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Dignidade e autonomia do paciente com transtornos mentais

Resumo

Este trabalho discute brevemente questões que envolvem a autonomia do paciente com transtornos mentais. O nível de comprometimento das faculdades mentais pode inviabilizar sua autonomia, uma vez que dificulta o processo consciente de tomar decisões. Essa circunstância é especialmente problemática quando se trata de consentimento informado, considerando que, por vezes, a habilidade de ponderar fatos informados para a escolha de alternativas terapêuticas encontra-se prejudicada em razão da condição de saúde do paciente.

Saúde mental; Bioética; Consentimento livre e esclarecido; Autonomia pessoal; Pessoalidade-Direitos civis

Abstract

This paper briefly discusses the issues that involve the autonomy of patients with mental disorders. The level of mental faculties’ impairment may render their autonomy non-viable, since it hinders the conscious process of decision making. This circumstance is especially problematic when it comes to informed consent, since sometimes the ability to weigh the reported facts in order to decide on therapeutic alternatives is impaired due to the patient’s health condition.

Mental health; Bioethics; Informed consent; Personal autonomy; Personhood-Civil rights

Resumen

Este trabajo discute brevemente sobre las cuestiones que involucran la autonomía del paciente con trastornos mentales. El nivel de compromiso de las facultades mentales puede inviabilizar su autonomía, dado que dificulta el proceso consciente de toma de decisiones. Esta circunstancia es especialmente problemática cuando se trata del consentimiento informado, considerando que, a veces, la habilidad de ponderar los hechos informados para la elección de las alternativas terapéuticas se encuentra perjudicada debido a la condición de salud del paciente.

Salud mental; Bioética; Consentimiento informado; Autonomía personal; Personeidad-Derechos civiles

A situação de pessoas acometidas por transtornos psíquicos é tema que tem chamado a atenção tanto de grupos de estudo de variadas áreas como da própria sociedade. Por seu potencial de causar efeitos das mais diversas ordens, o aprendizado contínuo sobre questões de saúde mental revela-se essencial. Este tema traz diversos questionamentos que expõem não apenas sua complexidade, mas também sua interdisciplinaridade. Nesse sentido, não representa área de interesse exclusivo da psiquiatria, mas plano amplo e, consequentemente, fértil para investigação, de modo que surgem reflexões na filosofia, bioética, sociologia, direito, entre outras.

A dignidade da pessoa humana, elemento formativo de eixo de direitos e deveres essenciais, tem papel relevante na proteção da vida, da integridade física e psíquica, da liberdade e da personalidade da pessoa com transtorno mental. Em todas as fases associadas à assistência de saúde do paciente, seja de investigação, diagnóstico ou mesmo tratamento, a dignidade deve sempre ser o vetor que conduz toda a atividade médica.

Um dos pontos mais discutidos sobre a saúde de pacientes com transtornos psíquicos refere-se à autonomia. O consentimento informado reflete a habilidade da pessoa de declarar sua vontade quanto às alternativas terapêuticas com base nos fatos de sua condição informados pelo profissional de saúde. Entretanto, é comum que o doente psicótico não apresente plenas faculdades mentais para ser capaz de opinar conscientemente quanto ao tratamento. Expõe-se, assim, a controvérsia sobre a possibilidade de o paciente com doença mental ter autonomia para tomar decisões conscientes quanto às alternativas terapêuticas que melhor atendam ao seu interesse.

Definição de transtornos psíquicos

Doenças mentais são difíceis de ser diagnosticadas, uma vez que demandam observação e investigação profundas a fim de que seja possível determinar com precisão a condição do paciente. O avanço dos estudos sobre o tema tem favorecido pessoas nessa situação, visto que criou novas modalidades de tratamento e aprimorou as já disponíveis.

Qualificado, sob perspectiva clínica, como perturbação relevante na cognição e no comportamento, bem como na regulação emocional, o transtorno mental gera disfunções de natureza biológica, psicológica ou de desenvolvimento, conforme pontuado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) 11. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed; 2014.. Nesse sentido, tal perturbação afeta o cotidiano do indivíduo, de maneira a causar prejuízos de ordens diversas.

Portanto, os transtornos mentais estão associados à alteração no funcionamento considerado regular da mente, seja de caráter congênito ou degenerativo, de modo a prejudicar o desempenho da pessoa acometida em diversas áreas – familiar, social, pessoal, profissional ou acadêmica. Segundo Prata 22. Prata DP. As bases biológicas da esquizofrenia. In: Abreu MV, Leitão JP, Santos ER, coordenadores. Reabilitação psicossocial e inclusão na saúde mental. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2014. p. 15-49., essas doenças modificam aspectos cognitivos, afetando a compreensão que a pessoa tem não apenas de si, mas também dos que estão à sua volta, alterando sua relação de respeito pelos demais e de tolerância a problemas.

O sujeito nessa condição torna-se cognitiva e emocionalmente vulnerável, pois sofre com a mudança da sua percepção de realidade. Por vezes, o indivíduo sequer nota a modificação, cabendo às pessoas próximas notar o desajuste. Seus efeitos, por atingir diversas áreas da vida do indivíduo, criam obstáculos que variam, por exemplo, da dificuldade no convívio social ao sofrimento mental. Uma das consequências dos transtornos neuropsiquiátricos é a redução ou perda da capacidade de tomar decisões, uma vez que a habilidade de autogoverno fica debilitada em vários níveis, a depender do diagnóstico. Considerando que o tratamento de saúde depende do consentimento do paciente, a complexidade dessa situação é evidente.

Saúde mental e dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é valor supremo e intrínseco 33. López RG. La persona es fin y no medio: el fundamento normativo de la bioética personalista. In: Tomás y Garrido GM, Solana EP, editoras. Bioética personalista: ciencia y controversias. Madrid: Tribuna Siglo XXI; 2007. p. 37-69.. Nesse sentido, e em virtude desse valor atrelado à própria qualidade humana ou mesmo ao significado da existência 44. Reale M. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva; 2002., todos merecem ter tratamento igualitário com base no respeito 55. Nussbaum MC. Political emotions: why love matters for justice. Cambridge: The Belknap Press; 2013.. Dignidade é ideia absoluta, representando a garantia a todos os indivíduos do respeito pela sua humanidade, refletido pela consideração de seus interesses, bem-estar, sua vida e autonomia, conforme aponta Reis Novais 66. Reis Novais J. A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais. Coimbra: Almedina; 2016. v. 1.. Ademais, acrescenta Sarlet 77. Sarlet IW. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2011., a dignidade apresenta dimensão dupla, já que equivale simultaneamente à materialização da autonomia da pessoa e à necessidade ou demanda da sua devida proteção, especialmente quando sua capacidade de autodeterminação se encontra em condição de vulnerabilidade.

A ideia de dignidade humana forma ainda núcleo de direitos e deveres essenciais para sua concretização, cuja ausência da possibilidade de exercício, segundo Paulo Otero 88. Otero P. Instituições políticas e constitucionais. Coimbra: Almedina; 2016. v. 1., compromete não apenas o nível de qualidade de vida, mas propriamente o respeito pela dignidade inerente a cada pessoa. Caracteriza-se, conforme pontua López 33. López RG. La persona es fin y no medio: el fundamento normativo de la bioética personalista. In: Tomás y Garrido GM, Solana EP, editoras. Bioética personalista: ciencia y controversias. Madrid: Tribuna Siglo XXI; 2007. p. 37-69., como valor tão elevado que seu conteúdo alicerça outros tantos valores, princípios e direitos. Além disso, a dignidade humana não assegura apenas direitos à pessoa, mas revela também prisma de reconhecimento do outro, de que este é ser com autodeterminação, o que ultrapassa a perspectiva individualista de bem-estar. Segundo Di Lorenzo 99. Di Lorenzo WG. Teoria do estado de solidariedade. Rio de Janeiro: Elsevier; 2010., a dignidade é relacional à medida que circunscreve todos os membros da sociedade em mesmo grupo de sujeitos de direito.

Reconhecer que a cada pessoa é concedido valor singular e supremo, representado pela amplitude da integridade da pessoa humana, gera respeito não apenas à existência, mas propriamente à autonomia igualmente conferida a todos. O valor supremo da dignidade assegura, assim, a estrutura da igualdade 66. Reis Novais J. A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais. Coimbra: Almedina; 2016. v. 1.. Por outro lado, implica constatar que os indivíduos são semelhantes em direitos, mas não idênticos 1010. Barroso LR. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum; 2014.. As diferenças moldam a variedade social e o pluralismo, mas também são essenciais para determinar os grupos que necessitam, por alguma razão, de atenção especial, como é o caso de pessoas com transtornos psíquicos.

O doente acometido por distúrbio psíquico tem os mesmos direitos fundamentais que qualquer outro membro da comunidade, mas apresenta particularidades em relação às necessidades inerentes à vulnerabilidade e fragilidade associadas à sua condição 1111. Miranda AJA. Bioética e saúde mental: no limiar dos limites: o que o doente mental mantém de homem ético? [dissertação] [Internet]. Porto: Universidade do Porto; 2008 [acesso 14 fev 2019]. Disponível: https://bit.ly/2tkT71c.
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. Assim, a igualdade determina equivalência de direitos fundamentais a todos, mesmo que a doença mental dificulte o exercício regular da cidadania dos acometidos. Seus direitos podem ser exercidos por representantes ou mesmo pela própria pessoa, a depender do grau de afetação do discernimento.

Para respeitar o outro, representado pelo doente mental, não basta apenas reconhecer sua dignidade, afirmam Costa, Anjos e Zaher 1212. Costa JRE, Anjos MF, Zaher VL. Para compreender a doença mental numa perspectiva de bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 17 jan 2019];1(2):103-10. Disponível: https://bit.ly/2HgOzmz
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, mas também adotar medidas para garanti-la e promovê-la ativamente. Profissionais de saúde mental evidenciam especialmente essa função, uma vez que são responsáveis por tratar adequadamente pessoas com distúrbios psíquicos, avaliando sua condição e colaborando com a evolução de seu quadro.

O respeito pela humanidade, condição própria da dignidade, dá suporte à autonomia, e implica impedir qualquer situação que possa objetificar a pessoa 1313. Mahlmann M. The good sense of dignity: six antidotes to dignity fatigue in ethics and law. In: McCrudden C, editor. Understanding human dignity. Oxford: Oxford University Press; 2013. p. 593-614.. Isso vale também no âmbito da saúde mental, no qual o paciente com transtorno neuropsiquiátrico deve ser tratado de acordo com sua dignidade, de modo a inibir qualquer conduta que o coisifique.

Autonomia do paciente

Todos são autônomos para agir da maneira que julgar mais interessante ou conveniente ao seu projeto de vida. A autodeterminação garante, assim, a liberdade do sujeito de tomar suas próprias decisões, sendo revelada ainda como consequência da dignidade humana, intrínseca a cada pessoa.

Segundo Felício e Pessini 1414. Felício JL, Pessini L. Bioética da proteção: vulnerabilidade e autonomia dos pacientes com transtornos mentais. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 17 jan 2019];17(2):203-20. Disponível: https://bit.ly/2T22huM
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, esse conceito caracteriza-se como um dos parâmetros de cunho ético mais valorizados na prática da saúde. Entretanto, seu pleno exercício no caso de paciente com doença psíquica pode ser comprometido, uma vez que sua capacidade de compreender acontecimentos que o afetam, atos que pratica ou venha a praticar ou até mesmo de analisar e prever efeitos associados às suas decisões encontra-se prejudicada 1111. Miranda AJA. Bioética e saúde mental: no limiar dos limites: o que o doente mental mantém de homem ético? [dissertação] [Internet]. Porto: Universidade do Porto; 2008 [acesso 14 fev 2019]. Disponível: https://bit.ly/2tkT71c.
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Segundo Costa, Anjos e Zaher 1212. Costa JRE, Anjos MF, Zaher VL. Para compreender a doença mental numa perspectiva de bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 17 jan 2019];1(2):103-10. Disponível: https://bit.ly/2HgOzmz
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, embora a doença mental seja grave, a pessoa não deixa de ser plenamente humana. Apesar das limitações inerentes à sua condição, permanece sujeito consciente, livre, com potencial e responsabilidade, nos limites de suas faculdades mentais. Surgem, no entanto, questionamentos quanto à autodeterminação do doente neuropsiquiátrico, se o mero diagnóstico significa a perda da possibilidade de tomar decisões. Além disso, seria possível indagar se mesmo com a capacidade apenas parcialmente reduzida o paciente ainda estaria apto a decidir sobre alternativas de tratamento, baseando-se nas informações que são fornecidas sobre seu estado.

A autonomia na esfera de saúde mental é conceito bastante aberto, o que culmina em questionamentos variados. Entretanto, cada paciente tem suas particularidades, cabendo ao profissional responsável pelos cuidados de sua saúde avaliar as condições associadas à sua autodeterminação, de modo a estabelecer se está hábil ou não para o exercício do poder decisório, especialmente quanto às opções terapêuticas que lhe são apresentadas. Assim, devem ser devidamente consideradas as especificidades inerentes a cada um dos pacientes, particularmente em relação ao grau de fragilidade e vulnerabilidade decorrentes de sua condição.

Como ressalta Brendel 1515. Brendel R. Autonomy and mental health. Cosmologic [Internet]. 29 jul 2015 [acesso 10 set 2017]. Disponível: https://bit.ly/2RvKHml
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, o paciente que se encontre com suas faculdades racionais suficientemente íntegras está devidamente apto a tomar suas próprias decisões, sendo a autonomia consequência disso. A partir dessa premissa, na prática médica há algumas soluções aplicáveis a casos complexos de transtornos psíquicos, havendo requisitos que podem ser preenchidos para estabelecer se o paciente pode ou não arbitrar sobre sua situação médica. Isso envolve a capacidade de declarar alguma preferência, de compreender e julgar fatos relevantes ao seu caso e ponderar sobre toda a informação que recebeu para chegar à conclusão 1515. Brendel R. Autonomy and mental health. Cosmologic [Internet]. 29 jul 2015 [acesso 10 set 2017]. Disponível: https://bit.ly/2RvKHml
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. Caso os requisitos não sejam atendidos satisfatoriamente, fica evidente a ausência de poder de decisão e, portanto, outro indivíduo é convocado para determinar o que deve ser feito, conforme aquilo que ele mesmo faria se não se encontrasse afetado por doença psíquica 1515. Brendel R. Autonomy and mental health. Cosmologic [Internet]. 29 jul 2015 [acesso 10 set 2017]. Disponível: https://bit.ly/2RvKHml
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Ética na atuação de profissionais de saúde mental

A atividade médica não pressupõe apenas competências e habilidades inerentes ao ofício, mas prevê igualmente a prática de valores éticos de atenção e respeito aos pacientes. O trato de doentes mentais considera os mesmos princípios, demandando inclusive diligência e cautela em níveis mais apurados.

O estado mental em que se encontram os enfermos com distúrbios psíquicos exige participação mais ativa do médico, dado que, em determinadas circunstâncias, a percepção da vida que a pessoa anteriormente detinha é alterada. Em outros cenários, trata-se de perspectiva diversa da realidade vivenciada regularmente, como são os casos de doenças congênitas que podem prejudicar as capacidades mentais. Nesse sentido, cabe ao profissional de saúde atuar de maneira cautelosa e pertinente em relação às necessidades do paciente.

Consentimento informado e autonomia

A relação entre médico e paciente apresenta como condição essencial o consentimento informado. Trata-se de decisão estritamente voluntária, tomada pelo paciente a partir de sua capacidade e autodeterminação com base em informações oferecidas pelo profissional de saúde, com o objetivo de receber tratamento específico 1616. Clotet J. O consentimento informado nos comitês de ética em pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade. Bioética [Internet]. 1995 [acesso 17 jan 2019];3(1):1-7. Disponível: https://bit.ly/2AQPvbH
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e ficar ciente de possíveis efeitos e riscos da alternativa terapêutica.

Dessa forma, a capacidade decisória é premissa do consentimento informado. Reconhece-se, portanto, a autonomia do paciente adulto no exercício de suas plenas capacidades quanto à aceitação ou não de determinado tratamento 1717. Clotet J, Feijó A. Bioética: uma visão panorâmica. In: Clotet J, Feijó A, Oliveira MG, coordenadores. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2011. p. 9-20., cabendo ao profissional de saúde deliberar sobre as condições do paciente para a tomada de decisão. Apesar de o ato médico não configurar ato jurídico, pode sofrer consequências nesta esfera, de modo que é importante avaliar o consentimento informado em relação à capacidade do paciente de exercer sua autonomia. Ou seja, caso seja desrespeitada, o médico pode ser responsabilizado 1818. Baú MK. Capacidade jurídica e consentimento informado. Bioética [Internet]. 2000 [acesso 17 jan 2019];8(2):285-98. Disponível: https://bit.ly/2FH9YTC
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Quando se trata de saúde mental, os preceitos substanciais não sofrem alteração. Ao enfermo psicótico também é garantida a possibilidade de decidir sobre opções terapêuticas adequadas à sua condição. Entretanto, nesse caso, o processo é por vezes dificultado, pois o doente não se encontra em estado de plena habilidade decisória justamente em virtude do comprometimento de suas faculdades mentais associado ao transtorno psíquico.

A atuação do profissional de saúde, nesse sentido, deve preencher essa lacuna nas guidelines da bioética, apresentada pela situação de inabilidade, total ou parcial, da devida expressão da vontade do enfermo. Portanto, cabe ao especialista a pertinente avaliação das condições associadas à autodeterminação da pessoa com doença mental, a fim de definir a viabilidade ou não do consentimento informado.

Papel do profissional nos obstáculos à autonomia de paciente com transtorno mental

Apesar de ser preferível que decisões médicas referentes à saúde mental do paciente sejam adequadamente comunicadas a ele, nem sempre é possível que a informação dada pelo profissional da saúde seja totalmente compreendida, em decorrência da condição em que o sujeito se encontra ou por alguma alternativa de tratamento. Cabe ao médico avaliar, conforme parâmetros éticos, a viabilidade de assimilação do que pretende informar.

Por outro lado, é potencialmente perigoso permitir que a decisão quanto à opção terapêutica seja tomada por pessoa com capacidade de autogoverno e julgamento debilitada, seja em razão de depressão, esquizofrenia, ansiedade ou outro transtorno. Pode configurar, inclusive, conduta profissional omissa ou mesmo negligente, uma vez que pode colocar em risco a integridade física e mental ou o bem-estar do doente 1414. Felício JL, Pessini L. Bioética da proteção: vulnerabilidade e autonomia dos pacientes com transtornos mentais. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 17 jan 2019];17(2):203-20. Disponível: https://bit.ly/2T22huM
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, uma vez que este último não tem total discernimento.

Assim, é imprescindível que o profissional de saúde pondere se é possível atender à vontade expressa pelo paciente, o que dependerá de seu grau de entendimento e interpretação, evidenciados no exame do estado psíquico. Esse procedimento é essencial para que se alcance o devido juízo de valor, de modo que a decisão seja tomada de forma adequada e suficientemente sopesada.

Os pacientes psiquiátricos podem estar clinicamente impedidos de decidir e consentir sobre as alternativas de tratamento em razão do grau do distúrbio que os atinge 1919. Almeida EHR. Dignidade, autonomia do paciente e doença mental. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2010 [acesso 17 jan 2019];18(2):381-95. Disponível: https://bit.ly/2SD8L6F
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. Nesse caso, um responsável decidirá em seu lugar, conforme a hipótese que se apresentar como opção mais pertinente ao melhor interesse do doente.

Outro obstáculo seria, por exemplo, o paciente incapaz não ter esse responsável no momento crucial, seja em razão do tempo, dada a urgência do quadro em que se encontra, ou mesmo da distância. Nesses casos, o profissional de saúde deve agir conforme sua perícia médica, definindo a alternativa que melhor atende ao interesse do enfermo para sua estabilização e eventual recuperação.

Deve-se ainda evitar o exercício da medicina defensiva. Esta modalidade de prática profissional é classificada, segundo Pithan 2020. Pithan LH. O consentimento informado como exigência ética e jurídica. In: Clotet J, Feijó A, Oliveira MG, coordenadores. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2011. p. 135-52., como a atuação médica carregada de condutas estratégicas de diagnóstico e opções terapêuticas com a finalidade de desviar da possibilidade de demandas judiciais. Esse comportamento beneficia prioritariamente o médico, e não os interesses do paciente.

A atividade médica, portanto, deve mostrar atenção e respeito incondicionais pela pessoa humana 2121. França GV. Direito médico. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense; 2013.. A colaboração do profissional da saúde é essencial para que o paciente esteja novamente apto a exercer, mesmo que parcialmente nos casos de maior gravidade, seus direitos fundamentais à liberdade, personalidade, integridade pessoal, entre outros.

Consideração das particularidades do paciente

As especificidades de pacientes com transtornos psíquicos exigem dos profissionais de saúde mental a responsabilidade não apenas pelo devido exercício de suas competências e habilidades na prática de seu ofício, mas também pela forma como lidam com esses indivíduos que necessitam de atenção, cuidados mais minuciosos, alto nível de prudência e cautela. Por serem responsáveis pela saúde de pessoas com ausência ou perda total ou parcial da capacidade psíquica e de condução da própria vida, os profissionais da saúde mental devem zelar especialmente pelo exercício de sua atividade, como mostram Cohen e Salgado 2222. Cohen C, Salgado MTM. Reflexão sobre a autonomia civil das pessoas portadoras de transtornos mentais. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 17 jan 2019];17(2):221-35. Disponível: https://bit.ly/2Ry4EJ7
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. Isso ocorre não somente por lidarem com pessoas em condição de debilitado discernimento, mas porque têm a incumbência de colaborar para que o paciente recupere sua autoconsciência e autodeterminação.

Os profissionais que atuam na área de saúde mental devem, assim, tratar seus pacientes com ainda mais cuidado, levando em consideração valores éticos e do âmbito da bioética, realizando o devido tratamento sem desconsiderar a dignidade 1212. Costa JRE, Anjos MF, Zaher VL. Para compreender a doença mental numa perspectiva de bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 17 jan 2019];1(2):103-10. Disponível: https://bit.ly/2HgOzmz
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. O exercício dessa atividade, portanto, não depende apenas de competência e habilidades técnicas, mas principalmente de compreensão e sensibilidade ética que, segundo Cohen e Salgado 2222. Cohen C, Salgado MTM. Reflexão sobre a autonomia civil das pessoas portadoras de transtornos mentais. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 17 jan 2019];17(2):221-35. Disponível: https://bit.ly/2Ry4EJ7
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, decorrem do reconhecimento da dignidade humana do paciente. Além disso, a atividade do profissional de saúde deve ser baseada na defesa da integração social das pessoas com doença mental, de modo a propiciar o devido exercício de seus direitos e deveres 2323. Ornelas J. Psicologia comunitária: contributos para o desenvolvimento de serviços de base comunitária para pessoas com doença mental. In: Abreu MV, Dos Santos ER, organizadores. O papel das famílias e das redes de apoio social: actas do primeiro congresso de reabilitação e inclusão na saúde mental. Coimbra: Almedina; 2008. p. 81-92..

Segundo Costa, Anjos e Zaher 1212. Costa JRE, Anjos MF, Zaher VL. Para compreender a doença mental numa perspectiva de bioética. Bioethikos [Internet]. 2007 [acesso 17 jan 2019];1(2):103-10. Disponível: https://bit.ly/2HgOzmz
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, a promoção da autonomia do doente mental deve ser um dos principais aspectos trabalhados pelos profissionais de saúde, até mesmo como forma de ampliar a capacidade de decisão do paciente, por vezes demasiadamente debilitada. Na busca pela recuperação, mesmo que parcial, deve-se focar a autodeterminação do doente, inclusive como forma de restabelecer possibilidades, liberdades e mesmo direitos limitados por sua condição.

Assim, a atuação médica observa as especificidades de cada paciente, visando aumentar sua qualidade de vida e recuperar sua capacidade de pleno entendimento e poder de decisão, considerando as condições em que se encontra.

Considerações finais

O consentimento informado reflete a capacidade do paciente de tomar decisões referentes às alternativas terapêuticas associadas a seu estado de saúde a partir de informações fornecidas pelo profissional responsável pelo seu caso. A decisão deve ser conscientemente expressa, uma vez compreendidos e interpretados os fatos anteriormente comunicados, e a pessoa deve deter as ferramentas necessárias para determinar a opção mais adequada a seu bem-estar, entre as que lhe foram apresentadas.

Os pacientes que padecem de doenças mentais, por outro lado, sofrem com o comprometimento e a redução de suas habilidades racionais em diversos níveis. O prejuízo do poder decisório afeta a coerência funcional do consentimento livre e esclarecido, uma vez que a pessoa não teria capacidade para declarar conscientemente sua vontade.

Dessa forma, pode-se questionar se os distúrbios mentais alterariam automaticamente a capacidade da pessoa e, como consequência, a própria autonomia do paciente para escolher formas de tratamento. A resposta negativa a este questionamento é evidente, uma vez que devem ser considerados variados fatores antes de se determinar a autonomia do paciente na aceitação ou recusa de assistência terapêutica.

Cabe ao profissional de saúde avaliar as condições do doente no momento da tomada de decisão. A análise envolve o reconhecimento ou não da capacidade de declarar preferências, de compreender fatos considerados relevantes a seu estado de saúde e de demonstrar que ponderou (ou pode ponderar) as informações transmitidas para alcançar o melhor resultado decisório possível. Caso o paciente se mostre apto a decidir, o processo de consentimento informado deve seguir conforme o habitual. Caso contrário, sua habilidade de compreender e interpretar os fatos para tomar decisões referentes a seu quadro de saúde estará prejudicada.

Compete ao profissional de saúde, portanto, sopesar a capacidade do paciente de manifestar sua vontade de maneira autônoma. Nos casos em que a pessoa não se encontra em estado mental favorável, um responsável deverá ser chamado a definir a alternativa mais pertinente à condição do doente psicótico.

Quando o doente não tiver pessoa responsável para decidir por si, o profissional da saúde deve cumprir seu dever de optar pelo tratamento que se considere essencial à recuperação da pessoa. O empenho terapêutico deve ocorrer no sentido de reabilitar, total ou parcialmente, a depender da condição de saúde, as faculdades mentais do paciente, até mesmo como forma de restaurar a possibilidade de amplo exercício de seus direitos à vida, liberdade, integridade e personalidade. A atividade médica, assim, não deve ser pautada apenas nas competências e habilidades associadas ao ofício, mas também na atenção e cuidado especiais, bem como no respeito à dignidade humana do enfermo.

A dignidade, nesse sentido, não se limita a seu valor intrínseco, mas engloba também o reconhecimento pelo indivíduo da dignidade dos demais. Nesse sentido, o profissional de saúde tem incumbência especial, já que o trato da pessoa com transtorno mental deve ser diferenciado, considerando não apenas o estado em que ela se encontra, mas também reconhecendo que sua dignidade merece igual respeito.

Apesar dos obstáculos inerentes ao ofício, especialmente quando se trata de saúde mental, como é o caso das etapas para definir o diagnóstico e delimitar opções terapêuticas, o profissional de saúde, ao pôr em prática suas habilidades técnicas, também deve se atentar ao trato com o paciente. A forma como o profissional lida com a pessoa com transtorno psíquico é relevante mesmo para gerar confiança, o que pode influenciar a abertura do paciente para as informações a ele passadas.

Esse tipo de zelo também pode ser aplicado nos casos em que a condição da pessoa exige a indicação de parentes ou representantes para a tomada de decisão, sendo transmitidas a estes, e não ao paciente, as informações sobre o estado de saúde e as respectivas alternativas terapêuticas. Assim, somado a habilidades e conhecimentos técnicos, o trato do paciente com maior atenção e cuidado leva o profissional da saúde ao verdadeiro respeito da autonomia e dignidade do paciente com transtorno mental.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2018
  • Revisado
    3 Ago 2018
  • Aceito
    21 Set 2018
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