Acessibilidade / Reportar erro

Protocolos teatrais verbo-visuais: produção de sentidos para a prática teatral universitária

Resumos

Este texto, resultante de uma pesquisa de pós-doutorado, apresenta reflexões sobre a produção de sentidos para as aulas de teatro no ensino superior, a partir de protocolos de aula produzidos por acadêmicos discentes, e realizados sob a condição da verbo-visualidade. A partir da Análise Dialógica do Discurso, pautada nas contribuições teóricas de Bakhtin e o Círculo, é possível olhar para os discursos verbo-visuais dos alunos sobre suas aulas práticas, dialogando com os diferentes sentidos para os quais apontam.

Protocolos teatrais; Verbo-visual; Produção de sentidos; Bakhtin e o Círculo


This text, which is the result of a postdoctoral research, presents reflections on meaning production from theater classes in higher education, stemming from classroom protocols which were produced by undergraduate students and carried out under a verbal-visuality condition. From the Dialogical Discourse Analysis perspective, based on Bakhtin and the Circle's theoretical contributions, it is possible to look at the students' verbal-visual discourse about their practical classes, establishing a dialogue with the different meanings to which they have pointed.

Theatrical protocols; Verbal-visuality; Meaning Production; Bakhtin and the Circle


ARTIGOS

Protocolos teatrais verbo-visuais: produção de sentidos para a prática teatral universitária

Jean Carlos Gonçalves

Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil; CNPq; jeancarllos1@bol.com.br

RESUMO

Este texto, resultante de uma pesquisa de pós-doutorado, apresenta reflexões sobre a produção de sentidos para as aulas de teatro no ensino superior, a partir de protocolos de aula produzidos por acadêmicos discentes, e realizados sob a condição da verbo-visualidade. A partir da Análise Dialógica do Discurso, pautada nas contribuições teóricas de Bakhtin e o Círculo, é possível olhar para os discursos verbo-visuais dos alunos sobre suas aulas práticas, dialogando com os diferentes sentidos para os quais apontam.

Palavras-chave: Protocolos teatrais; Verbo-visual; Produção de sentidos; Bakhtin e o Círculo

Introdução

Apresento, neste artigo, alguns resultados da pesquisa Teatro e Bakhtin em diálogo: verbo-visual e produção de sentidos sobre a prática teatral na universidade, desenvolvida como estágio de pós-doutorado. Há alguns anos venho analisando o ensino de teatro na universidade, a partir da perspectiva da Análise Dialógica do Discurso (ADD), que tem os estudos de Bakhtin e o Círculo como seu principal referente. Esse encontro profícuo entre o teatro e os estudos da linguagem, embora pareça cordial, aceitável e já instaurado como pesquisa, está ainda em processo, carecendo de diferentes olhares de investigação, a partir dos quais seja possível averiguar as ricas contribuições que uma área tem ao se encontrar dialogicamente com outra.

Outro encontro dialógico proporcionado por esse trabalho refere-se à parceria entre instituições de ensino. O campo empírico de estudo é o curso de Graduação em Produção Cênica, da Universidade Federal do Paraná (Curitiba-Brasil), onde a pesquisa foi realizada durante um semestre letivo, e a análise dos dados é realizada junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem/LAEL, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O objetivo geral da pesquisa é compreender a produção de sentidos sobre a prática teatral na perspectiva da dimensão verbo-visual. Os objetivos específicos são: a) analisar os protocolos teatrais verbo-visuais, investigando as vozes que se enunciam verbo-visualmente no diálogo com os sentidos para os quais apontam; b) identificar as implicações e contribuições da relação entre a perspectiva verbo-visual e a prática teatral para o ensino de teatro na universidade.

O artigo divide-se em duas partes centrais: a primeira contém a explanação da pesquisa e do quadro teórico-metodológico que a norteia, e a segunda é dedicada à análise do corpus.

1 Protocolos teatrais verbo-visuais

Para organizar esta seção, três perguntas de base precisam ser respondidas ao longo do texto: O que são protocolos na aula de teatro? O que se compreende por verbo-visualidade na perspectiva da ADD? Como essa pesquisa lida metodologicamente com os protocolos teatrais verbo-visuais? Ao trazer as discussões referentes a essas questões, estaremos, eu e leitor, aptos a lançar um olhar, também dialógico, para os dados da pesquisa.

1.1 O que são os protocolos na aula de teatro?

Registrar as experiências vividas nas aulas de teatro constitui-se em prática recorrente no campo da pedagogia teatral. Ingrid Koudela, precursora da inserção dos protocolos de aula no ensino de teatro no Brasil, defende a confecção dos mesmos como forma de possibilitar reflexões sobre as atividades realizadas em uma aula (KOUDELA, 2006). Ao disponibilizar seus corpos para a aprendizagem em arte, os alunos de teatro acabam não fazendo anotações em seus cadernos, cópias do quadro-negro, colagens e tarefas, como na maioria das disciplinas que integram as práticas escolarizadas. Os protocolos constituem-se, desse modo, uma metodologia utilizada pelo professor para que os alunos possam se manifestar por meio de materialidades discursivas sobre suas aulas.

Os protocolos fazem referência sempre à última sessão de trabalho e são apresentados pelo(s) seu(s) autor(es) no início de cada novo encontro, se constituindo também, caso queira o professor, como instrumento de avaliação e acompanhamento do processo teatral. Quando possível, a sugestão é que seja solicitada aos alunos autores do protocolo da vez uma cópia para cada integrante do grupo de trabalho, para facilitar o acompanhamento simultâneo da apresentação por todos os estudantes. Cada professor pode utilizar os protocolos para os fins que julgar necessários, inclusive como avaliação dos acadêmicos. Algumas contribuições de Ricardo Japiassu, em Metodologia do ensino de teatro, auxiliam na compreensão do protocolo como material constituinte das aulas de teatro:

A cada sessão, um aluno diferente ou um grupo de alunos se responsabiliza pela confecção do protocolo referente aos assuntos discutidos, aos episódios ocorridos e às reflexões sobre os trabalhos daquele dia. [...]Desde a primeira sessão, deve-se esclarecer aos alunos a importância desse instrumento para acompanhamento e avaliação do processo que será desenvolvido no grupo. [...] Quando é possível, cuida-se para que sejam feitas cópias de cada protocolo apresentado em número suficiente para todos os integrantes da turma. [...] Explica-se aos estudantes que podem utilizar colagens, desenhos, fotos, imagens, adesivos, etc. na confecção de seus protocolos (JAPIASSU, 2001, p.60-64).

Nos cursos de graduação da área de teatro, os protocolos também são utilizados como metodologia de trabalho e acabam ganhando diferentes nomenclaturas, geralmente associadas às disciplinas nas quais eles estão sendo realizados: diário de campo, diário de bordo, portfólios de aula, protocolos de aula, e outros nomes que podem ainda ser sugeridos pelo professor ou pelos alunos.

Essa pesquisa foi realizada a partir da utilização dos protocolos, que ganharam, no decorrer do semestre, a nomenclatura de protocolos teatrais verbo-visuais. Antes, porém, de falar especificamente deles, torna-se necessária uma reflexão a respeito do verbo-visual como conceito teórico que integra a Análise Dialógica do Discurso.

1.2 O que se compreende por verbo-visual na perspectiva da ADD?

A ampla variedade temática encontrada nas discussões de Bakhtin e o Círculo resulta do "papel heurístico que seus pensadores deram à linguagem nas suas discussões" (CASTRO; PICANÇO, 2008, p.57). Aliada a isso, está a postura dos pensadores do Círculo com relação ao mundo e à linguagem, que "articula estética, ética, diferentes pressupostos filosóficos, não permitindo que suas reflexões sobre o sentido sejam sistematizadas unicamente sob uma perspectiva linguística ou mesmo linguístico-literária" (BRAIT, 2007, p.63). Desse modo, essa pesquisa justifica-se por um pressuposto já conhecido por qualquer estudioso da perspectiva da Análise Dialógica de Discurso: o interesse de Bakhtin recai sobre as discussões ligadas às relações dialógicas envolvendo os sujeitos que vivem e agem no mundo, acontecendo em qualquer esfera da atividade humana.

A noção de língua/linguagem, exposta no texto O discurso no romance, de 1934-1935 (BAKHTIN, 2010), é discutida a partir do conceito de língua como meio vivo e concreto no qual reside a consciência daquele que fala. O autor lembra que a vida social viva cria possibilidades de uma pluralidade de mundos e de perspectivas, que são sempre ideológicas e sociais.

Ao ressoar essas diversas maneiras e por diferentes perspectivas, o lugar está dado ao mundo dos sentidos. Desse modo, multiplica-se o caso específico da língua, desdobrando-se ela em outras redes de possibilidade. É na linguagem viva que está o centro de interesses da perspectiva bakhtiniana, na língua em uso, que não pode ser apreendida como sistema fechado e único. O lugar dos sentidos torna-se, então, lugar de pluralidade de vozes intensificada na heteroglossia como constituinte do próprio enunciado. Não há o sujeito e seu texto autônomo, e sim a fronteira entre sujeitos, entre textos, entre discursos, que estão inseridos em uma cadeia de comunicação.

O texto, por ser constituído de discursos, é repetível (pela língua). Ao atualizá-lo, o sujeito produz, já, outro enunciado, o que implica pensar o não-repetível como base da teoria bakhtiniana. Para esta pesquisa, importa a compreensão de que a materialidade analisada é composta de enunciados verbo-visuais sobre uma prática realizada por diferentes sujeitos. Ao falar dessa prática, cada um deles produziu outros enunciados, sempre inacabados e também distintos, pois a relação de cada sujeito com a prática é única e singular, ao mesmo tempo em que está relacionada com todos os demais participantes do evento/acontecimento teatral. Barros (2011) esclarece a noção de enunciado em Bakhtin da seguinte forma:

Sua definição de enunciado aproxima-se da concepção atual de texto. O texto é considerado hoje tanto como objeto de significação, ou seja, como um "tecido" organizado e estruturado, quanto como objeto de comunicação, ou melhor, objeto de uma cultura, cujo sentido depende, em suma, do contexto sócio-histórico. Conciliam-se, nessa concepção de texto ou na ideia de enunciado em Bakhtin, abordagens externas e internas da linguagem. O texto-enunciado recupera estatuto pleno de objeto discursivo, social e histórico (BARROS, 2011, p.1).

O enunciado, neste projeto, é um enunciado sobre o mundo artístico, materializado também em forma artística: um enunciado verbo-visual, o que dialoga com a concepção proposta por Bakhtin, justamente na sua "visão de conjunto do texto" (idem). O diálogo torna-se, portanto, nessa perspectiva teórica, a condição de existência da linguagem e do discurso, o que faz com que uma pesquisa guiada pelas premissas da Análise Dialógica do Discurso, obrigatoriamente, considere o enunciado em sua plenitude, tal como proposta pelo Círculo.

A compreensão do que seja um enunciado verbo-visual se dá, nesta investigação, a partir dos estudos de Brait, para quem:

O termo verbal é compreendido tanto em sua dimensão oral quanto escrita e visual, abrange a estaticidade da pintura, da fotografia, do jornalismo impresso, e a dinamicidade do cinema, do audiovisual, do jornalismo televisivo, etc. Nesse sentido, o que ganha relevo é a concepção semiótico-ideológica de texto que, ultrapassando a dimensão exclusivamente verbal reconhece verbal, verbo-visual, projeto gráfico e/ou projeto cênico como participantes da constituição de um enunciado concreto. Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido a partir dos mecanismos dialógicos que o constituem, dos embates e tensões que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos de expressão, das esferas em que circula e do fato que ostenta, necessariamente, a assinatura de um sujeito, individual ou coletivo, constituído por discursos históricos, sociais e culturais, mesmo nos casos extremos de ausência, indefinição ou simulação de autoria (BRAIT, 2012, p.88, 89)

No caso da pesquisa aqui proposta, a dimensão verbo-visual está no centro da análise. Meu olhar enquanto pesquisador está direcionado aos enunciados verbo-visuais resultantes das aulas de teatro, e o diálogo com os dados se dá, portanto, nessa perspectiva, desde o convite feito aos acadêmicos para que materializem suas expressões sobre as aulas até a análise propriamente dita.

Segundo Brait (2009a, 2011), o termo verbo-visual implica, necessariamente, um enunciado concreto no qual as dimensões verbal e visual sejam indissociáveis. Para a autora, o verbal e o visual possuem, na dimensão verbo-visual, um lugar que não permite separação, nem valoração de um em detrimento de outro. Ambos são necessários à compreensão do enunciado em seu todo:

Fazem parte das produções de caráter verbo-visual, em circulação em diferentes esferas, charges, propagandas, capas de revistas, páginas de jornal, aí incluída a primeira, poemas articulados a desenhos, comunicação pela Internet, textos ficcionais (BRAIT, 2009b, p.144).

Os protocolos teatrais verbo-visuais surgem, assim, como mais uma possibilidade relacionada ao verbo-visual como perspectiva dialógica, agora como uma metodologia de trabalho na aula de teatro.

A próxima subseção traz discussões referentes às especificidades do uso dos protocolos teatrais verbo-visuais, explicitando, ao mesmo tempo, como a pesquisa foi realizada e como compreendo sua utilização por outros professores/pesquisadores que queiram, porventura, experimentar esta metodologia de trabalho em suas aulas de teatro.

1.3 Quadro metodológico da pesquisa

Nesta pesquisa, os protocolos não são considerados como se tivessem que dar conta do acontecimento teatral/artístico. Eles não precisam se constituir em registros de aula. Concordo com Isaacsson (2006), para quem o pesquisador deve ter consciência de que "os elementos reconhecidos serão somente fragmentos de um pensamento criativo" (p.82). A autora, ao discutir a pesquisa no campo da prática teatral, fala da criação cênica como uma viagem permeada por escolhas que não deixam rastros materiais: "Os vestígios completos só se perpetuam integralmente na memória dos corpos e da mente de seus participantes" (p.82). A função dos protocolos teatrais verbo-visuais é, portanto, direcionada muito mais ao mundo dos sentidos que ecoam a partir de uma prática teatral do que à contenção dessa prática em um registro de aula (como se isso fosse possível).

Essa pesquisa foi realizada, como apresentei no início do artigo, no âmbito da Graduação em Produção Cênica, na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba-Brasil. Este curso destaca-se entre seus pares por ser o primeiro da área de artes cênicas a direcionar a formação para a Produção Cênica em nível de Graduação Tecnológica, ofertado por instituição federal de ensino. A disciplina escolhida como campo de pesquisa foi Jogo Teatral e Improvisação I, desenvolvida ao longo do primeiro semestre do curso, contando com sessenta horas de aula, divididas em quinze encontros. Atuo como docente dessa disciplina, e a escolhi porque ela é formada por alunos ingressantes no curso (calouros), que chegam com expectativas diferentes, para fazer um curso de Produção Cênica, e acabam se deparando com uma disciplina composta totalmente por exercícios práticos de iniciação ao teatro.

Desde que comecei a ministrar essa disciplina, em 2009, tenho trabalhado com protocolos a partir do seguinte percurso metodológico: a cada aula, três alunos ficam responsáveis pela elaboração dos protocolos, que devem ser disponibilizados (em cópias físicas) a todos os integrantes da disciplina e apresentados sempre na aula subsequente. Como as turmas de calouros têm, em média, quarenta e cinco acadêmicos, na primeira semana de aula é feito um organograma de protocolos, possibilitando que, ao fim do semestre, todos os alunos tenham ficado responsáveis pela escrita de pelo menos um protocolo. Na maioria das turmas, em virtude de algumas desistências intrínsecas a essa etapa da vida acadêmica, o número final de protocolos fica entre trinta e quarenta. Ao fim do semestre, cada aluno terá todos os protocolos em mãos, para arquivar e revisitar quando bem entender.

Nesta prática teatral universitária, mesmo com as sugestões para que os protocolos ultrapassem a linguagem verbal, é recorrente que eles sejam realizados como diários de bordo, nos quais os alunos escrevem relatos sobre a aula, o que lhes dá um caráter de descrição de aula.

Uma novidade começou a ocorrer quando, em 2011, ao lecionar a disciplina Jogo Teatral e Improvisação I, na mesma universidade e curso de graduação, convidei os sujeitos a se arriscarem nas suas materializações, buscando outras experiências enunciativas. Fui, então, surpreendido por protocolos de aula que começaram a surgir por meio de diferentes gêneros, como cartas, reportagens, fotos, desenhos, charges, músicas, palavras cruzadas, vídeos e outras manifestações. Esse arsenal de possibilidades começou a chamar minha atenção pela inovação a que os acadêmicos se propunham, pois começavam a abandonar os modelos de protocolo escrito, para mergulhar em outras dimensões, no intuito de expressar de diferentes formas os sentidos atribuídos por eles ao encontro teatral.

A partir de então, comecei a vislumbrar a possibilidade de pesquisar outras formas para a produção de sentido sobre a prática teatral, além da linguagem verbal. Do mesmo modo que solicitei aos estudantes, na ocasião, que se arriscassem nas materializações sobre as aulas, sugeri, a partir da explanação da noção de enunciado verbo-visual, que os protocolos de aula do primeiro semestre de 2012 fossem realizados nesta perspectiva.

No primeiro dia de aula os alunos foram convidados a participar da pesquisa. Fiz uma explanação sobre a construção teórica da dimensão verbo-visual e incitei-os a criar seus protocolos sob esta condição, mesmo sem saber, ao certo, naquele momento, que tipo de produções surgiria dessa turma. Expliquei aos acadêmicos que não seriam atribuídas notas com fins avaliativos às suas produções, pois meu interesse era averiguar de que forma eles poderiam atribuir sentidos em perspectiva verbo-visual às aulas de teatro, sem valorar como bom/ruim ou certo/errado o conteúdo integrante das materialidades apresentadas por eles. O único compromisso de cada aluno era entregar o seu protocolo teatral verbo-visual do dia estipulado em cronograma, sendo que em cada encontro, três alunos ficavam responsáveis por protocolar a aula do dia, se comprometendo, individualmente, a entregar, na aula seguinte, as suas produções ao professor e aos colegas de turma. Deste semestre, resultaram quarenta protocolos. Todos eles compõem a pesquisa. Nomeei cada protocolo a partir da primeira expressão escrita que contém. Exemplos: Protocolo Sinto do Corpo, Protocolo Percebo, Protocolo Prostitua.

Um fator interessante a considerar é que, mesmo que os protocolos em perspectiva verbo-visual tenham uma grande abertura para diferentes tipos de materialidade, todos os quarenta acabaram representando uma prática escolarizada. As representações foram feitas, em sua maioria, sobre folha A4, inteira ou dividida, sendo que o uso desse material foi surgindo espontaneamente, ora em forma de desenhos feitos à mão, ora feitos digitalmente, principalmente quando o recurso enunciativo mais utilizado era o da citação.

Quanto à citação, não exigi dos acadêmicos que citassem diretamente as imagens e textos integrantes de seus protocolos. Alguns utilizaram citações e fizeram referência aos créditos, outros não. Essa escolha se deu por compreender que, se estou trabalhando com a perspectiva dialógica, diferentes vozes estariam nestes protocolos, e cada vez que eu criasse alguma regra de polidez para a sua criação, estaria, também, polindo os sujeitos com relação ao que querem dizer, seja um dizer autoral a partir de questões "próprias", ou um dizer que utiliza o discurso citado como forma de expressão.

Também não era necessário identificar-se como autor nos protocolos teatrais verbo-visuais. Como todos os alunos estavam cientes de que participavam de uma pesquisa, ficou a critério de cada um incluir seu nome, na frente ou verso do protocolo, ou mesmo entregá-lo sem qualquer tipo de identificação.

Ao discutir as esferas de produção e circulação dos discursos, Bakhtin reforça que uma esfera nem sempre é absolutamente definida, suas fronteiras são sempre movediças. A partir daí, considerei que, como metodologia de análise, não deveria organizar os protocolos por aula. Distribuir e analisá-los por encontros poderia resultar em um estudo de ordem comparativa, o que não vem ao caso nesta pesquisa. É na inter-relação dialógica entre a esfera acadêmica e a artística que a produção dos discursos é considerada, independentemente de sua alocação no começo, meio ou fim do semestre e dos conteúdos abordados em cada aula. Interesso-me mais pelos sentidos que ecoam de todos esses protocolos teatrais verbo-visuais, do que por um ou outro que estivessem, porventura, fazendo referência ao mesmo encontro.

Esta é uma questão de construção metodológica da pesquisa. Reconheço, porém, que agrupar os protocolos teatrais verbo-visuais por aulas ou por temas específicos, seria também interessante e relevante, mas se constituiria em outra abordagem de pesquisa. Os protocolos foram, literalmente, misturados, e como a maioria não trazia a data da aula à qual os sujeitos estavam fazendo referência, a análise se dá a partir da aproximação de sentidos para os quais apontam. Para este artigo, foram escolhidos quatro protocolos teatrais verbo-visuais, a saber: Peça de Teatro, Sinto do Corpo, Explore-se e Prostitua.

2 Verbo-visual e produção de sentidos

Seria utopia imaginar que todos os sentidos que ecoam a partir dos dados desse estudo pudessem ser abarcados nesse texto, ou mesmo na pesquisa. Olhar para a produção de sentidos constitui-se também em exercício dialógico, onde estão em jogo as vozes do pesquisador, dos autores das materialidades analisadas, da teoria que embasa a pesquisa, do leitor que debruça um olhar para a investigação, e ainda de todas as outras vozes que constituem as diferentes interlocuções possíveis na e a partir da investigação. A análise que proponho busca olhar para a relação entre o verbo-visual e a teatralidade, investigando como ambos complementam-se e podem ser discutidos a partir dos protocolos teatrais verbo-visuais, e como estes passam a ganhar status no que concerne a possibilidades e formas de construção de conhecimento em teatro e linguagem.

O primeiro protocolo que apresento, Peça de teatro, anuncia verbo-visualmente sua esfera de produção. O autor utiliza o gênero específico de divulgação de uma peça de teatro para enunciar. A imagem, confirmada pela presença de enunciados verbais, traz para o plano da expressão uma das premissas centrais do conhecimento teatral: a máscara. Heliodora, ao retomar os primórdios da história do teatro, coloca a máscara em um lugar central e divisor de águas, apontando que um dia:

[...] aparece um indivíduo dotado de um talento muito especial e se mostra capaz de expressar os anseios de toda a sua comunidade. Esse indivíduo, de início, representa ou imita tudo o que é desconhecido, e com o passar do tempo se verá que, na verdade, ele é a semente da qual nascerão o sacerdote, o filósofo, o médico, o poeta e... o ator. Para esse indivíduo poder representar, de forma convincente, o espírito ou o deus cultuado no ritual, aparece um elemento fundamental para o nascimento do teatro, que é a máscara (HELIODORA, 2008, p.10).

Interessante notar que mesmo que o curso tenha seu foco na Produção Cênica, e não na Interpretação/Atuação, o sujeito associa a aula prática ao palco, e não aos bastidores. A disciplina a partir da qual o protocolo foi criado é inteiramente de ordem prática, não há mesas e cadeiras na sala, os alunos utilizam roupas confortáveis para o trabalho prático, então a semelhança com um curso que forma atores está posta. A referência à máscara no protocolo é, ainda, aliada ao enunciado verbal Permaneça com sua máscara ou retire-a diante de todos, confirmando a existência da máscara como fundamento para a interpretação/atuação.

No entanto, o lugar de onde fala o sujeito é híbrido, a começar pela forma com que ele fala de si. No item: Direção e Produção, o autor utiliza seu próprio nome, distanciando-se do lugar de aluno para se colocar como diretor e produtor da peça em questão. Mesmo que o cartaz não faça referência a uma peça "real", todos os recursos utilizados apropriam-se do gênero referente para enunciar. Ao sinalizar que o local da peça é o Teatro Guaíra, há um apontamento para a concepção do que vem a ser um produtor cênico bem-sucedido em Curitiba – aquele que consegue levar seu espetáculo ao Teatro Guaíra, o maior e mais conhecido da cidade.

O protocolo teatral verbo-visual Peça de teatro, apresenta, dessa forma, uma aula de teatro híbrida, que oscila entre as técnicas de representação e a consciência de que o curso tem a intenção de formar produtores.

Já, pelo protocolo Sinto do corpo, é possível compreender que a aula de teatro em questão solicita corporeidade, disponibilidade para a prática. As dimensões verbal e visual, embora apareçam separadas no espaço a elas destinado, são indissociáveis quanto aos sentidos presentes no texto verbo-visual como enunciado concreto. O corpo cindido, dividido, apresentado na imagem, ganha reforço significativo no texto verbal. Toda a ideia de movimento corporal, de corpo que vai e vem, que se descobre, que não é finito, que se complementa no espaço e no outro, possibilita reflexões a respeito das relações dialógicas das quais fala Bakhtin.

Para Brandist (2012), "os enunciados devem ser compreendidos dialogicamente como uma cadeia de respostas" (p.77). As "reações responsivas" assumem diferentes formas incorporando vozes de enunciados anteriores e dando a eles novos tons, que podem ser de ironia, de indignação, de reverência, etc. O corpo aparece, de alguma forma, em todos os protocolos, como voz central, de partida, enunciada de diversos modos, mesmo que não explicitamente.

As referências ao corpo, à máscara, ao teatro como porta para o glamour, constituem os protocolos não por acaso, e sim porque os sujeitos enunciam verbo-visualmente a partir de uma heterogeneidade de vozes que já estão estabelecidas socialmente, que já têm seu lugar no mundo. Os protocolos são a representatividade materializada dessa questão, discutida por Bakhtin e o Círculo em suas obras.

O protocolo Explore-se contém menos texto verbal do que os outros, mas o caminho está aberto para os sentidos na relação íntima entre o verbal e o visual. Dialogando com os protocolos anteriores, é possível refletir sobre os sentidos de corpo, de teatro como descoberta, do explorar-se como possibilidade de autoconhecimento. Mas atenho a discussão para um sentido confirmado também nos protocolos apresentados até aqui: o endeusamento da prática teatral.

Não são raros os discursos que elevam o teatro ao status de curador, terapêutico, espiritual, libertador... Na prática escolar a aula de teatro ainda é, por vezes, vista como a redentora da nação. Alguns discursos que circulam socialmente são assim: fazer teatro é bom para perder a timidez, fazer teatro é bom para gastar energia, fazer teatro é bom para melhorar a oralidade, o teatro é bom como atividade física, o teatro é bom para expurgar sensações reprimidas... E a aula de teatro vai sendo construída discursivamente como aquele lugar para onde vão os que precisam melhorar alguma coisa em suas vidas e em suas relações.

No protocolo Explore-se, o diamante que cai, como resultado de um sujeito que se permitiu à exploração em uma aula de teatro, representa uma autodescoberta. Algo que o sujeito possuía e não sabia, e que a partir da aula de teatro veio a conhecer em si e a partir da exploração de si. A prática teatral é endeusada pelo sujeito como detentora de poções mágicas que possibilitem essa experiência. O mesmo acontece no protocolo Peça de teatro, se o analiso por outra ótica. Ele traz uma ideia de verdade acima de tudo, que o teatro solicita, uma verdade que está ligada à disponibilidade de quem quer fazer teatro. São duas opções: ou permanecer com a máscara, ou retirá-la diante de todos. Outras possibilidades estão fechadas.

O protocolo que segue, Prostitua, permanece endeusando a prática teatral, como se a partir do teatro o sujeito pudesse libertar-se moralmente:

Partindo de um verbo no modo imperativo: Prostitua, o sujeito começa a apontar diferentes sentidos para a prática teatral. O corpo é representado verbo-visualmente como instrumento de trabalho de quem faz teatro. Ao enunciar verbalmente que ao almejar um pouco de dinheiro e reconhecimento, com um pouco de sorte, você transformará o seu corpo, junto aos dos outros, diferentes vozes encontram eco. Tanto as que configuram a prática teatral como glamour, dialogando com o protocolo Peça de Teatro, como aquelas que atribuem ao teatro responsabilidades sociais: você transformará o seu corpo e [...] manifestará a arte sem entraves nem limites. Pergunto se o teatro é capaz disso tudo; se fazer teatro possibilita uma transformação tão grande nos sujeitos.

Vale retomar que os autores dos protocolos são alunos ingressantes no Curso de Graduação em Produção Cênica, e que ao entrar na universidade trazem consigo sonhos e expectativas do que vem a ser um curso dessa natureza, e geralmente suas visões a respeito de arte ainda são muito ligadas ao senso comum e ao estrelato como sucesso. Por isso, os protocolos carregam marcas não apenas das aulas propriamente ditas, mas do que os acadêmicos discentes pensam sobre aonde o curso os pode levar. As sensações despertadas pelos jogos e improvisações obviamente são diferentes daquelas despertadas por uma aula de cunho exclusivamente teórico. Ao entrar em contato com essa esfera, no entanto, muitos acadêmicos identificam-se com a proposta, de modo que seus enunciados sobre as aulas possuam tons de valoração da prática cênica.

O texto O método formal nos estudos literários, de Pável Nikoláievitch Medviédev, de 1928 (MEDVIÉDEV, 2012), traz uma reflexão sobre as várias verdades que se contradizem mutuamente no horizonte sociológico de épocas ou grupos sociais. A partir desse texto, Faraco considera que:

Essas várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias) aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar sentido ao mundo (de refratá-lo), que vão se materializando e se entrecruzando no mesmo material semiótico (FARACO, 2009, p.51).

Essa pluralidade de sentidos, presenciada também nos protocolos teatrais verbo-visuais analisados nessa pesquisa, faz com que não seja necessário categorizar a análise. Mesmo que nichos de sentido possam ser formados a partir dos diferentes ecos e ressonâncias que proliferam dos protocolos, analisá-los, também em perspectiva dialógica, torna-se um exercício que permite compreender que os sujeitos enunciam valorativamente a partir de suas próprias vivências. Um olhar que vê os dados, revisitando-os aleatoriamente, pode se constituir em uma análise repleta de sentidos outros cada vez que se dá o encontro com as materialidades.

Considerações finais

No presente artigo discuti as aproximações entre a perspectiva verbo-visual e a prática teatral universitária, sob o prisma da Análise Dialógica do Discurso (ADD). As contribuições teóricas de Brait, a partir dos estudos de Bakhtin e o Círculo, têm permitido que a dimensão verbo-visual ganhe destaque entre os estudos da linguagem e dialogue, também, com outras áreas de conhecimento.

Os protocolos teatrais verbo-visuais fundam-se, a partir dessa investigação, como outra possibilidade de enunciar sobre a prática teatral, ainda não explorada pelos estudos da cena. A criação da nomenclatura protocolos teatrais verbo-visuais faz referência a materialidades enunciativas advindas das aulas de teatro que contenham, em seu escopo, as dimensões verbal e visual de forma não dissociada. Na complementação mútua entre essas dimensões, o enunciado concreto ganha uma gama aberta de sentidos, ultrapassando os limites dos outros formatos utilizados até então como protocolos de aula: relatórios, diários, etc.

Sem duvidar da relevância de todo e qualquer registro referente à prática teatral, a proposta de trabalho com os protocolos teatrais verbo-visuais apresenta-se como uma perspectiva associada ao campo da Análise Dialógica do Discurso, portanto, passa a integrar os estudos que consideram Bakhtin e o Círculo como referência para análise. Embora seja possível olhar para os protocolos pela ótica de outras teorias, considero que os estudos bakhtinianos se constituem como cerne do trabalho com o verbo-visual. Aliás, o teatro é, intrinsecamente, uma arte verbo-visual, que se utiliza da dinamicidade da palavra e do movimento para se estabelecer enquanto discurso estético, o que fica neste artigo apenas como provocação para desencadear outros estudos.

A análise realizada permitiu um olhar para a prática teatral como espaço onde diferentes vozes se entrecruzam, ecoando sentidos para gerar outras reflexões: sobre a produção cênica, suas dificuldades e desafios; sobre o corpo no teatro, seus mitos e crenças; sobre o fazer teatral na contemporaneidade, suas utopias e realidades... Esses sentidos, apontados pelos protocolos analisados, permeiam a vida acadêmica dos estudantes de Produção Cênica, constituindo-os enquanto sujeitos, circulando além dos protocolos, inserindo-se nas suas relações, na construção de conhecimento e resultando na formação desses aspirantes a produtores.

Essa pesquisa contribui, desse modo, para o ensino de teatro na universidade, ao unir estudos de linguagem e prática teatral, almejando que as ponderações feitas pela investigação possam se desdobrar em outros desejos e objetos de estudo que tenham, nesse encontro dialógico, pontos de convergência a serem explorados pela perspectiva dos protocolos teatrais verbo-visuais.

Recebido em 18/03/2013

Aprovado em 05/10/2013

  • BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 6. ed. Trad. Aurora Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 2010, p.71-210 [1934-1935]
  • BARROS, D. P. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, D. P. & FIORIN, J. L. (org.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2011, p.1-9.
  • BRAIT, B. A natureza dialógica da linguagem: formas e graus da representação dessa dimensão constitutiva. In: FARACO, C. A.; TEZZA C.; CASTRO, G. (org) Diálogos com Bakhtin. 4. ed. Curitiba: EDUFPR, 2007, p.61- 80.
  • _______. Dulce sabor a Brasil antiguo: perspectiva dialógica. In: Páginas de Guarda: Revista de Lenguage, Edición y Cultura Escrita. Número 7. Buenos Aires: Editoras Del Calderón, 2009a, p.52-66.
  • _______. A palavra mandioca do verbal ao verbo-visual. In: Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso. Número 1. São Paulo, 2009b, p.142-160.
  • _______. Construção coletiva da perspectiva dialógica: História e alcance metodológico. In: FÍGARO, R. (org) Comunicação e análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2012, p.79-98.
  • BRANDIST, C. Repensando o Círculo de Bakhtin: Novas perspectivas na história intelectual. Trad. Helenice Gouvea e Rosemary H. Schettini. São Paulo: Contexto, 2012.
  • CASTRO, G.; PICANÇO, D. Dos parcos resultados da educação linguística no Brasil e da importância das relações entre sujeito e linguagem. In: SCHMIDT, M. A.; GARCIA, T. B.; HORN, G. (orgs). Diálogos e perspectivas de investigação. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2008, p.49-61.
  • FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: As ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
  • HELIODORA, B. O teatro explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
  • ISAACSSON, M. O desafio de pesquisar o processo criador do ator. In: CARREIRA, A. CABRAL, B. (org). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.82-88.
  • JAPIASSU, R. Metodologia do ensino do teatro. Campinas: Papirus, 2001.
  • KOUDELA, I. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2006.
  • MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012 [1928]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2013
  • Aceito
    05 Out 2013
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com