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O conceito de compreensão em Bakhtin e o Círculo: reflexões para pensar o processo educativo

RESUMO

A compreensão é um processo que fundamenta a atividade educativa e permite o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem. Este artigo apresenta um esforço teórico para sintetizar o conceito de compreensão presente nas contribuições de Bakhtin e do Círculo, baseado em uma revisão das obras Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem e O freudismo, bem como dos ensaios Os gêneros do discurso, presente na coletânea Estética da criação verbal, e O discurso no romance, da coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, de M. Bakhtin. De acordo com o Círculo, a compreensão é composta por elementos concretos, ideológicos e axiológicos, além de ser um processo que permite a representação e o prolongamento da atividade comunicativa.

Palavras-chave:
Compreensão; Signo ideológico; Educação; Bakhtin e o Círculo

ABSTRACT

Understanding is a process that grounds educational activity and enables the development of teaching and learning. This article presents a theoretical effort to synthesize the concept of understanding in the works of Bakhtin and the Circle. This paper was based on a review of the works Marxism and the Philosophy of Language and Freudianism: a Marxist critique; and on a review of the essay The Problem of Speech Genres, in the collection BAKHTIN, M., Speech Genres and Other Late Essays, and the essay Discourse in the Novel, in BAKHTIN, M., The Dialogical Imagination: Four Essays. According to the Circle, understanding is composed of concrete, ideological, and axiological elements; it is a process that allows the representation and extension of communication.

KEYWORDS:
Understanding; Ideological sign; Education; Bakhtin and the Circle

Introdução

O ensino e a aprendizagem são processos diferentes, complexos e interdependentes que compõem as atividades educativas. Não há na literatura um consenso sobre o que são esses processos, contudo pode ser encontrado um vasto espectro de correntes teóricas que postulam princípios para essas atividades (SAVIANI, 2013SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2013.).

Independentemente desses princípios, a educação é essencial para a humanidade, visto que ela é responsável pela transmissão1 1 Não se trata de uma referência à transmissão como método de ensino, que é amplamente criticada, mas sim como processo de manutenção e produção da cultura humana através das gerações. do conhecimento acumulado, além de poder produzir conhecimento durante essa atividade. O ensino e a aprendizagem são processos basilares para a compreensão da conjuntura histórico-cultural, pois é a partir do conhecimento acumulado pela cultura, seus avanços e retrocessos, que os seres humanos são capazes de compreender o universo e atuar na sociedade. Sendo assim, a educação tem como propósito desenvolver sujeitos para o domínio e a apropriação de ferramentas culturais para que eles sejam capazes de compreender as diversas determinações que os cercam.

A compreensão, por sua vez, é um processo que fundamenta a atividade educativa: se, por um lado, o sujeito responsável pelo ensino objetiva que o aprendiz compreenda algo, por outro, o próprio aprendiz almeja a compreensão de determinado objeto. A partir da compreensão, os seres humanos estabelecem diversas relações, seja com seu semelhante, o ambiente, os objetos ou ainda com os conhecimentos produzidos pela espécie.

Partindo dessas premissas, este artigo visa a produzir uma reflexão acerca do conceito compreensão com base nas contribuições de Bakhtin e do Círculo. Para tanto, foi realizada uma revisão nas obras Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem e O freudismo, bem como nos ensaios Os gêneros do discurso, presente na coletânea Estética da criação verbal, e O discurso no romance, da coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.

A preocupação com o processo de compreensão é abordada a partir das contribuições de Bakhtin e do Círculo, uma vez que esse processo é essencial para a interação comunicativa entre sujeitos. As referências sobre a compreensão se encontram especialmente nas contribuições do Círculo acerca da natureza da linguagem. Este trabalho apresenta uma síntese do conceito de compreensão com o intuito de estabelecer balizadores para utilizá-lo na esfera da educação. Este trabalho se soma a alguns outros que analisam ou buscam utilizar o conceito compreensão delimitado pelos membros do Círculo (ANGELO; MENEGASSI, 2011ANGELO, C. M. P.; MENEGASSI, R. J. Manifestações de compreensão responsiva em avaliação de leitura. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.14, n.1, p.201-221, 2011. Disponível em: http://www.rle.ucpel.tche.br/index.php/rle/article/view/14. Acesso em: 25 fev. 2019.
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; ZOZZOLI, 2012ZOZZOLI, R. M. D. A noção de compreensão responsiva ativa no ensino e na aprendizagem. Bakhtiniana , São Paulo, v. 7 n. 1, p.253-269, 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732012000100015. Acesso em: 25 fev. 2019.
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; BARBOZA; REGO; BARBOSA, 2013BARBOZA, P. L.; REGO, R. M.; BARBOSA; J. C. Discursos do professor de matemática e suas implicações na compreensão dos alunos. Bolema, Rio Claro, v. 27, n.45, p.55 - 74, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-636X2013000100004. Acesso em: 25 fev. 2019.
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; MATUSOV, 2015MATUSOV, E. Comprehension: A dialogic Authorial Approach. Culture & Psychology, v. 21(3), pp.392-416, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/1354067X15601197. Acesso em: 25 fev. 2019.
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; LIMA; RABONI, 2018LIMA, G. S.; RABONI, P. C. A. Padrões de interação verbal em uma aula de Física com uso de atividades experimentais. Nuances, Presidente Prudente, v. 29, p.224-242, 2018. Disponível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/5245. Acesso em: 25 fev. 2019.
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). Contudo, não há na literatura especializada trabalho teórico que busque organizar as dimensões e sentidos do conceito compreensão proposto por essa perspectiva. Assim, apesar de reconhecer os avanços das investigações já realizadas sobre o tema, este trabalho busca orientar-se predominantemente a partir das produções do Círculo. Os resultados desta síntese apontaram para três aspectos da compreensão que articulam as orientações: ideológicas, axiológicas e comunicativas; além da dimensão relacionada à representação simbólica.

1 O sujeito que compreende e a materialidade das interações sociais

Para entender o que é compreensão para o Círculo é pertinente estabelecer uma síntese da concepção de sujeito nessa perspectiva. Na obra O freudismo2 2 O freudismo: um esboço crítico é uma das obras cuja autoria é disputada. O artigo faz referência à Bakhtin (2012), devido à tradução utilizada. , Bakhtin (2012)BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. Tradução Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. se posiciona criticamente em relação à concepção de sujeito biológico abstrato, uma vez que é impossível dissociar o sujeito de suas condições concretas, isto é, desde que nasce o sujeito pertence a um grupo social bem demarcado, que determinará tanto a constituição subjetiva quanto as condições materiais de sua existência (FREITAS et al., 2015FREITAS, M. T. A.; BERNARDES, A. S.; PEREIRA, A. P. M. S.; PEREIRA, M. L. O sujeito nos textos de Vigotski e do Círculo de Bakhtin: implicações para a prática da pesquisa em educação. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 27, n. 1, p.50-55, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922015000100050&lng=pt&tlng=pt Acesso em: 25 fev. 2019.
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). Não é o ser genérico que nasce, mas sim o filho do padeiro, carpinteiro, banqueiro, etc. O sujeito, para o Círculo, é essencialmente social, nesse sentido ocupa posições na sociedade, compõe grupos sociais, representa interesses individuais ou coletivos, enfim, não é inerte à dinâmica da sociedade, mas, ao contrário, produz e é produzido por ela (BAKHTIN, 2012BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. Tradução Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.).

Freitas e colaboradores (2015)FREITAS, M. T. A.; BERNARDES, A. S.; PEREIRA, A. P. M. S.; PEREIRA, M. L. O sujeito nos textos de Vigotski e do Círculo de Bakhtin: implicações para a prática da pesquisa em educação. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 27, n. 1, p.50-55, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922015000100050&lng=pt&tlng=pt Acesso em: 25 fev. 2019.
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sintetizam a concepção de sujeito presente nas contribuições de Bakhtin e o Círculo

como um conjunto de relações sociais, como um sujeito social da e na história. Mas esse social não abafa o individual. O sujeito bakhtiniano é constituído nas relações com outros sujeitos. Para ser sujeito, é necessário haver um outro que o constitua. O eu só se torna um eu quando o outro se volta para o eu na condição de um tu (p.52).

Dizer que o sujeito é um ser social não se refere exclusivamente ao ser que vive em sociedade. Para o Círculo, essa seria uma interpretação reducionista e equivocada de suas proposições. Sem dúvida o ser vive na sociedade; no entanto, existem implicações que o definem, especialmente porque o sujeito se constitui a partir da interação com o outro. A experiência individual e coletiva com o outro e com o mundo proporciona diversas características aos sujeitos. O pertencimento do sujeito às classes sociais exerce diversas coerções sobre possibilidades e experiências que ele terá na vida, ainda que sejam experiências singulares, que variam de uns para outros, há a influência do social sobre individual. Sendo assim, o sujeito pode ser entendido como uma síntese singular de elementos apropriados de outros sujeitos, experiências vivenciadas e outros elementos que compõem a sua subjetividade.

Pires e Sobral (2013)PIRES, V. L.; SOBRAL, A. Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Bakhtiniana, São Paulo, v. 8, n. 1, p.205-219, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732013000100013. Acesso em: 25 fev. 2019.
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também evidenciam a natureza social do ser ao discutir o estatuto ontológico do sujeito baseados nas contribuições do Círculo. Os autores destacam que “Todos os sujeitos vêm a ser, ou, melhor, estão sempre se tornando algo, com base em suas relações com outros sujeitos. Mas cada um o faz de uma maneira individual” (PIRES; SOBRAL, 2013PIRES, V. L.; SOBRAL, A. Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Bakhtiniana, São Paulo, v. 8, n. 1, p.205-219, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732013000100013. Acesso em: 25 fev. 2019.
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, p.210). Acrescentam ainda que

para Bakhtin, cada sujeito é “povoado” por múltiplos outros; é, num certo sentido fragmentado internamente e externamente, mas, mesmo assim, é um ser único e insubstituível, devido ao "inacabamento" e à “situacionalidade”: não há identidade como um produto, mas um processo de autoidentificação contínuo que se inicia com o nascimento e se encerra com a morte, os únicos momentos em que cada sujeito está completamente sozinho (PIRES; SOBRAL, 2013PIRES, V. L.; SOBRAL, A. Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Bakhtiniana, São Paulo, v. 8, n. 1, p.205-219, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732013000100013. Acesso em: 25 fev. 2019.
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, p.214).

Nesse sentido, o ser se apropria do social para a produção do individual, que por sua vez é determinado pela singularidade das experiências vivenciadas. A posição do Círculo evidencia uma interpretação que postula a determinação3 3 Volóchinov, em Marxismo e filosofia da linguagem, indica que o conceito de determinação converge com a interpretação do marxismo histórico e dialético. Ao discutir a relação entre a base e a superestrutura e indicar que a base determina a superestrutura, Volóchinov (2017, p.103) defende: “Se a causalidade for entendida mecanicamente tal como ela é compreendida e definida até os dias de hoje pelos representantes positivistas do pensamento científico natural, essa tese estaria completamente errada e contradiria as próprias bases do materialismo dialético”; em seguida acrescenta: “O signo verbal é o caminho mais fácil e abrangente para acompanhar o caráter ininterrupto do processo dialético de mudança que ocorre da base em direção às superestruturas” (VOLÓCHINOV, p.114). Nesse sentido, o conceito de determinação é entendido não como um tipo de fixação de limites pré-concebidos a partir de proposições ideais, mas como a existência de pressões exercidas pelas condições concretas de produção (WILLIAMS, 2011). Todas as menções ao termo/conceito determinação devem ser assim interpretadas. do individual pelo social. Desse modo, o ser individual em si não existe, o que existe é a singularidade das experiências sociais que produzem um indivíduo único e inigualável. Até mesmo a ação individual é vista por Bakhtin e pelo Círculo como social, visto que “Toda motivação do comportamento de um indivíduo, toda tomada de consciência de si mesmo [...] é a colocação de si mesmo sob determinada norma social, é, por assim dizer, a socialização de si mesmo e do seu ato” (BAKHTIN, 2012BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. Tradução Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012., p.86-87).

A constituição do indivíduo ocorre pelas múltiplas interações que este tem com o mundo que o cerca. As experiências são internalizadas e passam a constituir aquilo que o sujeito é, portanto, um ser em constante mudança, uma vez que as experiências acabam somente com a morte, ou seja, quando deixa de ser.

Para reconhecer a constituição do sujeito como ser social, é imprescindível abordar a questão da interação entre os indivíduos. A interação social requer necessariamente o outro, ainda que ele possa ser substituído por um representante médio de um grupo social ou pela apropriação de elementos sociais, tal como as normas sociais, que podem influenciar as ações do sujeito (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Nesse sentido, ainda que não exista o outro presente na interação, existe a presença do social, que indica atividades socialmente aceitas ou rejeitadas.

A interação social, por sua vez, é comumente acompanhada pela linguagem, cuja materialidade é determinada pela palavra. A palavra é estabelecida como elo interativo entre os sujeitos que se comunicam. Se o foco for estabelecido sobre o enunciado, haverá elementos materiais que determinam a interação entre os indivíduos, como o contexto histórico vivenciado e as normas sociais vigentes. Para o Círculo, o enunciado é a unidade da comunicação social, que é estabelecida por elementos concretos capazes de expressar o conteúdo ideológico e semântico. Além disso, todo enunciado entra na corrente da comunicação discursiva respondendo outros enunciados ao mesmo tempo que fomenta enunciados futuros (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). A partir da materialidade do enunciado, os sujeitos podem compreender os sentidos expressos, contudo não é mais a palavra como elemento da língua que atua na produção de sentido, mas sim o signo ideológico.

2 Toda compreensão carrega uma orientação ideológica

Ao abordar o problema do signo, Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. argumenta seu caráter concreto e ideológico. Para o Círculo, o signo ideológico carece necessariamente de enunciado concreto, isto é, o signo ideológico é produzido historicamente e inscrito na dinâmica da interação entre os indivíduos. Os enunciados são produzidos em contextos sociais e, assim, são determinados por condições concretas de produção discursiva. Sabendo que cada grupo social é capaz de produzir orientações ideológicas particulares, Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. ressalta:

Cada campo possui seu próprio material ideológico e forma seus próprios signos e símbolos específicos inaplicáveis a outros campos. Nesse caso, o signo é criado por uma função ideológica específica e é inseparável dela. Já a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa (p.99).

As funções ideológicas apontadas por Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. são diversas, variam conforme as situações concretas de produção e podem contemplar tanto processos que visam a deturpação da realidade quanto aqueles que buscam a fidedignidade dos signos com a realidade que desejam representar. De modo genérico, é possível compreender que as funções ideológicas variam num espectro que abrange a opressão e a emancipação do ser humano.

Desse modo, deslocar os signos ideológicos dos grupos sociais e/ou instituições que os produziram pode induzir análises equivocadas da enunciação e negar princípios básicos das proposições do Círculo, a saber: que o enunciado é produzido em situações concretas (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Essa interpretação fica mais evidente com a interpretação do conceito de determinação e a reflexão sobre quais as implicações do enunciado ser determinado socialmente.

Os signos ideológicos são apropriados pelos sujeitos e influenciam a constituição da consciência humana. O Círculo destaca a importância do papel do signo na consciência e no pensamento, que são essenciais para a produção da personalidade, do ser social e da compreensão. Nesse sentido:

É necessária uma análise profunda e detalhada da palavra na qualidade de signo social, com o propósito de compreender a sua função como um meio da consciência.

Esse papel excepcional da palavra como um meio da consciência determina o fato de que a palavra acompanha toda a criação ideológica como seu ingrediente indispensável. A palavra acompanha e comenta todo ato ideológico. Os processos de compreensão de qualquer fenômeno ideológico (de um quadro, música, rito, ato) não podem ser realizados sem a participação do discurso interior (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.100).

O processo de compreensão está em função da consciência que, por sua vez, é determinada pelos signos ideológicos. Isso significa que a compreensão pode ser interpretada como uma função complexa que tem como base as condições concretas de atuação humana que determinam os signos ideológicos. Os signos ideológicos, por sua vez, são responsáveis pela constituição da consciência. Por fim, a consciência é capaz de compreender, isto é, interpor signos ideológicos sobre o objeto de compreensão - isso significa participar do discurso interior. Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. destaca:

A compreensão de qualquer signo, tanto do exterior quanto do interior, está indissoluvelmente conectada a toda a situação de realização do signo. Mesmo na auto-observação essa situação aparece como um conjunto de fatos da experiência exterior que comenta e elucida o signo interior. Essa situação sempre é social. A orientação dentro da sua própria alma (auto-observação) é realmente inseparável da orientação dentro de uma situação social concreta da vivência (p.134; itálicos no original).

A situação de realização do signo mencionada por Volóchinov contempla diversos elementos verbais e não verbais, signos ideológicos presentes na situação, o contexto de produção ideológica, os grupos sociais participantes da interação, etc. Desse modo, a compreensão é acompanhada por um sistema ideológico, isto é, um conjunto de valores, crenças, conceitos, ideias compartilhadas por determinado grupo social, que permite ao sujeito se posicionar frente ao objeto da compreensão. Volóchinov (2017, p.213) indica que “os sistemas ideológicos formados - a moral social, a ciência, a arte e a religião - se cristalizam a partir da ideologia do cotidiano e, por sua vez, exercem sobre ela uma forte influência inversa, e costumam dar o tom a essa ideologia do cotidiano”. A ideologia do cotidiano por sua vez pode ser entendida como “Todo o conjunto de vivências da vida e expressões externas ligadas diretamente a elas” (VOLÓCHINOV, 2019, p.213). Nesse sentido, podemos entender que existem sistemas ideológicos mais estruturados, que correspondem às esferas de criação ideológicas já cristalizadas e relativamente estáveis, e menos estruturados, que correspondem à ideologia do cotidiano.

Durante a interação social, há a materialização de signos ideológicos que sustentam o processo de compreensão. Assim, é extremamente plausível considerar que argumentos forjados por uma perspectiva ideológica sejam inválidos para sujeitos que se constituem com base em fundamentos ideológicos antagônicos. Não é apenas uma questão de ignorar argumentos, mas de não ver fundamento ideológico neles, o que pode implicar inclusive no questionamento lógico dos mesmos. A respeito disso, Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. ressalta que:

[Q]qualquer pensamento cognitivo se orienta para um sistema ideológico de compreensão dentro do qual esse pensamento encontrará o lugar. Nesse sentido, o meu pensamento, o sistema do meu psiquismo pertence, desde o princípio, a um sistema ideológico e é regido pelas suas leis (p.130).

Para exemplificar a questão ideológica presente na compreensão, é destacada a seguir a interpretação do conceito de liberdade por dois sistemas ideológicos: o liberalismo e o marxismo. Para tanto, é apresentada, inicialmente, a concepção desse conceito presente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que foi influenciada por posicionamentos liberais. O artigo 4º da Declaração estabelece:

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Esse conceito de liberdade foi forjado com base no liberalismo e evidentemente postula a liberdade como garantia do sujeito, garantia que não sobrepuja outras garantias, dentre elas: propriedade, segurança e resistência à prisão; destacadas em outros artigos da mesma declaração. Ao mesmo tempo em que inibe a ação individual desde que não legitimada pelo Estado: “nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente” (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Adotada e proclamada em 26 de agosto de 1789, na França. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em: 25 fev. 2019.
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). Vale ressaltar que a relação entre liberdade e propriedade no liberalismo foi uma condição essencial para o desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, o conceito de liberdade inclui o direito de propriedade privada.

Por outro lado, ao sintetizar o conceito de liberdade nas obras do Jovem Marx, Guedes (2011)GUEDES, O. S. A liberdade em obras do jovem Marx: referências para reflexões sobre ética. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p.155-163, 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802011000200002. Acesso em: 25 fev. 2019.
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ressalta que:

[L]liberdade, na perspectiva da crítica marxiana, é constitutiva da práxis humana e se refere à relação entre teleologia e causalidade. [...] tais causalidades aparecem como fatos dados e perpetua-se a defesa de uma sociabilidade fundada na desigualdade, em que não há possibilidade de escolhas autônomas. Ratifica-se, assim, a necessária superação da defesa da liberdade individual associada aos limites postos por uma universalidade abstrata fundada em máximas morais e em formulações jurídicas (p.161).

De acordo com essa perspectiva, o conceito de liberdade afasta-se da liberdade individual, questiona a propriedade privada e a desigualdade gerada por ela. Indica que a desigualdade inibe a autonomia, uma vez que escolhas autônomas são determinadas por condições concretas de atuação do sujeito, condições essas que não são similares devido às desigualdades sociais. Sendo assim, para Marx, a desigualdade é um dos elementos que impede a liberdade individual, o que conduz à interpretação de que liberdade e propriedade não podem ser direitos igualmente importantes. Além disso, a interpretação marxiana questiona a fundamentação da liberdade em deliberações institucionais, sejam baseadas na moral ou no Estado (jurídico). Portanto, a liberdade marxiana questiona princípios básicos da liberdade do liberalismo, dentre eles: a propriedade privada e sua concentração e a legitimação moral e/ou jurídica.

Os exemplos apresentados mostram as diferenças entre dois sistemas ideológicos acerca do conceito liberdade, evidenciando como dois grupos sociais se posicionam frente aos signos ideológicos, seja para compreender um conceito específico (liberdade), ou como mobilizam outros signos durante o processo de compreensão. Vale ressaltar que os valores compartilhados pelos grupos sociais determinam os signos ideológicos produzidos por eles e vice-versa.

Pensar as práticas educativas sob o viés dos signos ideológicos implica a negação de qualquer tipo de neutralidade. A impossibilidade da neutralidade é determinada por uma série de fatores, dentre eles a preconização de um tipo de saber em detrimento de outro. Não é possível conceber que ensinar Ciências seja uma prática neutra, pois há um valor intrínseco que estabelece a importância dos conhecimentos associados a esta componente curricular independentemente deste valor coincidir com aqueles preconizados por estudantes ou seus responsáveis. Nesse sentido, o ensino de Ciências (e de qualquer outra componente curricular) na educação formal baseia-se em uma orientação ideológica de validade desse conhecimento. Ainda que existam práticas que tentam relativizar esta orientação, a própria estrutura da educação básica reafirma determinados posicionamentos ideológicos frente aos objetos de estudo.

Além dos posicionamentos ideológicos das instituições, sistemas e profissionais de ensino, o estudante também atribui valor ideológico aos signos ao compreender os saberes relativos às componentes curriculares. Esses valores podem estar orientados para validar a perspectiva ideológica apresentada pelo professor ou orientados para contrapor essa perspectiva à medida que defendem posicionamentos e ideias de outras esferas de criação ideológica.

3 Toda compreensão carrega orientação axiológica e é prolongamento da atividade comunicativa

A questão da orientação axiológica relativa à compreensão, isto é, o ato responsivo que atribui valor ao enunciado, é uma das mais evidentes nos trabalhos acadêmicos que usam as contribuições de Bakhtin e do Círculo como referencial teórico (FREITAS; AGUIAR, 2010FREITAS, E. T. F. AGUIAR JR, O. Atividades de elaboração conceitual por estudantes na aula de física da EJA. Ensaio: pesquisa em educação em ciências , v. 12, n. 1, 2010. disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1983-21172010120104. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://dx.doi.org/10.1590/1983-211720101...
; CORSINO, 2015CORSINO, P. Entre ciência, arte e vida: a didática como ato responsivo. Educação & Realidade, v. 40, n. 2, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623646089. Acesso em 25 fev. 2019.
http://dx.doi.org/10.1590/2175-623646089...
; BORTOLOTTO; FIAD, 2017BORTOLOTTO, N.; FIAD, R. S. O espaço público da escola - um mundo significado nas relações eu-outro. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v. 12, n.3, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2176-457330649. Acesso em 25 fev. 2019.
http://dx.doi.org/10.1590/2176-457330649...
; LIMA; RABONI, 2018LIMA, G. S.; RABONI, P. C. A. Padrões de interação verbal em uma aula de Física com uso de atividades experimentais. Nuances, Presidente Prudente, v. 29, p.224-242, 2018. Disponível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/5245. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nu...
; ALMEIDA; LIMA; PEREIRA, 2018). Essa orientação faz alusão ao juízo de valor presente no enunciado; assim, tanto o sujeito que enuncia quanto o seu interlocutor atuam sobre o enunciado demarcando posições axiológicas. Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. afirma:

Na realidade, nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma verdade ou mentira, algo bom ou mal, relevante ou irrelevante, agradável ou desagradável e assim por diante. A palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana. É apenas essa palavra que compreendemos e respondemos, que nos atinge por meio da ideologia ou do cotidiano (p.181; destaque no original).

Os aspectos axiológicos da compreensão são complementares aos ideológicos, não sendo possível determinar relação de dependência. É mais adequado entender as relações entre ideologia e axiologia no âmbito da produção comunicativa como dialéticas, visto que a produção ideológica carece e permite o posicionamento axiológico, assim como a produção axiológica carece e permite o posicionamento ideológico.

A impossível neutralidade dos signos ideológicos exige dos interlocutores um posicionamento axiológico. Nesse sentido, “[T]toda verdadeira compreensão é ativa e possui um embrião de resposta” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.232), que é determinada pelo posicionamento axiológico do interlocutor.

Cabe ressaltar que o posicionamento axiológico presente no ato compreensivo interpõe um signo ideológico já apropriado àquele em processo de compreensão.

Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente. Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas. Quanto maior for o seu número, quanto mais essenciais elas forem, tanto mais profunda e essencial será a compreensão (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.232).

Portanto, a compreensão está em função da capacidade de posicionamento e produção de réplicas frente ao enunciado do outro. Nesse processo, perspectivas ideológicas podem ser confrontadas, disputas que são determinadas pelas condições concretas de produção enunciativa. Se, por um lado, a condição concreta da comunicação social determina as orientações dos signos ideológicos, por outro, os sujeitos que compreendem empregam sobre os objetos discursivos outros signos ideológicos já apropriados. Com isso é possível tanto a convergência quanto a divergência ideológica.

Entender a compreensão como prolongamento da atividade comunicativa implica reconhecer a responsividade inerente ao processo compreensivo, isto é, aquele que compreende posiciona-se frente ao objeto de compreensão. No entanto, este posicionamento não está orientado somente ao que já foi dito, mas também ao que entrará na corrente da comunicação discursiva.

O enunciado não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos subsequentes da comunicação discursiva. Quando o enunciado é criado por um falante, tais elos ainda não existem. Desde o início, porém, o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado [...] Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.261-306. , p.301).

A resposta, por sua vez, é o ato de síntese da compreensão. O momento da resposta é possível apenas mediante os processos de oposição de signo ao signo, de comparação, de posicionamento frente ao objeto compreendido. Por isso, a resposta é fruto de uma síntese dialógica que congrega elementos ideológicos e axiológicos. De acordo com Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.: “Toda compreensão é dialógica” (p.232; destaque no original). A resposta e a compreensão buscam uma antipalavra à palavra do falante. Bakhtin (2006)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.261-306. ressalta ainda que:

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. [...] Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (p.271).

Além de ser um processo responsivo, a compreensão é um desdobramento do processo comunicativo, pois a resposta entra na corrente da comunicação social e passa a ser objeto da compreensão. Com isso, a resposta promove o prolongamento da atividade comunicativa que, ainda que não seja imediata, ocorrerá, uma vez que a compreensão passiva “é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena” (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.261-306. , p.271). Para o Círculo, a ideia de compreensão passiva, isto é, a produção de sentidos por um sujeito sem a exigência de um posicionamento frente aos signos ideológicos, é um momento abstrato e não corresponde aos reais processos de compreensão. A compreensão passiva não passa de um processo mnemônico e de reprodução. A compreensão ativa, por outro lado, “implica uma tomada de posição ativa em relação ao que é dito e compreendido” (ZOZZOLI, 2012ZOZZOLI, R. M. D. A noção de compreensão responsiva ativa no ensino e na aprendizagem. Bakhtiniana , São Paulo, v. 7 n. 1, p.253-269, 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732012000100015. Acesso em: 25 fev. 2019.
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, p.259), ou seja, na compreensão ativa o posicionamento axiológico é essencial e carece da ação do sujeito. Segundo Bakhtin:

A compreensão passiva do significado linguístico de um modo geral não é uma compreensão; é apenas seu momento abstrato, mas é também uma compreensão mais concreta do sentido da enunciação, da ideia do falante. Permanecendo puramente passiva, receptiva, não trazendo nada de novo para a compreensão do discurso, ela apenas dubla, visando, no máximo, a reprodução completa daquilo que foi dado de antemão num discurso já compreendido: ela não vai além do limite do seu contexto e não enriquece aquilo que foi compreendido (2010, p.90).

A compreensão passiva deixa

[...] o falante em seu próprio contexto, em seu próprio círculo, sem fazê-lo sair dos seus limites; eles são inteiramente imanentes ao discurso dele e não rompem a sua independência de expressão e sentido.

Na vida real do discurso falado, toda compreensão concreta é ativa: ela liga o que deve ser compreendido ao seu próprio círculo, expressivo e objetal e está indissoluvelmente fundido a uma resposta, a uma objeção motivada [..]. A compreensão amadurece apenas na resposta. A compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma sem a outra (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. O discurso no romance. In. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Tradução Aurora Fornoni Bernardini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p.71-210., p.90; destaque no original).

Desse modo, por meio do posicionamento axiológico, a compreensão pode ter o assentimento ou o antagonismo ideológico. Grosso modo, tais possibilidades são determinadas pelas classes sociais e condições concretas de produção.

A seguir, apresenta-se um exemplo em que o posicionamento axiológico é evidente na interação verbal. O trecho foi extraído de uma situação de ensino desenvolvida durante uma aula de Física destinada ao 1º ano do ensino médio4 4 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FCT/UNESP (Projeto nº 305/2008). Como os procedimentos respeitaram as resoluções de ética na pesquisa com seres humanos, os nomes são fictícios. Mais informações sobre a situação de ensino podem ser encontradas em Lima (2010). . A situação foi composta por uma atividade experimental que visava problematizar a queda livre dos corpos. O experimento foi manuseado exclusivamente pelo docente, a atividade era acompanhada pelos estudantes e realizada em duas etapas: na primeira o professor abandonou um livro e uma folha de papel (ambos com as mesmas áreas) lado a lado de uma altura de aproximadamente 1,5 metros; na segunda, o professor coloca a folha sobre o livro e os abandona da mesma altura. Durante a realização da atividade, o professor conduz uma interação com os estudantes e um trecho da interação é apresentado a seguir. O trecho ocorre imediatamente após o professor realizar a primeira etapa da experiência e os estudantes explicarem o fato observado devido ao peso dos objetos.

1 Professor - Então pensando na hipótese de que o livro é mais pesado, por isso ele cai primeiro, eu vou só mudar uma coisa: ao invés de soltar a folha livre ao ar eu vou colocar a folha em cima do livro. O que vai acontecer? O professor coloca a folha de papel sobre o livro (as dimensões das áreas do livro e da folha são iguais). 2 João - O livro cai e a folha fica.   3 Professor - Como?   4 João - O livro cai e a folha fica... O aluno faz movimento com a mão simbolizando o movimento da folha. 5 Professor - O livro cai primeiro e a folha cai assim? O Professor faz o mesmo movimento com a mão 6 João - É   7 Professor - Vamos ver?   8 João - Vamos.   9 (...) O Professor solta o livro com a folha em cima dele. 10 Estudantes - (risos)   11 Professor - Aconteceu isso?   12 Antônio - Não   13 João - Professor tem durex?   14 Professor - Não, não tem durex, não tem nada. Quer fazer aqui? Vem aqui. O professor pega a folha e mostra ambos os lados para os estudantes. 15 João - Não   ... ... Interações suprimidas para concentrar especialmente a interação entre esses sujeitos   Professor - Então, inicialmente vocês me disseram o que? Que o livro cai primeiro porque é mais pesado. É verdade isso?     João - Não.   Fonte: Lima (2010)

No trecho acima é evidente uma produção discursiva com elementos verbais e não verbais (atividade experimental), de modo que a interação é estabelecida predominantemente por dois sujeitos, o professor e um estudante (João).

O posicionamento axiológico é evidente no turno 13, momento em que o estudante expressa aquilo que interpretou da atividade realizada pelo professor. Ao questionar sobre o uso de adesivo, o estudante se posiciona ceticamente frente a interpretação da atividade experimental, isto é, avalia a compreensão feita. A fala do turno 13 pode ser considerada uma tentativa de fortalecer e retomar o posicionamento estabelecido pelo mesmo estudante nos turnos 2 e 4, portanto João (estudante) tenta desqualificar a interpretação visual da atividade por meio da suposta inclusão de um elemento explicativo (durex), que, se fosse comprovado, validaria os posicionamentos anteriormente estabelecidos pelo estudante. Contudo, o professor mostra a inexistência do adesivo, situação que induz o estudante a abandonar o posicionamento defendido inicialmente na interação.

A interação apresentada mostra tanto os posicionamentos valorativos quanto sua mudança. Se, num primeiro momento, o estudante acreditava que a livro caía mais rápido porque era mais pesado que a folha, depois do diálogo e da atividade há a reformulação dessa concepção, que denota outro posicionamento valorativo (LIMA, 2010LIMA, G. S. Interações verbais e o uso de atividades práticas no ensino de Física, 2010, 130p., (Dissertação de mestrado na área de Educação), Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente. ). Tal mudança evidencia a natureza processual da compreensão, que é produzida ao longo da interação entre sujeitos e mediada pelos signos ideológicos presentes na situação.

4 Toda compreensão está baseada na representação

A representação simbólica, isto é, a produção ideal de um objeto e sua substituição por meio de uma expressão simbólica, é central para o processo de compreensão, visto que compreender carece necessariamente da internalização de significados que representam determinado objeto ou ideia. Tal consideração é mais evidente quando o foco da reflexão é posicionado sobre a natureza do objeto compreendido.

Os objetos da compreensão são predominantemente produções sociais; mesmo quando eles são elementos naturais, o ser humano não interage com eles como elementos puramente orgânicos ou inorgânicos, mas a partir das inúmeras interpretações sobre eles. O processo de compreensão ocorre por meio da interação entre sujeitos, as suas interpretações interagem e estabilizam a compreensão do objeto. Tal fato não nega as delimitações físicas dos objetos da compreensão, porém os seres humanos qualificam inclusive essas características. Comprimento, largura e altura são qualificadores criados pelo ser humano para descrever as características dimensionais de determinado objeto. Ilyencov (1974) contribui com essa discussão ao destacar a diferença entre conhecimento e objeto: “Uma dessas coisas é o conhecimento como contido em fórmulas gerais, instruções e proposições, e a outra coisa é o caos desestruturado dos fenômenos como dados na percepção”5 5 https://www.marxists.org/portugues/ilyenkov/1974/mes/atividade.htm . Falar que uma caixa possui 30 centímetros de comprimento é uma representação descritiva de uma de suas características, contudo o sentido expresso e o objeto representado não são idênticos. Trata-se de um processo de abstração das características do objeto concreto, seguido pela expressão, por meio de uma convenção compartilhada. Portanto, mesmo os sentidos mais triviais sobre determinado objeto possuem intrinsecamente elementos de produção social que visam atingir a correspondência entre a representação e o objeto.

As representações são estabilizadas por meio dos signos ideológicos. O próprio processo de abstração não ocorre num plano abstrato, ele sofre coerções dos contextos de produção e, por isso, é determinado pelos signos ideológicos. Assim, os signos ideológicos influenciam tanto o processo de abstração necessário para a produção da representação e da expressão quanto a interação do sujeito com aquilo que foi expresso e está sendo representado.

De acordo com Volóchinov (2017, p.95)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.:

a própria compreensão pode ser realizada apenas em algum material sígnico (por exemplo, no discurso interior). Eles [idealistas] desconsideram que um signo se opõe a outro signo e que a própria consciência pode se realizar e se tornar um dado efetivo apenas encarnada em um material sígnico.

O enunciado busca sintetizar as significações de um determinado objeto ou de suas características para que elas sejam apreciadas por outro. No enunciado há, portanto, a produção de uma representação sobre o objeto, seguida de um processo em que o outro tenta compreender o objeto representado. Nesse sentido, compreensão e enunciação são processos interdependentes, o processo de compreender o enunciado do outro carece da fala alheia, assim como o sujeito que enuncia, fala para ser compreendido.

O interlocutor, por sua vez, não é inerte no processo em que o locutor enuncia. Ele determina tanto as formas da expressão quanto as relações entre os signos que são estabelecidas pelo locutor. Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. destaca que “a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte” (p.205; destaques no original). Além disso, “o enunciado, ao mesmo tempo em que é constituído nas correlações com os ‘já ditos’, é também orientado pelas respostas que ainda não foram produzidas” (LIMA; GIORDAN, 2017LIMA, G. S.; GIORDAN, M. Características do discurso de divulgação científica: implicações da dialogia em uma interação assíncrona. Investigações em Ensino de Ciências (online), v. 22, p.83-95, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22600/1518-8795.ienci2017v22n2p83. Acesso em: 11/03/2019.
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). Dessa forma, a compreensão ocorre em meio a um processo dialético e dialógico de produção de sentido em que todos os sujeitos que participam do processo comunicativo estabelecem modos particulares de compreender o objeto discursivo. Dialético porque envolve um movimento progressivo baseado na contraposição de significações em busca de uma síntese que expresse o sentido produzido. E dialógico porque a própria compreensão entra na corrente da comunicação social respondendo ativamente enunciados e fomentando novas respostas. O desenvolvimento do diálogo promove um processo evolutivo da compreensão, em que os novos elementos inseridos na interação comunicativa corroboram com o rigor, precisão e acurácia da compreensão.

Assim, num processo comunicativo a compreensão sempre está em função de uma relação dialética entre os sujeitos envolvidos. A compreensão irá depender da capacidade de expressão, bem como da capacidade de “opor signo ao signo” dos sujeitos, especialmente porque durante o processo de compreensão o interlocutor passa a ocupar a posição de locutor e vice-versa. A alternância das posições dos sujeitos durante a comunicação permite que a compreensão seja reelaborada e redefinida pelos participantes, indicando que o processo é contínuo e estabelecido em meio à relação social. Portanto, a compreensão não é um processo que ocorre exclusivamente na consciência do sujeito que compreende, mas sim em um meio social em que os sentidos são negociados pelos participantes do processo comunicativo. Ressalta-se que é fundamental considerar que as posições dos sujeitos em processo comunicativo variam constantemente, portanto o interlocutor passa a ser locutor e vice-versa; quanto mais intensa e contínua for a alternância das posições dos sujeitos maior é a probabilidade de desenvolvimento da compreensão sobre o objeto.

Ao menos dois sujeitos participam do processo de compreensão, portanto existe algum tipo de interação entre eles. A interação entre os sujeitos é duplamente mediada, isto é, depende tanto do enunciado quando do objeto da compreensão. Assim, as relações entre os sujeitos ocorrem por intermédio do enunciado e do objeto; estes, por sua vez, possuem uma relação de representação, ou seja, o enunciado busca representar o objeto.

Partindo de uma interpretação materialista histórica, a origem do processo está no objeto, que é compreendido pelo sujeito (locutor)6 6 O locutor pode ter realizado diversos processos de compreensão antes de determinada interação comunicativa, seja pela transmissão cultural, desenvolvimento científico, experiência com o objeto, etc. . Em seguida, há um processo de produção expressiva em que o locutor produz um enunciado visando a que o interlocutor interprete aquilo que está sendo representado. Com a materialização da expressão, o interlocutor realiza diversos processos associativos, dissociativos e comparativos com signos ideológicos durante a interpretação. Isto permite que o interlocutor produza o objeto socialmente, ou seja, que ele comece a reconhecer o objeto de acordo com suas funções sociais, características sistematizadas, juízos de valor, etc. Todos os processos elencados, interpretação, expressão e produção social, são desenvolvidos por meio do uso de signos ideológicos que determinam os graus de compreensão e (re)produção social do objeto. A síntese da compreensão por meio da resposta promove a alternância da posição dos sujeitos, assim o interlocutor se torna falante e pode inserir novos elementos no processo.

Ressalta-se que a compreensão depende da articulação de elementos e significados que o sujeito domina para mobilizar aquilo que está em processo de compreender. Volóshinov (2017, p.95) destaca:

Porque a compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com signos. Essa cadeia da criação e da compreensão ideológica, que vai de um signo a outro e depois para um novo signo, é única e ininterrupta: sempre passamos de um elo sígnico, e portanto material, a outro elo também sígnico. Essa cadeia nunca se rompe nem assume uma existência interna imaterial e não encarnada no signo.

Com isso, a compreensão só pode ser alcançada à medida que os sujeitos que compreendem sejam capazes de deslocar signos ideológicos para que uns relacionem-se com outros produzindo novos sentidos que estão orientados para o objeto da compreensão.

Nenhum signo cultural permanece isolado se for compreendido e ponderado, pois ele passa a fazer parte da unidade da consciência verbal formalizada. A consciência sempre saberá encontrar alguma aproximação verbal com o signo cultural. Por isso, em torno de todo signo ideológico se formam como que círculos crescentes de respostas e ressonâncias verbais. Qualquer refração ideológica da existência em formação, em qualquer material significante, que seja é acompanhada pela refração ideológica na palavra como um fenômeno obrigatório concomitante. A palavra está presente em todo ato de compreensão e em todo ato de interpretação (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.101; destaques do autor).

Portanto, os aspectos representativos indicam o posicionamento responsivo dos sujeitos que compreendem, uma vez que a própria decodificação dos significados enunciados carece de interações com outros signos ideológicos. Com isso, a compreensão se instaura durante a interação entre sujeitos, momento em que o objeto representado é acompanhado pela responsividade daqueles que interagem e compreendem. Fato que fomenta o prolongamento da atividade comunicativa.

Considerações finais

Este artigo visou a sintetizar o conceito de compreensão utilizado por Bakhtin e o Círculo. Esse conceito tem sido utilizado nas investigações do campo educacional e pode contribuir com o debate acerca dos processos educativos. O trabalho denotou quatro aspectos fundamentais do processo de compreensão: ideológico, axiológico, comunicativo e representativo.

Os aspectos destacados por este trabalho evidenciam a dimensão responsiva da compreensão, tal como já apontado por Zozzoli (2012)ZOZZOLI, R. M. D. A noção de compreensão responsiva ativa no ensino e na aprendizagem. Bakhtiniana , São Paulo, v. 7 n. 1, p.253-269, 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2176-45732012000100015. Acesso em: 25 fev. 2019.
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, que reitera “a oposição à descrição abstrata e passiva da língua e a defesa do diálogo, da atitude e da compreensão responsivas ativas” (p.268).

Todos esses aspectos são indissociáveis das condições concretas de produção enunciativa, que indicam a particularidade do processo de compreensão, uma vez que ele sempre será singular e irrepetível. Matusov (2015)MATUSOV, E. Comprehension: A dialogic Authorial Approach. Culture & Psychology, v. 21(3), pp.392-416, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/1354067X15601197. Acesso em: 25 fev. 2019.
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destaca:

Uma mensagem repetida chega a ter um novo significado de ser “repetida” e “revogada” entre outros possíveis significados (por exemplo, considerar uma batalha judicial por patentes originais e direitos autorais). Bakhtin argumentou que, no significado de duas mensagens, qualquer coisa que pareça “a mesma” não é na verdade a mesma em uma investigação detalhada (p.397; tradução livre)7 7 No original: “A repeated message even gets a new meaning from being ‘‘repeated’’ and ‘‘revoiced’’ among other possible meanings (e.g. consider a court battle for original patents and copyright). Bakhtin argued that in the meanings of two messages, anything that looks ‘‘the same’’ is not actually the same on close investigation”. .

Tais diferenças existentes em uma mensagem repetida podem ser entendidas devido à alteração das condições concretas de produção enunciativa e compreensão discursiva; ao ouvir um enunciado repetido, a posição axiológica do sujeito que compreende sempre será diferente da posição axiológica tomada pela primeira vez; além disso, os contextos comunicativos e representativos serão outros, inclusive os sujeitos podem ter associado novos signos ideológicos durante a repetição.

Por fim, baseado nas reflexões apresentadas por esse artigo, cabe ressaltar a impossível neutralidade no processo de compreensão, pois a compreensão requer do sujeito posicionamento: ideológico, axiológico e semântico.

  • 1
    Não se trata de uma referência à transmissão como método de ensino, que é amplamente criticada, mas sim como processo de manutenção e produção da cultura humana através das gerações.
  • 2
    O freudismo: um esboço crítico é uma das obras cuja autoria é disputada. O artigo faz referência à Bakhtin (2012)BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. Tradução Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012., devido à tradução utilizada.
  • 3
    Volóchinov, em Marxismo e filosofia da linguagem, indica que o conceito de determinação converge com a interpretação do marxismo histórico e dialético. Ao discutir a relação entre a base e a superestrutura e indicar que a base determina a superestrutura, Volóchinov (2017, p.103)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. defende: “Se a causalidade for entendida mecanicamente tal como ela é compreendida e definida até os dias de hoje pelos representantes positivistas do pensamento científico natural, essa tese estaria completamente errada e contradiria as próprias bases do materialismo dialético”; em seguida acrescenta: “O signo verbal é o caminho mais fácil e abrangente para acompanhar o caráter ininterrupto do processo dialético de mudança que ocorre da base em direção às superestruturas” (VOLÓCHINOV, p.114). Nesse sentido, o conceito de determinação é entendido não como um tipo de fixação de limites pré-concebidos a partir de proposições ideais, mas como a existência de pressões exercidas pelas condições concretas de produção (WILLIAMS, 2011WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). Todas as menções ao termo/conceito determinação devem ser assim interpretadas.
  • 4
    O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FCT/UNESP (Projeto nº 305/2008). Como os procedimentos respeitaram as resoluções de ética na pesquisa com seres humanos, os nomes são fictícios. Mais informações sobre a situação de ensino podem ser encontradas em Lima (2010)LIMA, G. S. Interações verbais e o uso de atividades práticas no ensino de Física, 2010, 130p., (Dissertação de mestrado na área de Educação), Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente. .
  • 5
  • 6
    O locutor pode ter realizado diversos processos de compreensão antes de determinada interação comunicativa, seja pela transmissão cultural, desenvolvimento científico, experiência com o objeto, etc.
  • 7
    No original: “A repeated message even gets a new meaning from being ‘‘repeated’’ and ‘‘revoiced’’ among other possible meanings (e.g. consider a court battle for original patents and copyright). Bakhtin argued that in the meanings of two messages, anything that looks ‘‘the same’’ is not actually the same on close investigation”.

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.1590/1983-21172019210119
  • ANGELO, C. M. P.; MENEGASSI, R. J. Manifestações de compreensão responsiva em avaliação de leitura. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.14, n.1, p.201-221, 2011. Disponível em: http://www.rle.ucpel.tche.br/index.php/rle/article/view/14 Acesso em: 25 fev. 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2020
  • Aceito
    01 Jun 2020
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