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Pacientes pediátricos e cannabis medicinal: novas tendências

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Apesar do uso ancestral de canabinoides em adultos, a segurança e eficácia na população infantil não é clara. O impacto da cannabis no cérebro em desenvolvimento é desconhecido1. Embora estudos realizados em adultos possam oferecer informações sobre o perfil de eficácia/toxicidade da cannabis, há necessidade de estudos específicos em crianças e adolescentes para compreender o impacto da cannabis no cérebro em desenvolvimento, bem como os potenciais efeitos a longo prazo do uso de cannabis. O objetivo deste estudo foi trazer uma visão abrangente e discussão crítica sobre o tema.

CONTEÚDO:

Foi elaborada uma revisão narrativa baseada em pesquisas nas bases de dados Pubmed, Medline e Scielo, com temática aberta e revisão de literatura seletiva no contexto da população pediátrica.

CONCLUSÃO:

A pesquisa atual sobre o impacto do uso da cannabis medicinal em crianças e adolescentes permanece limitada4, o que reforça a necessidade de estudos robustos sobre essa população.

Descritores:
Câncer; cannabis medicinal; Pediatria

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Despite the ancestral use of cannabinoids in adults, safety and efficacy in children is unclear. The impact of cannabis on the developing brain is unknown1 While studies conducted in adults can provide insight into the efficacy/toxicity profile of cannabis, there is a need for specific studies in children and adolescents to understand the impact of cannabis on the developing brain, as well as the potential long-term effects of cannabis use. The objective of this study was to bring a comprehensive view and critical discussion on the subject.

CONTENTS:

A narrative review based on research in the Pubmed, Medline and Scielo databases was prepared, with an open theme and a selective literature review in the context of the pediatric population.

CONCLUSION:

Current research on the impact of medical cannabis use in children and adolescents remains limited4, which reinforces the need for robust studies in this population.

Keywords:
Cancer; Medical cannabis; Pediatrics

DESTAQUES

O impacto da cannabis no cérebro em desenvolvimento é desconhecido.

O papel do sistema endocanabinoide na mediação da função neural e cognitiva não está restrito à gestação ou na primeira infância.

Há necessidade de estudos robustos sobre segurança e eficácia na população pediátrica.

INTRODUÇÃO

Registros históricos relatam o uso de cannabis no tratamento da dor antes da própria história escrita, ao redor de 3000 a.C. Apesar do conhecimento ancestral sobre o uso de canabinoides e derivados canabinoides para o controle de sintomas em diversas situações, evidências científicas em torno dos potenciais riscos e benefícios do uso de cannabis ao longo da vida são desconhecidas11 Yeung M, Wroot H, Charnock C, Forbes C, Lafay-Cousin L, Schulte F. Cannabis use in pediatric cancer patients: what are they reading? A review of the online literature. Support Care Cancer. 2020;28(8):3503-15.. Os componentes ativos da cannabis (CBD, THC, entre mais de outros 100 componentes) passaram a ser descritos na década de 1960.

Em 1964, as propriedades farmacológicas da cannabis (Cannabis sativa L.) possibilitaram isolar o 9-tetrahidrocanabinol (THC), importante componente psicoativo da cannabis. Em 1980, foi identificado o primeiro canabinoide endógeno, a anandamida (AEA), seguido pela descoberta de outro composto canabinoide endógeno, conhecido como 2-araquidonoilglicerol (2-AG)22 Chanda D, Neumann D, Glatz JFC. The endocannabinoid system: overview of an emerging multi-faceted therapeutic target. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2019;140:51-6.. Na década de 1990, novos avanços trouxeram a descoberta de um sistema semelhante à cannabis no próprio corpo humano, o sistema endocanabinoide (SEC), que modula a dor e outros sistemas e condições fisiológicas em todos os mamíferos33 Russo EB, Hohmann AG. Role of cannabinoids in pain management. In: Comprehensive treatment of chronic pain by medical, interventional, and integrative approaches. Springer, New York. 2013. 181-97p.

Os canabinoides são um grupo de substâncias químicas que se ligam a receptores no corpo humano e, por sua vez, modulam o SEC. Os canabinoides podem ser produzidos endogenamente, sintetizados ou derivados da planta Cannabis sativa L.

Pesquisas nas últimas décadas mostraram que o SEC é uma rede de comunicação celular essencial para manter múltiplas funções biológicas e a homeostase do corpo. Os canabinoides influenciam uma variedade de fenômenos biológicos, incluindo memória, modulação da dor, apetite, controle do movimento, criação de memórias, reprodução, remodelação óssea e imunidade, bem como diversos outros processos fisiológicos.

O impacto da cannabis no cérebro em desenvolvimento é desconhecido11 Yeung M, Wroot H, Charnock C, Forbes C, Lafay-Cousin L, Schulte F. Cannabis use in pediatric cancer patients: what are they reading? A review of the online literature. Support Care Cancer. 2020;28(8):3503-15.. Embora estudos realizados em adultos possam oferecer informações sobre o perfil de eficácia/toxicidade da cannabis, há necessidade de estudos específicos em crianças e adolescentes para compreender o impacto da cannabis no cérebro em desenvolvimento, bem como os potenciais efeitos a longo prazo do uso de cannabis. A pesquisa atual sobre esses impactos permanece limitada44 Mandelbaum DE, de la Monte SM. Adverse structural and functional effects of marijuana on the brain: evidence reviewed. Pediatr Neurol. 2017;66:12-20.. Para crianças e adolescentes, há poucos dados de segurança para orientar o uso na prática clínica55 Fisher E, Eccleston C, Degenhardt L, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Moore RA. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a protocol for an overview of systematic reviews and a systematic review of randomised controlled trials. Pain Rep. 2019;4(3):e741.,66 Eccleston C, Fisher E, Cooper TE, Grégoire MC, Heathcote LC, Krane E, Lord SM, Sethna NF, Anderson AK, Anderson B, Clinch J, Gray AL, Gold JI, Howard RF, Ljungman G, Moore RA, Schechter N, Wiffen PJ, Wilkinson NMR, Williams DG, Wood C, van Tilburg MAL, Zernikow B. Pharmacological interventions for chronic pain in children: an overview of systematic reviews. Pain. 2019;160(8):1698-707..

Os canabinoides atuam no alívio da dor por meio de uma variedade de mecanismos, desempenhando um papel crítico na dor periférica, inflamação e hiperalgesia, produzindo efeitos analgésicos e anti-inflamatórios diretos, ações modulatórias em neurotransmissores, além de interações com opioides endógenos e administrados, podendo potencializar a ação analgésica55 Fisher E, Eccleston C, Degenhardt L, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Moore RA. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a protocol for an overview of systematic reviews and a systematic review of randomised controlled trials. Pain Rep. 2019;4(3):e741.,66 Eccleston C, Fisher E, Cooper TE, Grégoire MC, Heathcote LC, Krane E, Lord SM, Sethna NF, Anderson AK, Anderson B, Clinch J, Gray AL, Gold JI, Howard RF, Ljungman G, Moore RA, Schechter N, Wiffen PJ, Wilkinson NMR, Williams DG, Wood C, van Tilburg MAL, Zernikow B. Pharmacological interventions for chronic pain in children: an overview of systematic reviews. Pain. 2019;160(8):1698-707..

Muito se discute sobre o uso de canabinoides como uma opção farmacológica para um plano de tratamento multimodal de manuseio da dor neuropática66 Eccleston C, Fisher E, Cooper TE, Grégoire MC, Heathcote LC, Krane E, Lord SM, Sethna NF, Anderson AK, Anderson B, Clinch J, Gray AL, Gold JI, Howard RF, Ljungman G, Moore RA, Schechter N, Wiffen PJ, Wilkinson NMR, Williams DG, Wood C, van Tilburg MAL, Zernikow B. Pharmacological interventions for chronic pain in children: an overview of systematic reviews. Pain. 2019;160(8):1698-707.. Com o crescente conhecimento sobre o SEC e estudos pré-clínicos indicando que os agonistas canabinoides são analgésicos, há uma atenção crescente sobre seu papel potencial no tratamento da dor neuropática.

Revisões sistemáticas de ensaios randomizados sobre o uso de canabinoides para o tratamento de adultos com dor crônica não oncológica vêm mostrando que os canabinoides podem ser seguros e eficazes de forma variável para a dor neuropática, sem relatos de efeitos adversos graves. Os efeitos adversos relatados foram geralmente bem tolerados, de gravidade leve a moderada e levaram à retirada dos estudos em apenas alguns casos.

Os canabinoides estudados incluíram cannabis fumada, extratos oromucosos de fármacos à base de cannabis, nabilona, dronabinol e análogo de tetrahidrocanabinol (THC)77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.,88 Lynch ME, Campbell F. Cannabinoids for treatment of chronic non-cancer pain; a systematic review of randomized trials. Br J Clin Pharmacol. 2011;72(5):735-44.. Foi notado que a segurança e a eficácia não foram estabelecidas em pacientes menores de 18 anos de idade, principalmente devido aos efeitos psicoativos. Outro aspecto bastante discutido atualmente é o uso de cannabinoides no câncer infantil. Os cânceres cerebrais compreendem a segunda neoplasia mais comum diagnosticada em crianças. Atualmente, não há estudos pré-clínicos ou clínicos relacionados aos efeitos dos canabinoides no câncer cerebral pediátrico, embora algumas evidências mostrem benefício no alívio dos sintomas associados ao tratamento do câncer infantil, em especial ao controle de náuseas e vômitos.

Até o momento, a maior parte da compreensão da utilidade dos canabinoides no manejo dos sintomas associados ao câncer ou em tratamentos contra o câncer é derivada de estudos em adultos nos quais a administração de canabinoides foi capaz de aumentar o apetite, reduzir náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia e melhorar o humor. No entanto, esses estudos foram limitados por pequenas coortes e produtos canabinoides heterogêneos77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Diversos estudos examinaram os canabinoides como agentes antieméticos em pacientes pediátricos com câncer11 Yeung M, Wroot H, Charnock C, Forbes C, Lafay-Cousin L, Schulte F. Cannabis use in pediatric cancer patients: what are they reading? A review of the online literature. Support Care Cancer. 2020;28(8):3503-15.,66 Eccleston C, Fisher E, Cooper TE, Grégoire MC, Heathcote LC, Krane E, Lord SM, Sethna NF, Anderson AK, Anderson B, Clinch J, Gray AL, Gold JI, Howard RF, Ljungman G, Moore RA, Schechter N, Wiffen PJ, Wilkinson NMR, Williams DG, Wood C, van Tilburg MAL, Zernikow B. Pharmacological interventions for chronic pain in children: an overview of systematic reviews. Pain. 2019;160(8):1698-707.,77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157., e dois estudos randomizados e duplos-cegos mostraram que o THC era um antiemético superior em comparação ao placebo77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. As convulsões são um sintoma comum de câncer no cérebro. A cannabis medicinal (extratos sintéticos ou derivados de plantas) foi investigada em 11 estudos para crianças e adolescentes afetados por epilepsia. Mais recentemente, uma única instituição em Israel relatou sua experiência ao longo de 15 anos em 50 pacientes pediátricos (incluindo 9 com tumores cerebrais), em que os pacientes receberam cannabis medicinal para câncer e náuseas, vômitos, dor, perda de apetite e humor deprimido77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. Por outro lado, evidências acumuladas que associam problemas de saúde mental e cognitiva ao uso de canabinoides durante a adolescência mostram a necessidade de investigar sua segurança e eficácia em oncologia pediátrica77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Nos últimos anos, o uso medicinal da cannabis foi aprovado em diferentes países para uma variedade de condições humanas. Contudo, o uso destes compostos como agentes anticancerígenos permanece controverso. Estudos mostraram que os canabinoides têm atividade anticancerígena em diferentes tipos de tumores, como câncer de mama, melanoma, linfoma e câncer de cérebro adulto. Especificamente, os fitocanabinoides D9-tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD) induziram apoptose e inibiram proliferação de células cancerosas adultas, bem como modularam a angiogênese e a metástase. Apesar das crescentes evidências de que os canabinoides provocam efeitos antitumorais em cânceres adultos, há poucos dados disponíveis sobre seus efeitos em crianças ou em cânceres pediátricos77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

O SEC tem efeitos de amplo alcance em mamíferos e é composto por dois receptores canabinoides acoplados à proteína G tipo 1 e 2 (CB1R e CB2R), seus ligantes canabinoides endógenos (endocanabinoides) e as enzimas que regulam sua síntese e degradação. Os endocanabinoides mais bem caracterizados são 2-araquidonoilglicerol (2-AG) e naraquidonoiletanolamida (AEA ou anandamida), que são moléculas sinalizadoras baseadas em lipídios e sintetizadas a partir do ácido araquidônico presente na membrana celular. Esses endocanabinoides mediam diferentes funções biológicas ligando e estimulando CB1R e CB2R.

Ambos os receptores são expressos em todo o corpo com expressão abundante de CB1R no sistema nervoso central (SNC) e com o CB2R sendo encontrado principalmente em células imunes, com alguma expressão específica de células no SNC. Enquanto muitos efeitos do THC são mediados via CB1R e CB2R, o CBD tem menor afinidade por esses receptores. Além disso, endocanabinoides e fitocanabinoides podem se ligar e mediar seus efeitos modulando receptores não canabinoides, como receptores de adenosina, subfamília de canal catiônico potencial de receptor transitório V membro 1 (TRPV1), receptores ativados por proliferadores de peroxissoma (PPAR) e outros receptores acoplados à proteína G, incluindo GPR55 e GPR18. Em termos de câncer pediátrico, há escassez de evidências clínicas e pré-clínicas que descrevam os prós e contras dos canabinoides medicinais77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

A maioria das pesquisas sobre cânceres pediátricos foi realizada em modelos de leucemia, especialmente na leucemia linfoblástica aguda de células T (T-ALL), um câncer altamente agressivo e resistente à quimioterapia, que representa 15% de todos os casos de LLA infantil. Vários grupos mostraram que os canabinoides induzem a morte de células leucêmicas tanto in vitro quanto in vivo. Especificamente, esses estudos mostraram que os canabinoides aumentam o estresse intracelular e danificam o potencial da membrana mitocondrial, resultando na liberação subsequente de citocromo c e na clivagem de caspases 8, 9, 2 e 10.

É importante ressaltar que a biossíntese de ceramida se mostrou essencial para a ativação mediada por canabinoides da via apoptótica intrínseca, como também foi relatado em modelos de glioblastoma adulto. Além disso, o CBD induz a produção de ROS em células de leucemia, um mecanismo de ação comum encontrado em outros cânceres, envolvendo um aumento na expressão das NAD(P)H oxidases Nox4 e p22phox.

Mais recentemente, um estudo mostrou que o CBD atua no alvo mamífero da rapamicina (mTOR) em células de leucemia, diminuindo a fosforilação de AKT, mTOR e S6 ribossomal, afetando o tamanho das células de leucemia88 Lynch ME, Campbell F. Cannabinoids for treatment of chronic non-cancer pain; a systematic review of randomized trials. Br J Clin Pharmacol. 2011;72(5):735-44.. Por sua vez, outro estudo mostrou que o CBD induz a morte celular por necrose e autofagia em vários tipos de LLA-T55 Fisher E, Eccleston C, Degenhardt L, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Moore RA. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a protocol for an overview of systematic reviews and a systematic review of randomised controlled trials. Pain Rep. 2019;4(3):e741.. Tais achados direcionam um potencial interessante para pesquisas futuras na busca de correlações entre a via mTOR, a autofagia e a apoptose após o tratamento com canabinoides em células leucêmicas, como ocorre no glioblastoma ou no carcinoma hepatocelular77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Também é importante ressaltar que resultados promissores foram encontrados ao combinar canabinoides com quimioterapias de leucemia. Especificamente, THC e CBD têm ação sinergística com doxorrubicina, vincristina e citarabina em células de leucemia in vitro. Validar esses resultados in vivo seria um passo essencial para a tradução clínica desses dados77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Um outro estudo, que utilizou um modelo de xenoenxerto de rabdomiossarcoma positivo para translocação in vitro e in vivo, tratado com canabinoide sintético HU-210 e THC, demonstrou uma supressão significativa do crescimento tumoral in vivo77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. Essa descoberta foi consistente com as ações observadas para a apoptose induzida por canabinoides em células cancerosas adultas. Isso foi seguido por outro grupo, que investigou o canabinoide sintético WIN 55.212-2, um potente agonista de CB1R, como agente antitumoral, usando um modelo de osteossarcoma pediátrico.

Em linhagens de células de osteossarcoma cultivadas, o WIN 55.212-2 induziu a parada do ciclo celular e regulou várias características do estresse do retículo endoplasmático, como GRP78, CHOP e TRB3, juntamente com autofagia subsequente. Tais mecanismos de ação para a sinalização de canabinoides são consistentes com relatos de cânceres adultos77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Um estudo55 Fisher E, Eccleston C, Degenhardt L, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Moore RA. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a protocol for an overview of systematic reviews and a systematic review of randomised controlled trials. Pain Rep. 2019;4(3):e741. investigou os efeitos do THC e do CBD no neuroblastoma pediátrico, e relatou que tanto o THC quanto o CBD reduziram significativamente a viabilidade das células do neuroblastoma in vitro, e o CBD impediu o crescimento do xenoenxerto in vivo. Embora o estudo não tenha elucidado um mecanismo para os efeitos antitumorais do CBD, observou-se que o CBD induziu a apoptose de células de neuroblastoma tanto in vitro quanto in vivo. No geral, esses dados pré-clínicos indicam que os canabinoides têm potencial eficácia anticancerígena em uma variedade de diferentes tipos de câncer pediátrico, embora com uma variedade de mecanismos de ação relatados. É importante notar que esses cânceres pediátricos têm células de origem muito diferentes, existem em diferentes contextos de tecidos e são tipicamente impulsionados por mutações específicas do tumor. No entanto, em todos esses estudos e apesar da investigação de vários agonistas CB1R e/ou CB2R diferentes, os canabinoides parecem reduzir consistentemente a proliferação de células cancerígenas pediátricas77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

No entanto, apesar desses dados encorajadores e da conhecida capacidade dos canabinoides de penetrar na barreira hematoencefálica, não há dados pré-clínicos existentes sobre o efeito desses agentes em modelos pediátricos de tumor cerebral. Em consonância com a escassez de dados pré-clínicos sobre o efeito dos canabinoides em diferentes cânceres pediátricos, até o momento não há estudos clínicos abordando o potencial efeito antitumoral dos canabinoides no câncer infantil. Apesar de vários relatos anedóticos que descrevem os benefícios anticancerígenos dos canabinoides em pacientes pediátricos com câncer, não é possível formular uma conclusão rigorosa sobre seus verdadeiros efeitos. Isso ocorre porque os produtos de cannabis usados são variados, desde canabinoides sintéticos a extratos de plantas inteiras ou canabinoides purificados de extratos de plantas (óleos purificados).

Os componentes exatos das substâncias usadas não são bem descritos, e as concentrações de canabinoides nos extratos de plantas não foram amplamente documentadas (como seria feito em um ensaio clínico convencional). Além disso, a dosagem e a via de administração de canabinoides diferem entre os relatórios. Muitos pacientes com câncer receberam terapias convencionais (como radioterapia e quimioterapia) antes da terapia com canabinoides ou simultaneamente. Assim, até o momento, não há estudos que mostrem de forma abrangente que os canabinoides tenham benefícios antitumorais no câncer cerebral infantil, mas as respostas positivas anedóticas relatadas sustentam um interesse significativo de uso nesse cenário77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. Embora o uso controlado de cannabis medicinal em adultos seja relatado como seguro e bem tolerado, não se deve presumir que o uso seja seguro para crianças e adolescentes. O SEC desempenha um papel importante durante o desenvolvimento cerebral, sendo que o CB1R, o 2-AG e a AEA estão presentes no cérebro desde o início do desenvolvimento pré-natal77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. Os endocanabinoides influenciam o neurodesenvolvimento regulando a migração neuronal, enquanto o CB1R tem sido relatado como tendo papéis na proliferação de precursores neuronais, migração, alongamento axonal, sinaptogênese e mielinização mais tardia no desenvolvimento77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

No peixe-zebra, um modelo comum para a pesquisa do SEC, a exposição in tero ao THC e ao CBD mostrou causar defeitos morfológicos, como comprimento corporal mais curto, embora as concentrações testadas fossem significativamente mais altas do que aquelas alcançáveis no plasma humano. Estudos em murinos mostram que a exposição exógena de canabinoides durante a embriogênese pode interromper os sistemas de neurotransmissores, resultando em funções motora e reprodutiva alteradas, mas esses estudos tenham analisado apenas o THC em alta concentração77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

O papel crítico do SEC na mediação da função neural e cognitiva não está restrito à gestação ou à primeira infância. Durante a adolescência, a ativação do CB1R media a maturação das interações entre córtex pré-frontal, amígdala e hipocampo – centros neurais responsáveis pela emoção e comportamentos relacionados ao estresse. Os processos mediados pelo CB1R estão envolvidos na regulação da neurogênese, memória, aprendizado, cognição, centros de recompensa e depressão. Portanto, é concebível que a interrupção das funções normais do SEC pelo uso exógeno de THC possa alterar uma série de funções cerebrais22 Chanda D, Neumann D, Glatz JFC. The endocannabinoid system: overview of an emerging multi-faceted therapeutic target. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2019;140:51-6..

A maioria dos relatórios que descrevem os efeitos dos canabinoides em adolescentes se concentra em coortes com uso crônico de cannabis fumado autorrelatado, sendo que a quantidade de THC consumida raramente é medida ou relatada. A inalação de cannabis fumada pode causar efeitos fisiológicos de curto prazo, como taquicardia, sonolência e xerostomia, e efeitos psicológicos, como paranoia, perda de memória de curto prazo e ansiólise22 Chanda D, Neumann D, Glatz JFC. The endocannabinoid system: overview of an emerging multi-faceted therapeutic target. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2019;140:51-6..

O uso prolongado de cannabis por inalação em adolescentes está associado a problemas de saúde mental e dependência de drogas. No entanto, um rigoroso estudo longitudinal de controle de gêmeos descobriu que o uso de cannabis a curto prazo não teve efeito significativo no QI ou nas funções executivas, mesmo entre usuários pesados de cannabis55 Fisher E, Eccleston C, Degenhardt L, Finn DP, Finnerup NB, Gilron I, Haroutounian S, Krane E, Rice ASC, Rowbotham M, Wallace M, Moore RA. Cannabinoids, cannabis, and cannabis-based medicine for pain management: a protocol for an overview of systematic reviews and a systematic review of randomised controlled trials. Pain Rep. 2019;4(3):e741.. O estudo constatou que os fatores de antecedentes familiares desempenharam um papel importante na previsão de que os usuários adolescentes de cannabis teriam um desempenho pior no QI e nos testes de função executiva. A noção de que o QI mais baixo precede o uso de cannabis em adolescentes é apoiada por outros estudos longitudinais77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Em uma revisão de cinco ensaios clínicos analisando o tratamento com CBD em mais de 1.000 pacientes pediátricos com de síndrome de Dravet, foi constatado que uma dose diária de 20 mg/kg por um período de até 14 semanas era segura e bem tolerada. Não só o CBD reduziu significativamente a frequência de convulsões em todos os ensaios, mas os únicos efeitos adversos experimentados durante a administração foram sonolência, diarreia e diminuição do apetite.

É importante ressaltar que nenhum efeito mental ou cognitivo adverso foi relatado. Embora esses resultados indiquem baixa toxicidade do CBD durante o período de administração, eles são limitados devido à falta de exames cognitivos de longo prazo77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157..

Atualmente, as evidências não permitem afirmar se a administração de canabinoides para crianças ou adolescentes pode causar interrupções em longo prazo na cognição e no funcionamento neurológico ou exacerbar as lesões do sistema nervoso central, causadas por tratamentos convencionais contra o câncer44 Mandelbaum DE, de la Monte SM. Adverse structural and functional effects of marijuana on the brain: evidence reviewed. Pediatr Neurol. 2017;66:12-20..

Além disso, as evidências atuais não permitem afirmar se os canabinoides podem ser administrados à população pediátrica com segurança ou eficácia, em combinação com outros tratamentos convencionais contra o câncer. Na ausência de estudos conclusivos, a Academia Americana de Pediatria adotou uma visão cautelosa e não aprova o uso de canabinoides em crianças77 Andradas C, Truong A, Byrne J, Endersby R. The role of cannabinoids as anticancer agents in pediatric oncology. Cancers (Basel). 2021;13(1):157.. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) dispõe sobre o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente que são refratárias às terapias convencionais na síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no complexo de esclerose tuberosa.

A discussão sobre o uso de canabinoides na população pediátrica esbarra na necessidade de estudos robustos sobre segurança e eficácia. Na medida em que a cannabis é cada vez mais legalizada em todo o mundo, há demanda crescente e urgente por sua utilização por parte dos pais de crianças e adolescentes com doenças graves88 Lynch ME, Campbell F. Cannabinoids for treatment of chronic non-cancer pain; a systematic review of randomized trials. Br J Clin Pharmacol. 2011;72(5):735-44..

Evidências pré-clínicas recentes apoiam sua eficácia e segurança em tumores cerebrais de adultos, com algumas indicações de que os canabinoides podem interagir sinergicamente com quimioterapias selecionadas – embora ainda não tenha sido demonstrado clinicamente. Apesar de relatórios promissores, os dados que mostram o benefício potencial dos canabinoides para pacientes pediátricos com câncer são preliminares.

CONCLUSÃO

O conhecimento sobre os mecanismos celulares de ação dos canabinoides em diferentes tipos de câncer ou entre cânceres adultos versus pediátricos ainda não é bem compreendido e representa um grande desafio ao tentar traduzir resultados de estudos clínicos para adultos em crianças.

Infelizmente, os estudos existentes utilizam ampla variedade metodológica para avaliar os efeitos antitumorais do THC e do CBD, de diferentes tipos de canabinoides (purificados de plantas ou produtos sintéticos), formulações (extratos vegetais ou compostos puros), doses e vias de administração, que podem justificar diferenças nos efeitos observados e em mecanismos de ação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2022
  • Aceito
    07 Jul 2023
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