Acessibilidade / Reportar erro

Adaptação transcultural do Injustice Experience Questionnaire para o português do Brasil

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Tem sido proposto que algumas pessoas com dor musculoesquelética podem desenvolver um sentimento de injustiça. A percepção da injustiça pode ter um impacto significativo em uma série de desfechos relacionados à dor, sintomas depressivos maiores, incapacidades e absenteísmo. O objetivo deste estudo consistiu em uma adaptação transcultural do instrumento original em inglês do Injustice Experience Questionnaire para uma versão final a ser utilizada no Brasil.

MÉTODOS:

Todo o processo consistiu em tradução, retrotradução e revisão pelo comitê de especialista. O pré-teste foi aplicado a 90 participantes (41 participantes com dor crônica musculoesquelética). Para a análise psicométrica, a versão traduzida foi aplicada a 120 participantes com dor crônica musculoesquelética. A consistência interna foi verificada pelo coeficiente alfa de Cronbach e a validade do construto foi analisada por meio de análise exploratória fatorial.

RESULTADOS:

Após a conclusão do pré-teste, não houve dificuldades em entender cada item do questionário traduzido por mais de 20% da amostra. O cálculo alfa de Cronbach para os 12 itens do Injustice Experience Questionnaire/Port-BR foi de 0,86 [IC (95%) = 0,83 a 0,90; p<0,001].

CONCLUSÃO:

A versão em português do questionário mostrou-se facilmente compreensível com boa validação semântica. No entanto, estudos adicionais devem abordar outras características psicométricas desse instrumento.

Descritores:
Distúrbios do humor; Dor crônica; Mensuração da dor; Psicometria; Questionário; Tradução

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

It has been proposed that some individuals with musculoskeletal pain may perceive themselves as victims of injustice. Perception of injustice can have a significant impact on several pain-related outcomes, major depressive symptoms, disabilities, and absenteeism. The objective of this study consisted of a transcultural adaptation of the original instrument in English, Injustice Experience Questionnaire into a final version to be used in Brazil.

METHODS:

The whole translation process consisted of translation, back-translation and the review by a committee of experts. The pre-test was applied to 90 participants (41 participants with chronic musculoskeletal pain). For the psychometric analysis, the translated version was applied to 120 participants with chronic musculoskeletal pain. The internal consistency was verified by the Cronbach’s alpha coefficient, and the construct validity was analyzed using factorial exploratory analysis.

RESULTS:

After the conclusion of the pre-test, there were no difficulties in understanding the translated questionnaire by more than 20% of the sample. The Cronbach alpha calculation for the 12 items of the Injustice Experience Questionnaire/Port-BR was 0.86 [CI (95%) = 0.83 to 0.90; p<0.001].

CONCLUSION:

The questionnaire’s Portuguese version proved to be easily understandable showing good semantic validation. Nevertheless, further studies should address other psychometric characteristics of this instrument.

Keywords:
Chronic pain; Mood disorders; Pain measurement; Psychometrics; Questionnaire; Translations

INTRODUÇÃO

A dor crônica tem sido considerada como um problema de saúde pública11 Rice AS, Smith BH, Blyth FM. Pain and the global burden of disease. Pain. 2016;157(4):791-6.. As evidências presentes na literatura destacam que os fatores cognitivos e emocionais, como os pensamentos negativos, o medo relacionado à dor, a ansiedade e a depressão podem contribuir para a cronificação22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61.

3 Sullivan MJ, Scott W, Trost Z. Perceived injustice: a risk factor for problematic pain outcomes. Clin J Pain. 2012;28(6):484-8.

4 Scott W, Trost Z, Bernier E, Sullivan MJ. Anger differentially mediates the relationship between perceived injustice and chronic pain outcomes. Pain. 2013;154(9):1691-8.

5 Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Further validation of a measure of injury-related injustice perceptions to identify risk for occupational disability: a prospective study of individuals with whiplash injury. J Occup Rehabil. 2013;23(4):557-65.

6 Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Barriers to change in depressive symptoms after multidisciplinary rehabilitation for whiplash the role of perceived injustice. Clin J Pain. 2015;31(2):145-51.

7 Kennedy L, Dunstan DA. Confirmatory factor analysis of the Injustice Experience Questionnaire in an Australian compensable population. J Occup Rehabil. 2014;24(3):385-92.
-88 Yakobov E, Scott W, Stanish W, Dunbar M, Richardson G, Sullivan M. The role of perceived injustice in the prediction of pain and function after total knee arthroplasty. Pain. 2014;155(10):2040-6..

Entre os fatores cognitivos e emocionais, a percepção de injustiça se caracteriza quando um indivíduo é exposto a situações nas quais ocorre violação de direitos humanos básicos, transgressão de status ou posição, ou perda da equidade99 Mohiyeddini C, Schmitt MJ. Sensitivity to befallen injustice and reactions to unfair treatment in a laboratory situation. Soc Justice Res. 1997;10(3):333-53.

10 Fetchenhauer D, Huang X. Justice sensitivity and distributive decisions in experimental games. Person Individ Diff. 2004;36(5):1015-29.
-1111 Hafer CL, Bègue L. Experimental research on just-world theory: problems, developments and future challenges. Psychol Bull. 2005;131(1):128-67.. A experiência de sofrimento desnecessário em decorrência das ações de outros e as avaliações individuais de perdas irreparáveis também podem dar origem a percepções de injustiça1212 Miller DT. Disrespect and the experience of injustice. Annu Rev Psychol. 2001;52:527-53.. A experiência de injustiça é um construto complexo, que se caracteriza pela avaliação de elementos da gravidade da perda, do sentimento de culpa, do sentimento de injustiça e de irreparabilidade da perda. A experiência de injustiça pode ser considerada como uma fonte de respostas de estresse e sentimentos negativos para as pessoas com dor crônica22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61.

3 Sullivan MJ, Scott W, Trost Z. Perceived injustice: a risk factor for problematic pain outcomes. Clin J Pain. 2012;28(6):484-8.

4 Scott W, Trost Z, Bernier E, Sullivan MJ. Anger differentially mediates the relationship between perceived injustice and chronic pain outcomes. Pain. 2013;154(9):1691-8.

5 Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Further validation of a measure of injury-related injustice perceptions to identify risk for occupational disability: a prospective study of individuals with whiplash injury. J Occup Rehabil. 2013;23(4):557-65.

6 Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Barriers to change in depressive symptoms after multidisciplinary rehabilitation for whiplash the role of perceived injustice. Clin J Pain. 2015;31(2):145-51.

7 Kennedy L, Dunstan DA. Confirmatory factor analysis of the Injustice Experience Questionnaire in an Australian compensable population. J Occup Rehabil. 2014;24(3):385-92.
-88 Yakobov E, Scott W, Stanish W, Dunbar M, Richardson G, Sullivan M. The role of perceived injustice in the prediction of pain and function after total knee arthroplasty. Pain. 2014;155(10):2040-6..

O Injustice Experience Questionnaire (IEQ) desenvolvido por Sullivan et al.22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. para avaliar a experiência de injustiça visa identificar a interpretação das perdas pessoais como grave e irreparável, e a transferência da culpa de seu sofrimento para outra pessoa22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61.,33 Sullivan MJ, Scott W, Trost Z. Perceived injustice: a risk factor for problematic pain outcomes. Clin J Pain. 2012;28(6):484-8.. A injustiça compreende elementos da gravidade da perda propiciada pela lesão (“A maioria das pessoas não entende como minha condição é grave”), a culpa (“Estou sofrendo por causa da negligência de alguém”), sensação de injustiça (“Tudo parece tão injusto”) e irreparabilidade da perda (“ Minha vida nunca mais será a mesma”). A análise fatorial do instrumento original revela que o IEQ produz dois fatores correlacionados que foram classificados como gravidade/irreparabilidade de perda e culpa/injustiça22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61..

As pessoas que interpretam suas situações atuais de saúde com percepções de injustiça podem apresentar uma recuperação mais prolongada1414 Gureje O, Von Korff M, Simon GE, Gater R. Persistent pain and well-being: a World Health Organization study in primary care. JAMA. 1998;280(2):147-51., resultados de tratamento insuficiente22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61.,1515 Blyth FM, March LM, Nicholas MK, Cousins MJ. Chronic pain, work performance and litigation. Pain. 2003;103(1):41-7.

16 Ferrari R, Russell AS. Why blame is a factor in recovery from whiplash injury. Med Hypotheses. 2001;56(3):372-5.
-1717 Turk DC, Okifuji A. Perception of traumatic onset, compensation status, and physical findings: impact on pain severity, emotional distress, and disability in chronic pain patients. J Behav Med. 1996;19(5):435-53. e prejuízos na saúde física1818 Jackson B, Kubzansky LD, Wright RJ. Linking perceived unfairness to physical health: the perceived unfairness model. Rev Gen Psychol. 2006;10(1):21-40. e como preditor significativo de maior intensidade de dor, depressão e sintomas pós-traumáticos após a lesão1919 Trost Z, Agtarap S, Scott W, Driver S, Guck A, Roden-Foreman K, et al. Perceived injustice after traumatic injury: associations with pain, psychological distress, and quality of life outcomes 12 months after injury. Rehabil Psychol. 2015;60(3):213-21..

Tendo em vista a influência das experiências de injustiça na cronificação da dor musculoesquelética, e a ausência de um instrumento capaz de avaliar a experiência de injustiça no cenário brasileiro, o objetivo do presente estudo foi conduzir um processo de adaptação transcultural do instrumento proposto para o contexto brasileiro e ainda apresentar uma versão do IEQ para utilização clínica e futuras análises psicométricas em diferentes cenários. Este estudo pode contribuir fornecendo um instrumento capaz de avaliar um domínio até então não pesquisado na população brasileira.

MÉTODOS

O processo de adaptação transcultural foi realizado no Serviço de Fisioterapia da Clínica Escola do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Campus Realengo e no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle.

O IEQ é composto por 12 itens no qual o entrevistado responde utilizando uma escala Likert com 5 opções sendo (0) nunca, (1) raramente, (2) às vezes, (3) frequentemente e (4) o tempo todo. O escore total do instrumento refere-se à soma de todos os 12 itens indicando que quanto maior o resultado, maior será a experiência de injustiça percebida pela pessoa. O instrumento ainda abrange duas dimensões denominadas: “culpa e injustiça” (itens 3, 7, 9, 10, 11 e 12) “gravidade e irreparabilidade de perda” (itens 1, 2, 4, 5, 6 e 8)22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61..

Após a autorização dos autores, a adaptação transcultural foi composta por análise de conteúdo da escala por um comitê de especialistas e um pré-teste, sendo dividida nas seguintes etapas: preparação, tradução, reconciliação (síntese), retrotradução, revisão da retrotradução, harmonização (comparação das versões retrotraduzidas), correção do texto revisado e por último, relatório final2020 Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91.

21 Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol. 1993;46(12):1417-32.
-2222 Wild D, Grove A, Martin M, Eremenco S, McElroy S, Verjee-Lorenz A, et al. Principles of good practice for the translation and cultural adaptation process for Patient-Reported Outcomes (PRO) Measures: report of the ISPOR Task Force for Translation and Cultural Adaptation. Value Health. 2005;8(2):94-104..

O processo de tradução para o português do Brasil foi realizado por dois tradutores juramentados, independentes e bilíngues (T1 e T2). Após análise, as versões T1 e T2 originaram a versão T12. A versão T12 foi retrotraduzida para a língua inglesa por outros dois tradutores bilíngues (RT1 e RT2). Esses dois tradutores não tinham conhecimento da versão original do questionário.

O Comitê de especialistas, composto por dois fisioterapeutas, dois psicólogos, um assistente social e todos os tradutores envolvidos no processo realizou a revisão das versões (original, T1, T2, T12, RT1, RT2 e RT12). Essa etapa permitiu a consolidação das versões, e a elaboração da versão pré-final do IEQ foi utilizada com o objetivo de eliminar qualquer item não compreendido por mais de 20% da amostra2323 Nusbaum L, Natour J, Ferraz MB, Goldenberg J. Translation, adaptation and validation of the Roland-Morris questionnaire--Brazil Roland-Morris. Braz J Med Biol Res. 2001;34(2):203-10..

O pré-teste foi composto por pessoas com dor musculoesquelética crônica, selecionadas por demanda espontânea, e um grupo controle formado por indivíduos sem dor musculoesquelética. Participaram do estudo pessoas de ambos os sexos, com idade mínima de 18 anos, com dor musculoesquelética por mais de três meses de origem traumática ou não. Não foram consideradas elegíveis para o estudo as pessoas com alterações cognitivas que impedissem a realização dos procedimentos da pesquisa. A pergunta norteadora para esta etapa era: “Você entendeu a frase”? O participante deveria indicar, em uma escala visual, um valor mínimo de “0” (“não entendi nada”) e o valor máximo “5” (“entendi perfeitamente e não tenho dúvidas”). Estabeleceu-se que os três primeiros valores seriam considerados como indicadores de uma compreensão insuficiente e, nesse caso, a frase deveria ser revista pela equipe de pesquisa.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE:53993516.8.0000.5268) do Instituto Federal do Rio de Janeiro.

Análise estatística

Os dados foram tabulados em uma planilha e analisados com o Software SPSS versão 20 para Windows (SPSS Inc., Chicago, Illinois). O cálculo do tamanho da amostra seguiu os critérios de Kerlinger2424 Kerlinger FN. Foundations of behavioral research. 3rd ed. New York: Holt, Rinehard and Winston; 1986. 415p. que recomenda para a inclusão de 10 sujeitos por item de uma escala.

Os 12 itens do IEQ foram submetidos à análise fatorial exploratória (AFE) via componentes principais, seguido pela rotação oblíqua (Oblimin direta) para verificar o comportamento dos itens frente suas respectivas variáveis latentes (dimensões). A confiabilidade do instrumento foi avaliada por meio da análise da consistência interna dos itens, separadamente para cada dimensão. Para se determinar o número ótimo de fatores para se reter na análise de componentes principais e o modelo configural do instrumento, foram utilizados os seguintes critérios: (1) critério de Kaiser (retenção de fatores com eigenvalues maiores que 1,0); (2) a “comunalidade” dos itens deveria ser ≥0,50; (3) a capacidade de interpretação da carga fatorial (para o item ser retido em um determinado fator, a carga deveria ser ≥0,60 em um fator e ≤0,40 nos demais fatores). A consistência interna foi avaliada por meio do coeficiente de alfa de Cronbach, sendo desejado valor acima de 0,70 para cada dimensão2525 Bastos JL, Celeste RK, Faerstein E, Barros AJ. Racial discrimination and health: a systematic review of scales with a focus on their psychometric properties. Saúde Transform Soc. 2010;2(1):4-16..

RESULTADOS

O estudo foi composto por duas etapas com um total de 210 participantes. Inicialmente, o IEQ foi aplicado para avaliação da compreensão e das equivalências semântica, idiomática, cultural e conceitual a 90 indivíduos, sendo 49 indivíduos saudáveis e 41 com dor crônica. Esse grupo foi composto por 73 mulheres e 17 homens, com média de idade de 24,6 (DP=6,7; xmin=19; xmáx=51) anos para os saudáveis e 60,3 (DP=12; xmin=23; xmáx=83) anos para os pacientes. No aspecto relacionado à escolaridade, todos os participantes saudáveis possuíam ensino superior incompleto. No grupo de pessoas com dor musculoesquelética, 1 (2,4%) não possuía instrução formal, 18 (43,9%) possuíam o primeiro grau completo, 15 (36,5%) o segundo grau completo e 5 (12,1%) ensino superior incompleto.

Na segunda etapa, que consistiu na avaliação psicométrica, participaram120 voluntários com dor musculoesquelética crônica que não haviam participado da etapa inicial, e por isso desconheciam o instrumento. Desses participantes, 104 (86,7%) mulheres e 16 (13,3%) homens. A média de idade foi de 62,4 (DP=14,3; xmin=20 - xmáx=92) anos. Em relação ao grau de instrução formal, a maior parte dos participantes 52 (43,3%) não possuíam instrução formal, ou possuíam o ensino fundamental incompleto, 23 (19,2%) o fundamental completo e médio incompleto, 34 (28,3%) o médio completo e superior incompleto e 10 (8,3%) o superior completo. Um participante (0,8%) não declarou seu grau de instrução.

O processo de equivalência semântica formou versões semelhantes, com mínimas diferenças entre as traduções T1 e T2. Na retrotradução, as versões RT1 e RT2 eram bastante semelhantes entre si, e em relação à versão original do IEQ. Nenhum item apresentou dificuldade de compreensão por mais de 20% da amostra. O processo de adaptação transcultural deu origem ao IEQ versão português do Brasil (IEQ/PORT-BR) (Anexo 1). As etapas da tradução e validação de conteúdo estão apresentadas na tabela 1.

Tabela 1
Apresentação das versões original, traduzida (T12), retrotraduzida e a versão final

A inspeção da matriz de correlação revelou a presença de diversos coeficientes com valores acima de 0,3. A medida de adequação da amostra de Kaiser-Meyer-Oklin (KMO) foi 0,86, e o teste de esfericidade de Barlett alcançou significância estatística, apoiando a fatorabilidade da matriz de correlação (c2 = 488,8; p<0,001). A análise de componentes principais revelou a presença de três componentes com valores próprios superiores a 1, explicando 41,5%, 9,2% e 8,4% da variância, respectivamente.

A análise do resultado após rotação Oblimin evidenciou um modelo com três fatores (Tabela 2), capazes de explicar 50,8% da variância - com a Dimensão 1 (Gravidade e Irreparabilidade) contribuindo 41,5%, e a Dimensão 2 (Culpa e Injustiça) contribuindo 9,2%. Dentro do modelo estrutural apresentado, a primeira dimensão, gravidade/irreparabilidade da perda foi responsável por 73,5% da variância total, e a segunda dimensão, culpa/injustiça, foi responsável por 26,1% da variância total. A análise sugere que as questões Q9 (“Nada vai compensar tudo o que eu passei”) e Q11 (“Estou preocupado em nunca mais poder alcançar os meus sonhos”) carregam ambas as dimensões. Além disso, as questões Q8 (“Estou preocupado que o meu problema não esteja sendo levado a sério”) e Q3 (“Estou sofrendo por causa da falta de cuidado de outra pessoa”) carregaram em uma terceira dimensão que julgamos estar relacionada com a percepção de negligência.

Tabela 2
Análise dos componentes principais do Injustice Experience Questionnaire em português

O cálculo alfa de Cronbach para os 12 itens da IEQ-português foi 0,86 [IC(95%)=0,83 – 0,90; p<0,001). Os coeficientes de correlação (r) Item-total variaram entre 0,28 e 0,71 (Tabela 3).

Tabela 3
Coeficientes de correlação (r) Item-total e alfa Cronbach por fatores

DISCUSSÃO

O IEQ/PORT-BR é o primeiro instrumento que foi traduzido para o português com o objetivo de identificar a experiência de injustiça. A versão original desenvolvida por Sullivan et al.22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. foi traduzida e validada para o espanhol2626 Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91. e dinamarquês2727 la Cour P, Smith AA, Schultz R. Validation of the Danish language Injustice Experience Questionnaire. J Health Psychol. 2015;22(7):825-33.. O IEQ/PORT-BR mostrou alta consistência interna assim como foi observado no estudo original22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. e na versão em espanhol2626 Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91..

Na análise fatorial realizada por Sullivan et al.22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. e Rodero et al.2626 Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91., os resultados foram semelhantes considerando o primeiro componente avaliado (gravidade/irreparabilidade da perda) explicando 54% do total da variância e o segundo componente (culpa/injustiça) responsável por 9% da variância total. No presente estudo, não houve consistência para se considerar o IEQ/PORT-BR contendo duas dimensões, uma vez que as questões Q3 (“Estou sofrendo por causa da falta de cuidado de outra pessoa”) e Q8 (“Estou preocupado que o meu problema não esteja sendo levado a sério”) carregaram para uma terceira dimensão. É possível que essas duas questões não obtiveram correlação semântica para se ajustar a nenhum dos dois domínios. É possível que as duas questões indiquem um terceiro fator para a versão em português que estaria relacionado à percepção de negligência. Já as questões Q9 (“Nada vai compensar tudo o que eu passei”) e Q11 (“Estou preocupado em nunca mais poder alcançar os meus sonhos”) carregaram ambos fatores. É possível que a semântica dessas questões não tenha permitido uma maior aderência para uma das dimensões na amostra estudada. Tal achado aponta para um comportamento não consistente desse item dentro da estrutura configural proposta pelo presente estudo, sendo necessário, portanto, futuros estudos para esclarecimento da real contribuição do item dentro do modelo proposto pelo presente estudo2828 Reichenheim ME, Hökerberg YH, Moraes CL. Assessing construct structural validity of epidemiological measurement tools: a seven-step roadmap. Cad Saude Publica, 2014;30(5):927-39..

As diferenças observadas nas análises podem estar relacionadas às características da amostra do presente estudo que foi composta por pessoas com dor crônica e diagnóstico de distúrbios musculoesqueléticos como dor lombar, dor cervical, osteoartrite de joelho entre outras. No estudo de Sullivan et al.22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. os participantes haviam sofrido lesões no trabalho e no estudo de Rodero et al.2626 Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91., foram incluídas pessoas com diagnóstico de fibromialgia.

Outro fator que pode explicar as diferenças encontradas quando comparado com os estudos de Sullivan et al.22 Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61. e Rodero et al.2626 Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91. é o tamanho da amostra. Apesar do estudo ter respeitado os critérios de Kerlinger2424 Kerlinger FN. Foundations of behavioral research. 3rd ed. New York: Holt, Rinehard and Winston; 1986. 415p. que recomenda 10 sujeitos para cada item do instrumento e o valor obtido no teste KMO (0,86) que quando próximo a 1 indica que o método de análise fatorial é perfeitamente adequado para o tratamento de dados, é possível que uma amostra maior pudesse refletir diferenças nos resultados da análise dos componentes.

Na fase de pré-teste, as diferenças na média de idade e escolaridade não comprometeram na compreensão das questões. Essa característica permite inferir que o questionário pode ser aplicado em diferentes idades e escolaridades sem que haja dificuldades na interpretação do instrumento. Além disso, a aplicação do IEQ/PORT-BR mostrou-se adequada para a prática clínica no que se refere à capacidade de compreensão, no tempo de aplicação que variou de 5 a 10 minutos, e à possibilidade de ser autoaplicável.

A disponibilização do IEQ/PORT-BR pode fornecer novas informações relacionadas à influência da experiência da injustiça nas pessoas com dor musculoesquelética no Brasil. A percepção de injustiça parece ser um fator importante que influencia a experiência de dor. Em um estudo de Margiotta et al.2929 Margiotta F, Hannigan A, Imran A, Harmon DC. Pain, perceived injustice, and pain catastrophizing in chronic pain patients in Ireland. Pain Pract. 2017;17(5):663-8. 33% apresentaram alto escore no IEQ havendo forte correlação com a catastrofização da dor. O estudo de van Leeuwen et al.3030 van Leeuwen WF, van der Vliet QM, Janssen SJ, Heng M, Ring D, Vranceanu AM. Does perceived injustice correlate with pain intensity and disability in orthopaedic trauma patients? Injury. 2016;47(6):1212-6. demonstrou que a injustiça percebida foi associada tanto à limitação da função quanto à intensidade da dor. Yakobov et al.88 Yakobov E, Scott W, Stanish W, Dunbar M, Richardson G, Sullivan M. The role of perceived injustice in the prediction of pain and function after total knee arthroplasty. Pain. 2014;155(10):2040-6., em um estudo prospectivo composto por pacientes pós-artroplastia de joelho, verificaram que a injustiça percebida contribuiu significativamente para predizer a variância da gravidade da dor pós-operatória.

Os resultados do presente estudo podem ser considerados iniciais no que se refere ao processo de análise psicométrica, sendo necessário o estudo em outras populações, assim como outros procedimentos estatísticos como a análise fatorial confirmatória, análises de consistência interna e validação concorrente em diferentes populações.

CONCLUSÃO

O Injustice Experience Questionnaire obtido no processo de adaptação transcultural para a língua portuguesa mostrou-se adequado para aplicação clínica e investigação da experiência de injustiça na população do Brasil.

  • Fontes de fomento: não há.

Anexo 1 Injustice Experience Questionnaire para o português Brasil

Nome _____________________________________________________ Idade _________Gênero____________ Data____________ Quando ocorrem lesões elas podem ter um impacto profundo em nossas vidas. Esta escala foi desenvolvida para avaliar como sua lesão tem afetado sua vida. A seguir estão listadas 12 afirmações que descrevem pensamentos e sentimentos diferentes que você pode ter quando pensa em sua lesão. Indique a frequência que você tem estes sentimentos epensamentos quando você pensa na sua lesão. 0 = nunca 1 = raramente 2 = às vezes 3 = frequentemente 4 = o tempo todo __________________________________________________________________________________________________________ 1 ◻ A maioria das pessoas não entende o quanto a minha lesão é séria 2 ◻ Minha vida nunca mais será a mesma 3 ◻ Estou sofrendo por causa da falta de cuidado de outra pessoa 4 ◻ Ninguém deveria ter que viver dessa maneira 5 ◻ Eu só quero ter minha vida de volta 6 ◻ Eu percebo que isso me afetou de uma maneira permanente 7 ◻ Isso tudo parece tão injusto 8 ◻ Estou preocupado que o meu problema não esteja sendo levado a sério 9 ◻ Nada vai compensar tudo o que eu passei 10 ◻ Sinto como se tivessem roubado algo muito precioso de mim 11 ◻ Estou preocupado em nunca mais poder alcançar os meus sonhos 12 ◻ Eu não posso acreditar que isso tenha acontecido comigo

REFERENCES

  • 1
    Rice AS, Smith BH, Blyth FM. Pain and the global burden of disease. Pain. 2016;157(4):791-6.
  • 2
    Sullivan MJ, Adams H, Horan S, Maher D, Boland D, Gross R. The role of perceived injustice in the experience of chronic pain and disability: scale development and validation. J Occup Rehabil. 2008;18(3):249-61.
  • 3
    Sullivan MJ, Scott W, Trost Z. Perceived injustice: a risk factor for problematic pain outcomes. Clin J Pain. 2012;28(6):484-8.
  • 4
    Scott W, Trost Z, Bernier E, Sullivan MJ. Anger differentially mediates the relationship between perceived injustice and chronic pain outcomes. Pain. 2013;154(9):1691-8.
  • 5
    Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Further validation of a measure of injury-related injustice perceptions to identify risk for occupational disability: a prospective study of individuals with whiplash injury. J Occup Rehabil. 2013;23(4):557-65.
  • 6
    Scott W, Trost Z, Milioto M, Sullivan MJ. Barriers to change in depressive symptoms after multidisciplinary rehabilitation for whiplash the role of perceived injustice. Clin J Pain. 2015;31(2):145-51.
  • 7
    Kennedy L, Dunstan DA. Confirmatory factor analysis of the Injustice Experience Questionnaire in an Australian compensable population. J Occup Rehabil. 2014;24(3):385-92.
  • 8
    Yakobov E, Scott W, Stanish W, Dunbar M, Richardson G, Sullivan M. The role of perceived injustice in the prediction of pain and function after total knee arthroplasty. Pain. 2014;155(10):2040-6.
  • 9
    Mohiyeddini C, Schmitt MJ. Sensitivity to befallen injustice and reactions to unfair treatment in a laboratory situation. Soc Justice Res. 1997;10(3):333-53.
  • 10
    Fetchenhauer D, Huang X. Justice sensitivity and distributive decisions in experimental games. Person Individ Diff. 2004;36(5):1015-29.
  • 11
    Hafer CL, Bègue L. Experimental research on just-world theory: problems, developments and future challenges. Psychol Bull. 2005;131(1):128-67.
  • 12
    Miller DT. Disrespect and the experience of injustice. Annu Rev Psychol. 2001;52:527-53.
  • 13
    Sullivan MJ, Adams H, Martel MO, Scott W, Wideman T. Catastrophizing and perceived Injustice. Spine. 2011;36(25 Suppl):S244-9.
  • 14
    Gureje O, Von Korff M, Simon GE, Gater R. Persistent pain and well-being: a World Health Organization study in primary care. JAMA. 1998;280(2):147-51.
  • 15
    Blyth FM, March LM, Nicholas MK, Cousins MJ. Chronic pain, work performance and litigation. Pain. 2003;103(1):41-7.
  • 16
    Ferrari R, Russell AS. Why blame is a factor in recovery from whiplash injury. Med Hypotheses. 2001;56(3):372-5.
  • 17
    Turk DC, Okifuji A. Perception of traumatic onset, compensation status, and physical findings: impact on pain severity, emotional distress, and disability in chronic pain patients. J Behav Med. 1996;19(5):435-53.
  • 18
    Jackson B, Kubzansky LD, Wright RJ. Linking perceived unfairness to physical health: the perceived unfairness model. Rev Gen Psychol. 2006;10(1):21-40.
  • 19
    Trost Z, Agtarap S, Scott W, Driver S, Guck A, Roden-Foreman K, et al. Perceived injustice after traumatic injury: associations with pain, psychological distress, and quality of life outcomes 12 months after injury. Rehabil Psychol. 2015;60(3):213-21.
  • 20
    Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine. 2000;25(24):3186-91.
  • 21
    Guillemin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J Clin Epidemiol. 1993;46(12):1417-32.
  • 22
    Wild D, Grove A, Martin M, Eremenco S, McElroy S, Verjee-Lorenz A, et al. Principles of good practice for the translation and cultural adaptation process for Patient-Reported Outcomes (PRO) Measures: report of the ISPOR Task Force for Translation and Cultural Adaptation. Value Health. 2005;8(2):94-104.
  • 23
    Nusbaum L, Natour J, Ferraz MB, Goldenberg J. Translation, adaptation and validation of the Roland-Morris questionnaire--Brazil Roland-Morris. Braz J Med Biol Res. 2001;34(2):203-10.
  • 24
    Kerlinger FN. Foundations of behavioral research. 3rd ed. New York: Holt, Rinehard and Winston; 1986. 415p.
  • 25
    Bastos JL, Celeste RK, Faerstein E, Barros AJ. Racial discrimination and health: a systematic review of scales with a focus on their psychometric properties. Saúde Transform Soc. 2010;2(1):4-16.
  • 26
    Rodero B, Luciano JV, Montero-Marín J, Casanueva B, Palacin JC, Gili M, et al. Perceived injustice in fibromyalgia: psychometric characteristics of the Injustice Experience Questionnaire and relationship with pain catastrophising and pain acceptance. J Psychosom Res. 2012;73(2):86-91.
  • 27
    la Cour P, Smith AA, Schultz R. Validation of the Danish language Injustice Experience Questionnaire. J Health Psychol. 2015;22(7):825-33.
  • 28
    Reichenheim ME, Hökerberg YH, Moraes CL. Assessing construct structural validity of epidemiological measurement tools: a seven-step roadmap. Cad Saude Publica, 2014;30(5):927-39.
  • 29
    Margiotta F, Hannigan A, Imran A, Harmon DC. Pain, perceived injustice, and pain catastrophizing in chronic pain patients in Ireland. Pain Pract. 2017;17(5):663-8.
  • 30
    van Leeuwen WF, van der Vliet QM, Janssen SJ, Heng M, Ring D, Vranceanu AM. Does perceived injustice correlate with pain intensity and disability in orthopaedic trauma patients? Injury. 2016;47(6):1212-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2017
  • Aceito
    30 Ago 2018
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br