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SOCIEDADE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: O direito dos animais no discurso da sustentabilidade

Resumo

Esta pesquisa tem por objetivo verificar a abordagem dada aos animais nos eventos de repercussão mundial sobre o desenvolvimento sustentável promovidos pela Organização das Nações Unidas, a fim de caracterizar o olhar e a abrangência da conscientização sobre o direito dos animais. Em seu desenvolvimento, disserta-se sobre as linhas filosóficas relacionadas aos animais, seus direitos e sobre como eles se inserem na discussão do desenvolvimento sustentável e da sustentabilidade. Trata-se de uma pesquisa exploratória, de caráter qualitativo, cujo desenvolvimento é definido a partir de levantamento documental, que tem como fonte a Organização das Nações Unidas. Como resultado, é possível observar cronologicamente uma preocupação inicial com o habitat dos animais, acrescida em seguida da preocupação com aqueles em extinção e, mais recentemente, a ampliação do olhar sobre eles em geral e em diferentes contextos, abordando, assim, de forma mais consciente, o direito dos animais.

Palavras-chave:
Direitos dos animais; Desenvolvimento sustentável; Planos e programas socioambientais; Conscientização da sociedade

Abstract

The aim of this research is to verify the approach to the issue of animals and their rights adopted in events on sustainable development with global repercussions promoted by the United Nations Organization, in order to characterize the perspective and comprehensiveness of animal rights awareness. It expounds on lines of philosophical thinking regarding animals and their rights and how they are inserted in the discussion of sustainable development and sustainability. It is a qualitative research of an exploratory nature and its development is defined by a survey of United Nations documents. The results show a chronological sequence of initial concern with animal habitat, subsequently increased by the concern with animals in extinction and, more recently, the broadening of the perspective towards animals in general and in different contexts, ergo a more conscious approach to animal rights.

Keywords:
Animal rights; Sustainable development; Social and environmental plans and programs; Awareness of society

Resumen

Fruto del avance biotecnológico, la biología sintética se ha aplicado desde la mejora de los alimentos hasta la creación de nuevos organismos. Este artículo investiga, desde una perspectiva bioética, acerca de los beneficios, riesgos y amenazas a la vida, derivados de la producción, manipulación y, principalmente, de la creación de ADN sintetizados inexistentes em la naturaleza. Informes de bioética de la Casa Blanca y el Comité de Bioética de España y Portugal contribuyeron a la discusión. El progreso de la tecnociencia, sin la debida capacidad ética de avaluación, puede producir resultados que comprometen el desarrollo social, la dignidad humana y la vida de la biosfera en el futuro. En ese sentido, las conquistas de la biología sintética se han demostrado ambivalentes, porque las esperanzas se mezclan con las amenazas, con resultados imprevisibles a la diversidad de la vida de la biosfera, lo que hace la prudencia la virtud por excelencia.

Palabras-clave:
Derechos de los animales; Desenvolvimiento sustentable; Planes y programas socioambientales; Concientización de la sociedad

1 Introdução

Sustentabilidade é um conceito difundido ao redor do mundo, uma vez que se refere a um tema de interesse de todos: a saúde do planeta. As consequências da capitalização e mercantilização da natureza (incluindo seus animais) fizeram com que os seres humanos refletissem sobre o futuro da Terra e seus habitantes. A busca por um mundo mais ético suscitou, na década de 1980, o questionamento sobre como conciliar a economia com a conservação do meio ambiente (ALMEIDA, 2002ALMEIDA, F. O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.). A insustentabilidade do crescimento, ou seja, a intolerância que o planeta Terra tem em relação à maneira como o ser humano o conduz, faz nascer o conceito de desenvolvimento sustentável (DALY, 2004DALY, H. E. Crescimento sustentável? Não, obrigado. Ambiente & Sociedade, v. 7, n. 2, p. 197-202, 2004.). Observa-se na literatura que sustentabilidade e desenvolvimento sustentável são conceitos distintos, porém complementares:

Em seu sentido lógico sustentabilidade é a capacidade de se sustentar, de se manter. Uma atividade sustentável é aquela que pode ser mantida para sempre. Em outras palavras: uma exploração de um recurso natural exercida de forma sustentável durará para sempre, não se esgotará nunca. Uma sociedade sustentável é aquela que não coloca em risco os elementos do meio ambiente. Desenvolvimento sustentável é aquele que melhora a qualidade da vida do homem na Terra ao mesmo tempo em que respeita a capacidade de produção dos ecossistemas nos quais vivemos (MIKHAILOVA, 2004MIKHAILOVA, I. Sustentabilidade: evolução dos conceitos teóricos e os problemas da mensuração prática. Revista Economia e Desenvolvimento, Santa Maria, RS, n. 16, p. 22-41, 2004., p. 25).

Ao longo de sua existência, o ser humano transformou o ecossistema natural em ecossistema urbano, gerando inúmeras mudanças. Como fator positivo, pode-se citar o fato de que, através da urbanização, o ser humano passou a ter acesso à uma infraestrutura de moradia, educação, saúde, entre outras, e à possibilidade da construção da identidade social (coletiva e individual) de direitos e deveres. Entretanto, observam-se também fatores negativos: se, por um lado, a urbanização beneficiou o ser humano, por outro, fez com que ele se afastasse da natureza (BOFF, 2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.).

Ao se mencionar a natureza, torna-se relevante compreendê-la em um sentido amplo, incluindo a flora e, também, a fauna ou, em uma dimensão ainda maior, a do próprio planeta Terra. É nesse contexto que o conceito de sustentabilidade ganha notoriedade ao trazer a preocupação de proteger e garantir a qualidade de vida a todos os seres vivos, que também têm direito à vida, à liberdade e ao ecossistema, como os animais (BOFF, 2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.).

A exploração animal é um tema muito presente quando se discorre sobre sustentabilidade devido às práticas consideradas abusivas, tais como: caça e pesca ilegais, animais utilizados para entretenimento, tráfico de animais selvagens e silvestres, animais utilizados na indústria e muitas outras (CHUAHY, 2009CHUAHY, R. Manifesto pelos direitos dos animais. Rio de Janeiro: Record, 2009.).

No âmbito dessa discussão, é possível identificar diferentes linhas filosóficas, com conteúdos convergentes e divergentes. Mas, qualquer que seja o sentido, todas trazem como tema central a relação entre os seres humanos e os animais, e os seus direitos (LOURENÇO, 2008LOURENÇO, D. B. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.). Os direitos dos animais têm sido debatidos com muita frequência por diferentes atores sociais. É possível observar questões que abordam diretamente ou tangenciam essa discussão, sendo divulgadas em diversas mídias. No Brasil, por exemplo, há veículos midiáticos como a Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA), especializada em divulgação de informações sobre o tema. Internacionalmente, verifica-se um movimento crescente a respeito, incluindo aqueles que reúnem diversos países para a discussão sobre o desenvolvimento sustentável, promovidos pela Organização das Nações Unidas - responsável pelas iniciativas que repercutem em diferentes países e que tem sido balizadora das ações que promovem tal desenvolvimento.

No entanto, a questão que aqui se levanta é: qual é a abordagem dada aos direitos dos animais nas iniciativas com repercussão internacional sobre o tema sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável promovidas pelas instituições? Assim, a partir desta questão, propõe-se a presente pesquisa, cujo objetivo é verificar a abordagem dada aos animais nos eventos de repercussão mundial sobre desenvolvimento sustentável promovidos pela Organização das Nações Unidas, a fim de caracterizar o olhar e a amplitude da conscientização de seus direitos.

A pesquisa caracteriza-se como exploratória, uma vez que tal método permite que se obtenha um diagnóstico do que está sendo investigado (KERLINGER, 2003KERLINGER, F. N. Metodologia da pesquisa em ciências sociais: um tratamento conceitual. São Paulo: EPU, 2003.). O seu desenvolvimento é orientado por meio de um levantamento documental, de caráter qualitativo, que tem como fonte a Organização das Nações Unidas, instituição que tem sido responsável pela condução de iniciativas sobre o desenvolvimento sustentável, com a adesão de diversos países. O levantamento para a construção dos resultados tem como parâmetro as palavras-chave: fauna; animais; peixes; biodiversidade. A interpretação é orientada por uma Análise de Conteúdo, cuja proposição se apresenta adequada à leitura e tratamento dos dados da pesquisa, pelo fato de ser uma análise de significados (análise temática) e, também, de significantes (análise de procedimentos). Ela trabalha com mensagens (comunicação) e se preocupa com o "tratamento da informação contida nas mensagens" (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2016., p. 41).

2 O relacionamento entre seres humanos e animais

O relacionamento entre seres humanos e animais sofreu muitas mudanças ao longo do tempo. Uma das mais importantes ocorreu na Suíça, em 1991, quando o sistema de produção de ovos em gaiolas foi alterado, e as galinhas passaram a ciscar livremente em chão coberto com material orgânico e a botar os ovos em ninhos cobertos e macios. Esse passo da indústria de criação inspirou os quinze países da União Europeia a seguirem o exemplo (SINGER, 2010SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.). O tratamento dado aos animais caracteriza os sentimentos em relações a eles. Desta maneira, os direitos dos animais são expressos através de duas linhas filosóficas diferentes: a abolicionista e a bem-estarista.

A linha abolicionista endossa o fato de que os animais são seres que sentem dor e prazer, logo, possuem o direito de não querer sofrer e nem morrer. Esta linha aborda que os animais possuem valor moral e, por isto, devem ser considerados seres de direito. Ela defende a abolição da escravidão animal de qualquer natureza, portanto, os animais não podem ser utilizados em nenhuma circunstância, nem mesmo nas práticas mais comuns cometidas pelo ser humano, como as indústrias da carne e a vivisecção:

[…] um movimento verdadeiramente abolicionista não deve jamais pactuar com qualquer tipo de violação dos direitos fundamentais básicos dos animais: a vida, a liberdade corporal e integridade física e psíquica, a menos que isso ocorra em seu próprio benefício ou nos casos em que também seria admitido com a espécie humana (GORDILHO, 2008GORDILHO, H. J. de S. Abolicionismo animal. Salvador: Evolução, 2008., p. 91).

Por sua vez, a linha bem-estarista também endossa o fato de que os animais sentem dor e prazer e que são seres dotados de valor moral. Porém, baseada no utilitarismo, esta linha considera que os animais possuem um valor inferior ao do ser humano saudável (física e cognitivamente), e admite que este utilize os animais a seu serviço quando não há outra opção, contanto que isso seja feito de maneira ética e causando o menor sofrimento possível, visando em primeiro lugar o bem-estar animal (FELIPE, 2007FELIPE, S. T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: UFSC, 2007.).

A construção dessas linhas foi iniciada em 1776, através do livro A dissertation on the duty of mercy and the sin of cruelty to brute animals, do teólogo Humphry Primatt, pelo qual apresentava os primeiros argumentos em relação aos direitos dos animais. Vale observar que, durante o ano em que o autor escreveu a obra, os Estados Unidos proclamavam a igualdade e a liberdade, e manifestavam a ideia segundo a qual os interesses privados nunca deveriam ser colocados acima do direito que cada ser humano tem à vida, à liberdade e à busca da felicidade (FELIPE, 2014______. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 1, n. 1, p. 207-229, 2014.).

Nesse contexto, a fala do livro é incisiva ao afirmar que os seres humanos possuem um preconceito em relação às outras espécies, uma vez que eles limitam a questão da justiça apenas a si mesmos, ao acreditarem que, entre todos os animais, apenas o ser humano merece misericórdia e compaixão, por ser distinto. Este pensamento promoveria um negligenciamento face aos chamados brutos (animais inferiores aos homens), como se eles existissem apenas para serviço e uso do ser humano e pudessem ser tratados com indiferença (PRIMATT, 1776PRIMATT, H. A dissertation on the duty of mercy and sin of cruelty to brute animals. New York: T. Cadell, 1776.).

Contrário a este pensamento preconceituoso, Primatt defende que o amor e a misericórdia de Deus são para todos os seres que Ele criou e não apenas aos seres humanos, com toda sua “[…] classificação, forma e capacidade” (PRIMATT, 1776PRIMATT, H. A dissertation on the duty of mercy and sin of cruelty to brute animals. New York: T. Cadell, 1776., p. iii - tradução nossa). Sob este ponto de vista, deve-se considerar que todos os animais, assim como os seres humanos, são suscetíveis e sensíveis à dor ou ao mal - expressam seus sentimentos através de gritos e gemidos -, e todos os seres vivos têm o mecanismo de autopreservação (PRIMATT, 1776). Nessa linha de pensamento, estabelecem-se os princípios para a discussão sobre os direitos dos animais.

Ainda no século XVIII, o filósofo do direito Jeremy Bentham contribuiu para os direitos animais, apesar de não ser um filósofo do tema. Em seu livro An introduction to the principies of morals and legislation, retomou algumas das ideias de Primatt e trouxe contribuições importantes ao afirmar que os animais estão incluídos como seres sensíveis que têm direito à benevolência e têm direito a não sofrer os prazeres da malevolência, ou seja, a moral está diretamente ligada à capacidade de experimentar dor (ser vulnerável ao sofrimento) e prazer, e por isto os animais devem ser incluídos moralmente. Defendia que, diante de uma situação, o moralmente correto seria tomar uma atitude que maximizasse o maior prazer para o máximo de seres possíveis (LOURENÇO, 2008LOURENÇO, D. B. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.).

No séc. XX, duzentos anos após as ideias de Primatt e de Bentham, Henry Salt (1900SALT, H. S. The animal rights. The International Journal of Ethics, v. 10, n. 2, p. 206-222, 1900.), em seu texto The rights of animals, defende que é cientificamente errado separar os seres humanos dos animais e considerar os primeiros superiores aos segundos, uma vez que o homem, assim como os outros seres vivos, também faz parte do Reino Animal, ou seja, não está separado dos animais. Cada animal é único e possui necessidades distintas. Por mais diferente que o ser humano seja, física e cognitivamente, ele ainda continua fazendo parte de um todo do qual os animais também fazem parte (SALT, 1900SALT, H. S. The animal rights. The International Journal of Ethics, v. 10, n. 2, p. 206-222, 1900.).

No final do século XX, o psicólogo Richard Ryder desenvolveu um trabalho sobre o especismo e a dorência como argumentos a favor do direito dos animais. A sua obra Speciesism, painism and happiness: a morality for the twenty-first century critica o modo como os seres humanos tratam os animais, utilizando-os como objetos para seu próprio serviço. Ele denomina este tratamento como especismo, que é o preconceito gerado da ideia de que os seres humanos, por serem dotados de características (físicas e cognitivas) distintas e se apresentarem superiores a qualquer outra espécie, possuiriam o direito de utilizá-las a seu favor. Este pensamento é ilógico e egoísta - o autor acredita que, assim como o racismo (ideia de uma raça ser subordinada a outra), o especismo também é um preconceito discriminatório por qualificar o valor de um ser vivo baseado nas aparências características de cada espécie (RYDER, 2017RYDER, R. D. Speciesism, painism and happiness: a morality for the twenty-first century. Bedsfordshire: Andrews UK Limited, 2017.).

O termo dorente (painism, em inglês) é utilizado no discurso para contradizer o termo utilitarismo apresentado por Bentham, em 1789. Neste contexto, acredita-se que o utilitarismo sirva apenas como justificativa para os abusos cometidos em nome da felicidade, uma vez que, de acordo com tal princípio, se houver a necessidade de provocar dor em um animal para a felicidade maior de um outro indivíduo, isso seria aceitável (RYDER, 2017RYDER, R. D. Speciesism, painism and happiness: a morality for the twenty-first century. Bedsfordshire: Andrews UK Limited, 2017.). Assim, o termo dorência foi criado para expressar a capacidade que os animais possuem de sentir dor:

Um dos princípios importantes da dorência é que devemos nos concentrar sobre o indivíduo, porque é o indivíduo - não a raça, a nação, nem a espécie - quem faz o sofrimento real. Por esta razão, os benefícios e malefícios de vários indivíduos não podem ser totalizados de forma significativa, como ocorre no Utilitarismo e em algumas outras teorias morais (RYDER, 2017RYDER, R. D. Speciesism, painism and happiness: a morality for the twenty-first century. Bedsfordshire: Andrews UK Limited, 2017., p. 1254 - tradução nossa).

Na mesma década de 1970, agregando maior peso aos direitos dos animais, é apresentado pelo filósofo Peter Singer o conceito de senciência. O termo se sobrepõe ao conceito de dorência - capacidade de sentir dor -, pois senciência é utilizado para caracterizar os animais como seres capazes de sentir sensações (dor, prazer etc.) e sentimentos (tristeza, saudade, felicidade etc.) de forma consciente em relação às experiências que ocorrem ao seu redor (SINGER, 2010SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.). Insere-se, assim, o princípio de igualdade, que não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física ou de qualquer outro fator, mas sim, como uma ideia moral que envolve a todos. O princípio da igualdade deve ser "[...] estendido a todos os seres, negros ou brancos, do sexo masculino ou feminino, humanos ou não humanos" (SINGER, 2010, p. 10), independentemente de suas diferenças.

A afirmação evidencia que o princípio de igualdade deve incluir a todos, não importa seu gênero, sua etnia, nem mesmo sua espécie. Um dos grandes problemas é que a maioria dos seres humanos são especistas (consideram-se acima dos outros animais), o que dificulta a questão do princípio de igualdade para humanos ou não humanos. A partir deste entendimento, o estudioso utiliza o critério de senciência para advogar em favor dos animais:

Os animais são capazes de sentir dor. Como vimos anteriormente, não há justificava moral para considerar que a dor (ou prazer) sentida pelos animais seja menos importante do que a mesma intensidade de dor (ou prazer) experimentada pelos seres humanos (SINGER, 2010SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010., p. 24).

A capacidade que os animais possuem de sofrer, sentir dor, sentir prazer e ter consciência sobre as experiências ao redor é suficiente para assegurar seu interesse mínimo de não sofrer. Por isso, não há justificativa moral para dar continuidade a um sofrimento, independente da espécie do ser vivo. Todo sofrimento tem o mesmo peso e deve ser considerado da mesma maneira, minimizado e evitado (SINGER, 2010SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.).

Singer apoia sua teoria na ideia utilitarista de Bentham apresentada na obra An introduction to the principles of morals and legislation, de 1789, para comparar o neo-utilitarismo. Logo, para Singer é necessária a inclusão dos animais sencientes na consideração moral, já que se deve reduzir a quantidade total de sofrimento e aumentar a quantidade geral de bem-estar do mundo (GORDILHO, 2008GORDILHO, H. J. de S. Abolicionismo animal. Salvador: Evolução, 2008.). Entretanto, por outro lado, Singer aceita o abate indolor de animais, caso estes tenham uma existência saudável e sem sofrimento (LOURENÇO, 2008LOURENÇO, D. B. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.). Também acredita que quaisquer ação e decisão somente podem ser consideradas justas se for obtido um resultado que gere elevado benefício social, mesmo que o benefício em questão ocasione um custo para a minoria.

Paralelamente às ideias neo-utilitaristas de Singer, o filósofo da bioética Tom Regan propõe a abolição do uso dos animais. Para Regan, os animais são “sujeitos-de-uma-vida”, pois possuem consciência do mundo, consciência sobre o que acontece com eles, além de possuírem desejos, necessidades, memórias e frustrações. O autor questiona se, além dos mamíferos, outros animais, como os pássaros, poderiam ser considerados como sujeitos-de-uma-vida (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006.). Ao responder sua própria pergunta, o autor afirma:

Os comportamentos comuns entre nós, assim como as estruturas anatômicas comuns, sustentam essa resposta. Além do mais, estudos recentes do mundo inteiro têm demonstrado, repetidas vezes, ricas e diversificadas habilidades cognitivas aviárias. Os pássaros aprendem com a experiência; eles podem ensinar uns aos outros; podem pensar de forma lógica; podem até ajustar seu comportamento, se acham que outros pássaros os estão observando (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006., p. 73).

Nesse contexto, por serem vertebrados, por sentirem dor e prazer, por possuírem fisiologia, anatomia, cérebro e medula espinhal complexos, além de terminações nervosas altamente desenvolvidas, incluem-se também os peixes (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006.). Esse entendimento pode ser considerado ao se observar seu comportamento: eles vivem em grupos estáveis, reconhecem uns aos outros e reconhecem o ambiente, o que significa que sabem em que lugar estão e para onde estão indo (REGAN, 2006).

Para o autor, ainda que um animal não saiba o que são seus direitos, isso não quer dizer que ele não os possua, do mesmo modo que um bebê humano também não possui consciência de que os tem. Neste caso, assim como para as crianças, cabe aos seres humanos defender tais direitos (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006.):

[…] direitos morais nunca podem ser negados, justificadamente, por razões arbitrárias, preconceituosas ou moralmente irrelevantes. Raça é uma dessas razões. Sexo é outra. Resumindo, diferenças biológicas são razões desse tipo. Como, então, poderemos acreditar que ser membro de uma espécie marque um limite defensável entre os animais que têm e os que não têm direitos? Logicamente, isso não faz sentido. Moralmente, isso indica um preconceito do mesmo tipo que o racismo e o sexismo, o preconceito conhecido como o especismo (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006., p. 78).

O especismo é um argumento falho quando tenta convencer que os animais não são sujeitos-de-uma-vida (REGAN, 2006REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre, RS: Lugano, 2006.). Os interesses que os animais possuem em não sofrer são tão importantes que devem ser protegidos, independentemente das consequências:

[...] não há absolutamente nenhuma dúvida de que os animais que exploramos rotineiramente - vacas, porcos, ovelhas, cabras, galinhas, perus, peixes, lagostas etc. - são sencientes. Todos os seres sencientes têm ao menos dois interesses: o interesse em não sofrer e o interesse em não morrer. Ou seja, embora nem todos os seres sencientes possam pensar sobre suas vidas da mesma maneira, todos desejam ou querem permanecer vivos. E o uso de animais como comida, roupa e outros fins implica em, ao menos, dois interesses relacionados, mas diferentes, que os animais têm. O fato de usá-los da maneira como os usamos envolve fazer coisas que eles não desejam ou preferem que não façamos: causar-lhes sofrimento e os matar (FRANCIONE, 2015FRANCIONE, G. L. Animal rights: the abolitionist approach. Philadelphia: Temple University Press, 2015., p. 17 - tradução nossa).

Por possuírem interesses, os animais deveriam ter seus direitos morais fundamentais reconhecidos, já que eles importam moralmente. Uma vez reconhecidos, já não podem mais ser utilizados como propriedade, pois ser propriedade significa existir exclusivamente como um recurso para outrem. Ou seja, ser assim classificado é possuir status de “coisa”. É um dever moral do ser humano parar de tratar os animas como mercadorias e reconhecer que todos os seres sencientes são qualificados como sujeitos-de-direito, e não como recursos (FRANCIONE, 2015FRANCIONE, G. L. Animal rights: the abolitionist approach. Philadelphia: Temple University Press, 2015.).

A leitura do Quadro 1 permite uma visualização das ideias de alguns autores que defendem os direitos dos animais dentro das linhas teóricas bem-estarista e abolicionista.

Quadro 1
Linhas Teóricas dos Direitos dos Animais

Assim, Primatt, Bentham, Salt, Regan, Singer, Ryder e Francione endossam o fato de que os animais sentem dor e prazer e por isso devem ser considerados moralmente. Além disso, afirmam que os seres humanos possuem a responsabilidade de prezar por esses seres, a fim de evitar sofrimento de qualquer natureza, uma vez que as diferenças físicas e cognitivas não são argumentos suficientes para utilizá-los em benefício humano. Logo, a partir do que defendem esses autores, é possível considerar os animais como sujeitos-de-direito

3 Sustentabilidade para os seres humanos e os animais

Baseado no pensamento segundo o qual a Terra é um baú de recursos para ser explorado, os seres humanos passaram a intervir no planeta visando obter benefícios (BOFF, 2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.). No entanto, as consequências da capitalização e mercantilização da natureza (incluindo seus animais) fizeram com que suas ações refletissem sobre o futuro da Terra e seus habitantes. A busca por um planeta mais ético suscitou o questionamento sobre como conciliar a economia com a conservação do meio ambiente (ALMEIDA, 2002ALMEIDA, F. O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.).

A sustentabilidade é um discurso que surge no contexto em que houve a necessidade de se interferir no relacionamento entre o ser humano e a natureza, já que a maneira como ele utilizava - e, por vezes, ainda utiliza - o ecossistema, apresentava-se insustentável (BOFF, 2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.). A complexidade em formular a significação de sustentabilidade se dá pela amplitude de seu conceito, que aceita variações baseadas em posicionamentos e interesses diferentes.

No entanto, há algo que é invariável em todas as equações a respeito: a sustentabilidade ambiental é inseparável das questões econômicas e sociais (RUSCHEINSKY, 2004RUSCHEINSKY, A. No conflito das interpretações: o enredo da sustentabilidade. In: RUSCHEINSKY, Aloisio (Org.). Sustentabilidade: uma paixão em movimento. Porto Alegre, RS: Sulina, p. 15-33, 2004.). A partir dessa afirmação, pode-se compreender também que as ações sustentáveis devem ter como objetivo manter a capacidade de reposição de uma população de determinada espécie, seja ela animal ou vegetal (RUSCHEINSKY, 2004).

Assim, sob esse ponto de vista, pode-se entender que a sustentabilidade não existe só para os seres humanos, mas também para todos os seres vivos que fazem morada no planeta Terra. Os interesses sobre a proteção do meio ambiente devem ser voltados a todos os seres vivos, incluindo os não humanos, que também possuem valor moral próprio (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2012LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Sustentabilidade, economia verde, direito dos animais e ecologia profunda: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 7, n. 10, 2012.).

No âmbito dessa discussão, observa-se que o relacionamento dos seres humanos com a natureza caracteriza-se por meio de três principais perspectivas teóricas: antropocentrismo, ecocentrismo e personalismo ecológico. Através do antropocentrismo, o ser humano interage com o planeta baseado em seus próprios interesses e atribuindo valor instrumental à natureza, principalmente com os avanços tecnológicos e científicos, pois estes permitem maior manipulação da natureza, inclusive na tentativa de mitigar as consequências das ações humanas. Já o ecocentrismo tem como cerne a natureza. Ele preza por um ambiente equilibrado, onde todos os seres vivos que coabitam no planeta apresentam o mesmo valor intrínseco, ou seja, a natureza não é centrada apenas nos desejos humanos (ROLLA, 2016ROLLA, F. G. Ética ambiental: principais perspectivas teóricas e a relação homem-natureza. 2016. Available at: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/ direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/fagner_rolla.pdf. Retrieved on: September 4, 2018.
http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa...
).

A terceira perspectiva teórica, chamada personalismo ecológico, coloca os seres humanos acima dos outros seres (que, para eles, não possuem capacidade de abstração, de produzir cultura e de exercer liberdade), porém, ao contrário do antropocentrismo, o personalismo afirma que o homem deve ser o guardião da natureza, uma vez que ele é parte dela. Ou seja, o ser humano é diferente da natureza, porém é responsável por ela e deve priorizar o bem comum. A partir destas três vertentes, pode-se deduzir que o relacionamento ser humano-natureza se expõe de duas maneiras: compreendendo que a natureza atribui valor a si mesma, ou acreditando que o homem é quem atribui este valor a ela (ROLLA, 2016ROLLA, F. G. Ética ambiental: principais perspectivas teóricas e a relação homem-natureza. 2016. Available at: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/ direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_1/fagner_rolla.pdf. Retrieved on: September 4, 2018.
http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa...
).

A maneira mais apropriada de lidar com a sustentabilidade é pensando em desenvolvimento, uma vez que este significa expandir, realizar os potenciais, trazer (gradualmente) um estado mais completo, maior ou melhor (DALY, 2004DALY, H. E. Crescimento sustentável? Não, obrigado. Ambiente & Sociedade, v. 7, n. 2, p. 197-202, 2004.). Logo, crescer é aumentar de tamanho, ficar maior, enquanto desenvolver é se tornar diferente (DALY, 2004). A sustentabilidade ganha uma dimensão mais completa em relação ao crescimento e ao desenvolvimento ao incluir, em seu discurso, o tópico social e o protagonismo do ser humano como interlocutor e participante social:

[...] a ideia de sustentabilidade implica a prevalência da premissa de que é preciso definir limites às possibilidades de crescimento e delinear um conjunto de iniciativas que levem em conta a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e ativos por meio de práticas educativas e de um processo de diálogo informado, o que reforça um sentimento de co-responsabilidade e de constituição de valores éticos. Isto também implica que uma política de desenvolvimento para uma sociedade sustentável não pode ignorar nem as dimensões culturais, nem as relações de poder existentes e muito menos o reconhecimento das limitações ecológicas, sob pena de apenas manter um padrão predatório de desenvolvimento (JACOBI, 1999JACOBI, P. Meio ambiente e sustentabilidade. In: FUNDAÇÃO Prefeito Faria Lima - Cepam. O município no século XXI: cenários e perspectivas. Ed. especial. São Paulo: CEPAM/ECT, p. 175-183,1999., p. 179).

Sob esse ponto de vista, o direito dos animais é um tema que necessariamente se faz presente no desenvolvimento sustentável, uma vez que a sustentabilidade deve tratar não apenas dos interesses humanos de cuidar do planeta para a geração futura, mas também a respeito da vida de outros seres vivos e dos direitos que estes possuem a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2012LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Sustentabilidade, economia verde, direito dos animais e ecologia profunda: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 7, n. 10, 2012.).

4 Levantamento e análise dos dados

A discussão sobre a sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável levou a sociedade em geral, como governos, cidadãos, estudiosos do tema, entre outros, a iniciar movimentos em favor da sustentabilidade, inicialmente com questões mais pontuais, mas que ao longo do tempo foram se expandindo em diferentes dimensões, como a econômica, a ambiental e a social, trazendo aspectos realmente preocupantes para a vida do planeta Terra.

A linha do tempo do desenvolvimento sustentável pode ser delineada por diferentes acontecimentos. Um dos primeiros foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo no ano de 1972, a qual incluiu o meio ambiente na agenda internacional (SACHS, 2000SACHS, I. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.).

A questão sobre os animais apresenta-se relevante à medida em que se considera que a natureza deve ser compreendida de maneira holística, contemplando todos os seres que fazem morada no planeta Terra (ALMEIDA, 2002ALMEIDA, F. O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.). Os direitos dos animais estão diretamente ligados ao desenvolvimento e à questão ética que pressupõe a extensão dos valores a outros seres vivos, além do ser humano (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2012LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Sustentabilidade, economia verde, direito dos animais e ecologia profunda: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 7, n. 10, 2012.). Logo, a partir desses entendimentos, pode-se destacar que a busca por um desenvolvimento sustentável deve incluir de maneira ética todos os seres vivos em seu discurso.

Ao longo do tempo, foram acontecendo diversos eventos que traziam como preocupação central o desenvolvimento sustentável. A Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio+10, as COPs, entre outros, são exemplos desses eventos, que geraram documentos como Nosso Futuro Comum, Protocolo de Kyoto, etc. Em seus conteúdos, procura-se contemplar a discussão sobre gestão sustentável nas diferentes dimensões - ambiental, social e econômica -, com ênfases significativas em diferentes momentos no decorrer do tempo. No entanto, no que tange às questões animais, uma leitura detalhada permite identificar que somente alguns deles referem-se efetivamente ao tema.

O levantamento realizado para a presente pesquisa toma como base iniciativas com repercussão mundial na sociedade, mais especificamente promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), sobre o tema sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável e a sua relação com os animais.

Um dado importante a ser destacado nos resultados deste levantamento é a ausência de um documento amplamente citado por diversas instituições acadêmicas, não governamentais, e artigos acadêmicos: a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Embora seja divulgado como um documento assinado e proclamado pela UNESCO em uma sessão em Bruxelas, no ano de 1978, o levantamento realizado na pesquisa demonstrou que a informação não tem procedência e que a referida declaração não está registrada nos acervos da UNESCO.

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, na verdade, foi escrita por George Heuse e publicada em um periódico inglês chamado The Spectator no dia 17 de setembro de 1977 (MARTIN, 1977MARTIN, A. Animal rights. The Spectator, London, 1977. Available at: http://archive.spectator.co.uk/article/17th-september-1977/9/animal-rights. Retrieved on: August 24, 2018.
http://archive.spectator.co.uk/article/1...
). Em setembro de 1978, a declaração foi adotada pela La Fondation Droit Animal, Éthique & Sciences (1977) e, logo depois, foi proclamada por esta instituição em uma reunião realizada em Paris, no dia 15 de outubro de 1978, em um edifício da UNESCO. Assim, apesar de sua importância em relação aos direitos dos animais, ela não está presente nos resultados analisados neste trabalho por não ter sido proclamada oficialmente pela UNESCO.

Os resultados da pesquisa apresentam os eventos e documentos promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), nos quais os direitos dos animais estavam presentes em sua pauta (vide Quadro 2). A sistematização cronológica apresentada no Quadro 2 possibilita observar a frequência e o teor dos debates sobre tais direitos. A saber:

Quadro 2
Eventos e Documentos sobre os Direitos dos Animais no Desenvolvimento Sustentável

Pelo Quadro 2, é possível verificar que, em 1972, durante a Conferência da ONU sobre o Ambiente Humano (e o seu documento Manifesto Ambiental), o debate sobre os direitos dos animais teve ênfase em relação à preservação do habitat e, logo, da fauna silvestre, como uma forma de preservar a vida humana na geração futura. Observa-se que, apesar de se referir aos direitos dos animais, o discurso abordou a preservação da fauna silvestre sob o ponto de vista antropocêntrico, ou seja, orientado por uma filosofia que considera o ser humano o centro de tudo e que a natureza somente tem valor se estiver ordenada a ele (BOFF, 2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.).

Nesse período, o especismo (crença segundo a qual o ser humano é superior às demais espécies) ainda se faz muito presente nos discursos. Dois dos fatos que demonstram isso são: a questão da fauna, inicialmente, apresenta-se atrelada à questão do habitat; além disso, observa-se que, logo depois da realização do evento em Estocolmo, foi criada, em 1983, a chamada Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que gerou o documento Nosso Futuro Comum (Relatório Brundtland), em 1987. Nesse evento e documento, não foi abordada nenhuma questão sobre os direitos dos animais.

O baixo interesse pelo assunto se faz presente em eventos posteriores promovidos pela ONU. Assim, momentos importantes, que geraram documentos como o Relatório Brundtland (Estocolmo, 1987), não abordaram qualquer questão sobre os direitos dos animais. Ou seja, percebe-se que a seleção sobre a abordagem em relação aos animais acontece apenas quando há alguma situação crítica que possa ocasionar, sobretudo, malefícios à espécie humana: ameaça de extinção, perda de habitat, destruição da flora e fauna, ações ilegais como a venda de produtos de origem animal, etc.

A Rio 92 e o documento denominado Agenda 21 discorreram brevemente em relação aos animais, através de um discurso mais genérico sobre a necessidade de preservá-los e de motivar o desenvolvimento de pesquisas no campo científico sobre o relacionamento entre fauna e meio, na preservação de ambos. Conforme indicado no Quadro 2, é possível observar que a abordagem sobre os animais foi novamente atrelada à questão do habitat. Porém, ao contrário do evento de Estocolmo, a argumentação não foi motivada em razão das necessidades que os seres humanos teriam de usufruir dos animais, mas sim do dever que possuem de cuidar da fauna e do meio ambiente.

Assim como a Rio 92, o evento Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica, que ocorreu no mesmo ano no Rio de Janeiro, aborda o dever do ser humano de cuidar da fauna, trabalhar contra a extinção das espécies, ter atitudes de preservação e conservação, e colocar em pauta a necessidade de olhar e cuidar dos outros seres vivos que também habitam o planeta Terra.

Na virada do milênio, há dois acontecimentos muito importantes para a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável: a Cúpula do Milênio, que culminou com a elaboração dos ODM, e a Carta da Terra. O primeiro evento e o documento ODM são sucintos no que diz respeito aos animais. Eles abordam diretamente a questão da proteção da fauna marinha e silvestre, pontuando a necessidade de se reduzir a destruição da biodiversidade, ou seja, mais uma vez os animais encontram-se atrelados à questão do habitat. Porém, ao contrário do teor dos discursos anteriores, nestes, em específico, enfatiza-se a necessidade de conter a destruição iminente que surge da exploração humana.

A Carta da Terra, por sua vez, é um documento que valoriza diretamente o tema animal. Nela, é abordada a questão de se tratar todos os seres vivos com respeito - o que pode subentender seres humanos, plantas, árvores, animais silvestres, marinhos, domésticos etc. No conteúdo do documento, é possível identificar a preocupação em proteger os seres vivos, buscando eliminar a captura e destruição das espécies. Assim, na Carta da Terra, os direitos dos animais são abordados diretamente, sem necessariamente estarem vinculados à questão do habitat, por exemplo. Apesar desse olhar mais abrangente, observa-se que, em 2005, no evento Estratégia de Maurício, cujo objetivo era uma revisão sobre os 10 anos do Programa de Ação de Barbados para o Desenvolvimento Sustentável (Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento), novamente o evento e o documento foram bem pontuais em relação aos animais, associando-os diretamente à questão do habitat.

No Rio de Janeiro, em 2012, aconteceu a Rio + 20, que culminou na elaboração do documento O Futuro que Queremos. Neste evento foi falado da importância do desenvolvimento de uma convenção a respeito do comércio internacional de espécies selvagens de fauna e flora ameaçadas de extinção. Entretanto, nenhum outro ponto foi levantado a respeito dos animais, nem em relação à necessidade de prevenção ou mitigação das ações humanas.

Por fim, em 2015, houve a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável e o seu desdobramento em um documento sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Neste evento e documento, diferentemente dos demais, a questão dos animais foi abordada diretamente e independente de outros tópicos - percebe-se que os animais e o habitat foram tratados separadamente. Nas referências de ambos ¬- evento e documento -, é possível notar que há uma preocupação não só com a questão descritiva do problema em prevenir e conservar, mas também a prescrição para serem tomadas, o mais rápido possível, atitudes para mitigar as consequências das ações humanas, e uma mudança de mentalidade em relação ao trato com os animais. Essa abordagem pode estar relacionada com o que se considera "desenvolver uma visão mais profunda" (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2012LOURENÇO, D. B.; OLIVEIRA, F. C. S. de. Sustentabilidade, economia verde, direito dos animais e ecologia profunda: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 7, n. 10, 2012.) sobre o valor dos animais. Nesse ano, pela primeira vez, foi citada a questão dos animais domésticos e de criação, fato inédito, uma vez que, até então, só se falava a respeito de animais marinhos, silvestres e selvagens.

5 Considerações finais

Sob a leitura histórica é possível observar que os direitos dos animais nascem em uma sociedade antropocêntrica por motivos antropocêntricos: preservar a fauna para que as futuras gerações possam também fazer uso dela. A análise dos resultados nos permite afirmar que essa filosofia está presente na agenda da Organização das Nações Unidas - ONU desde o seu primeiro evento em Estocolmo, no ano de 1972, no qual é possível verificar que a fauna e a flora são vistas como patrimônio dos seres humanos, os quais possuem direitos, mas também deveres em relação a elas (deveres esses baseados em seu próprio benefício).

O baixo interesse pelos direitos dos animais se faz presente em eventos posteriores promovidos pela ONU. Assim, acontecimentos importantes, que geraram documentos como o Relatório Brundtland (Estocolmo, 1987), não abordaram qualquer questão sobre o assunto. Ou seja, percebe-se que a seleção sobre a abordagem em relação aos animais acontece apenas quando há alguma situação crítica que possa ocasionar, sobretudo, malefícios à espécie humana: ameaça de extinção, perda de habitat, destruição da flora e fauna, ações ilegais como a venda de produtos de origem animal, etc.

Outro dado que deve ser considerado é sobre a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Apesar de proclamada pela La Fondation Droit Animal, Éthique & Sciences (1977) e a UNESCO ter conhecimento sobre o documento, uma vez que cedeu seu edifício para o evento em 1978, mesmo assim não demonstrou nenhum interesse a respeito. Vinte anos após os direitos dos animais aparecerem pela primeira vez na agenda das Nações Unidas, voltou-se a abordar o tema, porém ainda de maneira muito superficial.

Foi na virada do milênio que se iniciou uma mudança do olhar para com os animais. Se antes só se falava sobre eles em situações estritamente necessárias e diretamente relacionadas com o futuro dos seres humanos, agora se passa a dialogar sobre o modo como se deve tratar os animais: com respeito e consideração. Logo, percebe-se que os discursos em relação aos direitos dos animais começam a apresentar abordagens baseadas na filosofia bem-estarista. Entretanto, não houve mudanças expressivas durante estes 46 anos desde que foi realizado o primeiro evento/documento das Nações Unidas. Ousa-se dizer que ainda são tímidas as iniciativas para se incluir efetivamente os direitos dos animais na agenda das discussões sobre o desenvolvimento sustentável, tendo-os como seres sencientes, possuidores do direito à vida e ao não sofrimento.

Apesar da existência da linha abolicionista, percebe-se que, ao se referir aos direitos dos animais no discurso da sustentabilidade, tal linha não está presente na agenda das Nações Unidas. Acredita-se que o grande motivo para isso é o paradigma em relação ao ser humano e à natureza ainda estar pautado no antropocentrismo. Portanto, em um contexto antropocêntrico, o abolicionismo animal se configura apenas como uma utopia e, apesar do bem-estarismo soar como medida paliativa em relação aos direitos animais, por enquanto ainda está distante do seu objetivo, mas se constitui como o passo mais promissor no que diz respeito ao relacionamento entre seres humanos e animais.

Há uma necessidade urgente de instituições acadêmicas que incluam os direitos animais em suas pesquisas para gerar uma mudança mais profunda de olhar sobre a cultura antropocêntrica em que estamos inseridos. Para tanto, vale ressaltar: enquanto a natureza pode continuar sem os seres humanos, os seres humanos não podem viver sem ela.

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Brasil CAPES - Código de Financiamento 001), Fundação do Ministério da Educação (MEC), pela bolsa de mestrado concedida ao primeiro autor, a qual derivou o presente trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2018
  • Aceito
    25 Fev 2020
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