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Reflexão bioética no cuidado da criança em estado terminal

Resumo

Os problemas éticos diante da morte são mais graves ou complexos quando envolvem crianças. Este artigo reflete sobre o valor da dignidade humana a partir de revisão do caso de uma menina em fim de vida, analisando-o pelo método deliberativo. Consideram-se ainda questões relacionadas com a adequação do esforço terapêutico, o respeito à autonomia de pais e filhos, o papel dos profissionais de enfermagem como defensores do paciente e o autocuidado desses profissionais perante situações de morte. A terminalidade é processo difícil para a equipe de saúde, e o cuidado nessa fase implica respeitar a dignidade, promover a autonomia e a boa morte. Para isso, são essenciais novas propostas que contribuam para o bem-estar das pessoas no fim de suas vidas, principalmente quando as instituições de saúde falham em atender a suas necessidades.

Morte; Bioética; Enfermagem pediátrica; Doente terminal

Resumen

Los problemas éticos ante la muerte se agudizan o complejizan con los niños. El presente artículo reflexiona sobre el valor de la dignidad humana a partir de la revisión del caso de una niña que enfrenta la muerte, analizándolo desde el método deliberativo. Se revisan problemáticas en torno a la adecuación del esfuerzo terapéutico, el respeto por la autonomía de padres y niños, el rol de la enfermera como defensora del paciente y el autocuidado de los profesionales de la salud ante la muerte. La condición terminal es un proceso difícil de manejar para el equipo de salud, y el cuidado en esta etapa implica respetar la dignidad, fomentar la autonomía y favorecer el buen morir. Para ello, se hace imprescindible responder con nuevas propuestas que contribuyan al bienestar de las personas al final de sus vidas, particularmente cuando las instituciones sanitarias no logran dar respuesta a sus necesidades.

Muerte; Bioética; Enfermería pediátrica; Enfermo terminal

Abstract

Ethical problems involved in death are exacerbated or more complex in the case of terminally ill children. Using the deliberative method, this article reflects on the value of human dignity based on the case of a girl at the end of life. We address issues related to therapeutic efforts, respect for the parents and children’s autonomy, nurse role as an advocate for the patient’s well-being and the self-care of health professionals. Death is a difficult process for the health team. Providing care at this stage implies respecting dignity, promoting autonomy and good dying. For this, new proposals are essential to contribute to the well-being of people at the end of their lives, particularly when health institutions do not meet their needs.

Death; Bioethics; Pediatric nursing; Terminally ill

As decisões éticas sobre o final da vida são problemas frequentes que os profissionais de saúde enfrentam na prática. Em sua função social de combate e assistência, eles muitas vezes sentem o peso da dor e do medo causado pela morte.

O cuidado de uma criança no fim da vida deve transcender o sofrimento vivido pela família nesse momento. Os profissionais de saúde devem estar preparados para auxiliar a boa morte dos pacientes terminais, favorecendo a tranquilidade, para diminuir a dor do acompanhante familiar.

Para isso, a equipe de enfermagem que presta os cuidados a esses pacientes necessita de preparo quanto aos aspectos técnicos e humanos a fim de permitir o suporte à família e os cuidados paliativos para a boa morte. Além disso, é preciso ter formação bioética que contribua para a tomada de decisão sobre o fim da vida dos pacientes, motivada pelo estímulo do exercício da autonomia, entendido como a capacidade de autodeterminação com base na reflexão racional, e pelo reconhecimento da fragilidade da equipe de saúde, que muitas vezes considera a morte como fracasso e se recusa a interromper o tratamento.

O cuidado paliativo prestado ao paciente terminal requer comprometimento e decisão diante de uma realidade provisória, já que não há tempo. Deve-se tomar decisões e medidas para auxiliar morte mais tranquila. Isso demanda exigências profissionais e humanas de alto nível, uma vez que envolve, além do cuidado ao doente, medo, dor e compaixão pelo moribundo e sua família.

Este artigo tem o objetivo de refletir sobre o valor da dignidade humana a partir de revisão do caso de uma menina em fase terminal, produto da vivência de uma das autoras, utilizando a deliberação bioética como referência teórica. Serão analisados os seguintes tópicos: adequação do esforço terapêutico, respeito à autonomia de pais e filhos, papel dos enfermeiros como defensores do paciente e autocuidado dos profissionais de saúde nessa situação.

Relato de uma enfermeira pediátrica

“Gloria é uma menina de 12 anos, residente na zona rural perto da cidade, que está em tratamento para leucemia aguda. O prognóstico não é bom, ela está em fase terminal. A recomendação do comitê especializado entregue há dois dias é interromper a quimioterapia, continuar os cuidados paliativos e liberá-la para casa com a família. No entanto, o médico que a acompanha insiste em continuar a quimioterapia e interná-la isoladamente. Apesar das objeções da menina e dos pais, o médico saiu sem ouvir o pedido deles, inclusive das enfermeiras, que insistiam para que ela voltasse para casa. Gloria estava muito fraca, chorava bastante e pedia para voltar para casa, gostaria de estar com seu irmãozinho, que não via há bastante tempo. A enfermeira clínica, vendo o desespero da família e sentindo-se parte disso, decide solicitar avaliação de alta ao médico de plantão. O pediatra de plantão argumenta que não está capacitado para dar alta, mas recomenda que a família faça a solicitação ao diretor do hospital, que, ouvindo o pedido e revisando o prontuário médico, resolve dar alta à paciente, que retorna com a família para casa nesse mesmo dia, numa sexta-feira. Gloria faleceu no sábado, em casa, cercada pela família. A mãe de Gloria ligou para informar a morte e agradecer por ajudar a filha a compartilhar seus últimos momentos. E agradeceu especialmente porque Gloria conseguiu realizar o último desejo de ver o irmãozinho novamente, e assim partiu tranquila” (Matilde, enfermeira da unidade de cuidado intensivo pediátrico).

Para analisar este caso, toma-se como ponto de partida a dignidade do ser humano, que implica o respeito à autonomia e aos direitos fundamentais do indivíduo. O caso da menina em questão concretiza o direito das crianças de serem ouvidas, respeitando assim sua dignidade no momento da morte11. Naciones Unidas. Convención sobre los derechos del niño: observación general nº 12 (2009): el derecho del niño a ser escuchado [Internet]. [S.l.]: Naciones Unidas; 2009 [acesso 24 abr 2020]. Disponível: https://bit.ly/3c8OtZ6
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, 22. Jiménez S. Decisiones clínicas en el final de la vida. Bioét Complutense [Internet]. 2017 [acesso 24 abr 2020];32:66-70. Disponível: https://bit.ly/2SyhGFe
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O referencial teórico-metodológico utilizado foi a ética da deliberação, proposta por Diego Gracia33. Gracia D. La deliberación moral: el método de la ética clínica. Med Clin [Internet]. 2001 [acesso 13 mar 2020];117(1):18-23. DOI: 10.1016/S0025-7753(01)71998-7 , 44. Gracia D. Procedimientos de decisión en ética clínica. San Sebastián: Triacastela; 2007. e adaptada à realidade do contexto de pobreza e exclusão social no Chile por Juan Pablo Beca e Carmen Astete55. Beca J, Astete C. Bioética clínica. Santiago: Mediterráneo; 2014. . Enfatiza-se, principalmente, a necessidade de reconhecer o outro em seu contexto social, familiar e pessoal, visando estabelecer procedimentos de saúde mais condizentes com as necessidades e possibilidades de um cuidado respeitoso, conforme a vontade do doente terminal.

O diálogo é considerado condição potencial para se chegar a um consenso sobre o cuidado do enfermo entre todos os envolvidos no caso. Para isso, busca-se relacionar a participação da família e da equipe de saúde na tomada de decisões em relação à assistência paliativa do paciente terminal. Ademais, deve-se incentivar a interdisciplinaridade e o autocuidado nos profissionais de saúde, que são afetados pela dor do outro.

Da mesma forma, em contexto de desigualdade e discriminação social, destaca-se o trabalho dialógico da enfermagem no cuidado do paciente, desempenhando o papel de defensora dos direitos do doente. Valoriza-se, particularmente, o empoderamento do doente pelos enfermeiros diante da desigualdade de oportunidades do sistema de saúde público do Chile e da assimetria de vontades entre enfermos (ou famílias) e profissionais da saúde, especialmente médicos.

Nesse contexto, entendemos que o processo deliberativo consiste em análise racional que promova avanços na reflexão colaborativa, com diferentes pontos de vista sendo confrontados em busca de soluções mais sensatas, que podem ser apresentadas alternativamente na tomada de decisões66. Faúndez JP. La bioética de Diego Gracia. Valparaíso: Ediciones Universitarias de Valparaíso; 2014. .

A partir do exposto, consideramos que o caso de Gloria permite refletir sobre os seguintes aspectos relacionados à assistência no momento da morte: adequação do esforço terapêutico, respeito à autonomia de pais e filhos, papel dos enfermeiros como defensores dos pacientes e autocuidado dos profissionais de saúde perante a morte do paciente.

Adequação do esforço terapêutico

Durante séculos, a formação dos profissionais de saúde foi voltada a salvar vidas e aplicar todas as técnicas possíveis, sem poupar esforços para manter o paciente vivo. O século XX, com seus avanços tecnológicos e terapêuticos, trouxe o problema da adequação: por quanto tempo é aceitável prolongar artificialmente a vida? Assim, na segunda metade do século XX, surgiram conceitos como obstinação terapêutica, encarniçamento terapêutico e distanásia. Esses conceitos mostram a incapacidade da equipe de saúde em saber quando parar os cuidados médicos para salvar a vida, incapacidade esta que acarreta alto custo de sofrimento físico, emocional e até econômico para o paciente e sua família.

Uma das contribuições dos comitês de ética assistencial (CEA) foi ter desenvolvido a ideia de limitação ou adequação do esforço terapêutico, cuja finalidade é retomar o equilíbrio de benefícios, o que supõe técnica ou tratamento médico em função dos custos (físicos, emocionais e econômicos) para o paciente e sua família.

Atualmente, a adequação do esforço terapêutico consiste na aplicação de medidas proporcionais à situação clínica do doente, à sua vontade e ao contexto. A adequação terapêutica resulta na suspensão do tratamento curativo porque o paciente está prestes a morrer e deve-se continuar com o cuidado médico para que tenha morte mais tranquila, por meio de medidas paliativas para controlar a dor, como sedação e suporte para o maior bem-estar possível, incluindo condições físicas, psicológicas e espirituais do enfermo e familiares77. Uriarte Méndez A, Vila Díaz J, Pomares Pérez Y, Prieto Apesteguía A, Capote Padrón JL. La familia y la limitación del esfuerzo terapéutico en los cuidados intensivos pediátricos. Medisur [Internet]. 2014 [acesso 25 abr 2017];12(1):16-23. Disponível: https://bit.ly/2W3Hw6b
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Essa aplicação tem como objetivo a morte digna, evitando prolongar a agonia, mas sem apressar o fim por ações externas. Para isso, a principal ferramenta é o diálogo entre paciente, família e equipe de saúde. É vital conhecer desejos e medos para assim avaliar os benefícios produzidos por determinado tratamento em relação ao fardo que representa para o doente, específico para cada pessoa.

No caso mencionado, são conhecidas as dificuldades que a equipe de saúde, a família e Gloria enfrentam para estabelecer o diálogo. Ali ocorrem problemas de comunicação devido à obstinação do médico em impor sua autoridade clínica ao restante da equipe e em não ouvir a vontade da menina doente e de sua família.

Não se pode negar a autoridade do especialista na adequação do tratamento (neste caso o médico), considerando sua formação e conhecimentos técnicos. Ele faz o diagnóstico e o prognóstico e propõe o tratamento apropriado de acordo com a evolução da doença. No entanto, a sua não é a única consideração para tomar decisões.

Portanto, deve-se considerar diferentes âmbitos nas deliberações de cada caso: 1) o diagnóstico e possíveis tratamentos; 2) a vontade do paciente e da família; 3) o contexto ou a realidade do meio familiar e clínico; e 4) as metas a serem alcançadas em cada caso22. Jiménez S. Decisiones clínicas en el final de la vida. Bioét Complutense [Internet]. 2017 [acesso 24 abr 2020];32:66-70. Disponível: https://bit.ly/2SyhGFe
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. Os quatro âmbitos se impõem mutuamente, sendo inadequado técnica e moralmente considerar apenas um deles do ponto de vista profissional. Não há como fazer uma boa análise da situação, seja qual for, se não buscarmos entendimento amplo, considerando todos os fatores.

Esses âmbitos não são suficientes para estabelecer diálogo adequado entre os envolvidos – é fundamental ter atitude receptiva, em que cada um dos participantes considera os outros como interlocutores. Ou seja, é necessário reconhecer o direito legítimo de cada um dos envolvidos expressar sua vontade e o dever de aceitá-la como autêntica, verdadeira e digna de respeito.

Ser formado em medicina e conhecer tecnicamente os tratamentos disponíveis é, sem dúvida, essencial para a tomada de decisões, mas não desqualifica os demais envolvidos. Cada um dos participantes deve contribuir com a verdade de sua vivência e conhecimento, para ponderar a justa medida e guiar as deliberações.

Primeiramente, essa exigência recai sobre o profissional que deve escolher o tratamento, ou seja, o médico, que tem maior autoridade clínica e poder de decisão, além de mais responsabilidade em garantir que todos expressem seus conhecimentos e vontades.

Deve-se reconhecer que a situação é complexa, e a carga que recai sobre os profissionais saúde, particularmente sobre o médico, é avassaladora, e a morte de crianças é ainda mais difícil de assimilar. Entretanto, esses profissionais que cuidam ou acompanham enfermos com doença terminal necessitam de formação específica para que possam enfrentar os desafios exigidos na terminalidade, colocando em primeiro lugar o bem-estar dos doentes e familiares.

Em casos como o de Gloria, muitas vezes as equipes não chegam a um consenso sobre o que é melhor para a doente, sendo necessário ouvir o próprio paciente e sua família. No entanto, geralmente os médicos não estão preparados para a morte de seus pacientes e não têm preparo psicológico para acompanhar moribundos88. Gómez R. El médico frente a la muerte. Rev Asoc Esp Neuropsiq [Internet]. 2012 [acesso 25 abr 2017];32(113):67-82. DOI: 10.4321/S0211-57352012000100006 . Da mesma forma, as equipes de saúde também não têm formação suficiente em bioética, o que atrasa decisões sobre o fim da vida99. Morales G. Limitación del esfuerzo terapéutico en cuidados intensivos pediátricos. Rev Chil Pediatr [Internet]. 2015 [acesso 25 abr 2017];86(1):56-60. DOI: 10.1016/j.rchipe.2015.04.011 .

Essas deficiências não são questão secundária na formação; pelo contrário, diferenciam bons e maus profissionais. Conhecimento científico, experiência técnica e mesmo olhar clínico não bastam para constituir um bom profissional: são necessárias competências éticas pessoais, como a atitude dialógica entre iguais, embora com capacidades, funções e responsabilidades próprias.

Respeito à autonomia de pais e filhos

As decisões não devem ser exclusivas dos médicos, mas abertas à equipe de saúde, à família e aos conselhos dos comitês de ética clínicos. Ainda assim, persistem os casos em que a opinião do enfermo e de sua família não é realmente considerada na decisão de adequar ou rejeitar um tratamento.

No caso de Gloria, para seu médico, a vontade de curar a doença era superior ao bem-estar da menina e da família. A avaliação técnica muitas vezes se coloca acima da avaliação humana, e a maleficência pode deixar de ser considerada. Ignorando a vontade da menina de voltar para casa e passar seus últimos momentos em companhia dos entes queridos, o médico a condena a morrer na solidão. Por outro lado, os pais de Gloria se resignam com a morte da filha e sentem a necessidade de dignificá-la, respeitando sua última vontade e oferecendo companhia e amor.

Nessas situações, recomenda-se que a equipe de saúde reserve tempo para revisar e estabelecer consenso sobre as medidas de adaptação da terapia. Para isso, é preciso manter comunicação honesta e respeitosa com todos os envolvidos. Os profissionais de saúde precisam comprometer-se e estar dispostos a ouvir o paciente e a família1010. Cerda HA. Aproximación en torno a adecuación del esfuerzo terapéutico en pacientes pediátricos con patología neurológica grave y dependientes de ventilación mecánica crónica (II parte). Rev Chil Enferm Respir [Internet]. 2015 [acesso 25 abr 2017];31(2):121-6. DOI: 10.4067/S0717-73482015000200009 . Dessa maneira, o diálogo estabelece o caminho para a deliberação e o correto exercício da autonomia.

A autonomia do paciente como clara expressão de respeito à sua dignidade pessoal é cada vez mais reconhecida nos centros de saúde. Isso é percebido em clínicas privadas que tratam pacientes como clientes, que têm o direito de receber serviço clínico, e também no sistema público, em que os direitos do usuário são estabelecidos por lei. No Chile, a lei de direitos e deveres do paciente busca capacitar as pessoas para exigir atendimento de qualidade e tratamento digno e respeitoso1111. Chile. Ministerio de Salud. Ley nº 20.584, de 13 de abril de 2012. Regula los derechos y deberes que tienen las personas en relación con acciones vinculadas a su atención en salud [Internet]. Santiago: Biblioteca del Congreso Nacional de Chile; 2012 [acesso 12 mar 2019]. Disponível: https://bit.ly/2W3WGby
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No entanto, é necessário atitude respeitosa com base na igual dignidade de todos os seres humanos. Uma vida melhor é alcançada com respeito mútuo e reconhecimento da individualidade de cada pessoa. Quando isso se aplica ao cuidado de doentes terminais, a autonomia é entendida como o respeito às decisões do paciente em relação ao seu bem-estar. Essas deliberações devem ser baseadas na transmissão de informações suficientes e adequadas pela equipe de tratamento. Dessa maneira, a autonomia se torna relevante para o paciente aceitar ou rejeitar tratamentos.

Quando se trata de paciente terminal, a história da pessoa está chegando ao fim; portanto, deve-se garantir o maior grau de bem-estar possível. Quem melhor que o próprio paciente para saber o que lhe traz felicidade no fim da vida, com quem quer estar no momento da morte, como quer enfrentá-la e o que espera para a vida que lhe resta e para o mistério insondável que virá depois da morte? Essas questões são relevantes nesse momento, colocando em segundo plano a evolução da doença em função da cura.

O papel dos enfermeiros como defensores dos pacientes

A proteção dos pacientes é dimensão importante no cuidado da enfermagem. Alguns autores relatam que a proximidade estabelecida entre esses profissionais e pacientes, considerando a constância dos cuidados, determina a escuta e o respeito à autonomia dos enfermos, dando a esses profissionais o papel de defensores1212. Barlem EL, Lunardi VL, Lunardi GL, Tomaschewski-Barlem JG, Silva da Silveira R. Sufrimiento moral en el cotidiano de la enfermería: huellas ocultas de poder y resistencia. Rev Latinoam Enferm [Internet]. 2013 [acesso 20 ago 2018];21(1):293-9. DOI: 10.1590/S0104-11692013000100002 . Não é de surpreender, portanto, que nesse caso seja a enfermeira a advogar por Gloria e a família, entendendo que a menina vive seus últimos momentos e seu desejo é estar com a família. A maioria dos hospitais públicos não oferece condições acolhedoras para que a família permaneça com o doente – neste caso, por exemplo, a última vontade de Gloria é estar com o irmãozinho em casa.

Sob a visão paternalista em saúde, o papel dos enfermeiros foi determinado pelo trabalho biomédico e centrado nas demandas das instituições de saúde. A partir da década de 1960, quando começa a tendência de abandonar essa visão, o profissional de enfermagem passa a relacionar o cuidado dos usuários à sua autonomia, defendendo e protegendo o doente de agressões ou injustiças das estruturas de saúde, além de capacitar pessoas da equipe e acompanhá-las na tomada de decisões1313. Barrio IM, Molina A, Sánchez CM, Ayudarte ML. Ética de enfermería y nuevos retos. An Sist Sanit Navar [Internet] 2006 [acesso 20 ago 2018];29(3):41-7. Disponível: https://bit.ly/2zbTq4K
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. Na década de 1980, essa defesa do enfermo passou a ser reconhecida como essencial na deontologia, considerando a proximidade e o tempo que esse profissional passa com os doentes1414. Tomaschewski-Barlem JG, Lunardi VL, Barlem ELD, Silveira RS, Dalmolin GL, Ramos AM. Adaptación transcultural y validación del instrumento Protective Nursing Advocacy Scale para enfermeros brasileños. Rev Latinoam Enferm [Internet]. 2015 [acesso 20 ago 2018];23(4):669-76. DOI: 10.1590/0104-1169.0214.2602 . No referido caso, a enfermeira respeita e entende os valores de Gloria e de sua família em relação ao fim da vida, o que a levou a atuar como intermediária, priorizando os valores da paciente perante a equipe e a instituição.

É preciso reconhecer as necessidades do paciente e da família e incentivar o máximo de respeito possível. Também compete ao profissional de enfermagem gerenciar e favorecer a boa morte das pessoas sob seus cuidados, o que implica proporcionar ambiente digno e respeitoso no processo de morte enfrentado pelo paciente e pessoas mais próximas. Se a alta não for possível, o hospital deve oferecer, no mínimo, conforto (ausência de dor), intimidade, companhia e assistência espiritual aos moribundos.

O autocuidado dos profissionais de saúde diante da morte do paciente

As instituições precisam se adaptar para acolher o paciente terminal e sua família, mas também devem oferecer capacitação sobre autocuidado aos profissionais de saúde que trabalham em unidades de assistência a pacientes terminais. Os profissionais de enfermagem que prestam cuidados paliativos e acompanham a boa morte precisam de orientação contínua para que possam ajudar na preparação do luto do paciente e da família e consigam cuidar de si mesmos.

Para isso, os profissionais devem considerar o autocuidado, pois são igualmente vulneráveis à morte vivenciada. Levinas1515. Levinas E. Dios, la muerte y el tiempo. Madrid: Cátedra; 2008. indica que a experiência da morte do outro nos afeta porque estamos sempre mantendo relações de proximidade – a responsabilidade do eu pelo outro. Acompanhar, respeitar e proteger o enfermo terminal é algo motivado, acima de tudo, pela condição comum do ser humano1616. Montoya Juárez R. Aquellos que nos verán morir: significado y respuesta de los profesionales sanitarios de una residencia de anciano ante la muerte y los moribundos. Index Enferm [Internet]. 2006 [acesso 14 mar 2019];15(52-3):25-9. Disponível: https://bit.ly/2L4lrxM
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O autocuidado é responsabilidade do sistema de saúde em geral. Por um lado, as instituições de saúde devem gerenciar a equipe de tratamento; por outro, o profissional deve também cuidar de si1717. Carrasco Navarrete MD. El deber cuidado frente al derecho a morir. Apuntes Bioét [Internet]. 2011 [acesso 3 maio 2018];2(2):40-8. Disponível: https://bit.ly/3dhgduB
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. No entanto, a realidade nos sistemas de saúde mostra que a capacitação em autocuidado não é umas das preocupações das instituições de saúde1818. Torralba Roselló F. Esencia de cuidar: siete tesis. Sal Terrae [Internet]. 2005 [acesso 20 ago 2018];93(1095):885-94. Disponível: https://bit.ly/2SD2wym
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, ficando evidente essa lacuna ainda na formação profissional1919. Contreras SE. Trabajar con pacientes del programa de alivio del dolor y cuidados paliativos: razones que expresan las/os enfermeras/os [dissertação] [Internet]. Concepción: Universidad de Concepción; 2014 [acesso 4 jul 2018]. Disponível: https://bit.ly/3b3yuKn
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, 2020. Orozco-González MA, Tello-Sánchez GO, Sierra-Aguillón R, Gallegos-Torres RM, Xeque-Morales AS, Reyes-Rocha BL et al. Experiencias y conocimientos de los estudiantes de enfermería, ante la muerte del paciente hospitalizado. Enferm Univ [Internet]. 2013 [acesso 6 jul 2018];10(1):8-13. DOI: 10.1016/S1665-7063(13)72622-8
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.

Um dos aspectos do autocuidado é a questão de como os profissionais de saúde podem lidar com o luto. Na enfermagem, esse tema é abordado em vários estudos que confirmam a falta de preparo adequado desses profissionais nessa questão, o que gera sentimentos de desamparo e frustração. Dessa forma, torna-se importante abordar o luto na universidade para evitar atitudes negativas, como evasão, negação e frieza na prática clínica2121. Espinoza-Venegas M, Luengo-Machuca L, Sanhueza-Alvarado O. Actitudes en profesionales chilenos hacia el cuidado al final de la vida: análisis multivariado. Aquichan [Internet]. 2016 [acesso 6 jul 2018];16(4):430-46. DOI: 10.5294/aqui.2016.16.4.3 , 2222. Lopera-Betancur MA. Cuidado del paciente moribundo: una confrontación entre mostrar sentimientos y desempeño profesional. Aquichan [Internet]. 2017 [acesso 6 jul 2018];17(3):284-91. DOI: 10.5294/aqui.2017.17.3.5 .

Apesar do sofrimento, profissionais levam adiante o cuidado aos doentes, geralmente ocultando sentimentos em relação ao luto, o que acaba afetando sua saúde mental e, com o tempo, desumanizando os serviços nas instituições de saúde2323. Maza Cabrera M, Zavala Gutiérrez M, Merino Escobar JM. Actitudes del profesional de enfermería ante la muerte de pacientes. Cienc Enferm [Internet]. 2008 [acesso 6 jul 2018];15(1):39-48. DOI: 10.4067/S0717-95532009000100006 .

Algumas pesquisas apontam fatores que facilitam a vivência do processo de luto, como expressar sentimentos e emoções, estabelecer vínculos positivos com a família e o paciente, prestar cuidado de forma responsável e apoiar-se mutuamente, sobretudo em outros profissionais com mais experiência2424. Frías C. O cuidar da pessoa em fim de vida como experiência formadora. Av Enferm [Internet]. 2012 [acesso 6 jul 2018];30(1):13-22. Disponível: https://bit.ly/2LbFHhb
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, 2525. Vega Vega P, González Rodriguez R, Palma Torres C, Ahumada Jarufe E, Mandiola Bonilla J, Oyarzún Díaz C, Rivera Martínez S. Develando el significado del proceso de duelo en enfermeras(os) pediátricas(os) que se enfrentan a la muerte de un paciente a causa del cáncer. Aquichan [Internet]. 2013 [acesso 6 jul 2018];13(1):81-91. Disponível: https://bit.ly/2WsolBY
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Considerações finais

O cuidado de doentes em fim de vida apresenta múltiplos desafios e, em muitas ocasiões, problemas éticos para os profissionais de saúde. Cuidar de um paciente terminal implica respeitar a dignidade, promover a autonomia e auxiliar a boa morte. Mas essa tarefa só é possível se assumirmos a deliberação ética como método de comunicação e de tomada de decisões. Para isso, deve-se incluir todos os envolvidos e reconhecer que todos os interlocutores são importantes, concentrando-se mais no bem-estar do paciente do que nos tratamentos que prolongam a vida.

Para o acompanhamento profissional adequado no fim da vida, é necessário capacitar a equipe de saúde, desenvolvendo habilidades e destrezas em deliberação ética, bem como estratégias de comunicação e manejo do luto para pacientes e familiares. Também é essencial promover formação contínua em bioética para que os profissionais possam enfrentar novas problemáticas na tomada de decisões críticas em saúde.

Nossa realidade latino-americana de dispersão geográfica e pobreza exige novas propostas que contribuam para o bem-estar das pessoas em estado terminal, principalmente quando as instituições de saúde falham em atender a essas necessidades.

Referencias

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Fev 2019
  • Revisado
    26 Mar 2020
  • Aceito
    27 Mar 2020
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