Acessibilidade / Reportar erro

Conhecimento ecológico tradicional da comunidade de Limpo Grande sobre a vegetação, Várzea Grande, Mato Grosso, Brasil

Traditional ecological knowledge of vegetation in the community of Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso, Brazil

Resumos

O estudo foi conduzido na comunidade de Limpo Grande, localizada a 23 km do município de Várzea Grande, Mato Grosso. Para verificar a possibilidade de os informantes organizarem o conhecimento ecológico tradicional da vegetação de acordo com uso o trabalho, buscou-se os seguintes objetivos: i) conhecer as espécies de cada domínio cultural indicado pelos informantes; ii) verificar a existência de consenso cultural para cada domínio cultural; iii) analisar a similaridade das espécies dos domínios culturais. Utilizou-se entrevista estruturada para obtenção dos dados da lista livre e dados socioeconômicos. A lista livre foi analisada por meio do índice de Smith, consenso cultural e escalonamento multidimensional. Os informantes definiram três domínios culturais com base no uso da vegetação: plantas (utilizadas para o cultivo), mato (vegetação nativa que apresenta diversos usos) e plantas medicinais (utilizadas para tratamento de enfermidades). O domínio cultural de plantas foi representado por 107 espécies; mato, por 96; e plantas medicinais, por 99 espécies. Para os três domínios, pode-se verificar a existência de consenso cultural. Verificou-se baixa similaridade entre as espécies dos domínios. Os critérios utilizados pelas comunidades tradicionais para uso e manejo da vegetação podem contribuir para elaboração de políticas públicas destinadas à conservação da biodiversidade ecológica e cultural.

Consenso cultural; Domínio cultural; Etnobotânica


This study was conducted in the community of Limpo Grande, located 23 km from the city of Várzea Grande, Mato Grosso, Brazil. In order to investigate the way informants organize traditional ecological knowledge of vegetation according to its use, our research had the following objectives: i) to identify the species of each cultural domain indicated by the informants; ii) check for cultural consensus within each cultural domain; iii) to analyze the similarity of the species of the cultural domains. We used structured interviews to obtain socioeconomic data and data from the free list. The free list was analyzed by means of the Smith index, cultural consensus and multidimensional scaling. Informants defined three cultural domains based on the use of vegetation, whether the plants are those used for cultivation, are medicinal plants used to treat diseases, or are considered native vegetation with several different uses. The domain of cultural plants is represented by 107 species, weeds by 96 species and medicinal plants by 99 species. For the three domains, the existence of cultural consensus can be verified. There was little similarity between species from different domains. The criteria used by traditional communities for vegetation management and use may contribute to the development of public policies for the conservation of ecological and cultural biodiversity.

Cultural consensus; Cultural domain; Ethnobotany


INTRODUÇÃO

As plantas possuem sempre uma grande importância em muitas culturas e são utilizadas para suprir necessidades básicas, como alimentação, vestuário, moradia e para fins medicinais (Vitalini et al., 2009VITALINI, S.; TOME, F.; FICO, G. Traditional uses of medicinal plants in Valvestino (Italy). Journal of Ethnopharmacology, v. 121, n. 1, p. 106-116, 2009.). Nesse sentido, a existência atual de muitas sociedades deve-se às conquistas dos seus ancestrais e, sem dúvida, entre elas está o manejo da diversidade vegetal (Thomas e Van Damme, 2010THOMAS, E.; VAN DAMME, P. Plant use and management in homegardens and swiddens: evidence from the Bolivian Amazon. Agroforestry Systems, v. 80, n. 1, p. 131-152, 2010.).

O manejo, a coleta e o consumo da vegetação são documentados em vários contextos culturais e ocorrem desde em áreas de agricultura intensiva até áreas mais intocadas, como as florestas, ilustrando a vasta importância e utilização das plantas em muitas sociedades humanas (Cruz-Garcia e Price, 2011CRUZ-GARCIA, G. S.; PRICE, L. Ethnobotanical investigation of ‘wild’ food plants used by rice farmers in Kalasin, Northeast Thailand. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v. 7, p. 7-33, 2011.). As comunidades tradicionais adotam práticas e estilo de vida relevantes para a proteção do ambiente e manutenção da diversidade biológica (Morais et al., 2009MORAIS, F. F.; MORAIS, R. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre plantas cultivadas pelos pescadores da comunidade Estirão Comprido, Pantanal Matogrossense, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4, n. 2, p. 277-294, 2009.; Giraldi e Hanazaki, 2010GIRALDI, M.; HANAZAKI, N. Uso e conhecimento tradicional de plantas medicinais no Sertão do Ribeirão, Florianópolis, SC, Brasil. Acta Botanica Brasilica, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 395-406, 2010.; Leonel, 2010LEONEL, T. Breves considerações a respeito dos conhecimentos tradicionais como bens culturais imateriais. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 185-192, 2010.; Zuchiwschi et al., 2010ZUCHIWSCHI, E.; FANTINI, A. C.; ALVES, A. C.; PERONI, N. Limitações ao uso de espécies florestais nativas podem contribuir com a erosão do conhecimento ecológico tradicional e local de agricultores familiares. Acta Botanica Brasilica, v. 24, n. 1, p. 270-282, 2010.). Formas de apropriação e criação do saber a respeito do seu ambiente natural geralmente ocorrem pelas práticas produtivas (Toledo, 1992TOLEDO, V. M. What is Ethnoecology? Origins, scope and implications of a rising discipline. Etnoecológica, v. 1, n. 1, p. 5-21, 1992.).

O termo ‘conhecimento ecológico tradicional’ (CET) pode ser utilizado para se referir ao corpo cumulativo de conhecimento, prática e crença, que evolui por meio de processos adaptativos e passados através das gerações por transmissão cultural, acerca das relações entre os seres vivos e com seu ambiente (Berkes et al., 2000BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. Rediscovery of traditional ecological knowledge as adaptive management. Ecological Applications, v. 10, n. 5, p. 1251-1262, 2000.). Neste contexto, a etnobotânica possibilita os estudos das interações e relações entre plantas e pessoas no tempo e no espaço, o que inclui o uso, conhecimento, crenças, sistemas de gestão, classificação e linguagem, tanto nas culturas modernas quanto nas tradicionais (Kauai Declaration, 2007KAUAI DECLARATION. Ethnobotany, the science of survival: a declaration from Kaua’i. Economic Botany, v. 61, n. 1, p. 1-2, 2007.).

Existe uma preocupação para conhecer e preservar as relações entre as espécies vegetais, as pessoas e o ambiente que se dá através do uso e do manejo da biodiversidade. A coleta de informações sobre as comunidades tradicionais é fundamental para a obtenção de características específicas de cada local de estudo, baseadas em seus aspectos culturais (Löbler et al., 2014LÖBLER, L.; SANTOS, D.; RODRIGUES, E. S.; ZAMBERLAN, N. R. S. Levantamento etnobotânico de plantas medicinais no bairro Três de Outubro da cidade de São Gabriel, RS, Brasil. Revista Brasileira de Biociência, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 81-89, 2014.). Para Shackeroff e Campbell (2007)SHACKEROFF, J. M.; CAMPBELL, L. M. Traditional ecological knowledge in conservation research: problems and prospects for their constructive engagement. Conservation and Society, v. 5, n. 3, p. 343-360, 2007., o CET pode ser investigado para preencher lacunas no conhecimento sobre as espécies consideradas importantes pelos pesquisadores, a fim de entender as práticas de gestão tradicionais e como estas contribuem para a conservação de recursos. Assim, são necessários estudos que registrem as práticas de manejo da vegetação, principalmente em face das rápidas mudanças socioeconômicas pelas quais passa a maioria das comunidades tradicionais (Hanazaki, 2004HANAZAKI, N. Etnobotânica. In: BEGOSSI, A. (Org.). Ecologia de pescadores da Mata Atlântica e da Amazônia. São Paulo: HUCITEC/NEPAM-UNICAMP/NUPAUB-USP, 2004. p. 37-57.).

Para Caulkins e Hyatt (1999)CAULKINS, D.; HYATT, S. B. Using consensus analysis to measure cultural diversity in organizations and social movements. Field Methods, v. 11, n. 1, p. 5-26, 1999., o estudo do domínio cultural ajuda a entender não só as possíveis diferenças estruturais e processuais entre organizações, como também as mudanças ao longo do tempo. Estudos com este enfoque são importantes, pois às vezes tem-se uma ideia geral do domínio, mas não se sabe exatamente quais itens (grupo de espécies) pertencem a um determinado domínio, uma vez que ele pode variar entre as comunidades ou até mesmo entre os integrantes de uma comunidade (Cruz-Garcia e Price, 2011CRUZ-GARCIA, G. S.; PRICE, L. Ethnobotanical investigation of ‘wild’ food plants used by rice farmers in Kalasin, Northeast Thailand. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v. 7, p. 7-33, 2011.). O domínio cultural, de acordo com Vogl et al. (2004)VOGL, C. R.; VOGL-LUKASSER, B.; PURI, R. K. Tools and methods for data collection in ethnobotanical studies of homegardens. Field Methods, v. 16, n. 3, p. 285-306, 2004., é um grupo de elementos ou itens organizados conforme as regras ou critérios culturalmente determinados, por exemplo, o domínio de “plantas medicinais” ou “plantas cultivadas”. Assim, a análise de consenso cultural mostra-se como uma grande promessa nas pesquisas que envolvem as ciências sociais, pois poderá auxiliar na investigação das estruturas cognitivas do conhecimento ecológico tradicional (Grant e Miller, 2004GRANT, K. L.; MILLER, M. L. A cultural consensus analysis of marine ecological knowledge in the Solomon Islands. SPC Traditional Marine Resource Management and Knowledge Information Bulletin, n. 17, p. 3-13, 2004.).

Trabalhos com objetivo de analisar o consenso cultural em comunidades pantaneiras foram realizados por Bertsch et al. (2006)BERTSCH, C.; VOGL, R. C.; SILVA, J. C. Ethnoveterinary medicine for cattle and horses in the northern Pantanal Matogrossense, Brazil. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF ETHNOBOTANY, 4., 2006, Istanbul. Anais… Istanbul: Ege Yayinlari, 2006. p. 233., que verificaram esse aspecto em relação a plantas medicinais utilizadas para tratamento de gado entre moradores de áreas urbana e rural; Galdino e da Silva (2007)GALDINO, Y. S. N.; DA SILVA, C. J. A casa pantaneira – moradia tradicional de uma comunidade ribeirinha do Pantanal Matogrossense. In: ENCONTRO NACIONAL/ENCONTRO LATINO AMERICANO SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS, 4./2., 2007, Campo Grande. Anais... Campo Grande: ANTAC, 2007. p. 1276-1285. analisaram a vegetação nativa utilizada por pescadores para construção de casas; Morais et al. (2009)MORAIS, F. F.; MORAIS, R. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre plantas cultivadas pelos pescadores da comunidade Estirão Comprido, Pantanal Matogrossense, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4, n. 2, p. 277-294, 2009. e Morais e da Silva (2011)MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Etnoecologia de plantas nativas na comunidade de estirão comprido, pantanal matogrossense – Brasil. Revista de Ciências Agro-Ambientais, v. 9, n. 1, p. 13-30, 2011. investigaram o conhecimento de pescadores a respeito de plantas cultivadas e nativas, respectivamente; Morais e da Silva (2010)MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre as fruteiras para pesca na comunidade de Estirão Comprido, Barão de Melgaço – Pantanal Matogrossense. Biota Neotrópica, v. 10, n. 3, p. 197-203, 2010. analisaram o consenso de plantas frutíferas utilizadas na atividade da pesca. Estes estudos indicam que as comunidades utilizam critérios para organizar o domínio cultural e que a definição de suas fronteiras é de fundamental importância para análise do CET, possibilitando uma melhor aplicabilidade em modelos de conservação e manejo da biodiversidade.

A hipótese deste trabalho é de que a comunidade de Limpo Grande organiza seu CET de acordo com o uso da vegetação. Para tanto, este estudo teve os seguintes objetivos: i) conhecer as espécies de cada domínio cultural indicado pelos informantes; ii) verificar a existência de consenso cultural para cada domínio cultural indicado pelos informantes; iii) verificar a similaridade entre as espécies dos domínios culturais.

MATERIAL E MÉTODOS

ÁREA DE ESTUDO

O Pantanal mato-grossense é uma depressão sazonalmente alagável, totalmente contida na bacia de drenagem do alto Paraguai e compreende aproximadamente 140.000 km2 (Brasil, 1982BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Secretaria-Geral. Projeto RADAMBRASIL. Folha SE-21 Corumbá; Geologia, Geomorfologia, Pedologia, Vegetação e Uso Potencial da Terra. Rio de Janeiro, 1982. (Levantamento de Recursos Naturais, 27)., p. 640). Está situado no extremo oeste do território brasileiro e em Mato Grosso compreende os municípios de Poconé, Santo Antônio do Leverger, Cáceres, Barão de Melgaço e Nossa Senhora do Livramento.

O clima da região é do tipo AW, de acordo com classificação de Köppen, e apresenta duas estações bem definidas: seca (maio até setembro) e chuvosa (outubro a abril) (Cunha e Junk, 1999CUNHA, C. N.; JUNK, W. J. Composição florística de capões e cordilheiras: localização de espécies lenhosas quanto ao gradiente de inundação no Pantanal de Poconé-MT. In: SIMPÓSIO DE RECURSOS NATURAIS E SOCIO-ECONÔMICOS DO PANTANAL, 3., 1999, Corumbá. Anais... Corumbá: EMBRAPA, 1999. v. 2, p. 134-148.). A precipitação máxima chega a 1.384 mm no mês de janeiro, e a temperatura média anual é de 25 °C. O processo de inundação sazonal é dividido em quatro fases: enchente e cheia (outubro a abril), vazante e seca (maio a setembro) (Rebellato e Cunha, 2005REBELLATO, L.; CUNHA, C. N. Efeito do “fluxo sazonal mínimo da inundação” sobre a composição e estrutura de um campo inundável no Pantanal de Poconé, MT, Brasil. Acta Botanica Brasilica, v. 19, n. 4, p. 789-799, 2005.).

A COMUNIDADE DE LIMPO GRANDE

Limpo Grande é uma comunidade pertencente ao distrito de Capão Grande e está a 23 km do centro de Várzea Grande. Na comunidade, residem cerca de 250 moradores com alto grau de parentesco. Ela foi desmembrada do município de Nossa Senhora do Livramento (Mato Grosso) com a criação do município de Várzea Grande e se firmou definitivamente a partir do governo de Getúlio Vargas.

As principais atividades econômicas são a agricultura familiar e o artesanato de redes. Os homens passam a maior parte do tempo em suas roças, mas também pescam e prestam trabalhos temporários em fábricas de cerâmicas ou em fazendas e, aos finais de semana, comercializam parte da produção. As mulheres são responsáveis pelo artesanato das redes, realizam trabalhos domésticos e ajudam os homens nas atividades agrícolas. A comunidade é conhecida pelas famosas redes cuiabanas e pelo cultivo de maxixe (Cucumis anguria L.). Os moradores conseguem preservar seus modos de vida, suas tradições, heranças de seus antepassados, festas religiosas, laços afetivos e de solidariedade.

COLETA DE DADOS

Logo após as primeiras visitas, o projeto foi apresentado ao presidente da comunidade; para os moradores interessados em participar da pesquisa foram mostrados os objetivos do trabalho. Quando consentida a participação, foi solicitado que eles assinassem um termo de consentimento livre e esclarecimento, segundo as exigências éticas do Conselho Nacional de Saúde (Resolução196/96).

O estudo foi realizado entre os meses de fevereiro a novembro de 2011, com visitas semanais. Foram entrevistados 20 informantes, indicados pelos moradores, sendo 17 do sexo feminino e três do sexo masculino, pertencentes a diferentes núcleos familiares e que não apresentam grau de parentesco, uma vez que, na comunidade, os moradores apresentam alto grau de parentesco. A idade dos informantes variou entre 25 e 73 anos. O número de informantes foi definido de acordo com Grant e Miller (2004)GRANT, K. L.; MILLER, M. L. A cultural consensus analysis of marine ecological knowledge in the Solomon Islands. SPC Traditional Marine Resource Management and Knowledge Information Bulletin, n. 17, p. 3-13, 2004., que sugerem que a amostragem pode variar de quatro a 30 informantes, quando a competência deles, estabelecida na análise de consenso, for superior a 0,50.

A técnica de entrevista estruturada foi utilizada para obtenção dos dados da lista livre (Weller e Romney, 1988WELLER, S. C.; ROMNEY, A. K. Systematic data collection: qualitative research methods series. Newbury Park: Sage Publications, 1988. v. 10.), pois este tipo de entrevista fornece uma lista de itens que permite obter um claro entendimento da definição da fronteira de um CET. Esta técnica também foi utilizada para obtenção de dados socioeconômicos. Segundo Borgatti (1996bBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0: methods guide. Natick: Analytic Technologies, 1996b.), a lista livre é uma ferramenta eficiente para indicar quais itens pertencem a um domínio cultural.

Para a coleta e herborização do material botânico, seguiu-se o descrito por Fidalgo e Bononi (1989)FIDALGO, O.; BONONI, V. L. R. Técnicas de coletas, preservação e herborização de material botânico. São Paulo: Instituto de Botânica, 1989., em que somente foram incorporados materiais férteis no acervo didático do Herbário do Centro Universitário da Universidade de Várzea Grande (UNIVAG). A identificação foi feita com o auxílio de literatura especializada, consultas a especialistas e comparações com a coleção do Herbário da Universidade Federal de Mato Grosso. A nomenclatura utilizada foi a proposta pelo sistema de classificação Angiosperm Phylogeny Group III (APG III, 2009), e as sinonímias foram verificadas no site da lista das espécies da Flora do Brasil (Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2013JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO. Lista de espécies da flora do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>. Acesso em: 9 jul. 2013.
http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>...
). A classificação do hábito foi realizada com base em consulta bibliográfica.

ANÁLISE DOS DADOS

A lista livre foi analisada pelo índice de saliência de Smith, consenso cultural e escalonamento multidimensional (Borgatti, 1996a), com o uso programa Anthropac 4.0 (Borgatti, 1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a.).

Foi utilizado índice de Smith para obter a medida da saliência das espécies das listas livres (planta, mato e planta medicinal). Altos valores deste índice refletem alta frequência de citação e similaridade de ordenamento, que permite encontrar possíveis “quebras” ou rupturas entre um item e outro (Borgatti, 1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a.).

A análise de consenso cultural das listas livres (planta, mato e planta medicinal) foi utilizada para verificar a existência de consenso para os domínios indicados e obtenção do valor de competência de conhecimento dos informantes para cada domínio. Nesta análise, o primeiro fator deve ser no mínimo três vezes maior do que o segundo, para que possa ser atribuído consenso entre os informantes (Borgatti, 1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a., 1996bBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0: methods guide. Natick: Analytic Technologies, 1996b.). A análise de escalonamento multidimensional (NMDS) foi utilizada para verificar a ordenação dos informantes, com base na similaridade de suas respostas para cada domínio (Borgatti, 1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a., 1996bBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0: methods guide. Natick: Analytic Technologies, 1996b.; Caulkins e Hyatt, 1999CAULKINS, D.; HYATT, S. B. Using consensus analysis to measure cultural diversity in organizations and social movements. Field Methods, v. 11, n. 1, p. 5-26, 1999.).

Para verificar a similaridade florística entre os domínios culturais, utilizou-se o diagrama de Venn, com cálculo do coeficiente de Jaccard, por meio de uma matriz de presença e ausência das espécies em cada domínio estudado.

RESULTADOS

Quando questionado aos informantes quanto ao uso da vegetação, pode-se verificar a existência de três domínios: planta, mato e planta medicinal. Os informantes definem como planta tudo aquilo que é utilizado para cultivo; mato, como vegetação nativa que cresce em ambientes naturais e pode apresentar diversos usos, entre alguns medicinais, cultivo e coleta de frutos. Verificou-se, no entanto, que uma planta que cresce em um ambiente natural pode ser considerada mato, e que mato cultivado em quintais ou roças pode ser considerado uma planta, conforme relatado nas entrevistas e segundo a coleta do material botânico. Plantas medicinais são as utilizadas para tratamento de enfermidades. Para tanto, foram aplicados três formulários, um questionando o conhecimento das plantas, outro sobre mato e o terceiro sobre plantas medicinais.

A lista livre do domínio cultural de plantas foi representada por 107 espécies, pertencentes a 45 famílias (Tabela 1). A análise do índice de saliência de Smith evidenciou cinco rupturas, sendo a primeira constituída por três espécies – caju (Anacardium occidentale L.), laranja (Citrus x aurantium L.) e manga (Mangifera indica L.); a segunda, por quatro espécies – limão (Citrus x limon (L.) Osbeck), pitomba (Talisia esculenta (Cambess.). Radlk.), goiaba (Psidium guajava L.) e acerola (Malpighia glabra L.); a terceira, por três espécies – banana (Musa paradisiaca L.), mamão (Carica papaya L.) e pocã (Citrus reticulata Blanco); a quarta, com 18 espécies; e na última ruptura concentram-se as demais espécies.

Tabela 1
Lista livre do domínio cultural das plantas conhecidas pelos informantes da comunidade de Limpo Grande, município de Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: NV = nome vernacular; Fr% = porcentagem relativa de citações; R = posição média da citação; S = índice de saliência de Smith; Arb = arbórea; Arbt = arbusto, Sarbt = subarbusto; Her = herbácea; Lin = liana; NADU = número do acervo didático UNIVAG.

Para o domínio cultural de mato, a lista livre foi representada por 96 espécies, distribuídas em 43 famílias (Tabela 2). Por meio do índice de saliência de Smith, observaram-se cinco rupturas: a primeira constituída por duas espécies – simaneira (Byrsonima crassifolia (L.) H.B.K.) e jacaré (Myrcia albotomentosa DC.); a segunda, por três espécies – lixeira (Curatella americana L.), quina (Strychnos pseudoquina A. St. Hil.) e coruba (Alibertia edulis (Rich.) A. Rich.); a terceira contempla três espécies – pequi (Caryocar brasiliense Camb.), pau-de-bicho (Terminalia argentea Mart.) e jatobá (Hymenaea stigonocarpa (Mart.) Hayne); a quarta, 15 espécies; e na quinta ruptura, as demais espécies.

Tabela 2
Lista livre do domínio cultural de mato conhecido pelos informantes da comunidade de Limpo Grande, município de Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: NV = nome vernacular; Fr% = porcentagem relativa de citações; R = posição média da citação; S = índice de saliência de Smith; Arb = arbórea; Arbt = arbusto; Her = herbácea; Lin = liana; NADU = número do acervo didático UNIVAG.

A lista livre de plantas medicinais evidenciou que este domínio contemplou 99 espécies, distribuídas em 47 famílias (Tabela 3). O índice Smith apresentou seis rupturas, onde a primeira foi constituída por uma espécie – arruda (Ruta graveolens L.); a segunda ruptura contemplou duas espécies – norvonica (Artemisia absinthium L.) e quina (Strychnos pseudoquina A. St. Hil); a terceira, com duas espécies – boldo (Plectranthus sp.) e hortelã (Mentha piperita L.); a quarta, com cinco espécies – camomila (Chenopodium ambrosioides L.), erva de Santa Maria (Chrysanthemum cinerariaefolium (Trev.) Vis.), alecrim (Anemopaegma arvense (Vell) Stillfeld. ex. Souza), tapera (Hyptis suaveolens (L.) Poit.) e melão-de-são-caetano (Momordica charantia L.); a quinta, com 16 espécies; e as demais espécies constituíram a sexta ruptura.

Tabela 3
Lista livre do domínio cultural de plantas medicinais conhecidas pelos informantes da comunidade de Limpo Grande, município de Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: NV = nome vernácular; Fr% = porcentagem relativa de citações; R = posição média da citação; S = índice de saliência de Smith; Arb = arbórea; Arbt = arbusto; Sarbt = subarbusto; Her = herbácea; Lin = Liana; NADU = número do acervo didático UNIVAG.

A análise de consenso cultural permitiu verificar que os três domínios (planta, mato e planta medicinal) apresentaram consenso cultural, uma vez que o primeiro fator foi três vezes maior do que o segundo para os três domínios (Tabelas 4, 5 e 6), sendo este um dos critérios para caracterização do consenso. Pode-se verificar que os valores de probabilidades para que os domínios caracterizassem um consenso entre os informantes foram considerados elevados, bem como as médias de estimativas de conhecimento. Todos apresentaram médias superiores a 0,50.

Tabela 4
Análise de consenso cultural e estimativa de conhecimento dos informantes referente ao domínio cultural de planta, comunidade de Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: P = probabilidade; MC = média de estimativa de conhecimento.

Tabela 5
Análise de consenso cultural e estimativa de conhecimento dos informantes referente ao domínio cultural de mato, comunidade de Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: P = probabilidade; MC = média de estimativa de conhecimento.

Tabela 6
Análise de consenso cultural e estimativa de conhecimento dos informantes referente ao domínio cultural de planta medicinal, comunidade de Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso. Legendas: P = probabilidade; MC = média de estimativa de conhecimento.

Na análise de escalonamento multidimensional (NMDS) para o domínio de plantas, foi possível verificar a formação de três grupos, sendo o primeiro composto por 17 informantes, o segundo por dois (S e J) e o terceiro somente por um informante (M) (Figura 1A). Para o domínio cultural de mato, a análise de NMDS evidenciou a formação de um grupo composto por 17 informantes e outro por três (P, O e A) (Figura 1B). Para plantas medicinais, foi possível verificar a formação de um grupo constituído por 17 informantes, que apresentou três informantes isolados (L, J e M) (Figura 1C).

Figura 1
Diagrama de escalonamento multidimensional para ordenação dos informantes de acordo com as respostas para os domínios de planta (A), mato (B) e planta medicinal (C), comunidade Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso.

O índice de similaridade de Sorensen indicou baixa similaridade entre os domínios estudados (Figura 2). O número de espécies comuns entre os domínios culturais foi baixo (18 espécies) e a maior similaridade foi entre os domínios planta e mato, que apresentaram 25 espécies em comum e similaridade de J = 0,30. A menor similaridade foi entre planta e planta medicinal, com 13 espécies comuns (J = 0,21). A lista de espécies comuns entre os domínios está apresentada na Tabela 7.

Figura 2
Diagrama de Venn para os domínios culturais estudados (planta, mato e planta medicinal) na comunidade de Limpo Grande, município de Várzea Grande, Mato Grosso (NS – número de espécies, EC – número de espécies em comum, J – índice de similaridade de Sorensen).

Tabela 7
Lista de espécies comuns entre os domínios planta, mato e planta medicinal da comunidade de Limpo Grande, Várzea Grande, Mato Grosso.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Para a comunidade de Limpo Grande, o uso da vegetação é um critério adotado com a finalidade de definir os domínios culturais. Pode-se, assim, definir três domínios: planta, mato e planta medicinal. Segundo Weller (2007)WELLER, S. C. Cultural consensus theory: applications and frequently asked questions. Field Methods, v. 19, n. 4, p. 339-368, 2007., antes de inferir sobre a existência de um determinado domínio, deve-se fazer uma série de perguntas aos informantes sobre o domínio que se pretende estudar, pois, de acordo com Berkes et al. (2000)BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. Rediscovery of traditional ecological knowledge as adaptive management. Ecological Applications, v. 10, n. 5, p. 1251-1262, 2000., a análise do CET não se restringe somente à observação das espécies e fenômenos ambientais, mas também à forma como as pessoas desenvolvem suas atividades de uso dos recursos e, ainda, às crenças a respeito de como as pessoas se relacionam com os ecossistemas.

Nesse sentido, a análise do domínio em um contexto mais amplo (por exemplo, como a vegetação é classificada pelos informantes) seria uma alternativa para inferir sobre domínios culturais mais específicos, como os deste trabalho, permitindo, assim, um melhor entendimento da estrutura cognitiva do conhecimento desta comunidade. De acordo com Borgatti (1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a.), um ponto de partida para se obter um domínio seria pedir que os informantes listassem todas as espécies pertencentes a um grupo, partindo do pressuposto de que somente serão consideradas aquelas que existem tanto na linguagem quanto no ambiente. Morais et al. (2009)MORAIS, F. F.; MORAIS, R. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre plantas cultivadas pelos pescadores da comunidade Estirão Comprido, Pantanal Matogrossense, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4, n. 2, p. 277-294, 2009., por exemplo, verificaram que o domínio cultural de plantas cultivadas por pescadores do Pantanal é estruturado em dez categorias de uso, e Galdino e da Silva (2007)GALDINO, Y. S. N.; DA SILVA, C. J. A casa pantaneira – moradia tradicional de uma comunidade ribeirinha do Pantanal Matogrossense. In: ENCONTRO NACIONAL/ENCONTRO LATINO AMERICANO SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS, 4./2., 2007, Campo Grande. Anais... Campo Grande: ANTAC, 2007. p. 1276-1285. indicaram três domínios culturais em relação ao uso da vegetação para edificação de casas pantaneiras, sendo: “madeira de chão” (espécies usadas na composição da parede de pau-a-pique), “madeira de cima” (madeiramento de cobertura) e “palha” (cobertura).

O índice de saliência de Smith evidenciou que o uso é importante no estabelecimento e na estruturação dos três domínios. Com base nos relatos dos moradores, pode-se inferir que, para o domínio das plantas na primeira ruptura, constam as espécies utilizadas para o comércio e fabricação de doces, e na segunda e terceira estão aquelas utilizadas na alimentação e como medicinais. Para o domínio de mato, na primeira ruptura, constam as utilizadas como lenha; na segunda, as espécies medicinais e alimentares; e as demais rupturas apresentam usos diversos. No domínio de plantas medicinais, as rupturas estão relacionadas ao uso para o tratamento de determinadas enfermidades ou com o local de coleta (roças, quintais e ambientes naturais).

Assim, vale ressaltar que este estudo corrobora as pesquisas que investigaram o conhecimento ecológico tradicional sobre o uso da vegetação em várias regiões do Brasil, como: Silva et al. (2014)SILVA, N.; LUCENA, R. F. P.; LIMA, J. R. F.; LIMA, G. D. S.; CARVALHO, T. K. N., SOUSA JÚNIOR, S. P.; ALVES, C. A. B. Conhecimento e uso da vegetação nativa da caatinga em uma comunidade rural da Paraíba, Nordeste do Brasil. Boletim do Museu de Biologia Mello Leitão, Nova Série, v. 34, p. 5-37, 2014., na caatinga; Pereira et al. (2012)PEREIRA, Z. V.; FERNANDES, S. S. L.; SANGALLI, A.; MUSSURY, R. M. Usos múltiplos de espécies nativas do bioma Cerrado no Assentamento Lagoa Grande, Dourados, Mato Grosso do Sul. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 7, n. 2, p. 126-136, 2012. e Moreira e Guarim-Neto (2009)MOREIRA, D. L.; GUARIM-NETO, G. Usos múltiplos de plantas do cerrado: um estudo etnobotânico na comunidade Sítio Pindura, Rosário Oeste, Mato Grosso, Brasil. Polibotánica, n. 27, p. 159-190, 2009., no cerrado, que verificaram o conhecimento dos diversos usos da vegetação nativa; Vásquez et al. (2014)VÁSQUEZ, S. P. F.; MENDONÇA, M. S.; NODA, S. N. Etnobotânica de plantas medicinais em comunidades ribeirinhas do Município de Manacapuru, Amazonas, Brasil. Acta Amazonica, v. 44, n. 4, p. 457-472, 2014., na Amazônia; Freitas et al. (2012)FREITAS, A. V. L.; COELHO, M. F. B.; MAIA, S. S. S.; AZEVEDO, R. A. B. Plantas medicinais: um estudo etnobotânico nos quintais do Sítio Cruz, São Miguel, Rio Grande do Norte, Brasil. Revista Brasileira de Biociências, v. 10, n. 1, p. 48-59, 2012., no Nordeste; Jesus et al. (2009)JESUS, N. Z. T.; LIMA, J. C. S.; SILVA, R. M.; ESPINOSA, M. M.; OLIVEIRA, M. D. T. Levantamento etnobotânico de plantas popularmente utilizadas como antiúlceras e antiinflamatórias pela comunidade de Pirizal, Nossa Senhora do Livramento-MT, Brasil. Revista Brasileira de Farmacognosia, v. 19, n. 1A, p. 130-139, 2009., no Pantanal, analisaram o conhecimento do uso de plantas medicinais; Amaral e Guarim-Neto (2008)AMARAL, C. N.; GUARIM-NETO, G. Os quintais como espaços de conservação e cultivo de alimentos: um estudo na cidade de Rosário Oeste (Mato Grosso, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 3, n. 3, p. 329-341, 2008. realizaram estudo do conhecimento de plantas cultivadas em quintais urbanos de Mato Grosso; e Morais e da Silva (2011)MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Etnoecologia de plantas nativas na comunidade de estirão comprido, pantanal matogrossense – Brasil. Revista de Ciências Agro-Ambientais, v. 9, n. 1, p. 13-30, 2011. avaliaram o conhecimento sobre plantas cultivadas por pescadores do Pantanal. No entanto, estes trabalhos, com exceção do último, não estabelecem critérios para verificarem se o conhecimento é consensual ou divergente entre os informantes.

Na comunidade Limpo Grande, os três domínios culturais apresentaram consenso cultural, e altos valores de estimativas de conhecimento devem-se à elevada concordância das respostas entre os informantes. Estes resultados reforçam ainda a hipótese de que o domínio cultural da comunidade é definido pela forma de uso. Para Borgatti (1996aBORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0. Natick: Analytic Technologies, 1996a.), um domínio típico tem um conjunto de itens (por exemplo, espécies) mencionados por muitos informantes e, para Caulkins e Hyatt (1999)CAULKINS, D.; HYATT, S. B. Using consensus analysis to measure cultural diversity in organizations and social movements. Field Methods, v. 11, n. 1, p. 5-26, 1999., esta lista fornece uma visão dos padrões de concordância e discordância relativas a um domínio entre os indivíduos dentro de um contexto social específico, que permite inferir sobre a existência de uma cultura homogênea ou diversificada. Weller (2007)WELLER, S. C. Cultural consensus theory: applications and frequently asked questions. Field Methods, v. 19, n. 4, p. 339-368, 2007. indica que a competência cultural é a experiência cultural de cada indivíduo em relação a um conjunto de perguntas, que indica a proporção de itens que cada pessoa conhece, sendo uma simples descrição sobre o que os informantes sabem a respeito de um determinado domínio.

A alta concordância das respostas dos informantes pode ser visualizada na análise de NMDS. O fato de alguns informantes estarem ordenados separadamente pode estar relacionado à idade e às experiências de vivências pessoais. Um deles é o mais idoso e reside há 15 anos na comunidade (este informante ficou isolado em dois domínios); um segundo informante é o mais jovem, e outro é presidente da comunidade. Para Caulkins e Hyatt (1999)CAULKINS, D.; HYATT, S. B. Using consensus analysis to measure cultural diversity in organizations and social movements. Field Methods, v. 11, n. 1, p. 5-26, 1999., organizações com padrão de vida rotineiro e bem estabelecido geralmente apresentam elevado consenso cultural. Ao se investigarem os informantes isoladamente, diferenças na conformidade das respostas podem ser atribuídas, por exemplo, às diferentes experiências de vida, como indicado por Morais e da Silva (2010)MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre as fruteiras para pesca na comunidade de Estirão Comprido, Barão de Melgaço – Pantanal Matogrossense. Biota Neotrópica, v. 10, n. 3, p. 197-203, 2010., em pesquisa sobre consenso de espécies frutíferas conhecidas por pescadores pantaneiros. Para Bernard (2006)BERNARD, H. R. Research methods in anthropology: qualitative and quantitative approaches. Lanham: Altamira Press, 2006. p. 299-316. e Weller (2007)WELLER, S. C. Cultural consensus theory: applications and frequently asked questions. Field Methods, v. 19, n. 4, p. 339-368, 2007., diferenças nas respostas dos informantes também podem ocorrer pelo fato de alguns serem mais competentes em determinados domínios e menos em outros.

A baixa similaridade apresentada entre os três domínios expressa o amplo conhecimento sobre o uso da biodiversidade vegetal e permite verificar que as espécies pertencentes a cada domínio são bem delimitadas pelos informantes, ainda que algumas estejam presentes em mais de um domínio. Moreira e Guarim-Neto (2009)MOREIRA, D. L.; GUARIM-NETO, G. Usos múltiplos de plantas do cerrado: um estudo etnobotânico na comunidade Sítio Pindura, Rosário Oeste, Mato Grosso, Brasil. Polibotánica, n. 27, p. 159-190, 2009. indicaram que em comunidades tradicionais do cerrado uma espécie pode ser inclusa em mais de uma categoria de uso, devido ao amplo conhecimento das comunidades tradicionais do potencial uso da biodiversidade.

Conclui-se que a comunidade de Limpo Grande organiza o CET da vegetação em três domínios de acordo com o uso, o que é confirmado pela análise de consenso cultural e NMDS. A baixa similaridade entre os três domínios indica que os critérios estabelecidos para classificação estão bem definidos na comunidade, sendo reflexo do amplo conhecimento sobre a diversidade vegetal, o que provavelmente possibilitou o desenvolvimento de processos de uso e manejo adaptativo ecológico da biodiversidade. O diálogo entre o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento científico pode contribuir para desenvolver estratégias de manejo e para a elaboração de políticas públicas destinadas à conservação da biodiversidade ecológica e cultural.

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, C. N.; GUARIM-NETO, G. Os quintais como espaços de conservação e cultivo de alimentos: um estudo na cidade de Rosário Oeste (Mato Grosso, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 3, n. 3, p. 329-341, 2008.
  • ANGIOSPERM PHILOGENY GROUP (APG) III. An update of the Angiosperm Phylogeny Group classification for the orders and families of flowering plants. Botanical Journal of the Linnean Society, p. 105-121, 2009.
  • BERKES, F.; COLDING, J.; FOLKE, C. Rediscovery of traditional ecological knowledge as adaptive management. Ecological Applications, v. 10, n. 5, p. 1251-1262, 2000.
  • BERNARD, H. R. Research methods in anthropology: qualitative and quantitative approaches. Lanham: Altamira Press, 2006. p. 299-316.
  • BERTSCH, C.; VOGL, R. C.; SILVA, J. C. Ethnoveterinary medicine for cattle and horses in the northern Pantanal Matogrossense, Brazil. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF ETHNOBOTANY, 4., 2006, Istanbul. Anais… Istanbul: Ege Yayinlari, 2006. p. 233.
  • BORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0 Natick: Analytic Technologies, 1996a.
  • BORGATTI, S. P. ANTHROPAC 4.0: methods guide. Natick: Analytic Technologies, 1996b.
  • BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Secretaria-Geral. Projeto RADAMBRASIL Folha SE-21 Corumbá; Geologia, Geomorfologia, Pedologia, Vegetação e Uso Potencial da Terra. Rio de Janeiro, 1982. (Levantamento de Recursos Naturais, 27).
  • CAULKINS, D.; HYATT, S. B. Using consensus analysis to measure cultural diversity in organizations and social movements. Field Methods, v. 11, n. 1, p. 5-26, 1999.
  • CRUZ-GARCIA, G. S.; PRICE, L. Ethnobotanical investigation of ‘wild’ food plants used by rice farmers in Kalasin, Northeast Thailand. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v. 7, p. 7-33, 2011.
  • CUNHA, C. N.; JUNK, W. J. Composição florística de capões e cordilheiras: localização de espécies lenhosas quanto ao gradiente de inundação no Pantanal de Poconé-MT. In: SIMPÓSIO DE RECURSOS NATURAIS E SOCIO-ECONÔMICOS DO PANTANAL, 3., 1999, Corumbá. Anais... Corumbá: EMBRAPA, 1999. v. 2, p. 134-148.
  • FIDALGO, O.; BONONI, V. L. R. Técnicas de coletas, preservação e herborização de material botânico São Paulo: Instituto de Botânica, 1989.
  • FREITAS, A. V. L.; COELHO, M. F. B.; MAIA, S. S. S.; AZEVEDO, R. A. B. Plantas medicinais: um estudo etnobotânico nos quintais do Sítio Cruz, São Miguel, Rio Grande do Norte, Brasil. Revista Brasileira de Biociências, v. 10, n. 1, p. 48-59, 2012.
  • GALDINO, Y. S. N.; DA SILVA, C. J. A casa pantaneira – moradia tradicional de uma comunidade ribeirinha do Pantanal Matogrossense. In: ENCONTRO NACIONAL/ENCONTRO LATINO AMERICANO SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS, 4./2., 2007, Campo Grande. Anais... Campo Grande: ANTAC, 2007. p. 1276-1285.
  • GIRALDI, M.; HANAZAKI, N. Uso e conhecimento tradicional de plantas medicinais no Sertão do Ribeirão, Florianópolis, SC, Brasil. Acta Botanica Brasilica, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 395-406, 2010.
  • GRANT, K. L.; MILLER, M. L. A cultural consensus analysis of marine ecological knowledge in the Solomon Islands. SPC Traditional Marine Resource Management and Knowledge Information Bulletin, n. 17, p. 3-13, 2004.
  • HANAZAKI, N. Etnobotânica. In: BEGOSSI, A. (Org.). Ecologia de pescadores da Mata Atlântica e da Amazônia São Paulo: HUCITEC/NEPAM-UNICAMP/NUPAUB-USP, 2004. p. 37-57.
  • JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO. Lista de espécies da flora do Brasil Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>. Acesso em: 9 jul. 2013.
    » http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>
  • JESUS, N. Z. T.; LIMA, J. C. S.; SILVA, R. M.; ESPINOSA, M. M.; OLIVEIRA, M. D. T. Levantamento etnobotânico de plantas popularmente utilizadas como antiúlceras e antiinflamatórias pela comunidade de Pirizal, Nossa Senhora do Livramento-MT, Brasil. Revista Brasileira de Farmacognosia, v. 19, n. 1A, p. 130-139, 2009.
  • KAUAI DECLARATION. Ethnobotany, the science of survival: a declaration from Kaua’i. Economic Botany, v. 61, n. 1, p. 1-2, 2007.
  • LEONEL, T. Breves considerações a respeito dos conhecimentos tradicionais como bens culturais imateriais. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 185-192, 2010.
  • LÖBLER, L.; SANTOS, D.; RODRIGUES, E. S.; ZAMBERLAN, N. R. S. Levantamento etnobotânico de plantas medicinais no bairro Três de Outubro da cidade de São Gabriel, RS, Brasil. Revista Brasileira de Biociência, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 81-89, 2014.
  • MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Etnoecologia de plantas nativas na comunidade de estirão comprido, pantanal matogrossense – Brasil. Revista de Ciências Agro-Ambientais, v. 9, n. 1, p. 13-30, 2011.
  • MORAIS, F. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre as fruteiras para pesca na comunidade de Estirão Comprido, Barão de Melgaço – Pantanal Matogrossense. Biota Neotrópica, v. 10, n. 3, p. 197-203, 2010.
  • MORAIS, F. F.; MORAIS, R. F.; DA SILVA, C. J. Conhecimento ecológico tradicional sobre plantas cultivadas pelos pescadores da comunidade Estirão Comprido, Pantanal Matogrossense, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4, n. 2, p. 277-294, 2009.
  • MOREIRA, D. L.; GUARIM-NETO, G. Usos múltiplos de plantas do cerrado: um estudo etnobotânico na comunidade Sítio Pindura, Rosário Oeste, Mato Grosso, Brasil. Polibotánica, n. 27, p. 159-190, 2009.
  • PEREIRA, Z. V.; FERNANDES, S. S. L.; SANGALLI, A.; MUSSURY, R. M. Usos múltiplos de espécies nativas do bioma Cerrado no Assentamento Lagoa Grande, Dourados, Mato Grosso do Sul. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 7, n. 2, p. 126-136, 2012.
  • REBELLATO, L.; CUNHA, C. N. Efeito do “fluxo sazonal mínimo da inundação” sobre a composição e estrutura de um campo inundável no Pantanal de Poconé, MT, Brasil. Acta Botanica Brasilica, v. 19, n. 4, p. 789-799, 2005.
  • SHACKEROFF, J. M.; CAMPBELL, L. M. Traditional ecological knowledge in conservation research: problems and prospects for their constructive engagement. Conservation and Society, v. 5, n. 3, p. 343-360, 2007.
  • SILVA, N.; LUCENA, R. F. P.; LIMA, J. R. F.; LIMA, G. D. S.; CARVALHO, T. K. N., SOUSA JÚNIOR, S. P.; ALVES, C. A. B. Conhecimento e uso da vegetação nativa da caatinga em uma comunidade rural da Paraíba, Nordeste do Brasil. Boletim do Museu de Biologia Mello Leitão, Nova Série, v. 34, p. 5-37, 2014.
  • THOMAS, E.; VAN DAMME, P. Plant use and management in homegardens and swiddens: evidence from the Bolivian Amazon. Agroforestry Systems, v. 80, n. 1, p. 131-152, 2010.
  • TOLEDO, V. M. What is Ethnoecology? Origins, scope and implications of a rising discipline. Etnoecológica, v. 1, n. 1, p. 5-21, 1992.
  • VÁSQUEZ, S. P. F.; MENDONÇA, M. S.; NODA, S. N. Etnobotânica de plantas medicinais em comunidades ribeirinhas do Município de Manacapuru, Amazonas, Brasil. Acta Amazonica, v. 44, n. 4, p. 457-472, 2014.
  • VITALINI, S.; TOME, F.; FICO, G. Traditional uses of medicinal plants in Valvestino (Italy). Journal of Ethnopharmacology, v. 121, n. 1, p. 106-116, 2009.
  • VOGL, C. R.; VOGL-LUKASSER, B.; PURI, R. K. Tools and methods for data collection in ethnobotanical studies of homegardens. Field Methods, v. 16, n. 3, p. 285-306, 2004.
  • WELLER, S. C. Cultural consensus theory: applications and frequently asked questions. Field Methods, v. 19, n. 4, p. 339-368, 2007.
  • WELLER, S. C.; ROMNEY, A. K. Systematic data collection: qualitative research methods series. Newbury Park: Sage Publications, 1988. v. 10.
  • ZUCHIWSCHI, E.; FANTINI, A. C.; ALVES, A. C.; PERONI, N. Limitações ao uso de espécies florestais nativas podem contribuir com a erosão do conhecimento ecológico tradicional e local de agricultores familiares. Acta Botanica Brasilica, v. 24, n. 1, p. 270-282, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2013
  • Aceito
    13 Abr 2015
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br