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Introdução ao dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu” (segunda parte)

Introduction to dossier Anthropology, archaeology and linguistics in the Upper Xingu (second part)

No presente número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, damos continuidade à publicação do dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu”, com seis artigos, de autoria de Autaki Waurá, Emilienne Ireland, Christopher Ball, Patrícia Rodrigues-Niu, Tiago Braga Sá, Bruna Franchetto, Gélsama Mara Ferreira dos Santos, Bruno Moraes, Ashauá Didi Kuikuro, Antonio Guerreiro e Aline Regitano, após a publicação de trabalhos de Patrícia Rodrigues-Niu e Mafalda Ramos, Kanawayuri Kamaiurá e Mayaru Kamayurá, Marina Pereira Novo, Amanda Horta, Carlos Eduardo Costa e João Carlos Almeida, no v. 18, n. 1 (https://www.scielo.br/j/bgoeldi/i/2023.v18n1/).

Na primeira parte do dossiê, foram contemplados trabalhos com novos recortes, abordagens e protagonismos, materializando redes de troca e convivência entre os povos xinguanos e pesquisadore/as de diferentes disciplinas na contemplação da nova vida indígena do século XXI. Em contraste com aqueles trabalhos, neste novo conjunto de artigos, essa longa convivência se desdobra no aprofundamento de questões clássicas do interesse da antropologia, da arqueologia e da linguística na região e nas terras baixas sul-americanas, refinando conceitos e adensando descrições em perspectivas históricas que vão se dilatando e detalhando ao longo das décadas.

O presente número se abre com três trabalhos desenvolvidos entre o povo Wauja, desde diferentes gerações e disciplinas, cuja leitura concomitante oferece a oportunidade de pensar a complementaridade e a potencialidade da colaboração entre diferentes posições e vocabulários da pesquisa, tanto neste contexto específico, quanto, de modo mais amplo, para o universo xinguano.

O artigo do antropólogo wauja Autaki Waurá (2023)Waurá, A. (2023). Educação Wauja no contexto da reclusão pubertária. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220085. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0085
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trata de um tema clássico do interesse etnológico, o da prática da reclusão pubertária, crucial na produção da pessoa indígena e de suas relações e potencialidades na vida adulta, e, portanto, na bibliografia etnológica do século XX. O exercício da descrição etnográfica, feito pelo autor de dentro das redes de parentesco e convivência, reposiciona esse tema não apenas como uma questão enfrentada cotidianamente pelas comunidades, mas como um problema na composição de uma nova vida cotidiana e de novas expectativas com relação à vida das pessoas e coletividades wauja.

As transformações do presente e o teor da relação deste tempo com um passado recente entre os Wauja são abordados por Emilienne Ireland (2023)Ireland, E. (2023). Village schools, power, and new inequalities: how schools affect the Wauja local economy, political system, and domestic relationships. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20230004. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0004
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, em extenso relato que resulta de quatro décadas de convivência. Trata-se de uma observação afetuosa e íntima das transformações dos modos de produção e distribuição em meio às relações e à economia no cotidiano wauja, com especial atenção aos modos como salários e produtos industrializados vêm sendo incorporados e afetam essas redes. Ireland (2023)Ireland, E. (2023). Village schools, power, and new inequalities: how schools affect the Wauja local economy, political system, and domestic relationships. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20230004. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0004
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repercute assim, de modo renovado e adensado, um ponto de atenção de pesquisas dos anos 1950 e 1960 – período em que o Parque do Xingu era um espaço controlado para a observação da vida indígena por uma ciência social fortemente inclinada à economia – e também dos debates indigenistas dos anos 1970 a 1990.

O problema da temporalidade a atravessar esses dois artigos é abordado de modo direto por Christopher Ball e Patrícia Rodrigues-Niu (2023)Rodrigues-Niu, P. F., & Ball, C. (2023). Tempo distribuído e pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220092. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0092
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, numa colaboração fértil entre a linguística e a etnoarqueologia. A disposição dos diferentes tempos a se entrelaçarem no espaço vivido e pensado pelos Wauja, observada por ocasião de mapeamento etno-histórico, oferece a oportunidade de descrever diferentes cronotopos discursivos e os modos de marcar e correlacionar tempos em convivências mais ou menos intensas, conforme a situação. Num momento em que os regimes de temporalidade e historicidade indígenas atravessam de modo crucial políticas de memória e patrimônio cultural, as sutilezas da pragmática caracterizadas por Ball e Rodrigues-Niu (2023)Rodrigues-Niu, P. F., & Ball, C. (2023). Tempo distribuído e pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220092. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0092
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fornecem importantes recursos descritivos e metodológicos para diferentes ambientes de construção compartilhada.

A contribuição de Tiago Braga Sá, Bruna Franchetto, Gélsama Mara Ferreira dos Santos, Bruno Moraes e Ashauá Didi Kuikuro (2023)Sá, T. B., Franchetto, B., Santos, G. M. F., Moraes, B., & Kuikuro, A. D. (2023). Tempo, espaço e chefias no Alto Xingu: uma análise de akinha kuikuro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220024. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0024
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parte de um ponto comum ao do artigo anterior, o das ‘línguas sem flexão verbal de tempo (tense)’, observando a construção de temporalidades em narrativas kuikuro, enfocando o tema da organização social e política. A historiografia construída pelos Kuikuro e suas conexões à paisagem são aqui trabalhadas como um modo de observar o que a autora caracteriza como “a natureza espacial das chefias do Alto Xingu e, de forma análoga, . . . . a natureza política do espaço do Alto Xingu”. A importância no ambiente xinguano dos temas da temporalidade e da historicidade, e da chefia e da política repercute, assim, diferentes problemas e perguntas apontados ao longo desta parte do dossiê, mas também com importantes conexões com os textos da primeira parte.

Em outra chave de observação local, mas com potencial intrínseco para uma observação regional, Antonio Guerreiro (2023)Guerreiro, A. (2023). Repensando o parentesco xinguano: elementos para a análise computacional de uma rede multiétnica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220083. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0083
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apresenta resultados preliminares de levantamento de redes de parentesco entre os Kalapalo. Num ambiente intensamente interétnico como o do Alto Xingu, os padrões de aliança e do parentesco tecem um sistema semicomplexo, como possibilidades de escolha que podem se articular entre si no transcorrer do tempo e do desenvolvimento das redes. Como o autor indica, as ferramentas usadas, que permitem observar padrões numa escala numérica significativa – o que é relevante no ambiente xinguano –, devem permitir futuramente a observação de outras dimensões da vida xinguana estruturadas em torno do parentesco, como a política e a transmissão de conhecimentos.

O dossiê se encerra com o trabalho de Aline Regitano (2023)Regitano, A. (2023). A neta de Ahira: palavras de uma pajé mehinako. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220084. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0084
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, que apresenta uma etnografia do envolvimento de mulheres em atividades xamânicas e políticas a partir dos itinerários biográficos e de uma fala da liderança, ceramista, pajé, raizeira, rezadeira e parteira Kamaya (Iamony) Mehinako – que, assim como o cacique Aritana Yawalapiti, biografado no número anterior, faleceu durante a epidemia de COVID-19. O envolvimento de mulheres no complexo xamânico xinguano dá ensejo a uma observação do papel das mulheres na produção de redes de parentesco e redes cosmopolíticas no Alto Xingu, sugerindo diferentes perspectivas para pensar a agência feminina na região, também ela em transformação.

Agradecemos a todos os autores que se engajaram conosco nos dois anos de preparação desta publicação e convidamos os leitores a participarem das discussões com uma pergunta que nos parece atravessar o dossiê, ora completo. A região do Alto Xingu se construiu no tempo como um espaço de convivências longas e intensas e, por isso, ela foi pensada, no século XX, como um laboratório para observar processos de ‘aculturação’ entre diferentes povos, em um contexto considerado então relativamente protegido do ‘contato’ com a colonização cuja presença se intensificava. No século XXI, ao mesmo tempo em que surgem novas possibilidades de troca e comunicação nos ambientes indígenas, as pesquisas antropológicas, arqueológicas e linguísticas dispõem de ferramentas conceituais e de documentação mais diversas e refinadas. Nesse cenário, em que medida o problema da transformação da vida xinguana – pautado cotidianamente pelas próprias lideranças e famílias indígenas – e da agência xinguana sobre essa transformação pode ser recolocado em termos de uma experiência cotidiana da diferença? E quais novas formas e posições da pesquisa se poderão construir diante desse problema?

  • Barcelos Neto, A., & Valentini, L. (2023). Introdução ao dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu” (segunda parte). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20230095. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0095.

REFERÊNCIAS

  • Guerreiro, A. (2023). Repensando o parentesco xinguano: elementos para a análise computacional de uma rede multiétnica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220083. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0083
    » https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0083
  • Ireland, E. (2023). Village schools, power, and new inequalities: how schools affect the Wauja local economy, political system, and domestic relationships. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20230004. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0004
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  • Regitano, A. (2023). A neta de Ahira: palavras de uma pajé mehinako. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220084. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0084
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  • Rodrigues-Niu, P. F., & Ball, C. (2023). Tempo distribuído e pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220092. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0092
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  • Sá, T. B., Franchetto, B., Santos, G. M. F., Moraes, B., & Kuikuro, A. D. (2023). Tempo, espaço e chefias no Alto Xingu: uma análise de akinha kuikuro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220024. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0024
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  • Waurá, A. (2023). Educação Wauja no contexto da reclusão pubertária. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220085. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0085
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Editado por

Responsabilidade editorial: Jimena Felipe Beltrão

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2023
  • Aceito
    27 Out 2023
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