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Diagnóstico diferencial de pacientes com dor crônica: heurística e vieses

Avaliar um paciente hígido com quadro de dor abdominal aguda e concluir seu diagnóstico após anamnese, exame clínico e quiçá exame laboratorial é um fato corriqueiro em ambiente de emergência hospitalar. Entretanto, vieses influenciam negativamente essa tomada de decisão em ambiente de consulta ambulatorial com pacientes com dor crônica. Fato real: mulher, 54 anos, casada, afastada do trabalho por dor difusa, com diagnóstico de fibromialgia, síndrome do colón irritado, índice de massa corporal de 18 kg/cm2, consulta médico por queixa de persistência e mudança no padrão das dores da fossa ilíaca direita, confirma que sempre teve episódios de dor nesta região mas a dor estava mais intolerável nos últimos três ou quatro meses. Também relata dor em região medial, anterior e lateral de quadril direito, dor em região lombar, regiões sacroilíacas, cervical, membro superior esquerdo e plantar. O médico-clínico optou por solicitar um exame de imagem e eureka! Diagnóstico de apendicite confirmado.

A satisfação do diagnóstico clínico estabelecido em um caso clínico “nebuloso” é inegável, mas situações como esta não são corriqueiras. Além do pensamento heurístico e o controle de vieses, diagnosticar uma doença aguda com sinais e sintomas semelhantes ao do paciente com dor crônica difusa é quase como um outlier, um ponto fora da curva.

O paciente com dor crônica apresenta manifestação clínica complexa, raramente seu exame cínico é descrito por um quadro específico e limitado. As doenças associadas à dor crônica apresentam significativo impacto psicossocial que influencia a interpretação de sinais e sintomas. A necessidade de incluir a multi-dimensionalidade da dor na avaliação é apoiada inclusive pela inclusão de códigos complementares na Classificação Internacional de Doenças (CID-11)11 Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Finnerup NB, First MB, Giamberardino MA, Kaasa S, Korwisi B, Kosek E, Lavand’homme P, Nicholas M, Perrot S, Scholz J, Schug S, Smith BH, Svensson P, Vlaeyen JWS, Wang SJ. Chronic pain as a symptom or a disease: the IASP Classification of Chronic Pain for the International Classification of Diseases (ICD-11). Pain. 2019;160(1):19-27..

A anamnese e avaliação clínica expõem a variabilidade de características da dor, descritores, índices, intensidade e localização, geralmente com distúrbios do humor, distúrbios do sono, dificuldade de concentração e de memória, intolerância alimentar ou problemas digestivos, além de outros sintomas e doenças associadas22 de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017; 4643830.. Apesar da semelhança na persistência da dor é fundamental recordar que pacientes diagnosticados com dor crônica são heterogêneos entre si.

No Brasil, a maior prevalência de dores crônicas está na região lombar e em dores articulares (artrite reumatoide ou osteoartrite), seguidas por dor musculoesquelética, cefaleias, dor neuropática e fibromialgia22 de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017; 4643830.. De acordo com dados anteriores à pandemia do COVID-19, 15% dos brasileiros descreviam a localização da dor como difusa. Esses talvez representem o grupo de pacientes de maior dificuldade para o diagnóstico diferencial em situações de dor aguda, ou “nova queixa de dor”. O histórico de dor crônica poderia ser classificado como uma variável de confusão à avaliação clínica do paciente. Embora a dor crônica não represente um fator de risco a condições agudas como apendicite33 Choi HG, Oh DJ, Kim M, Kim S, Min C, Kong IG. Appendectomy and rheumatoid arthritis: A longitudinal follow-up study using a national sample cohort. Medicine (Baltimore). 2019;;98(40):e17153., colecistite e litíase renal, reconhece-se alguns obstáculos na heurística da avaliação de um paciente com comorbidade de síndrome do cólon irritado, fibromialgia ou mesmo lombalgia crônica. Idade, sexo, hábitos de vida e fatores genéticos estão entre os fatores de risco para essas condições agudas33 Choi HG, Oh DJ, Kim M, Kim S, Min C, Kong IG. Appendectomy and rheumatoid arthritis: A longitudinal follow-up study using a national sample cohort. Medicine (Baltimore). 2019;;98(40):e17153..

A odisseia em busca de tratamento e de diagnóstico com longos períodos de consultas, exames e avaliações pode corroborar a baixa expectativa nos serviços de saúde, evitando consultas, assim como pode agravar aspectos psicossociais associados à dor/doença44 Kritikou P, Vadalouca A, Rekatsina M, Varrassi G, Siafaka I. The diagnostic odyssey of patients with chronic neuropathic pain-expert opinion of greek pain specialists. Clin Pract. 2023;13(1):166-76.. Apesar de dados alarmantes nos custos, no Brasil, aproximadamente 8% dos pacientes com dor crônica entrevistados antes da pandemia22 de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017; 4643830. não consultavam mais por causa da dor.

Dissociar a queixa de nova dor de um paciente com dor crônica envolve várias etapas do processo de cuidado: (1) o paciente perceber que precisa consultar, (2) profissionais de saúde que acompanham o paciente com regularidade devem estimulá-lo ou reconfortá-lo sobre a busca de diagnóstico diferencia, (3) o médico assistente e/ou (4) o médico da emergência.

No processo de busca de ajuda, a dor é um dos principais motivos para a consulta médica, porém, quando a dor é persistente, o motivo da consulta está mais associado a intensidade ou uma mudança nas características da dor. Estima-se que os pacientes com dor crônica que consultam pouco ou não consultam sejam motivados pela percepção de bom manejo dos sintomas55 Bourgault P, Devroede G, St-Cyr-Tribbl D, Marchand S, Barcellos de Souza J. Help-seeking process in women with irritable bowel syndrome. Part 2: discussion. Gastrointestinal Nursing Vol. 6, No. 10:3 ou por receio de julgamentos, inviabilizando a sua queixa de dor66 Nicola M, Correia H, Ditchburn G, Drummond P. Invalidation of chronic pain: a thematic analysis of pain narratives, Disabil Rehabil. 2019;43(6):861-9..

As diretrizes internacionais para o tratamento da dor crônica recomendam a ênfase na educação em dor (por exemplo: compreender que a dor crônica não está associada a uma lesão ou doença aguda), reconforto e segurança do paciente no tratamento com equipe multidisciplinar77 Corp N, Mansell G, Stynes S, Wynne-Jones G, Morsø L, Hill JC, van der Windt DA. Evidence-based treatment recommendations for neck and low back pain across Europe: a systematic review of guidelines. Eur J Pain. 2021;25(2):275-95.. Estima-se que o acolhimento, a orientação e as explicações sobre a dor crônica favoreçam as mudanças necessárias no estilo de vida para melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Infelizmente, ter diagnóstico de doença com dor crônica não é um fator de proteção a outros diagnósticos, nem outras doenças ou situações que requerem avaliação e intervenção médica. Há uma área cinza entre “compreender a dor crônica” e “perceber uma mudança no padrão da dor”, assim como entre a negligência e a hipervigilância. Pacientes com dor crônica podem - e devem - fazer avaliações periódicas para diagnóstico precoce de outras condições de saúde, como também podem ser acometidos por situações agudas. A dor crônica do paciente não deve mascarar a anamnese e avaliação clínica.

REFERENCES

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    Treede RD, Rief W, Barke A, Aziz Q, Bennett MI, Benoliel R, Cohen M, Evers S, Finnerup NB, First MB, Giamberardino MA, Kaasa S, Korwisi B, Kosek E, Lavand’homme P, Nicholas M, Perrot S, Scholz J, Schug S, Smith BH, Svensson P, Vlaeyen JWS, Wang SJ. Chronic pain as a symptom or a disease: the IASP Classification of Chronic Pain for the International Classification of Diseases (ICD-11). Pain. 2019;160(1):19-27.
  • 2
    de Souza JB, Grossmann E, Perissinotti DMN, de Oliveira Junior JO, da Fonseca PRB, Posso IP. Prevalence of chronic pain, treatments, perception, and interference on life activities: Brazilian population-based survey. Pain Res Manag. 2017;2017; 4643830.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023
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