Acessibilidade / Reportar erro

Organizações sociais civis em tempos de pandemia: um relato a partir do conceito de reconstrução ocupacional coletiva

RESUMO

Introdução

Este artigo relata ações coletivas desenvolvidas por participantes de duas Organizações Sociais Civis representantes de pessoas com diagnóstico de esclerose múltipla, localizadas na região Sul do Brasil, durante o período da pandemia de COVID-19.

Objetivo

Evidenciar as estratégias e ações que constituíram parte do processo de reconstrução ocupacional coletiva das Organizações Sociais Civis. Portanto, descreve os resultados de processos coletivos a partir da reflexão sobre os fenômenos observados pelas autoras.

Método

Trata-se de um trabalho descritivo, do tipo relato de experiência, com a abordagem qualitativa. As práticas ocorreram de forma remota durante o período da pandemia (entre março e dezembro de 2020).

Resultados

Verificou-se que os dispositivos de mídias sociais contribuíram para a manutenção das ocupações coletivas do grupo, facilitando o processo de reconstrução ocupacional coletiva das Organizações Sociais Civis. Entre os dispositivos utilizados, destaca-se os aplicativos de mensagens e de videochamadas, que facilitaram o desenvolvimento das práticas coletivas, minimizando os impactos negativos do distanciamento físico.

Conclusão

Os dispositivos de mídias sociais apresentam-se como recursos potentes para a manutenção do fazer coletivo e nos processos de reconstrução ocupacional.

Palavras-Chave:
Organização Social; Pandemia; COVID-19; Atividades Cotidianas; Ação Comunitária para a Saúde

ABSTRACT

Introduction

This article reports collective actions developed by participants of two Civil Society Organizations representing people diagnosed with multiple sclerosis, located in southern Brazil, during the period of the COVID-19 pandemic.

Objective

To highlight the strategies and actions that comprised part of the collective occupational reconstruction process of the Civil Society Organizations. Therefore, it describes the results of collective processes, based on reflection on the phenomena observed by the authors.

Method

This is a descriptive, qualitative research based on an experience report. The practices occurred remotely during the pandemic period (March to December 2020).

Results

It was found that social media platforms contributed to maintain the collective occupations of the group, facilitating the process of collective occupational reconstruction of Civil Society Organizations. Among the used tools, instant messaging and video calling applications stood out, which facilitated the development of collective practices, thus minimizing the impacts of physical distance.

Conclusion

Social media platforms are powerful resources to maintain collective action and occupational reconstruction processes.

Keywords:
Social Organization; Pandemic; COVID-19; Activities of Daily Living; Community Participation

Introdução

Ocupação coletiva e reconstrução ocupacional

Segundo Townsend (1997, pTownsend, E. (1997). Occupation: potential for personal and social transformation. Journal of Occupational Science, 4(1), 18-26.. 4), a “ocupação é o processo ativo de viver: do começo ao fim da vida”; portanto, as nossas ocupações incluem todos os processos ativos aos quais nos dedicamos para cuidar de nós mesmos e dos outros. Ainda de acordo com Townsend, a ocupação apresenta potencial transformador, já que oportuniza aos indivíduos escolherem e se envolverem em ocupações com o propósito de mudar aspectos pessoais ou sociais da vida. Ocupação coletiva é compreendida como toda ocupação desenvolvida coletivamente “por indivíduos, grupos, comunidades e/ou sociedades em contextos coletivos do cotidiano” (Ramugondo & Kronenberg, 2015, pRamugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.. 17) com o propósito de promover equidade e organização social através do fazer compartilhado. Os resultados das ações na ocupação coletiva não se dão pela soma dos indivíduos participantes, mas por sua dinâmica de união, ligada a experiências de pertencimento e conectividade (Ramugondo & Kronenberg, 2015Ramugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.). Os indivíduos se ocupam e desenvolvem atividades que se relacionam diretamente com o fazer “pelo” e “com” o coletivo, de modo que o fazer de cada um é uma parte do fazer do outro. Diferentemente da ocupação centrada na individualidade, onde o foco da ação origina-se nos interesses e objetivos do indivíduo e do fazer sozinho (Gerlach et al., 2017Gerlach, A. J., Teachman, G., Rudman, D. L., Aldrich, R. M., & Huot, S. (2017). Expanding beyond individualism: engaging critical perspectives on occupation. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 25(1), 35-43. http://dx.doi.org/10.1080/11038128.2017.1327616.
http://dx.doi.org/10.1080/11038128.2017....
), a Ocupação coletiva relaciona-se com os anseios dos coletivos, e pode emergir a partir do desejo de mudança, gerado pelo sentimento de desconforto diante de injustiças sociais (Rudman, 2013Rudman, D. L. (2013). Enacting the critical potential of occupational science: problematizing the ‘individualizing of occupation’. Journal of Occupational Science, 20(4), 298-313.). Conceituando a ocupação como atividades transformadoras que envolvem processos reflexivos no curso de ações corretivas e/ou criativas que reorganizam e reconstroem o mundo em que vivemos, Frank (2012)Frank, G. (2012). Twenty-first century pragmatism and social justice: problematic situations and occupational reconstructions in post-civil war Guatemala. In M. Cutchin & V. Dickie (Eds.), Transactional perspectives on occupation (pp. 229-243). Berlin: Springer. e Frank & Santos (2020)Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
apresentam a teoria de reconstrução ocupacional. Essa teoria combina os elementos que devem estar presentes para que haja uma ação coletiva e cooperativa dos indivíduos para reorganizar suas ocupações e resolver situações problemáticas a partir de um desejo comum de mudança.

De acordo com os autores supracitados, a reconstrução ocupacional é uma ação social transformadora que estimula as “capacidades humanas básicas de auto-organização e ação cooperativa para resolver problemas de forma criativa” (Frank & Santos, 2020, pFrank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
. 1). A reconstrução ocupacional ocorre quando as pessoas percebem que agir é a única escolha para transformar uma situação (Frank & Muriithi, 2015Frank, G., & Muriithi, B. A. K. (2015). Theorising social transformation in occupational science: the American civil rights movement and South African struggle against apartheid as ‘occupational reconstructions’. South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 11-19.). A partir do desejo de transformar uma situação, os indivíduos transformam, reorganizam e/ou reconstroem suas ocupações (Frank, 2012Frank, G. (2012). Twenty-first century pragmatism and social justice: problematic situations and occupational reconstructions in post-civil war Guatemala. In M. Cutchin & V. Dickie (Eds.), Transactional perspectives on occupation (pp. 229-243). Berlin: Springer.). A teoria da reconstrução ocupacional explica a transformação social como parte da filosofia e base de conhecimento da “ocupação”, concentrando-se na ação coletiva como expressão de um desejo compartilhado de resolver uma situação (Santos et al., 2020Santos, V., Frank, G., & Mizue, A. (2020). Candangos: occupational reconstruction as a tool to understand social problems and transformative action in the utopian city of Brasília. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 765-783.).

Nessa perspectiva, com a pandemia da COVID-19, a população foi desafiada a encontrar novas formas de se relacionar e realizar suas ocupações, adaptando suas rotinas e hábitos cotidianos nos diversos contextos do fazer humano (Muñoz, 2020Muñoz, A. F. (2020). Reflexiones y acciones desde terapia ocupacional en la lucha contra el COVID-19 durante isolamiento social. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 451-459.). Com a imposição do distanciamento físico, necessário às condições de biossegurança para prevenir o adoecimento, a população foi compelida a promover transformações criativas para manter a participação social em âmbito individual e coletivo (Frank & Santos, 2020Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
). No Brasil, a pandemia evidenciou a desigualdade econômica através da redução ou concreta indisponibilidade dos serviços públicos, bem como da falência dos órgãos de proteção da população (Frank & Santos, 2020Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
). Em estudo sobre os impactos da pandemia da COVID-19, a Organização Social Civil “Nossa Causa” revela que os impactos mais evidentes e que recebem maior destaque da mídia estão relacionados aos serviços de órgãos governamentais e de instituições privadas com objetivos lucrativos ou econômicos. Por outro lado, segundo a Organização Social Civil “Nossa Causa”, as organizações sem fins lucrativos também foram impactadas, enfrentando o risco da interrupção de suas atividades pela suspensão de verbas e instabilidade na captação de recursos com pessoas físicas e jurídicas (Nossa Causa, 2021Nossa Causa - NC. (2021). Impacto da Covid-19 nas OSCs brasileiras: da resposta imediata à resiliência. Curitiba: NC.). Combinadas, as duas circunstâncias acentuaram o desamparo da população que já se encontrava em situação vulnerável em razão da crise política e econômica dos últimos anos.

As Organizações Sociais Civis sem fins lucrativos são entidades privadas constituídas a partir da associação de indivíduos em situação de risco e vulnerabilidade pessoal ou social (Brasil, 2014Brasil. (2014, 1 de agosto). Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.). Como entidades de interesse público, as Organizações Sociais Civis desenvolvem estratégias de ação como unidades sociais e políticas (Brasil, 1999Brasil. (1999, 24 de março). Lei nº 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.). Essas organizações são um instrumento facilitador para o reconhecimento de problemas e de ações a serem desenvolvidas para solucioná-los. As Organizações Sociais Civis promovem a participação política, atuam como negociadoras entre organizações governamentais ou privadas, sobretudo buscando a superação de conflitos e/ou inequidades que interfiram na vida cotidiana da população. Em estudo abordando ações desenvolvidas por pais e mães membros de uma organização social civil que busca melhorar a qualidade de vida e saúde de seus filhos e familiares, Núñez et al. (2019)Núñez, C. M. V., Hermosilla, A., Sepulveda, S., Riffo, M. R., & Martinez, C. R. (2019). Ocupación colectiva como medio de superación del Apartheid Ocupacional: el caso de la lucha por el derecho a la salud de la Agrupación Mama Cultiva. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(1), 4-16. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1786.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
ampliam a compreensão das ocupações coletivas como forma de superação de injustiças sociais, a partir de uma entidade dessa natureza. Esses autores desvelam a ocupação coletiva como “um dispositivo de força e de luta” através do qual os participantes se unem “contra a hegemonia, para cumprir seu propósito de autonomia, liberdade e emancipação” (Núñez et al., 2019, pNúñez, C. M. V., Hermosilla, A., Sepulveda, S., Riffo, M. R., & Martinez, C. R. (2019). Ocupación colectiva como medio de superación del Apartheid Ocupacional: el caso de la lucha por el derecho a la salud de la Agrupación Mama Cultiva. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(1), 4-16. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1786.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
. 10). Amparados na reflexão de Kantartzis & Molineux (2017)Kantartzis, S., & Molineux, M. (2017). Collective occupation in public spaces and the construction of the social fabric. Canadian Journal of Occupational Therapy, 84(3), 168-177. compreendemos que as Organizações Sociais Civis podem ser consideradas um espaço de produção de vida onde o fazer humano pode ser organizado e reorganizado a partir do engajamento do indivíduo em ocupações coletivas, tendo em vista que o cotidiano das Organizações Sociais Civis é marcado por ações e atividades que são selecionadas, programadas e desenvolvidas coletivamente. Contudo, nos contextos nos quais o coletivo é surpreendido pela imposição de medidas restritivas, como o distanciamento social dos indivíduos, qual é o papel dessas entidades?

Este relato de experiência parte desse questionamento para examinar as estratégias e ações desenvolvidas durante a pandemia de COVID-19 por duas Organizações Sociais Civis de pessoas com esclerose múltipla para superar as dificuldades impostas pelo distanciamento social. O objetivo deste estudo é evidenciar a importância da reorganização ocupacional coletiva desenvolvida em espaços de participação social.

Caracterização das Participantes: os Tortuosos Caminhos das Organizações Sociais Civis

Este relato de experiência descreve os tortuosos caminhos percorridos por duas Organizações Sociais Civis de pessoas com esclerose múltipla da região sul do Brasil. Antes de iniciarmos a apresentação das associações, destacamos que o adjetivo “tortuosos” aqui apresentado pauta-se na compreensão de que ambas as instituições percorreram estradas sinuosas, íngremes, difíceis. Ambas as entidades se configuram como Organizações Sociais Civis reconhecidas pelo Poder Público como Órgãos de Utilidade Pública e estão registradas e vinculadas à Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM) e à Federação Internacional de Esclerose Múltipla (MSIF). Essas Organizações Sociais Civis são administradas por pessoas que, em sua maioria, a partir do diagnóstico de esclerose múltipla, dedicaram-se voluntariamente à construção e manutenção de ações capazes de dar voz às necessidades da população que representam e na qual estão inseridas. Ambas autorizaram a divulgação das informações apresentadas a seguir por meio de um Termo de Autorização Institucional. Para preservar a identidade dessas instituições, os codinomes Lírio e Dália são utilizados para as organizações A e B.

Lírio: um percurso compartilhado com a terapia ocupacional

Foi a partir do recebimento do diagnóstico de esclerose múltipla que um grupo de pessoas criou o Grupo Girassol em 2000, reunindo-se mensalmente a partir de então. Os encontros visavam a interação entre os participantes sobre a esclerose múltipla. Com o apoio profissional voluntário de um neurologista, nesses encontros os participantes dividiam suas angústias, incertezas e descobertas sobre a esclerose múltipla, que era ainda pouco conhecida naquele período (Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região, 2021Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região - APEMSMAR. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://www.apemsmar.org.br/
https://www.apemsmar.org.br/...
). No decorrer dos anos, profissionais e alunos de diversas áreas do conhecimento se inseriram nas reuniões do Grupo Lírio, organizando ações com o objetivo de obter resultados para a pesquisa acadêmica. Após alguns anos, a atividade dos acadêmicos foi reduzida, o que impactou as ações do Grupo.

Oito anos após a constituição do Grupo Lírio, a primeira autora, então recém-graduada em Terapia Ocupacional, recebeu informações sobre a dispersão do Grupo, causada pela falta de pessoas dispostas a coordenar as atividades normalmente desenvolvidas. Embora pouco experiente na coordenação de grupos e com escasso conhecimento sobre esclerose múltipla, conseguiu-se que o Grupo Lírio fosse convidado a participar de um projeto de extensão em parceria com o curso de graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Franciscana (UFN). Os participantes do grupo foram incentivados ao protagonismo em relação à sua própria história e à construção de um espaço coletivo. Estimulados pelo desejo de superar os estigmas relacionados à esclerose múltipla, o grupo passou a dedicar-se à elaboração de campanhas informativas sobre esclerose múltipla. Seis meses após o início do projeto, movido pelo interesse de obter maior representatividade social, o Grupo Lírio passou a desenvolver atividades de organização de uma entidade social, criando a Organização Social Civil (Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região, 2021Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região - APEMSMAR. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://www.apemsmar.org.br/
https://www.apemsmar.org.br/...
).

Registrada oficialmente em agosto de 2009, a Lírio foi fundada por pessoas com diagnóstico de esclerose múltipla e por profissionais de saúde. Atualmente, dedica-se a promover uma mudança social através da realização de campanhas informativas, eventos científicos sobre a esclerose múltipla e à inserção da pessoa com esclerose múltipla na Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência (PNSPD), bem como na Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência (PNIPD) (Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região, 2021Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região - APEMSMAR. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://www.apemsmar.org.br/
https://www.apemsmar.org.br/...
). A Lírio conta com 120 usuários com esclerose múltipla registrados, dos quais apenas oito são voluntários. A maioria dos usuários da Lírio (70%) são procedentes do município, 30% procedem de outros municípios e outros estados. Em 2020, a pandemia de COVID-19 impactou negativamente o quadro de voluntários da Lírio. Seis voluntários afastaram-se integralmente das atividades e apenas dois mantiveram sua participação ativa na organização social civil por meio de encontros virtuais. A redução no quadro de voluntários, associada às implicações impostas pela pandemia, culminou a parceria da Lírio com a Dália.

Dália: idas e vindas na (re)construção de um percurso coletivo

A partir do incentivo e apoio da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), em setembro de 1992, um grupo de pessoas diagnosticadas com esclerose múltipla criou a seccional estadual da ABEM. Entretanto, em 1998, a ABEM-estadual, seguindo as orientações estatutárias da ABEM, desvinculou o seu nome da associação nacional e passou a chamar-se Dália (Associação Gaúcha de Portadores de Esclerose Múltipla). Constituída exclusivamente por pessoas com diagnóstico de esclerose múltipla, a Dália interrompeu suas atividades em 2016 porque parte dos voluntários desenvolveram limitações físicas e aumento dos sintomas da doença. Em 2019, um grupo de pessoas com esclerose múltipla buscou o auxílio da Lírio e da ABEM para a reestruturação da Dália e a criação de um novo Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica. Desde então, a Lírio e Dália atuam em parceria na elaboração de campanhas informativas sobre a esclerose múltipla e na criação de políticas públicas em atenção à pessoa com esclerose múltipla (Associação Gaúcha de Portadores de Esclerose Múltipla, 2021Associação Gaúcha de Portadores de Esclerose Múltipla - AGAPEM. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://agapem.org.br/
https://agapem.org.br/...
). Salienta-se que a inexistência de registros sobre os percursos dessa entidade, desde a sua criação, dificulta o relato mais detalhado dos referidos processos. Membros da Dália estimam que cerca de 200 pessoas com esclerose múltipla sejam usuárias da organização; entretanto, apenas oito são voluntárias. Assim como a Lírio, a Dália também sofreu com os impactos negativos da pandemia de COVID-19 no seu quadro de voluntários, de modo que dez voluntários afastaram-se integralmente das atividades e apenas dois se mantiveram atuantes na organização social civil por meio de encontros virtuais.

Enfrentando as Barreiras Impostas Pela Pandemia: Aproximando os Coletivos

Seguindo as orientações e decretos municipais, em março de 2020, a Dália e a Lírio suspenderam todas as atividades de cunho coletivo e presencial previstas. As entidades são mantidas por meio de recursos financeiros obtidos através do desenvolvimento de projetos socioeducativos financiados por empresas privadas. Confrontadas pela pandemia de COVID-19, ambas as entidades foram impelidas a encontrar estratégias para a continuidade dos projetos, bem como para a manutenção do orçamento necessário à manutenção e ao funcionamento das entidades. Com as portas das associações fechadas e com a necessidade de distanciamento social dos voluntários (inseridos nos grupos de risco relacionados à COVID-19 - por serem portadores de doença crônica que atua diretamente no sistema imunológico), as associações uniram-se para repensar alternativas ao cotidiano coletivo das entidades.

Por meio de encontros remotos, os voluntários compartilharam metas e objetivos comuns as duas Organizações Sociais Civis. Nos encontros, o coletivo expressava as incertezas e receios sobre as possíveis implicações do coronavírus na saúde da pessoa com esclerose múltipla. A partir de questionamentos sobre a necessidade de cuidados restritivos especiais, da interrupção de medicações imunossupressoras, da indicação de vacinas, da conduta a ser seguida perante a suspensão dos atendimentos ambulatoriais, entre outros, tornou-se evidente a necessidade de união entre as Organizações Sociais Civis. Segundo Freire (1981, pFreire, P. (1981). Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.. 57), quando indivíduos reconhecem a identidade de seus interesses como parte de uma maioria de dominados, e não mais como parte de uma minoria dividida entre si, “é que se percebem como companheiros de uma jornada”. Nessa perspectiva, buscando o enfrentamento das barreiras impostas pela pandemia, as duas Organizações Sociais Civis iniciaram o processo de reconstrução ocupacional (Frank & Santos, 2020Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
). Ao compartilhar suas ações, as Organizações Sociais Civis se engajaram em atividades coletivas para a divulgação de informações sobre a esclerose múltipla e a pandemia de COVID-19, assim como na organização dos eventos tradicionalmente realizados no mês de conscientização sobre a esclerose múltipla, o “Agosto Laranja” (Amigos Múltiplos pela Esclerose, 2022Amigos Múltiplos pela Esclerose. (2022). Agosto Laranja. Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://amigosmultiplos.org.br/
https://amigosmultiplos.org.br/...
).

O universo virtual como rede de apoio, interação e participação

Após a identificação das metas e desejos do coletivo, no que se refere a enfrentar as barreiras impostas pela pandemia e aproximar os dois coletivos, iniciou-se a identificação dos métodos e recursos disponíveis para a realização das atividades propostas. Utilizando plataformas de comunicação virtual para as reuniões, as Organizações Sociais Civis identificaram as mídias sociais como um recurso essencial nos seus processos de reconstrução ocupacional. Em constante interação através de aplicativos de mensagens e videochamadas, os voluntários definiam as possibilidades para a execução das tarefas, compartilhavam ideias e informações sobre a realização de uma ou mais atividades. A comunicação virtual foi reconhecida como um recurso facilitador da interação e participação social, capaz de romper as barreiras impostas pelo distanciamento social.

Entre as atividades desenvolvidas, destacamos as lives realizadas entre maio e dezembro de 2020. No mês de maio de 2020, iniciou-se a campanha “Informação é o melhor remédio”. Estendendo-se até dezembro de 2020, essa campanha configurou-se como ideia e propósito central da Dália. Em agosto do mesmo ano, realizou-se o III Simpósio Estadual sobre Esclerose Múltipla, com o tema “Esclerose Múltipla em tempos de Pandemia”. Idealizadas pela Lírio, as lives do simpósio aconteceram diariamente entre 24 e 30 de agosto de 2020, sendo divulgadas por ambas as Organizações Sociais Civis através do Instagram, YouTube e Facebook, permanecendo disponíveis a toda população nos respectivos sites. Participaram das lives profissionais de diversas áreas de conhecimento, que apresentaram temas relacionados ao diagnóstico e tratamento da esclerose múltipla. Voluntários de organizações de pessoas com esclerose múltipla de diversos estados do Brasil participaram das lives, debatendo os impactos da pandemia nas Organizações Sociais Civis. Os temas saúde e espiritualidade, trabalho e reorganização do cotidiano também foram abordados. As 38 lives realizadas em 2020 contaram com a participação ativa de indivíduos com esclerose múltipla, estudantes e profissionais de diversas áreas da saúde e das ciências sociais, que através de mensagens de texto instantâneas interagiam ativamente nas discussões, manifestando seus questionamentos e reflexões.

Dúvidas frequentes sobre esclerose múltipla, seu prognóstico e eventuais oportunidades de tratamento foram mencionadas pelos participantes das lives, tornando evidente que o acesso a informações sobre a doença é uma necessidade constante, validando os esforços empregados pelas Organizações Sociais Civis para desenvolver campanhas de acesso à informação. Problemas como a indisponibilidade de medicação, questionamentos sobre a produção de vacinas contra a coronavírus, riscos de complicações no tratamento da esclerose múltipla, interrupção dos atendimentos nos serviços de saúde e das Organizações Sociais Civis também foram citados pelos participantes. Para atender às demandas apresentadas pelos participantes, a Dália e a Lírio organizaram uma rede de apoio formada por diversas Organizações Sociais Civis do país, bem como de influenciadores digitais, de modo a favorecer a obtenção das informações necessárias para a resolução das situações-problema. Outro fato relevante a ser destacado foi a necessidade de ações para o acolhimento a novos usuários, posto que um número considerável de pessoas recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla durante o período da pandemia, quando as atividades presenciais das Organizações Sociais Civis estavam suspensas. Tal fato culminou na criação do projeto “Correspondentes”. Esse projeto, criado pela Dália, propõe o acolhimento de pessoas com esclerose múltipla a partir de uma rede de apoio formada por pessoas com esclerose múltipla de diversas regiões do país. As ações de acolhimento do Correspondentes aconteceram através do WhatsApp e videochamadas. Assim, as necessidades de informação puderam ser supridas, ainda que as medidas sanitárias fossem respeitadas.

Estratégias de cuidado à distância são viáveis na prática dos terapeutas ocupacionais e outros profissionais de saúde. Cabe lembrar que a Resolução nº 516, de 20 de março de 2020, do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Brasil, 2020Brasil. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - COFFITO. (2020, 23 de março). Resolução nº 516, de 20 de março de 2020. Dispõe sobre a suspensão temporária do Artigo 15, inciso II e Artigo 39 da Resolução COFFITO nº 424/2013 e Artigo 15, inciso II e Artigo 39 da Resolução COFFITO nº 425/2013 e estabelece outras providências durante o enfrentamento da crise provocada pela pandemia do COVID-19. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.) regulamentou a teleconsulta, o telemonitoramento e a teleconsultoria como modalidades possíveis de trabalho, a fim de permitir a continuidade de ações para alguns grupos populacionais assistidos por terapeutas ocupacionais. Muñoz (2020)Muñoz, A. F. (2020). Reflexiones y acciones desde terapia ocupacional en la lucha contra el COVID-19 durante isolamiento social. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 451-459. destaca a necessidade de a Terapia Ocupacional favorecer redes de apoio durante o período de distanciamento social da COVID-19 e Malfitano et al. (2020)Malfitano, A. P. S., Cruz, D. M. C., & Lopes, R. E. (2020). Terapia ocupacional em tempos de pandemia: seguridade social e garantias de um cotidiano possível para todos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(2), 401-404. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED22802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
corroboram a defesa dessas modalidades de atendimento destacando a necessidade de terapeutas ocupacionais considerarem os elementos que permeiam a desigualdade social, agudizada durante a pandemia.

Outro ponto relevante sobre as lives e recursos de comunicação virtual disponíveis, refere-se ao elevado potencial de propagação das informações. Com exceção das produções com divulgação limitada por direitos autorais, os conteúdos postados em domínio público puderam ser compartilhados a qualquer tempo e em qualquer local por todos que tivessem disponibilidade de acesso à Internet.

Reflexões Sobre a Experiência do Processo de Reconstrução Ocupacional

O cotidiano das Organizações Sociais Civis, objeto deste relato de experiência, é marcado desde o seu princípio pelo envolvimento de pessoas com esclerose múltipla em ocupações coletivas. Tais ocupações têm como propósito central a conscientização da população sobre a esclerose múltipla e suas implicações na vida cotidiana dos indivíduos acometidos por essa doença. Compreende-se que é a partir do envolvimento de indivíduos em processos de conscientização contínua sobre dinâmicas hegemônicas, e do reconhecimento de práticas dominantes sustentadas no fazer diário, que indivíduos e coletivos adquirem consciência ocupacional (Ramugondo, 2015Ramugondo, E. L. (2015). Occupational consciousness. Journal of Occupational Science, 22(4), 488-501.). Segundo Ramugondo (2015)Ramugondo, E. L. (2015). Occupational consciousness. Journal of Occupational Science, 22(4), 488-501., consciência ocupacional configura-se como a noção crítica sobre o cotidiano, que permite ao indivíduo e ao coletivo a compreensão adequada para promover ações potencialmente libertadoras. Para essa autora, a consciência ocupacional adquirida através da reflexão crítica sobre o cotidiano oferece aos indivíduos e coletivos condições de interromper ciclos de opressão e desigualdade. Nessa perspectiva, Freire (1981)Freire, P. (1981). Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. antecipou que é através de uma permanente mobilização e participação ativa numa prática política de defesa de seus interesses que indivíduos tomam consciência de si e do outro. Ambas as Organizações Sociais Civis foram constituídas por indivíduos que se mobilizaram coletivamente para romper dinâmicas excludentes que limitam direitos básicos de acesso à saúde e à participação social de pessoas com esclerose múltipla. Assim, nos associamos ao pensamento de Ramugondo & Kronenberg (2015)Ramugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16. para afirmar que, a partir da intencionalidade da ocupação coletiva direcionada à busca por direitos sociais e à valorização da vida, as OCSs criaram condições que favoreceram a consciência ocupacional dos envolvidos. Assim, ao se engajarem em ocupações que lhes eram significativas, os membros dessas entidades atuaram de forma a implementar as mudanças necessárias para que as pessoas com esclerose múltipla possam viver em uma sociedade mais justa.

A pandemia de COVID-19 não conseguiu impedir que os participantes das Organizações Sociais Civis, inspirados em sua consciência ocupacional e fortalecidos pelo senso de pertencimento coletivo, superassem as adversidades impostas e reconstruíssem suas ocupações coletivas. Para as pessoas envolvidas nessas Organizações Sociais Civis, romper as barreiras do distanciamento social não se limitou a descobrir como utilizar as plataformas virtuais. Foi preciso unir as potencialidades do coletivo para que a timidez e a falta de experiência com os recursos tecnológicos disponíveis (aspectos pessoais) fossem suplantadas (Borges & Jambeiro, 2016Borges, J., & Jambeiro, O. (2016). Evolução do uso da internet na participação política de organizações da sociedade civil. In J. A. G. Pinho (Org.), Artefatos digitais para mobilização da sociedade civil: perspectivas para avanço da democracia (pp. 73-97). Salvador: EDUFBA.). Segundo Ramugondo & Kronenberg (2015, pRamugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.. 12, tradução e grifos nossos), o processo vivenciado pelas organizações sociais é um fenômeno natural, já que a humanidade está “constantemente sendo moldada pelo que as pessoas são capazes ou incapazes de fazer dentro de grupos, comunidades e sociedade”.

Neste estudo, apresentamos ações de indivíduos e coletivo, que a partir de reflexões críticas sobre o cotidiano coletivo que os unia, imaginaram e criaram novas possibilidades sobre o fazer cotidiano. Com foco nas ações de conscientização sobre a esclerose múltipla e considerando suas capacidades e habilidades, os indivíduos foram reorganizando funções e atividades de forma livre e espontânea, garantindo seu engajamento nas ações propostas pelo coletivo. De acordo com Rudman (2013), aRudman, D. L. (2013). Enacting the critical potential of occupational science: problematizing the ‘individualizing of occupation’. Journal of Occupational Science, 20(4), 298-313. ocupação livremente escolhida e imaginada cria novas possibilidades de engajamento social. Compreendemos, portanto, que a construção coletiva de Campanhas de Conscientização, como as apresentadas neste relato de experiência, pode ser caracterizada como uma estratégia de reconstrução ocupacional (Frank & Santos, 2020Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
). Entendemos que é por meio do compartilhamento das condições concretas da existência e da intencionalidade que indivíduo e coletivo ganham visibilidade para modificar a realidade. De acordo com Palácios (2015)Palácios, M. (2015). Sentido de comunidad y ocupaciones colectivas. In P. Caro-Vines, R. Morrison & M. Palacios (Eds.), Cincuenta años de terapia ocupacional en Chile (pp. 143-160). Santiago: Ediciones on Demand., é a partir das ações e omissões diárias experimentadas no relacionamento com os outros que as ocupações coletivas desenvolvem novos modos de vida. Para a autora supracitada, a ocupação é uma construção social, advinda da expressão coletiva da cultura, da história e dos aspectos econômicos e materiais, evidenciada nas formas de fazer e viver o cotidiano. Kantartzis & Molineux (2017)Kantartzis, S., & Molineux, M. (2017). Collective occupation in public spaces and the construction of the social fabric. Canadian Journal of Occupational Therapy, 84(3), 168-177. refletem que a ocupação coletiva desenvolvida nas Organizações Sociais Civis é mais do que a simples união de pessoas reunidas para debater ou protestar, mas um suporte que auxilia a organizar o mundo público. Esses autores acrescentam que a importância da ocupação coletiva nesses espaços vai além da cooperação e divisão de responsabilidades entre os indivíduos, e também auxilia a estruturação e criação de padrões sociais.

Na condição de participantes e observadoras dos fenômenos e processos descritos neste relato de experiência, ressaltamos o extensivo trabalho dos membros das entidades, que se orientaram sempre pela garantia de que as ocupações desenvolvidas fossem livremente escolhidas pelos indivíduos, sempre visando resultados coletivos.

Considerações Finais

Constituindo-se como um espaço coletivo, as Organizações Sociais Civis que advogam por pessoas com esclerose múltipla dedicam-se às ocupações direcionadas às campanhas de conscientização sobre essa doença, bem como à plena inserção social dessas pessoas. Inseridas no grupo de risco de pessoas com doenças crônicas, as pessoas com esclerose múltipla que usam imunossupressores necessitam de maior atenção para os cuidados relacionados à prevenção da COVID-19, tendo em vista que tais medicamentos causam diminuição da resposta imunológica do organismo. Entretanto, estudos evidenciaram que as medicações utilizadas pela grande maioria de pessoas com esclerose múltipla felizmente atuam como “protetoras” do sistema imunológico, o que acabou oferecendo certa tranquilidade a essas pessoas para seguir apenas os cuidados necessários e comuns à população em geral. Desse modo, verificou-se que o maior impacto da pandemia de COVID-19 no cotidiano dos pacientes e seus familiares esteve relacionado à necessidade do distanciamento social, à suspensão dos atendimentos laboratoriais e consultas não urgentes, aos atrasos no recebimento das medicações e à suspensão dos grupos de apoio e de práticas integrativas oferecidos pelas Organizações Sociais Civis, além obviamente das dificuldades que atingiram o conjunto da sociedade.

Para os voluntários das Organizações Sociais Civis, o distanciamento social impactou negativamente o gerenciamento das entidades, tendo em vista que a ruptura das ações coletivas e compartilhadas impuseram extrema fragilidade à execução das tarefas das entidades. Paralelamente, a utilização dos dispositivos de mídias sociais apresentou-se como um recurso de fácil adaptação e com grande potencial para ser explorado em ações nas quais a presença física dos participantes podia ser dispensada. É importante destacar algumas limitações, como a instabilidade do sinal da Internet, pessoas com pouco domínio no uso das plataformas utilizadas, interferências externas que desviavam a atenção dos participantes durante os eventos, entre outros. Desse modo, entendemos que é válido sugerir que, para a utilização de tais ferramentas, é preciso que essas ocorrências sejam previstas para evitar situações que possam influenciar negativamente as atividades propostas. Para os membros das Organizações Sociais Civis deste estudo, as plataformas virtuais constituíram-se como um recurso potente, criando um “espaço virtual” que permitiu a reconstrução das ocupações coletivas tradicionalmente realizadas de modo presencial, a partir de uma nova configuração do fazer junto, mesmo estando geograficamente distanciados. Entretanto, cabe destacar que, embora a criação de um espaço virtual tenha minimizado os impactos negativos da ruptura das ações coletivas e compartilhadas em caráter presencial das entidades, grande parte dos voluntários não aderiu à proposta. Consideramos que muitos podem ser os motivos da não participação de todos, e entendemos que esse fato evidencia a necessidade de estudos que forneçam subsídios adequados para que possamos compreender melhor os processos de reconstrução ocupacional, como os descritos neste estudo.

  • Como citar: Vieira, S. V., & Magalhães, L. (2022). Organizações sociais civis em tempos de pandemia: um relato a partir do conceito de reconstrução ocupacional coletiva. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3216. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoRE245832161
  • Fonte de Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior - CAPES. Código 001. Lilian Magalhães recebeu suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, através de bolsa produtividade em pesquisa, Processo 303037/2018-0.

Referências

  • Amigos Múltiplos pela Esclerose. (2022). Agosto Laranja Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://amigosmultiplos.org.br/
    » https://amigosmultiplos.org.br/
  • Associação de Portadores de Esclerose Múltipla de Santa Maria e Região - APEMSMAR. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://www.apemsmar.org.br/
    » https://www.apemsmar.org.br/
  • Associação Gaúcha de Portadores de Esclerose Múltipla - AGAPEM. (2021). Recuperado em 22 de agosto de 2022, de https://agapem.org.br/
    » https://agapem.org.br/
  • Borges, J., & Jambeiro, O. (2016). Evolução do uso da internet na participação política de organizações da sociedade civil. In J. A. G. Pinho (Org.), Artefatos digitais para mobilização da sociedade civil: perspectivas para avanço da democracia (pp. 73-97). Salvador: EDUFBA.
  • Brasil. (1999, 24 de março). Lei nº 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.
  • Brasil. (2014, 1 de agosto). Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.
  • Brasil. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional - COFFITO. (2020, 23 de março). Resolução nº 516, de 20 de março de 2020. Dispõe sobre a suspensão temporária do Artigo 15, inciso II e Artigo 39 da Resolução COFFITO nº 424/2013 e Artigo 15, inciso II e Artigo 39 da Resolução COFFITO nº 425/2013 e estabelece outras providências durante o enfrentamento da crise provocada pela pandemia do COVID-19. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.
  • Frank, G. (2012). Twenty-first century pragmatism and social justice: problematic situations and occupational reconstructions in post-civil war Guatemala. In M. Cutchin & V. Dickie (Eds.), Transactional perspectives on occupation (pp. 229-243). Berlin: Springer.
  • Frank, G., & Muriithi, B. A. K. (2015). Theorising social transformation in occupational science: the American civil rights movement and South African struggle against apartheid as ‘occupational reconstructions’. South African Journal of Occupational Therapy, 45(1), 11-19.
  • Frank, G., & Santos, V. (2020). Occupational reconstructions: resources for social transformation in challenging times. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 741-745. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802
    » http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED2802
  • Freire, P. (1981). Ação cultural para a liberdade Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Gerlach, A. J., Teachman, G., Rudman, D. L., Aldrich, R. M., & Huot, S. (2017). Expanding beyond individualism: engaging critical perspectives on occupation. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 25(1), 35-43. http://dx.doi.org/10.1080/11038128.2017.1327616
    » http://dx.doi.org/10.1080/11038128.2017.1327616
  • Kantartzis, S., & Molineux, M. (2017). Collective occupation in public spaces and the construction of the social fabric. Canadian Journal of Occupational Therapy, 84(3), 168-177.
  • Malfitano, A. P. S., Cruz, D. M. C., & Lopes, R. E. (2020). Terapia ocupacional em tempos de pandemia: seguridade social e garantias de um cotidiano possível para todos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(2), 401-404. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED22802
    » http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoED22802
  • Muñoz, A. F. (2020). Reflexiones y acciones desde terapia ocupacional en la lucha contra el COVID-19 durante isolamiento social. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 451-459.
  • Nossa Causa - NC. (2021). Impacto da Covid-19 nas OSCs brasileiras: da resposta imediata à resiliência Curitiba: NC.
  • Núñez, C. M. V., Hermosilla, A., Sepulveda, S., Riffo, M. R., & Martinez, C. R. (2019). Ocupación colectiva como medio de superación del Apartheid Ocupacional: el caso de la lucha por el derecho a la salud de la Agrupación Mama Cultiva. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(1), 4-16. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1786
    » http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1786
  • Palácios, M. (2015). Sentido de comunidad y ocupaciones colectivas. In P. Caro-Vines, R. Morrison & M. Palacios (Eds.), Cincuenta años de terapia ocupacional en Chile (pp. 143-160). Santiago: Ediciones on Demand.
  • Ramugondo, E. L. (2015). Occupational consciousness. Journal of Occupational Science, 22(4), 488-501.
  • Ramugondo, E. L., & Kronenberg, F. (2015). Explaining collective occupations from a human relations perspective: bridging the individual-collective dichotomy. Journal of Occupational Science, 22(1), 3-16.
  • Rudman, D. L. (2013). Enacting the critical potential of occupational science: problematizing the ‘individualizing of occupation’. Journal of Occupational Science, 20(4), 298-313.
  • Santos, V., Frank, G., & Mizue, A. (2020). Candangos: occupational reconstruction as a tool to understand social problems and transformative action in the utopian city of Brasília. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 765-783.
  • Townsend, E. (1997). Occupation: potential for personal and social transformation. Journal of Occupational Science, 4(1), 18-26.

Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Daniela Tavares Gontijo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2021
  • Revisado
    01 Mar 2022
  • Revisado
    11 Jul 2022
  • Aceito
    22 Ago 2022
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
E-mail: cadto@ufscar.br