Acessibilidade / Reportar erro

OS SENTIDOS E A RELEVÂNCIA DAS ECOVILAS NA CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS SOCIETÁRIAS SUSTENTÁVEIS

Resumo

Apesar do amplo discurso atual sobre sustentabilidade, as ações existentes são ainda bastante incipientes. As ecovilas são comunidades que realizam diversas práticas sustentáveis e procuram influenciar a sociedade por meio da demonstração de estilos de vida alternativos. O objetivo deste ensaio é analisar, a partir da literatura, os sentidos associados a essas comunidades e sua relevância para os debates sobre sustentabilidade. A despeito de haver certa imprecisão conceitual acerca das ecovilas e também importantes desafios e limitações relativos ao seu papel social, as ações dessas comunidades vêm gerando certa propagação na sociedade por meio da difusão de ideias e práticas alternativas, muitas de caráter educativo. Elas estão cada vez mais se articulando com outros movimentos e instituições sociais, funcionando como “nós” das redes de engajamento pela sustentabilidade. Na medida em que promovem ações concretas de construção de alternativas societárias, as ecovilas vêm contribuindo significativamente para os esforços de repensar a sustentabilidade.

Palavras-chave :
Ecovila; Sustentabilidade; Práticas sustentáveis; Alternativas societárias.

Abstract

Despite today’s widespread reference to sustainability, initiatives are still quite incipient. Ecovillages are communities that carry out an array of sustainable practices and aim to influence society as models for alternative lifestyles. The goal of this paper is to analyze the meanings associated with these communities in the academic literature and their relevance to sustainability debates. Regardless of the conceptual imprecision of the term ‘ecovillage’ and important challenges and limitations regarding their social role in society, ecovillage initiatives (many that are educational) have propagated by diffusing alternative ideas and practices throughout society. They are increasingly linked with other movements and social institutions, functioning as key nodes in sustainability-oriented networks. As they promote concrete actions in the construction of societal alternatives, ecovillages significantly contribute to efforts of rethinking sustainability.

Keywords :
Ecovillage; Sustainability; Sustainable practices; Societal alternatives.

Resumen

A pesar del amplio discurso actual sobre sostenibilidad, las acciones existentes son todavía bastante incipientes. Las ecoaldeas son comunidades que realizan diversas prácticas sostenibles y buscan influir a la sociedad a través de la demostración de estilos de vida alternativos. El objetivo de este ensayo es analizar, a partir de la literatura existente, los significados asociados a esas comunidades y su relevancia en los debates sobre sostenibilidad. Pese haber cierta imprecisión conceptual sobre las ecoaldeas y también importantes desafíos y limitaciones relativos a su papel social, las acciones de esas comunidades vienen generando una propagación en la sociedad a través de la difusión de ideas y prácticas alternativas, muchas de carácter educativo. Cada vez más, ellas se articulan con otros movimientos e instituciones sociales, funcionando como “nudos” de las redes dedicadas a la sostenibilidad. Dado que promueven acciones concretas de construcción de alternativas societarias, las ecoaldeas contribuyen significativamente a los esfuerzos de repensar la sostenibilidad.

Palabras clave :
Ecoaldea; Sostenibilidad; Prácticas sostenibles; Alternativas societarias.

Introdução

Diante da severa crise ecológica e social associada ao modelo capitalista, questões relativas à sustentabilidade tornaram-se ubíquas nos discursos públicos e pessoais. No entanto, as ações existentes são ainda bastante incipientes. Levar de fato um estilo de vida sustentável está longe de ser algo comum ou consensual, podendo ser pensado sob diferentes perspectivas ou mesmo ser visto como algo inviável. Um problema-chave nesse contexto é que a própria noção de “sustentabilidade” encontra-se largamente apropriada pelo capitalismo - por exemplo, o termo é com frequência utilizado como sinônimo de “desenvolvimento sustentável” (SARTORI; LATRÔNICO; CAMPOS, 2014SARTORI, S.; LATRÔNICO, F.; CAMPOS, L. M. S. Sustentabilidade e desenvolvimento sustentável: uma taxonomia no campo da literatura. Ambiente & Sociedade, v. XVII, n. 1, p. 1-19, 2014.), uma doxa (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, E. J. Política Ambiental e a Ideologia do Desenvolvimento Sustentável. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. et al (Ed.). A insustentável leveza da Política Ambiental: Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.) que, na prática, acaba favorecendo um inquestionado crescimento econômico em detrimento da sustentabilidade ecológica e social.

Fundamentalmente, sustentabilidade tem a ver com continuidade temporal e, consequentemente, com responsabilidade nas ações, não só para com as gerações futuras, mas também com as atuais, e não só para com a humanidade como espécie isolada, mas como parte de um complexo sistema geobiofísico. Mas falar apenas em continuidade é ainda limitado; os ideais de sustentabilidade claramente incorporam também a qualidade dessa permanência - o que fica evidenciado, por exemplo, nas preocupações relativas à justiça social. Ocorre, porém, que as implicações práticas da busca pela sustentabilidade ainda são insuficientemente assumidas. São necessários então outros caminhos para se pensar - e praticar - a sustentabilidade de forma mais integrada, abrindo-se espaço para questionar inclusive as próprias bases de funcionamento da sociedade capitalista. Nesse contexto, ações concretas de construção de alternativas societárias sustentáveis, que articulem experiências efetivas a determinadas formulações teóricas e visões de mundo, vêm se mostrando cada vez mais relevantes.

As ecovilas são comunidades que vêm realizando diversas práticas voltadas à sustentabilidade, tendo se tornado especialmente visíveis ao se articular como movimento social, em 1995, com a criação da GEN (Global Ecovillage Network). Apesar de haver ainda poucos estudos, especialmente no Brasil, o interesse acadêmico sobre elas vem crescendo nos últimos anos (WAGNER, 2012WAGNER, F. Ecovillage Research Review. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 81-94. ). O objetivo deste ensaio é analisar os sentidos associados às ecovilas e sua relevância para os debates sobre sustentabilidade. Para tal, foram levantados, no portal de periódicos da CAPES, os artigos científicos que utilizavam o termo “ecovila” no título ou no resumo (busca em português, inglês e espanhol), e, dentre eles, selecionaram-se aqueles com enfoque mais social (não tecnológico), dando especial ênfase aos que continham dados empíricos. Utilizamos também alguns livros (inclusive de insiders ao movimento) como apoio. É importante ressaltar que a maior parte dos estudos disponíveis refere-se a ecovilas do chamado “norte global”.

O que são as ecovilas?

Segundo Dawson (2015DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.), as ecovilas são tão heterogêneas que não se pode descrever nenhum modelo que cubra todos os casos. Isso tem relação com seu histórico, que inclui origens muito diversas: os ideais de autossuficiência e investigação espiritual dos monastérios, ashrams e movimentos gandhianos; os movimentos ambiental, pacifista, feminista e os de educação alternativa dos anos 1960 e 1970; nos países afluentes, o movimento back-to-the-land e o de cohousing; e, nos países “em desenvolvimento”, os movimentos pelo desenvolvimento participativo e a apropriação de tecnologia (DAWSON, 2006, apud LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Na verdade, as ecovilas não surgiram como tal. O termo começou a ser utilizado amplamente a partir de um relatório que os ativistas Robert e Diane Gilman realizaram em 1991: eles descreveram assentamentos ao redor do mundo que poderiam servir como base de inspiração para o que seriam comunidades de transição para uma sociedade sustentável, as quais passaram a denominar “ecovilas” (DAWSON, 2015). Daí em diante, algumas novas comunidades surgiram já alinhadas com esse perfil - especialmente no norte global, ou no sul global com populações expatriadas do norte (DAWSON, 2015) -, e, paralelamente, outras comunidades previamente existentes foram se identificando e passando também a se autointitular ecovilas (WAGNER, 2012WAGNER, F. Ecovillage Research Review. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 81-94. ) - é o caso, por exemplo, de Findhorn, na Escócia, comumente chamada “a mãe de todas as ecovilas” (LITFIN, 2014), que a princípio era uma comunidade intencional com identidade focada em desenvolvimento espiritual (FORSTER; WILHELMUS, 2005FORSTER, P. M.; WILHELMUS, M. The Role of Individuals in Community Change Within the Findhorn Intentional Community. Contemporary Justice Review, v. 8, n. 4, p. 367-379, 2005.).

Desde a década de 1990, o conceito de ecovila já se modificou consideravelmente. A definição que figura hoje (junho de 2017) no site da GEN é a seguinte: “uma comunidade intencional, tradicional ou urbana que utiliza processos participativos para integrar holisticamente as dimensões ecológica, econômica, social e cultural da sustentabilidade, buscando regenerar os ambientes social e natural” (GEN, 2017). É importante notar que tal formulação, sendo bastante ampla, permite a descrição de fenômenos bem diversos, refletindo a heterogeneidade do movimento.

Um aspecto dessa definição que é especialmente relevante para a presente discussão é a inclusão explícita - e recente - das comunidades tradicionais. Isso porque, como as comunidades intencionais do norte global foram a principal fonte de inspiração para os Gilman à época de sua pesquisa (embora não tenham sido a única) (DAWSON, 2015DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.), as ecovilas passaram a ser entendidas por muitos, implicitamente ou não, exclusivamente como comunidades intencionais - ver, por exemplo, as definições de Metcalf (2012METCALF, B. Utopian Struggle: Preconceptions and Realities of Intentional Communities. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 21-29.) e Dawson (2015DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.). Isso, no entanto, gera certa contradição interna ao movimento, uma vez que algumas comunidades tradicionais fazem parte dele desde sua origem. Ocorre que, considerando as comunidades tradicionais explicitamente, o movimento de ecovilas se apresenta ainda mais heterogêneo e difícil de delimitar. Segundo Dawson (2013), essas duas formas de comunidade representam na verdade uma distinção entre dois grandes “tipos” de ecovilas (correspondentes à principal divisão socioeconômica e política mundial): ecovilas no norte global são tipicamente pequenas comunidades intencionais experimentais, e no sul global são tipicamente comunidades ou redes de comunidades tradicionais (vilas e vilarejos) cujos líderes locais buscam retomar o controle sobre seus recursos culturais, ecológicos e econômicos. Exemplos dessas redes incluem Sarvodaya, no Sri Lanka, com 15 mil comunidades rurais, e Colufifa, no oeste africano, com 350 comunidades (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). É importante ressaltar, no entanto, que tal divisão não reflete necessariamente a localização geográfica (especialmente para ecovilas que são comunidades intencionais experimentais). No Brasil, por exemplo, a maioria das ecovilas (que se reconhecem como tal) é, na verdade, semelhante às do norte global. Aparentemente, não há uma ligação significativa das comunidades tradicionais brasileiras com o movimento de ecovilas - embora estas possam ser consideradas “entidades” afins em muitos sentidos. Para simplificar, nos referiremos eventualmente a “ecovilas do norte global” e “ecovilas do sul global” como correspondentes, respectivamente, a “ecovilas que são comunidades intencionais experimentais” e “ecovilas que são comunidades tradicionais”.

Apesar das grandes diferenças entre ecovilas do norte e do sul global, Dawson (2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).) enfatiza que elas têm algumas importantes causas comuns, como “relocalização econômica”, alívio da pobreza, justiça global, respeito pela diversidade cultural e espiritual e evolução de uma cultura pós-consumista. Em um mundo marcado pela desigualdade, a inclusão das comunidades tradicionais do sul global na definição oficial da GEN carrega importante significado sociopolítico. Ainda parece existir, no entanto, certa “nebulosidade” sobre o assunto. Por um lado, alguns autores continuam utilizando conceitos mais estritos de ecovila, que se referem exclusivamente a comunidades intencionais. Por outro lado, as redes de comunidades do sul global são muitas vezes “criadas” (enquanto ecovilas) por ONGs estrangeiras (DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).), o que se choca com o fato de as ecovilas serem descritas fundamentalmente como um movimento grassroots (que nasce da base social). Associada a isso existe uma questão de “autorreconhecimento”: Litfin (2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.) esclarece que em Colufifa, por exemplo, o termo “ecovila” não tem significado para a maioria dos membros - os líderes dessa rede de vilarejos se uniram à GEN essencialmente por conta de seu comprometimento comum com a autossuficiência. Em Sarvodaya, por sua vez, apenas uma das 15 mil comunidades foi pensada de fato como uma ecovila (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Tais redes, na verdade, constituem muitas vezes movimentos em si mesmas, podendo, talvez, ser mais acuradamente descritas como estando em articulação com o movimento de ecovilas do que como “redes de ecovilas”.

Observa-se, assim, que não é tarefa fácil compreender “quem” são as ecovilas no mundo atual e como e com que intensidade interferem na dinâmica societária. A própria base de dados da GEN reflete isso: funcionando a partir de um autocadastramento livre, constam ali algumas “ecovilas” que dificilmente seriam reconhecidas como tal (há, por exemplo, algumas que são claramente eco-resorts). Por outro lado, sem dúvida há também muitas ecovilas que não estão conectadas à GEN (LOCKYER, 2010LOCKYER, J. Intentional Community carbon reduction and climate change action: from Ecovillages to Transition Towns. In: PETERS, M.; FUDGE, S.; JACKSON, T. (Eds.). Low Carbon Communities: Imaginative Approaches to Combating Climate Change Locally. Cheltenham, UK; Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. p. 197-215.). Wagner (2012WAGNER, F. Ecovillage Research Review. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 81-94. ) aponta que, como a denominação de “ecovila” é usualmente autoatribuída, gera-se a possibilidade de “falsos positivos” e “falsos negativos”. Por outro lado, cabe notar que o movimento é, desde sua origem, bastante amplo e experimental, podendo ser improdutivo procurar encaixar tais comunidades em modelos estritos. Se já é complexo procurar definir as ecovilas enquanto comunidades intencionais, Dawson (2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).) ressalta que é extremamente difícil oferecer uma definição que compreenda satisfatoriamente os atributos das ecovilas do norte e do sul global. Embora a definição atual da GEN procure dar conta disso até certo ponto, ela ainda é baseada fundamentalmente nas características das ecovilas do norte - pois as do sul não necessariamente utilizam processos participativos e com frequência têm foco em questões imediatas de sobrevivência que as levam a se concentrar em uma ou outra dimensão mais específica da sustentabilidade (geralmente a econômica). Dessa forma, pode-se dizer que o conceito de ecovila permanece em evolução, sendo desejável buscar uma formulação mais dinâmica e menos tipológica, de maior valor heurístico na apreensão da realidade desses grupos.

Ações das ecovilas em sociedade

A despeito das polêmicas conceituais existentes, as ecovilas apresentam identidade relativamente bem marcada em alguns aspectos. Algo que se pode dizer sobre elas e que tem especial relevância para a presente discussão é que, além de procurar criar um estilo de vida sustentável para si, a maioria explicita também um objetivo de “alcance” (outreach), no sentido de trocar experiências com o mundo (KASPER, 2008KASPER, D. V. Redefining community in the ecovillage. Human Ecology Review, v. 15, n. 1, p. 12-24, Sum. 2008.). Na verdade, isso se reflete especialmente em um desejo de influenciar a sociedade por meio da contraposição, ao mainstream, de estilos de vida mais sustentáveis, funcionando como “modelos”, “exemplos”, “laboratórios de sustentabilidade” ou “comunidades de demonstração” (ERGAS, 2010ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010.; MEIJERING, 2012MEIJERING, L. Ideals and Practices of European Ecovillages. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 31-41.; BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.; BOSSY, 2014BOSSY, S. The utopias of political consumerism: The search of alternatives to mass consumption. J. Consum. Cult., v. 14, n. 2, p. 179-198, 2014.; LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.; LOCKYER, 2010LOCKYER, J. Intentional Community carbon reduction and climate change action: from Ecovillages to Transition Towns. In: PETERS, M.; FUDGE, S.; JACKSON, T. (Eds.). Low Carbon Communities: Imaginative Approaches to Combating Climate Change Locally. Cheltenham, UK; Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. p. 197-215.). Pode-se dizer que o movimento de ecovilas carrega, em última instância, um ideal de “transformar o mundo”. Conquanto tal objetivo seja bastante ambicioso, expressa-se por meio de uma série de ações concretas, em escalas diversas, que merecem investigação.

A literatura acadêmica sobre inovações oriundas de projetos grassroots sugere que há três maneiras pelas quais tais projetos podem difundir suas práticas para o mundo: a replicação na própria rede de ativistas (p. ex., recebimento de visitantes, recrutamento de membros e apoiadores, ações educativas como palestras e treinamentos); o escalonamento, que expande ações para outros grupos, mas ainda dentro de nichos específicos (p. ex., ações na vizinhança próxima, parcerias com instituições educacionais e sem fins lucrativos); e a translação do nicho para o regime, que inclui adoção das práticas em níveis institucionais mais altos (p. ex., parcerias com instituições públicas que passam a afetar a sociedade mainstream) (SEYFANG, 2010; SEYFANG; HAXELTINE, 2012 apud BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.). Essas três formas de ação indicam não só diferentes escalas como também, evidentemente, diferentes níveis de dificuldade. Apresentamos a seguir alguns exemplos empíricos.

A ecovila de Findhorn, percebendo certa dificuldade de aproximação com os vizinhos, criou um núcleo de trabalho especialmente destinado a aprofundar tais relações, oferecendo inclusive tarifas menores para que grupos locais pudessem participar de suas atividades (MATTOS, 2015MATTOS, Taísa. Ecovilas: A construção de uma cultura regenerativa a partir da práxis de Findhorn, Escócia. 2015. (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social)-Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Cloughjordan, na Irlanda, antes de se instalar, realizou encontros públicos para informar aos vizinhos sobre seus planos e pedir feedback, e, dessa forma, conseguiu apoio dos residentes locais; envolveu-se, depois, em um projeto governamental de energia sustentável para ambientes rurais que levou à instalação da maior “fazenda solar” da Irlanda e teve também grande importância no mercado de moradias sustentáveis (CUNNINGHAM; WEARING, 2013CUNNINGHAM, P. A.; WEARING, S. L. Does consensus work? A case study of the Cloughjordan ecovillage, Ireland. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal, v. 5, n. 2, p. 1, 2013.). A Ecovila de Los Angeles (LAEV), EUA, se estabeleceu em uma conturbada periferia urbana, procurando ajudar a “recuperá-la” (BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.; LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.); posteriormente, co-fundou um amplo movimento pró-bicicletas na cidade (BOYER, 2015). A Ecovila de Ithaca (EVI), EUA, por meio de parcerias governamentais, envolveu-se em projetos para criação de um centro de treinamento agricultural e de modelos de zoneamento e códigos de construção climate-friendly (LITFIN, 2014). Auroville, na Índia, participa de projetos de conservação e restauração ecológica de âmbito estadual, emprega alguns milhares de pessoas dos vilarejos pobres circundantes em suas “indústrias caseiras” (cottage industries) e sustenta programas culturais, de alfabetização e microcrédito voltados a essas populações (LITFIN, 2014). Diversas ecovilas criam e fomentam também modelos locais e regionais de agricultura sustentada pela comunidade (Community Supported Agriculture - CSA), em que se divide o risco da produção com os agricultores (LITFIN, 2014) e se criam redes de comércio justo - é o caso de EVI (KIRBY, 2003KIRBY, A. Redefining social and environmental relations at the ecovillage at Ithaca: A case study. Journal of Environmental Psychology, v. 23, n. 3, p. 323-332, Sept. 2003.; LITFIN, 2014), Cloughjordan (CUNNINGHAM; WEARING, 2013), Yarrow (Canadá) (NEWMAN; NIXON, 2014NEWMAN, L.; NIXON, D. Farming in an Agriburban Ecovillage Development. SAGE Open, v. 4, n. 4, 2014.), Findhorn e Earthaven (EUA) (LOCKYER, 2010LOCKYER, J. Intentional Community carbon reduction and climate change action: from Ecovillages to Transition Towns. In: PETERS, M.; FUDGE, S.; JACKSON, T. (Eds.). Low Carbon Communities: Imaginative Approaches to Combating Climate Change Locally. Cheltenham, UK; Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. p. 197-215.).

Algumas ecovilas chegam a ter uma atuação em nível nacional ou transnacional, por exemplo, a partir de envolvimento com políticas relacionadas a resolução de conflitos, desenvolvimento sustentável e defesa de direitos humanos (BROMBIN, 2015BROMBIN, A. Faces of sustainability, in Italian Ecovillages. Food as “contact zone”. International Journal of Consumer Studies, 2015.), além de ativismos pela paz e solidariedade internacional. The Farm (EUA), por exemplo, auxiliou as populações atingidas pelo Furacão Katrina em Nova Orleans (DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).), e Sarvodaya e Auroville fizeram o mesmo em relação ao tsunami do sul asiático; Damanhur (Itália) participa de operações humanitárias diversas; e Zegg (Alemanha) tomou parte nos esforços de paz entre israelenses e palestinos (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.); Findhorn, por sua vez, consolidou importantes parcerias com a ONU (FORSTER; WILHELMUS, 2005FORSTER, P. M.; WILHELMUS, M. The Role of Individuals in Community Change Within the Findhorn Intentional Community. Contemporary Justice Review, v. 8, n. 4, p. 367-379, 2005.), por exemplo, sediando um CIFAL (Centro Internacional de Treinamento para Autoridades Locais) (LITFIN, 2014).

Em se tratando de envolvimento em projetos de escala global, o mais importante canal para as ações das ecovilas é, sem dúvida, a GEN. Ela já surgiu em estreita relação com a ONU, tendo sido lançada oficialmente em uma conferência da ONU Habitat em 1996 (DAWSON, 2015DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.). Hoje, a GEN tem status consultivo no Conselho Econômico e Social da ONU e é parceira da UNITAR (Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa) (GEN, 2017) e muitas ecovilas já ganharam o prêmio da ONU Habitat (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Cabe ressaltar que o caminho institucional de parceria com a ONU tem suas limitações, já que essa entidade atua segundo uma lógica que não busca transformações mais estruturais da sociedade (por exemplo, de ordem econômica e político-institucional). Por outro lado, se as ecovilas pretendem influenciar a sociedade, isso dificilmente seria possível sem articulação com algumas instituições internacionais ligadas ao mainstream.

Um dos mais importantes investimentos da GEN tem sido em educação, particularmente por meio da parceria com o Gaia Education, que desenvolveu um currículo que foi endossado pela UNITAR e reconhecido pela UNESCO como contribuição oficial à Década de Educação e Desenvolvimento Sustentável da ONU (2005-2014) (DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).). Tal currículo, envolvendo as quatro dimensões de sustentabilidade contempladas na definição de ecovilas da GEN, vem sendo aplicado por meio dos Programas EDE (Ecovillage Design Education) - sendo que, desde 2006, foram oferecidos mais de 240 programas em 43 países nos seis continentes, alcançando mais de doze mil pessoas (GAIA EDUCATION, 2017). Um importante aspecto social envolvido aí é que tal currículo está disponível gratuitamente e as entidades organizadoras dos cursos com frequência angariam fundos para poder oferecer bolsas a pessoas de baixa renda.

Mesmo independentemente da GEN, as ecovilas individualmente costumam dar forte ênfase a ações educativas (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.): muitas promovem cursos, palestras, workshops, programas de estágio e conferências (KASPER, 2008KASPER, D. V. Redefining community in the ecovillage. Human Ecology Review, v. 15, n. 1, p. 12-24, Sum. 2008.) sobre temas afins a seus ideais, como permacultura, bioconstrução, técnicas de comunicação e resolução de conflitos, educação infantil, crescimento pessoal, entre outros (claro que isso funciona, também, como fonte de renda - o que, no entanto, não deslegitima seu valor educativo). Findhorn, por exemplo, promove uma variedade de conferências e workshops sobre temas ecológicos e espirituais, e seu curso mais popular, a “Experience Week”, já recebeu mais de 30 mil participantes ao longo dos anos; UfaFabrik (Alemanha) tem na educação sua missão central e recebe cerca de 200 mil visitantes a cada ano (LITFIN, 2014). Quase todas as ecovilas incentivam também o turismo (KASPER, 2008), recebendo visitantes regularmente (LITFIN, 2014) - o que está associado a atividades educativas informais, pois as visitas geralmente visam à “demonstração” de um estilo de vida mais sustentável. Há casos, também, em que hóspedes e visitantes participam de atividades internas como voluntários, em troca do aprendizado (BROMBIN, 2015BROMBIN, A. Faces of sustainability, in Italian Ecovillages. Food as “contact zone”. International Journal of Consumer Studies, 2015.). Pode-se dizer, assim, que as ações das ecovilas vêm gerando certa propagação (“ripple effect”) na sociedade (LITFIN, 2014), principalmente em pequena escala, mas em alguns casos também em escalas maiores.

Potencial de alcance social

Uma questão relevante para pensar as possibilidades de alcance social das ações das ecovilas refere-se ao seu grau de isolamento em relação à sociedade como um todo. Notadamente, a localização geográfica rural pode ser vista como algo que tende a gerar isolamento. Boa parte das ecovilas se estabelece em áreas rurais devido a reduzidas barreiras econômicas e legais (KASPER, 2008KASPER, D. V. Redefining community in the ecovillage. Human Ecology Review, v. 15, n. 1, p. 12-24, Sum. 2008.; ERGAS, 2010ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010., LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.) e também à busca por algum grau de autossuficiência (principalmente na produção de alimentos e energia), o que requer maior disponibilidade de espaço físico e recursos naturais. Certo isolamento pode, então, ter uma importante função, ao favorecer mudanças mais radicais de estilo de vida, e, assim, o surgimento de soluções alternativas, inovadoras. É preciso considerar, porém, que comunidades isoladas geograficamente podem ter seu potencial de alcance limitado se não se articularem com a sociedade. Os projetos mais integrados ao mainstream (notadamente os urbanos), por sua vez, podem gerar uma significativa propagação de ideias devido à alta visibilidade junto à sociedade. A ecovila (não identificada) estudada por Ergas (2010ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010.) nos EUA, por exemplo, escolheu se estabelecer em área urbana especificamente para facilitar a difusão de seus ideais de sustentabilidade.

Em áreas urbanas, um “modelo” interessante por vezes adotado por ecovilas é o de retrofit cohousing, que adapta construções preexistentes. Segundo Sanguinetti (2012SANGUINETTI, A. The Design of Intentional Communities: A Recycled Perspective on Sustainable Neighborhoods. Behavior and Social Issues, v. 21, p. 5-25, 2012.), tal modelo seria mais compatível com valores de independência, privacidade e propriedade, tendo mais fácil assimilação pela sociedade mainstream, e, assim, maior potencial de impacto de larga escala; por outro lado, justamente por isso, pode acabar, talvez, mascarando a necessidade de mudanças mais profundas de paradigma. De fato, é preciso considerar que comunidades urbanas tendem a ser mais restringidas estruturalmente (BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.) e comunidades de cohousing são também menos independentes economicamente e menos sustentáveis ecologicamente em comparação com comunidades (incluindo ecovilas) mais afastadas da cultura mainstream (SANGUINETTI, 2012SANGUINETTI, A. The Design of Intentional Communities: A Recycled Perspective on Sustainable Neighborhoods. Behavior and Social Issues, v. 21, p. 5-25, 2012.).

A investigação de Boyer (2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.) em três ecovilas nos EUA traz alguns insights acerca da influência da localização geográfica na qualidade de suas ações externas: Dancing Rabbit, situada em região rural esparsamente povoada (e considerada pelo autor um projeto mais radical), só realizou difusão de suas práticas por replicação; LAEV, estabelecida em um centro urbano (constituindo um projeto mais integrado ao mainstream), difundiu suas práticas também por escalonamento; e EVI, localizada em área periurbana (e considerada então um projeto “intermediário”), foi a única que conseguiu realizar translação (ver explicação sobre tais formas de difusão na seção anterior). De acordo com o autor, áreas periurbanas são, historicamente, um espaço fértil para formas inovadoras de desenvolvimento. Assim, ecovilas e outras comunidades que combinam elementos agrícolas nessas áreas podem funcionar como espaços de experimentação de modelos inovadores de uso da terra, comumente favorecendo a atividade de pequenos agricultores em áreas com custos proibitivos e ajudando a amortecer tensões tradicionais entre urbano e rural (NEWMAN; NIXON, 2014NEWMAN, L.; NIXON, D. Farming in an Agriburban Ecovillage Development. SAGE Open, v. 4, n. 4, 2014.). Mas Boyer ressalta que o status “intermediário” de EVI se relaciona também a atitudes “balanceadas”: esta ecovila desafiou algumas convenções sociais, lutando para modificá-las, sem, no entanto, rejeitá-las categoricamente. Tais projetos de caráter “intermediário” tendem, então, a favorecer a construção de pontes entre o “nicho” e a sociedade mainstream (SMITH, 2007 apud BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.). Porém, como vemos, tal caráter não depende exclusivamente da localização geográfica, envolvendo outras questões mais complexas. É preciso considerar ainda que, em um mundo onde a comunicação é cada vez mais facilitada, a localização rural não necessariamente gera isolamento.

Outro aspecto importante ao se analisar o potencial de alcance social do movimento das ecovilas se refere à própria qualidade do fenômeno: a princípio, ecovilas são largamente entendidas como um fenômeno grassroots, de desenvolvimento bottom-up. De fato, como vimos, o movimento se iniciou baseado em comunidades grassroots, o que tem imenso valor enquanto ações autônomas. No entanto, recentemente algumas iniciativas top-down vêm também utilizando o nome “ecovila” (particularmente no sul global). Trata-se, com frequência, de projetos (governamentais ou não) que visam a transformar vilarejos tradicionais rurais em comunidades sustentáveis - é o caso do programa governamental “Chinese Ecological Agriculture” (SANDERS, 2000SANDERS, R. Political economy of Chinese ecological agriculture: A case study of seven Chinese eco- villages. Journal of Contemporary China, v. 9, n. 25, p. 349-372, 2000.) e do Senegal, que tem até mesmo uma Agência Nacional para Ecovilas (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.; DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).). Há também projetos top-down de ecovilas que podem ser consideradas comunidades intencionais, como Lynedoch, na África do Sul - construída para ser um exemplo de área urbana ecológica e economicamente sustentável (SWILLING; ANNECKE, 2006SWILLING, M.; ANNECKE, E. Building sustainable neighbourhoods in South Africa: learning from the Lynedoch case. Environment and Urbanization, v. 18, n. 2, p. 315-332, 2006.) -, e outros mais semelhantes a projetos de assistência social, como Nashira, na Colômbia - formada para mães solteiras de baixa renda vítimas de violência e deslocamento forçado (BURKE; ARJONA, 2013).

As ecovilas de origem top-down tendem a ser bem diferentes daquelas de origem bottom-up, e a designação de ambas pelo mesmo nome traz, como vimos, algumas complicações conceituais. Por outro lado, se governos e outras entidades vêm começando a fomentar comunidades orientadas para a sustentabilidade e associam-nas ao “modelo” de ecovilas, isso pode representar uma interessante transgressão aos limites do movimento, gerando novas possibilidades em termos de alcance social. Basta lembrar que muitas comunidades tradicionais reconhecidas como ecovilas, embora sejam de base popular, têm também um caráter top-down, uma vez que envolvem a participação de governos ou ONGs (como no caso de Sarvodaya e Colufifa). No sul global, considerando a escassez de recursos prevalente, muitas vezes esta será justamente a forma mais viável de se desenvolver uma ecovila. E, mesmo para o estabelecimento de ecovilas de caráter bottom-up, fatores governamentais poderão ser determinantes. EVI (BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.) e Cloughjordan (CUNNINGHAM; WEARING, 2013CUNNINGHAM, P. A.; WEARING, S. L. Does consensus work? A case study of the Cloughjordan ecovillage, Ireland. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal, v. 5, n. 2, p. 1, 2013.), por exemplo, antes de se instalarem, precisaram passar por extensas negociações com autoridades locais para conciliar seu assentamento com os requerimentos municipais.

Outra questão relevante refere-se ao potencial de “replicabilidade” das ecovilas. Ao contrário do esperado originalmente pelo movimento, não vem ocorrendo tanto um aumento da construção de novas ecovilas - isso, na verdade, está se tornando cada vez mais difícil (no norte global), devido aos altos preços de terras e a regulações estatais relativas a zoneamento e construções (DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).). O estabelecimento de novas ecovilas, quando possível, ocorre em cenários bem específicos e restritivos: como vimos, geralmente é necessário um considerável investimento financeiro; e a maior parte delas se estabelece em áreas rurais - enquanto mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas (com tendência ao crescimento dessa porcentagem). Dessa forma, a ideia de ecovilas como “modelos replicáveis”, que já foi importante no movimento, vem se tornando anacrônica. Sua influência parece vir ocorrendo, principalmente, pela difusão de ideias e práticas alternativas, que podem ser apropriadas de maneiras bem variáveis por diferentes grupos societários.

Litfin (2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.) ressalta que diversos elementos ou princípios das ecovilas têm potencial para ser incorporados à sociedade em geral. Algumas tecnologias ecológicas (e, em menor grau, econômicas e sociopolíticas) vêm, de fato, sendo “transpostas” ou “traduzidas” para outros contextos sociais. O melhor exemplo disso talvez seja o Movimento Cidades em Transição, fundado em 2005, em Totnes, Reino Unido, com inspiração direta no livro The Transition Handbook, de Rob Hopkins, um antigo morador de ecovilas e permacultor (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Tal movimento abrange hoje centenas de cidades que se preparam para as mudanças climáticas e um presumido declínio energético relacionado ao pico do petróleo. É interessante também notar que o movimento de cohousing - uma das inspirações das ecovilas (DAWSON, 2015DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.; CHITEWERE, 2010CHITEWERE, T. Equity in Sustainable Communities: Exploring Tools from Environmental Justice and Political Ecology. Natural Resources Journal, v. 50, n. 2, p. 315-339, Spr. 2010.) -, embora originalmente se baseasse mais em preocupações relacionadas à formação de vínculos comunitários, vem se reorientando mais em direção à responsabilidade ambiental (SANGUINETTI, 2012SANGUINETTI, A. The Design of Intentional Communities: A Recycled Perspective on Sustainable Neighborhoods. Behavior and Social Issues, v. 21, p. 5-25, 2012.). Parece vir ocorrendo, então, uma convergência dos movimentos contemporâneos voltados para a sustentabilidade - tendência evidenciada no fato de os sites da GEN e do FIC (Fellowship for Intentional Communities) incluírem o cadastro de diversos tipos de projetos sustentáveis além das ecovilas. Em um contexto globalizado de sistemas altamente interconectados, a articulação de tais movimentos em redes tende a potencializar bastante o alcance de seu impacto social.

Desafios e limitações do movimento das ecovilas

As ecovilas enfrentam uma série de dificuldades em sua busca por sustentabilidade (tanto internamente quanto na tentativa de influenciar a sociedade). Alguns desses desafios refletem-se na própria legitimação do movimento. A Democracia Inclusiva, por exemplo - uma teoria e projeto político que emergiu a partir do trabalho do filósofo e ativista Takis Fotopoulos -, tece algumas importantes críticas às ecovilas, relacionando-as a formas de utopismo, apoliticismo, escapismo/isolacionismo, elitismo e, até, individualismo (associado ao escapismo), questionando seu status de movimento social e sua validade enquanto formas de transformação da sociedade. Embora possam incorrer em algumas interpretações e generalizações equivocadas, tais críticas carregam também certa dose de verdade e servirão aqui de base para aprofundar um pouco as discussões sobre o papel social das ecovilas.

Em relação ao utopismo, as ecovilas são, de fato, frequentemente entendidas (inclusive por autores simpatizantes ao movimento) como “projetos utópicos”, no sentido de que são fundadas buscando realizar uma visão sobre como as coisas “deveriam ser” (SARGISSON, 2004SARGISSON, L. Justice Inside Utopia? The Case of Intentional Communities in New Zealand. Contemporary Justice Review, v. 7, n. 3, p. 321-333, 2004. ). No entanto, uma vez que elas existem, não faz sentido considerá-las utopias no sentido mais corrente do termo, de algo “irrealizável”. Segundo Bossy (2014BOSSY, S. The utopias of political consumerism: The search of alternatives to mass consumption. J. Consum. Cult., v. 14, n. 2, p. 179-198, 2014.), a utopia pode ser entendida, na verdade, como uma forma de discurso atrelada a um conjunto de práticas, ou seja, além da rejeição à sociedade existente e da ideia de que outra sociedade é possível e desejável, deve incluir práticas voltadas para realizar ao menos uma parte dos elementos de seu discurso utópico. Sob essa perspectiva, o utopismo das ecovilas carrega um sentido até bastante positivo.

No que se refere ao isolacionismo/escapismo, comumente associado também a um apoliticismo, certamente existem ecovilas que apresentam tais tendências, funcionando como enclaves isolados (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Muitas comunidades intencionais voltadas para a sustentabilidade (não necessariamente ecovilas), de fato, “se retiram” para localizações remotas em busca de um “idílio rural”, como uma forma de recusa de participação na sociedade (MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007MEIJERING, L.; HUIGEN, P.; VAN HOVEN, B. Intentional communities in rural spaces. Tijdschr. Econ. Soc. Geogr., v. 98, n. 1, p. 42-52, 2007.). Um posicionamento isolacionista (não confundir com o isolamento geográfico, anteriormente abordado) ou apolítico pode existir também apenas entre parte dos membros: em Cloughjordan, por exemplo, observou-se que, enquanto algumas pessoas queriam que a comunidade fosse um modelo de sustentabilidade, outras queriam apenas “uma casa quieta no campo” (CUNNINGHAM; WEARING, 2013CUNNINGHAM, P. A.; WEARING, S. L. Does consensus work? A case study of the Cloughjordan ecovillage, Ireland. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal, v. 5, n. 2, p. 1, 2013.). Nem todo mundo, evidentemente, têm a mesma disponibilidade para assumir papeis ativos em projetos alternativos. Em Currumbin (Austrália), moradores relataram considerar muito mais fácil viver, de forma sustentável, em uma ecovila, devido a toda a infraestrutura tecnológica, às redes sociais e aos códigos de conduta/funcionamento existentes, pois dessa forma não precisavam encontrar soluções por si sós, bastando se adaptarem (MILLER; BENTLEY, 2012MILLER, E.; BENTLEY, K. Leading a Sustainable Lifestyle in a ‘Non-Sustainable World’: Reflections from Australian Ecovillage and Suburban Residents. Journal of Education for Sustainable Development, v. 6, n. 1, p. 137-147, 2012.).

Em certos casos, pode se desenvolver nas ecovilas certo “isolamento” em relação à sociedade em virtude de uma perda da energia inicial: em Toustrup Mark, na Dinamarca, por exemplo, o envolvimento em política, no movimento ambiental e em atividades culturais se enfraqueceu paulatinamente, junto com a diminuição da intensidade da vida comunitária (MEIJERING, 2012MEIJERING, L. Ideals and Practices of European Ecovillages. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 31-41.); em EVI também foi observado, com o tempo, um declínio de participação social em encontros e processos de decisão (FRANKE, 2012FRANKE, R. W. An Overview of Research on Ecovillage at Ithaca. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 111-124.) - o que provavelmente se refletiu também em suas ações externas. Segundo Franke, existe de fato uma tendência de que o entusiasmo e a energia iniciais dos movimentos percam força com o tempo e com a interação com outras forças sociais, levando a uma mudança de orientação em direção mais à manutenção organizacional (“rotinização”). É importante, então, evitar generalizações e romantizações: nem todo membro de ecovila é altamente idealista ou ativamente engajado. No entanto, ao menos no âmbito do movimento global, as tendências isolacionistas/escapistas e apolíticas parecem ser, atualmente, exceção. Alguns autores vêm reconhecendo nas ecovilas uma forma alternativa e legítima de movimento social que, em vez de focar no protesto contra a ordem existente, é calcada na construção de alternativas (p. ex., LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.; MEIJERING, 2012; ERGAS, 2010ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010.; BROMBIN, 2015BROMBIN, A. Faces of sustainability, in Italian Ecovillages. Food as “contact zone”. International Journal of Consumer Studies, 2015.).

Em relação ao elitismo, a crítica da Democracia Inclusiva parece bastante pertinente no contexto das ecovilas que são comunidades intencionais experimentais. Nas ecovilas que são comunidades tradicionais no sul global, o cenário é bem diferente: estas se concentram essencialmente na luta contra a pobreza (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). O próprio nome de Colufifa, por exemplo, é um acrônimo que se refere à eliminação da fome (Comité de Lutte pour la Fin de la Faim) (LITFIN, 2014). Em Nashira, busca-se essencialmente a reapropriação de meios de produção a partir do trabalho coletivo feminino (BURKE; ARJONA, 2013). Em Lynedoch, embora seja um caso à parte (não se trata de uma situação de pobreza), é interessante notar que há uma promoção consistente da mistura de classes e etnias por meio de subsídios para a compra de casas populares (a preços bem abaixo do mercado). Há também uma mistura espacial, pois os lotes subsidiados são espalhados pela ecovila (SWILLING; ANNECKE, 2006SWILLING, M.; ANNECKE, E. Building sustainable neighbourhoods in South Africa: learning from the Lynedoch case. Environment and Urbanization, v. 18, n. 2, p. 315-332, 2006.).

Já nas ecovilas do norte global (e semelhantes a elas no sul), a despeito de um frequentemente expresso interesse na diversidade, o perfil dos membros é bastante homogêneo: principalmente pessoas de classe média ou média alta (ERGAS, 2010ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010.; CUNNINGHAM; WEARING, 2013CUNNINGHAM, P. A.; WEARING, S. L. Does consensus work? A case study of the Cloughjordan ecovillage, Ireland. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal, v. 5, n. 2, p. 1, 2013.; CHITEWERE, 2010CHITEWERE, T. Equity in Sustainable Communities: Exploring Tools from Environmental Justice and Political Ecology. Natural Resources Journal, v. 50, n. 2, p. 315-339, Spr. 2010.; MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007MEIJERING, L.; HUIGEN, P.; VAN HOVEN, B. Intentional communities in rural spaces. Tijdschr. Econ. Soc. Geogr., v. 98, n. 1, p. 42-52, 2007.; FIRTH, 2012FIRTH, R. Transgressing urban utopanism: autonomy and active desire. Geogr. Ann. Ser. B-Human Geogr., v. 94B, n. 2, p. 89-106, 2012.), etnia “branca” (ERGAS, 2010; CHITEWERE, 2010; FIRTH, 2012) e nível educacional elevado (CHITEWERE, 2010; FIRTH, 2012; MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007). Esse caráter elitista do movimento se reflete na própria distribuição de ecovilas no mundo, que é principalmente em países do norte global. Conquanto esses padrões sejam bastante esperados - até porque o movimento surgiu inspirado especialmente em comunidades intencionais de tais países -, isso não significa que a questão não demande reflexão. Se, por um lado, seria insensato “exigir” das ecovilas um compromisso em acabar com as desigualdades sociais, por outro não se pode deixar de analisar os desdobramentos das intenções de transformação social expressas no movimento. Afinal, mesmo não sendo um objetivo original ou central das ecovilas, justiça e inclusão social vêm sendo reconhecidas como fatores essenciais à sustentabilidade.

Um dos grandes empecilhos para se adquirir diversidade socioeconômica em ecovilas são os custos de moradia. Em EVI, por exemplo, o objetivo de oferecer moradias de baixo custo que existia por parte de alguns membros do grupo original acabou sendo abandonado (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.; BOYER, 2015BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.). A ecovila procurou, posteriormente, criar alguns subsídios, que, no entanto, não funcionaram bem (CHITEWERE, 2010CHITEWERE, T. Equity in Sustainable Communities: Exploring Tools from Environmental Justice and Political Ecology. Natural Resources Journal, v. 50, n. 2, p. 315-339, Spr. 2010.), e acabou se concretizando, então, como uma alternativa classe média aos subúrbios estadunidenses (LITFIN, 2014), sem pretensões de inclusão social. Chitewere ressalta que, restringindo-se a esse padrão, as ecovilas podem estar criando novos espaços de exclusão e injustiça, perpetuando divisões de classe e etnia. Numa perspectiva otimista, o autor sugere que muitas das práticas adotadas por elas (como a redução do consumo de recursos não renováveis e da dependência de transporte privado, a produção de alimentos e o compartilhamento de recursos e instalações) são compatíveis com as necessidades das comunidades de baixa renda. Mas é preciso notar que o gargalo é mais profundo: relaciona-se à desigualdade social decorrente do processo de acumulação capitalista, que inviabiliza que as classes baixas possam arcar com a compra de propriedades. Imersas no capitalismo, as ecovilas naturalmente tendem a reproduzir tais padrões. Muitas delas apresentam, por exemplo, uma estrutura social de donos e inquilinos (LITFIN, 2014). Algumas raras ecovilas desviam disso, sustentando modelos comunais de propriedade e renda (p. ex., uma das oito ecovilas estudadas nos EUA por Kasper, 2008KASPER, D. V. Redefining community in the ecovillage. Human Ecology Review, v. 15, n. 1, p. 12-24, Sum. 2008., e Svanholm, na Dinamarca, estudada por Litfin, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). No entanto, não há, nesses estudos, informações disponíveis sobre se tal comunalismo inclui também pessoas que tivessem originalmente um baixo status socioeconômico.

Assim, a inclusão social concreta ainda constitui um grande desafio para a maioria das ecovilas. No entanto, preocupações com justiça e inclusão social parecem ser cada vez mais frequentes no movimento (FIRTH, 2012FIRTH, R. Transgressing urban utopanism: autonomy and active desire. Geogr. Ann. Ser. B-Human Geogr., v. 94B, n. 2, p. 89-106, 2012.; CHITEWERE, 2010CHITEWERE, T. Equity in Sustainable Communities: Exploring Tools from Environmental Justice and Political Ecology. Natural Resources Journal, v. 50, n. 2, p. 315-339, Spr. 2010.). Muitas ecovilas vêm desenvolvendo práticas socioeconômicas alternativas que subvertem, até certo ponto, alguns aspectos da lógica capitalista, gerando consequências indiretas em termos de justiça social. Um exemplo disso é a criação e o fomento de redes locais de economia solidária, que podem transformar consideravelmente uma região - como vimos em relação às CSAs criadas ou apoiadas por ecovilas e também em relação a ações mais variadas como as de Auroville, que têm grande impacto social nos vilarejos pobres circundantes (LITFIN, 2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.). Litfin ressalta, porém, que persistem, entre Auroville e esses vilarejos, algumas inevitáveis tensões devido à ampla disparidade socioeconômica, o que se reflete em aspectos como políticas de moradia, divisão do trabalho e relações de raça e gênero.

Em uma perspectiva mais ampla, outro aspecto associado à justiça social é que, na medida em que os membros de ecovilas em geral procuram trabalhar com questões alinhadas a seus ideais, muitas vezes diminuindo voluntariamente sua renda, pode-se dizer que eles estão realizando um movimento em direção a um menor acúmulo de capital financeiro. Segundo Litfin (2014LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.), vem ocorrendo, simultaneamente, uma redução do padrão de vida em ecovilas do norte global e um aumento nas do sul global, convergindo em um meio-termo. Para a autora, isso reflete um senso de suficiência enraizado na satisfação das necessidades humanas reais, visando à viabilidade de longo prazo - o que, por sua vez, remete-nos ao próprio cerne da noção de sustentabilidade, podendo representar talvez uma das mais profundas contribuições culturais das ecovilas na busca por construir sociedades mais sustentáveis.

Considerações finais

O alcance concreto e potencial das ações das ecovilas na sociedade é algo difícil de avaliar, mas parece haver certas tendências consistentes. Se inicialmente o movimento tendia a se concentrar nas comunidades intencionais do norte global, hoje as comunidades tradicionais do sul global começam a ser amplamente reconhecidas, o que pode estar indicando uma maior articulação voltada à justiça social. Adicionalmente, se antes as ecovilas posicionavam-se “fora” ou “em oposição” ao mainstream (DAWSON, 2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).), buscando alcançar o maior grau de autossuficiência possível, atualmente elas vêm se envolvendo cada vez mais em alianças com outros movimentos e instituições - o que, para Dawson, se deve muito ao fato de que alguns valores contraculturais típicos das ecovilas, que antes eram relativamente marginais (por exemplo, proteção ambiental, vida comunal e crescimento pessoal), estão sendo crescentemente absorvidos por diversos grupos societários (DAWSON, 2013; MEIJERING, 2012MEIJERING, L. Ideals and Practices of European Ecovillages. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 31-41.). Por outro lado, as ecovilas parecem também vir adotando certo grau de conformidade a alguns ideais mais mainstream (MEIJERING, 2012).

Como vimos, a influência das ecovilas na sociedade parece vir se dando principalmente pela difusão de ideias e práticas alternativas, muitas de caráter educativo. Segundo Dawson (2013DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).), elas vêm funcionando, essencialmente, como “nós” das redes de engajamento pela sustentabilidade, atuando como catalisadores para transformações biorregionais. Especialmente relevante é o fato de que algumas de suas práticas vêm procurando subverter a lógica capitalista de crescimento econômico infinito e de lucro acima de tudo, em associação com uma visão de mundo fundamentada na satisfação das necessidades humanas reais. É inevitável notar a convergência de tal noção com as perspectivas teóricas do “crescimento zero” e do decrescimento, que desafiam as próprias bases do modelo capitalista - tarefa fundamental, se entendemos a crise de insustentabilidade que vivemos como inextrincavelmente ligada a ele. Assim, embora o papel de transformação social das ecovilas seja controverso, até pela natureza do movimento - heterogênea, não confrontadora e, em boa parte, ainda elitizada - e por suas condições de estabelecimento - frequentemente isoladas dos centros urbanos -, sugerimos que, em um contexto global de muito discurso e pouca prática, tais comunidades vêm ganhando considerável relevância científica e social devido a suas experiências concretas na construção de alternativas societárias, contribuindo consideravelmente para um debate mais amplo e profundo sobre sustentabilidade.

References

  • BOSSY, S. The utopias of political consumerism: The search of alternatives to mass consumption. J. Consum. Cult., v. 14, n. 2, p. 179-198, 2014.
  • BOYER, R. W. H. Grassroots innovation for urban sustainability: comparing the diffusion pathways of three ecovillage projects. Environment & Planning A, v. 47, n. 2, p. 320-337, 2015.
  • BROMBIN, A. Faces of sustainability, in Italian Ecovillages. Food as “contact zone”. International Journal of Consumer Studies, 2015.
  • BURKE, B. J.; ARJONA, B. Creating Alternative Political Ecologies through the Construction of Ecovillages and Ecovillagers in Colombia. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. Nova Iorque: Berghahn Books. p. 235-250.
  • CARNEIRO, E. J. Política Ambiental e a Ideologia do Desenvolvimento Sustentável. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. et al (Ed.). A insustentável leveza da Política Ambiental: Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
  • CHITEWERE, T. Equity in Sustainable Communities: Exploring Tools from Environmental Justice and Political Ecology. Natural Resources Journal, v. 50, n. 2, p. 315-339, Spr. 2010.
  • CUNNINGHAM, P. A.; WEARING, S. L. Does consensus work? A case study of the Cloughjordan ecovillage, Ireland. Cosmopolitan Civil Societies: An Interdisciplinary Journal, v. 5, n. 2, p. 1, 2013.
  • DAWSON, J. From Islands to Networks - The History and Future of the Ecovillage Movement. In: LOCKYER, J.; VETETO, J. R. (Ed.). Environmental Anthropology Engaging Ecotopia: Bioregionalism, Permaculture, and Ecovillages. New York / Oxford: Berghahn Books, 2013. p. 217-234. (Studies in environmental anthropology and ethnobiology).
  • DAWSON, J. Ecovillages: New Frontiers for Sustainability. Green Books, 2015. 12. 96 p.
  • ERGAS, C. A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage. Organization & Environment, v. 23, n. 1, p. 32-54, mar. 2010.
  • FIRTH, R. Transgressing urban utopanism: autonomy and active desire. Geogr. Ann. Ser. B-Human Geogr., v. 94B, n. 2, p. 89-106, 2012.
  • FORSTER, P. M.; WILHELMUS, M. The Role of Individuals in Community Change Within the Findhorn Intentional Community. Contemporary Justice Review, v. 8, n. 4, p. 367-379, 2005.
  • FRANKE, R. W. An Overview of Research on Ecovillage at Ithaca. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 111-124.
  • GAIA EDUCATION. Face-to-face EDE Programmes. Disponível em: <http://www.gaiaeducation.org/index.php/en/how/ecovillage-design-education>. Acesso em: 15 abr. 2017.
    » http://www.gaiaeducation.org/index.php/en/how/ecovillage-design-education
  • GEN. Disponível em: < http://gen.ecovillage.org/en/ Acesso em: 15 abr. 2017.
    » http://gen.ecovillage.org/en/
  • KASPER, D. V. Redefining community in the ecovillage. Human Ecology Review, v. 15, n. 1, p. 12-24, Sum. 2008.
  • KIRBY, A. Redefining social and environmental relations at the ecovillage at Ithaca: A case study. Journal of Environmental Psychology, v. 23, n. 3, p. 323-332, Sept. 2003.
  • LITFIN, K. Ecovillages: Lessons for Sustainable Community. Cambridge: Polity Press, 2014. 224 p.
  • LOCKYER, J. Intentional Community carbon reduction and climate change action: from Ecovillages to Transition Towns. In: PETERS, M.; FUDGE, S.; JACKSON, T. (Eds.). Low Carbon Communities: Imaginative Approaches to Combating Climate Change Locally. Cheltenham, UK; Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. p. 197-215.
  • MATTOS, Taísa. Ecovilas: A construção de uma cultura regenerativa a partir da práxis de Findhorn, Escócia. 2015. (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social)-Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  • MEIJERING, L. Ideals and Practices of European Ecovillages. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 31-41.
  • MEIJERING, L.; HUIGEN, P.; VAN HOVEN, B. Intentional communities in rural spaces. Tijdschr. Econ. Soc. Geogr., v. 98, n. 1, p. 42-52, 2007.
  • METCALF, B. Utopian Struggle: Preconceptions and Realities of Intentional Communities. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 21-29.
  • MILLER, E.; BENTLEY, K. Leading a Sustainable Lifestyle in a ‘Non-Sustainable World’: Reflections from Australian Ecovillage and Suburban Residents. Journal of Education for Sustainable Development, v. 6, n. 1, p. 137-147, 2012.
  • NEWMAN, L.; NIXON, D. Farming in an Agriburban Ecovillage Development. SAGE Open, v. 4, n. 4, 2014.
  • SANDERS, R. Political economy of Chinese ecological agriculture: A case study of seven Chinese eco- villages. Journal of Contemporary China, v. 9, n. 25, p. 349-372, 2000.
  • SANGUINETTI, A. The Design of Intentional Communities: A Recycled Perspective on Sustainable Neighborhoods. Behavior and Social Issues, v. 21, p. 5-25, 2012.
  • SARGISSON, L. Justice Inside Utopia? The Case of Intentional Communities in New Zealand. Contemporary Justice Review, v. 7, n. 3, p. 321-333, 2004.
  • SARTORI, S.; LATRÔNICO, F.; CAMPOS, L. M. S. Sustentabilidade e desenvolvimento sustentável: uma taxonomia no campo da literatura. Ambiente & Sociedade, v. XVII, n. 1, p. 1-19, 2014.
  • SWILLING, M.; ANNECKE, E. Building sustainable neighbourhoods in South Africa: learning from the Lynedoch case. Environment and Urbanization, v. 18, n. 2, p. 315-332, 2006.
  • WAGNER, F. Ecovillage Research Review. In: ANDREAS, M.; WAGNER, F. (Ed.). Realizing Utopia - Ecovillage Endeavors and Academic Approaches. Munich: Rachel Carson Center - Perspectives, 2012. p. 81-94.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2016
  • Aceito
    14 Abr 2017
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com