma política setorial de águas subterrâneas, que possibilite o fortalecimento e integração desta temática no sistema de gerenciamento do país.

Contudo, os desafios da gestão das águas subterrâneas ainda são muitos, e concentram-se, sobretudo, na articulação entre o tratamento legal e institucional e sua adequação entre os instrumentos estabelecidos pela PNRH, os quais têm ênfase na gestão das águas superficiais. Além, de o fato da gestão do uso do solo e do subsolo, lato senso, não ser realizada de forma associada no contexto brasileiro. Os conflitos associados às atividades de extração de minerais ilustram bem esta dissociação.

Por fim, o argumento da insuficiente integração entre a gestão das águas superficiais e subterrâneas é corroborado com a recente elaboração do já aludido Plano Nacional de Segurança Hídrica e a ausência de enfoque do mesmo na integração entre a gestão das águas superficiais e das reservas subterrâneas (BRANCO, 2015BRANCO. M. do S. L. C. GWP Brasil: contribuição para o desenvolvimento do conceito de segurança hídrica. In: VII Encontro da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, 2015, Brasília, Anais..., Brasília: ANPPAS, 2015.).

Apontamentos sobre o atual cenário hídrico da RMRJ

O "Relatório de Fontes Alternativas para o Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro, com Ênfase na RMRJ" (2014) do Plano Estadual de Recursos Hídricos do estado do Rio de Janeiro, com base nos estudos realizados COBRAPE/DAEE (2010) e PSR/AGEVAP (2013) citado por COPPETEC (2014)COPPETEC. Relatório de Fontes Alternativas para o Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro, com Ênfase na RMRJ. In: _____. Plano Estadual de Recursos Hídricos do estado do Rio de Janeiro, R3 A - Temas Estratégicos, revisão 05, 2014. , aponta que a realização de novas transposições no rio Paraíba do Sul irão aumentar os riscos de recrudescimento de eventos similares ao estresse hídrico vivenciado em 2003 pelo estado.

Também aponta que os municípios de Magé, Guapimirim e parte de Duque de Caxias (integrantes da RMRJ) não são atendidos ou são parcialmente atendidos pelos sistemas Guandu e Imunana/Laranjal, e, mesmo com as ampliações previstas para tais Sistemas nos próximos anos, a situação destes municípios não será alterada - o que reitera o quadro de preemente fragilidade do abastecimento hídrico da RMRJ.

A respeito da qualidade das águas dos principais mananciais do estado, o relatório aponta situações de preocupante comprometimento nas bacias do rio Guandu e da Baía de Guanabara.

Logo, as reservas de água subterrâneas emergem como potenciais alternativas ao atendimento das demandas hídricas desta região, reconhecidas assim pelo aludido Relatório. O documento aponta que, com base na atual disponibilidade das reservas subterrâneas do estado, pode-se concluir que há condições para a ampliação da explotação das águas subterrâneas na maioria das Regiões Hidrográficas do estado, com exceção de algumas áreas da Região Hidrográfica V e na parte litorânea Região Hidrográfica VI. Esta última, devido ao baixo potencial e o risco de salinização dos aquíferos. Por outro lado, conforme já mencionado, a gestão das reservas hídricas ainda encontra lacunas importantes na agenda hídrica brasileira. O mapa a seguir ilustra a divisão do estado do Rio de Janeiro a partir de Regiões Hidrográficas.


A análise sobre a situação de disponibilidade hídrica do estado, especialmente da RMRJ, permite destaque para a necessidade de reflexão acerca do funcionamento do Sistema Hídrico do estado, de forma a se refletir sobre os caminhos possíveis para a superação de um quadro de insegurança. Cumpre, portanto, promover uma análise sobre os instrumentos da política estadual hídrica do Rio de Janeiro e de seus mecanismos.

Agentes, instituições e instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro

A gestão das águas no estado do Rio de Janeiro é regulamentada pela Lei estadual 3.239/1999, que consagrou a Política Estadual de Recursos Hídricos (PERHI-RJ) e criou o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SGRH-RJ).

De forma similar ao estabelecido pela Lei Federal e aos modelos adotados em outros estados, integram o SGRH-RJ: a) Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI-RJ); b) Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI-RJ); c) Comitês de Bacia Hidrográfica; d) Agências de Águas; e) organismos dos poderes públicos federal, estadual e municipais cujas competências se relacionem com a gestão dos recursos hídricos.

A tabela 1 a seguir ilustra os organismos associados ao SGRH-RJ e ao Comitê Guandu, principal organismo de gestão da bacia hidrográfica do rio Guandu.

Tabela 1
Sistema de gerenciamento de recursos hídricos do estado do Rio de Janeiro e

Além dos organismos apresentados na tabela 1, importa destacar também o FUNDRHI-RJiv iv Instituído através do Decreto estadual 30.203/2001, que mais tarde foi modificado pelo Decreto estadual 32.767/2003. , responsável pelo financiamento dos instrumentos de gestão de recursos hídricos de domínio do estado. Dentre os recursos do fundo, os principais são as receitas originárias da cobrança pela outorga sobre o direito de uso de recursos hídricos, as multas arrecadadas decorrentes de ações sobre uso dos recursos hídricos, bem como de seu entorno e a compensação financeira que o estado venha a receber em decorrência dos aproveitamentos hidrelétricos em seu território.

Igualmente inspirada no modelo estabelecido pela Lei Federal, a Lei de Águas do Rio de Janeiro contempla seis instrumentos, sendo eles: a) Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH); b) Programa Estadual de Conservação e Revitalização de Recursos Hídricos (PROHIDRO); c) Planos de Bacia Hidrográfica (PBHs); d) enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes dos mesmos; e) outorga do direito de uso dos recursos hídricos; f) cobrança aos usuários pelo uso dos recursos hídricos; g) Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos (SEIRHI-RJ).

É imperioso destacar que ao tratar dos instrumentos e diretrizes da gestão das águas do Rio de Janeiro, esta legislação introduz quatro elementos não contemplados pela Lei Federal os quais merecem destaque. O primeiro elemento refere-se à regulamentação do conteúdo mínimo que deverá constar no Plano Estadual de Recursos Hídricos e a divisão do estado em nove Regiões Hidrográficas, cujas administrações são submetidas aos respectivos comitês de bacia hidrográfica do estado.

O segundo concerne à possibilidade de agências delegatárias desempenharem as funções delegadas às Agências de bacias. Neste caso, cabe ao CERHI-RJ delegar às entidades delegatárias, por prazo determinado, o exercício de funções de competência das Agências - enquanto estas últimas não estiverem constituídas.

Outro ponto que merece destaque é a preocupação com a proteção e regulamentação da gestão das águas subterrâneas, expressa através dos arts. 36, 37, 38, 39 da aludida lei, este último versando especificamente sobre a classificação das áreas de proteção dos aquíferos.

Por fim, também deve ser mencionada a criação do Programa Estadual de Conservação e Revitalização de Recursos Hídricos (PROHIDRO), o qual consiste em um instrumento visando a proporcionar a conservação e a revitalização dos recursos hídricos tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento.

Centrando-se nas discussões sobre a segurança hídrica do estado, importa apresentar alguns aspectos sobre os instrumentos de outorga e cobrança pelo uso das águas neste território - pois tais instrumentos constituem importantes mecanismos no processo de promoção da segurança hídrica do estado.

Segundo o art. 22 da Lei estadual 3.239/1999, são usos da água que estão sujeitos à outorga: a) derivação ou captação de parcela de água existente em um corpo de água, para consumo; b) extração de água de aquíferos; c) lançamento em corpo d'água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; d) aproveitamento de potenciais hidrelétricos; e) outros usos que alterem o regime, quantidade ou qualidade da água existente em um corpo hídrico. Compete ao INEA os atos de autorização de usos dos recursos hídricos no estado.

A cobrança pelo uso da água é regulamentada pela Lei estadual 4.247/2003. No tocante às competências para a execução deste instrumento, é de competência do INEA arrecadar, distribuir e aplicar as receitas oriundas da cobrança segundo o plano de incentivos e aplicação de receitas definidos pelos comitês das respectivas bacias hidrográficas em articulação com as prioridades apontadas pelo Plano de Bacia Hidrográfica.

Estão sujeitos à cobrança os usos sujeitos à outorga, os quais foram supramencionados. As receitas fruto da cobrança serão vinculadas ao FUNDRHI-RJ.

Tais instrumentos implicam a mobilização de, pelo menos, três agentes responsáveis pela competência da gestão hídrica do estado para sua efetiva implementação, o órgão ambiental estadual (INEA), ao qual compete a autorização e gestão dos recursos, e, os organismos das bacias hidrográficas, os comitês de bacia hidrográfica - responsáveis pela implantação da cobrança e pelas informações disponibilizadas nos planos de bacia, e as agências de bacias, as quais prestam apoio técnico aos comitês, seja na elaboração dos planos, na realização de estudos técnicos, além de outros.

Elementos constituintes do contexto de (in)segurança hídrica na RMRJ e desafios imputados ao Comitê Guandu (RJ)

A elevada dependência de um sistema já amplamente impactado para a viabilização do abastecimento público de relevante parte da RMRJ, e, atual objeto de disputa por outros sistemas, é o principal elemento que caracteriza um cenário que se pode apontar como de insegurança hídrica na RMRJ.

Por outro lado, as alternativas a este cenário, no qual a RMRJ passa a sofrer impactos na promoção do seu abastecimento público em razão da retirada de novas vazões da bacia do rio Paraíba do Sul, são escassas - conforme já mencionado.

Importante desafio é imputado ao Comitê Guandu (RJ), organismo de bacia responsável pela gestão das águas da bacia hidrográfica do rio Guandu - Região Hidrográfica II do estado.

O Comitê Guandu foi criado em 2002, através do Decreto estadual 31.178/2002, sendo o primeiro comitê de bacia hidrográfica do estado do Rio de janeiro. Segundo o seu regimento interno, elaborado no ano de 2004, o Comitê é formado pelas seguintes instâncias: (i) Plenário, (ii) Diretoria Colegiada, (iii) Secretaria Executiva e (iv) Câmaras Técnicas.

O Plenário do Comitê Guandu - órgão máximo de deliberação do Comitê - é composto por trinta representantes titulares, cada um deles também representado por seus suplentes. Os seus representantes são divididos em três segmentos: nove representantes dos órgãos/entes públicos, doze representantes dos usuários da água e nove representantes da sociedade civil (COMITE GUANDU, 2004).

Os representantes do Plenário se reúnem pelo menos quatro vezes ao ano para a realização de reuniões ordinárias na sua sedev v A sede do Comitê Guandu (RJ) está localizada no município de Seropédica (RJ) no interior do campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. , podendo ser convocadas reuniões extraordinárias em virtude da urgência dos assuntos a serem tratados. As Câmaras Técnicas se reúnem pelo menos a cada dois meses na sede do Comitê. A alta frequência das reuniões deste colegiado representa um potencial elemento na promoção da gestão participativa das águas desta bacia.

Santos (2014SANTOS, B. B. M. Governança das águas e negociação de conflitos socioambientais: o caso do comitê de bacia hidrográfica do Guandu face à Central de Tratamento de Resíduos Santa Rosa (RJ). Dissertação. Rio de Janeiro: PPGG/UFRJ, 2014.) ao embasar-se na leitura das atas referentes às reuniões realizadas pelo Plenário deste fórum entre os anos de 2004-2013 constatou que no Plenário são tratados assuntos de ampla diversidade, mas aponta que há um destaque para as questões referentes ao direcionamento dos recursos arrecadados com a cobrança das águas, além das discussões sobre viabilidade de implantação de projetos de recuperação ambiental da bacia. Dentre as discussões promovidas identificadas pela autora as quais se alinham com as preocupações com a segurança hídrica da RMRJ, pode-se citar as discussões sobre os mecanismos/instrumentos para diminuir a intensificação do fenômeno da intrusão salina na baciavi vi Fenômeno que acontece naturalmente na foz do rio Guandu quando há a ocorrência das marés de sizígia. Este fenômeno tem sido intensificado em razão das captações próximas a foz do rio. e o fomento a projetos de recuperação da qualidade das águas.

Os principais instrumentos de que dispõe são: a) Plano de Bacia, elaborado em 2005, e, portanto, já desatualizado; b) Cobrança pelo uso da água, c) papel exercido pelas Câmaras Técnicas no assessoramento técnico-científico das discussões deliberadas no fórum.

As ações do Comitê Guandu são viabilizadas, sobretudo, através dos recursos financeiros advindos da cobrança dos usuários pelo uso da água na bacia. Cumpre destacar que este Comitê representa um dos poucos comitês brasileiros em que a cobrança das águas já foi instituída. Por outro lado, o enquadramento das águas segundo classes ainda não foi implementado nesta bacia.

Além dos instrumentos previstos pela Lei das Águas, outro aspecto relevante na gestão hídrica brasileira compete à representatividade daqueles eleitos como representantes nos principais organismos que são responsáveis pela tomada de decisões em relação a este recurso - pois se entende que assegurar a representatividade nestes organismos é um dos mecanismos que compõem a promoção de uma governança efetiva das águas (CAMPOS; FRACALANZA, 2010CAMPOS, V. N. O.; FRACALANZA, A. P. Governança das águas no Brasil: Conflitos pela apropriação da água e a busca da integração como consenso. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. XIII, n. 2, p.365-382, jul./dec. 2010.).

No que compete à representatividade dos participantes que compõem o Plenário do Comitê Guandu, em comparação realizada entre a composição dos representantes titulares do biênio 2013 e dos dois biênios anteriores (biênios 2012-2011 e 2010-2009), foi demonstrado por Santos (op. cit.) uma manutenção de pelo menos oito instituições/organismos representantes do setor usuários nestes últimos três biênios, cumpre reiterar que aos representantes do segmento usuários são reservadas doze vagas no Plenário do fórum.

Esta manutenção coincide com aqueles que exercem forte expressão na gestão da bacia, com destaque para a CEDAE, empresa responsável pelo abastecimento da população localizada em grande parte na RMRJ e a Light, uma das principais empresas responsáveis pela distribuição de energia elétrica no estado. A forte representatividade destes agentes também se associa ao histórico de elaboração do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul (CEIVAP) conforme apontado por Pires do Rio (2006)PIRES DO RIO, G. A. Recursos Hídricos e Território: Tensões e Cooperação. In: III Encontro da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, 2006, Brasília, Anais..., Brasília: ANPPAS, 2016..

A esta bacia compete às atribuições associadas à gestão das águas que são tratadas pela Estação de Tratamento Guandu (ETA Guandu) e disponibilizadas para abastecimento público de 85% da RMRJ, conforme já mencionado, contudo, importa destacar que na bacia também se localiza importante ativo na gestão hídrica do estado, especialmente da RMRJ - o Aquífero Piranemavii vii O Aquífero Piranema apresenta cerca de 200 quilômetros quadrados e estima-se que suas reservas poderiam abastecer entre 250 mil a 300 mil pessoas durante o período de escassez de águas atmosféricas. Em termos gerais suas águas apresentam boa qualidade. Fonte: GÓES, et al., 2010. .

No entanto, pressões já são adicionadas na gestão desta reserva, em decorrência da instalação e operação de um aterro sanitário sobre o seu perímetro, a Central de Tratamento de Resíduos Sólidos Santa Rosa (CTR Santa Rosa), para o qual se destina 85% dos resíduos sólidos gerados pelo município do Rio de Janeiro (SANTOS, op. cit.).

Em razão de o aterro ser localizado na área da bacia hidrográfica do rio Guandu, o Comitê Guandu posicionou-se sobre sua implementação. Contudo, embora o Comitê tenha elaborado uma Recomendação, a qual foi enviada ao órgão ambiental estadual - o INEA - apontando a necessidade de realização de maior fiscalização sobre a instalação e operação do aterro, além de apontar a insuficiência de informações sobre o monitoramento do tratamento do chorume gerado pelo aterro e da ausência de estudos de natureza hidrogeológica, o mesmo vem sendo operado desde o ano de 2011, conforme investigado por Santos (op. cit.). Cumpre ainda mencionar, que após dois anos do início da operação do aterro, o mesmo operava sem a destinação correta do chorume gerado no mesmoviii viii Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/02/aterro-de-seropedica-no-rj-leva-multas-por-nao-tratar-o-chorume.html>. Ace .

As pressões sobre o Aquífero Piranema, e, o "fracasso" das negociações promovidas neste tocante pelo fórum de deliberações da bacia que abastece a região metropolitana do estado, contribuem para evidenciar uma ausência de articulação entre os agentes constituintes do sistema de gerenciamento de recursos hídricos do estado, especialmente, no tocante à discussão de questões de relevo para a agenda hídrica do estado.

Considerações finais

A crise hídrica enfrentada pelo estado de São Paulo e sua forte veiculação na mídia fomentou o aumento do debate sobre a gestão das águas no Brasil. Por outro lado, a sua ampla expressão não foi suficiente para mobilizar efetivamente os agentes envolvidos na gestão deste recurso em prol de medidas capazes de elevar a segurança hídrica - evidenciado pelas insuficiências identificadas no Plano Nacional de Segurança Hídrica em recente elaboração.

A respeito do cenário hídrico da RMRJ, o mesmo se encontra já altamente impactado quantitativamente e qualitativamente, conforme ilustrado pelo Plano Estadual de Recursos Hídricos. Por outro lado, a partir da análise da bacia hidrográfica do rio Guandu e os organismos associados à gestão deste território, já que a este é imputado o desafio de gerir as águas transpostas do rio Paraíba do Sul, as quais viabilizam o abastecimento público metropolitano, é possível constatar que os mesmos não têm conseguido responder as demandas presentes neste território. Para tal constatação podem ser levantadas duas hipóteses, uma primeira apontando esta situação como resultado de um baixo grau de entrelaçamento entre os agentes responsáveis pela gestão hídrica no estado. Uma segunda hipótese, centra-se em um desequilíbrio na expressão dos interesses representados pelos agentes/organismos/instituições presentes nesta bacia, os quais não teriam correspondência com as demandas hídricas instaladas.

A existência de um fórum de deliberações ativo não pareceu condição suficiente para assegurar a segurança hídrica da RMRJ, o que poderia denotar que o conceito de segurança hídrica também estaria associado à capacidade de entrelaçamento institucional.

Por fim, cumpre realizar um apontamento sobre a gestão das reservas subterrâneas no estado, já que o Plano Estadual de Recursos Hídricos as aponta como relevante alternativa ao cenário hídrico já amplamente impactado da RMRJ. Foi constatada uma ausência de articulação efetiva entre a gestão das reservas superficiais e subterrâneas neste território, pois conforme observado no caso da CTR Santa Rosa, no que se referiu à gestão do Aquífero Piranema, não houve articulação entre: de um lado, os interesses dos agentes presentes no território, por outro, a situação da bacia, apresentada pelo Plano de Bacia Hidrográfica e as recomendações emitidas pelo Comitê Guandu e, pelos atos do órgão ambiental em relação ao empreendimento - especialmente no que compete à autorização e fiscalização deste.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
  • Aceito
    19 Dez 2015
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