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Terapia ocupacional social, antiopressão e liberdade: considerações sobre a revolução da/na vida cotidiana

Resumo

A terapia ocupacional social vem se preocupando em lidar com as desigualdades sociais, principalmente no que tange à estrutura de múltiplas opressões. Tomando-se esse pressuposto como parâmetro, avançar na consolidação de referenciais teórico-metodológicos que permitam problematizar o lugar da profissão, na dimensão da sociedade e da atuação sobre ela, é urgente, de maneira a oferecer proposições para uma prática socialmente referenciada. Sendo assim, são apresentados neste ensaio aportes para compor o debate acerca de um pensar/fazer terapêutico-ocupacional social para a antiopressão e intencionado para a liberdade. Trata-se de se voltar para uma ação profissional que combata as estruturas opressivas e mire no alargamento das possibilidades de vida dos sujeitos, individuais e coletivos, com os quais atuamos. Para nós, o foco dessa práxis se dá na dimensão da vida cotidiana dos sujeitos, a qual é marcada pela alienação, mas também pela possibilidade de libertação, que se efetiva na medida em que se cria oportunidades para um inédito-viável e se exerce a revolução (humanização) nessa cotidianidade, podendo ser o terapeuta ocupacional um mediador/articulador no âmbito desse processo. Para isso, propõe-se uma práxis que é perpassada pelo fomento de intervenções que apreendam e lidem com a violência à vida cotidiana (a justa raiva e a indignação), com a suspensão da vida cotidiana (esforço para problematizar de onde se vem e para onde se pode ir) e se direcione para a criação permanente da vida cotidiana (a transformação).

Palavras-chave:
Atividades Cotidianas; Terapia Ocupacional; Opressão social; Liberdade; Participação Social

Abstract

Social occupational therapy has been concerned with dealing with social inequalities, especially with regard to the structure of multiple oppressions. Taking this assumption as a parameter, it is urgent to advance in the consolidation of theoretical-methodological references that allow problematizing the role of the profession, in the dimension of society and the performance on it, in order to offer proposals for a socially referenced practice. Thus, this essay presents contributions to compose the debate about a social therapeutic-occupational thinking/doing for anti-oppression and intended for freedom. It is about turning to a professional action that fights oppressive structures and aims at expanding the life possibilities of subjects, individual and collective, with whom we work. The focus of this praxis is in the dimension of the individuals' everyday life, which is marked by alienation, but also by the possibility of liberation, which is effective as opportunities are created for an untested feasibility and the revolution (humanization) is carried out in this everyday life, while the occupational therapist can be a mediator/articulator in this process. For this, the praxis proposed is permeated by the promotion of interventions that apprehend and deal with violence to everyday life (justified anger and indignation), with the suspension of everyday life (effort to problematize where one comes from and to where you can go) and move towards the permanent creation of everyday life (the transformation).

Keywords:
Activities of Daily Living; Occupational Therapy; Social oppression; Freedom; Social Participation

Introdução

Os debates em relação às desigualdades sociais, que envolvem dinâmicas e estruturas de uma sociedade historicamente marcada por opressões, são atravessados por diversos temas que dizem respeito às contradições sociais, reunindo questões de classe social, raça/etnia, gênero e sexualidade, geração, deficiência, território etc. Tais temáticas têm sido, histórica e contemporaneamente, pautadas por terapeutas ocupacionais preocupados com problemáticas delas decorrentes na vida das pessoas.

Do nosso ponto de vista, lidamos com uma tarefa posta no campo da terapia ocupacional social, visando discorrer sobre a importância do desenvolvimento de uma leitura terapêutico-ocupacional

[...] da realidade e da problemática expressa pela pessoa que só se alcança por um recorte metodológico específico, que seja capaz de revelar e interagir com aquilo que se oculta em manifestações que, apenas de forma superficial e reducionista, podem ser vistas como restritas ao indivíduo (Lopes et al., 2010Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., Borba, P. L. O., & Hahn, M. S. (2010). Educação profissional, pesquisa e aprendizagem no território. O Mundo da Saude, 34(2), 140-147., p. 142).

Assim, buscamos avançar na consolidação de instrumentos teórico-metodológicos que permitam problematizar o lugar social da profissão, considerando uma ação parametrizada pela dialética entre a história e a vida em seu contexto, reconhecendo sua função técnica, política e ideológica (Barros, 1991Barros, D. D. (1991). Operadores de saúde na área social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 1(1), 11-16.; Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103.).

Algumas perguntas que se colocam e nos motivam são: 1) Qual é a possibilidade de uma práxis terapêutico-ocupacional social que apreenda as múltiplas opressões históricas e que esteja comprometida em combatê-las?; e 2) Quais os caminhos a serem propostos para uma ação que acolha e se atente a questões que envolvem aspectos individuais/coletivos, micro/macrossociais, históricos/estruturais e cotidianos?

Parece necessária a elaboração de uma práxis terapêutico-ocupacional social para a antiopressão intencionada para a liberdade, que mire na vida cotidiana enquanto dimensão passível de movimentos de combate e ruptura com o status quo, em outras palavras, revolucionários.

Apresenta-se, neste ensaio, um caminho nesse sentido, perpassado por formulações de Paulo Freire para uma terapia ocupacional social técnica e politicamente orientada, mediante a qual são trazidas proposições com foco nos elementos da revolução da vida cotidiana, conforme teóricos marxistas, relacionadas às categorias de violência (Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra.), suspensão (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra., 2016bHeller, A. (2016b). Sociología de la vida cotidiana. México: El sudamericano.) e criação (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.).

Terapia Ocupacional Social: Antiopressão, Liberdade e Cotidiano

A terapia ocupacional social atua juntamente aos sujeitos destituídos de direitos e participação em nível político, social, econômico e cultural. São sujeitos sociais que vivenciam processos de rupturas em múltiplos contextos de suas vidas, com fragilidades nas relações de trabalho, nos suportes sociais, modos de vida e expressões culturais, no acesso aos direitos fundamentais etc. (Melo et al., 2020Melo, K. M. M., Malfitano, A. P. S., & Lopes, R. E. (2020). Os marcadores sociais da diferença: contribuições para a terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(3), 1061-1071. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1877.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
; Lopes & Malfitano, 2021Lopes, R. E., & Malfitano, A. P. S. (2021). Theoretical, practical, and contemporary scenarios in the Metuia/UFSCar experiences of developing social occupational therapy. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Social Occupational Therapy (pp. 164-168). Philadelphia: Elsevier.).

O alicerce dessa atuação está no entendimento e na apreensão das relações sócio-históricas e culturais, para que essa intervenção se faça em diálogo com os contextos e com os sujeitos que se constituem nessas relações, dinamicamente, de forma individual-coletiva, objetiva-subjetiva, implicados em relações de poder e conflito.

Portanto, a direção da intervenção profissional que se quer, tomando-se um imperativo técnico/ético/político, volta-se para a promoção da inserção social (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP.) de populações em vulnerabilidade social e com dificuldades de negociar seus modos de viver, especificamente apoiado naquilo que envolve a vida cotidiana. Esse imperativo, então, iria se fundamentar em uma práxis: ação + reflexão para a antiopressão intencionada para a liberdade, ou seja, que se volte para um cotidiano passível de transformação.

Em Freire (1987)Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., a categoria “opressão” pode ser compreendida como um conjunto de injustiças que promovem a desumanização, estruturado1 1 Fundamentado em Freire, as opressões se referem a processos edificados em uma estrutura social, que se desenvolve nas relações sociais em diferentes dimensões, micro e macrossociais. Trata-se de uma estrutura social, que “[...] é, em última análise, não a soma (nem também a justaposição) da infraestrutura [base material de produção, relações de produção, forças econômicas] com a supra-estrutura [formas de consciência social, questões ideológicas, artísticas, jurídicas, culturais, políticas, educativas, etc.], mas a dialetização entre as duas” (Freire, 1981, p. 69). pelos condicionamentos sociais que embarreiram a vocação dos seres humanos para a humanização, a liberdade, para o ser mais. Isso se opera numa realidade histórica em que existem agentes que oprimem e que são oprimidos, negando o ser e estar desses últimos enquanto sujeitos históricos que pronunciam e transformam suas realidades.

A opressão engendra ações contra os oprimidos para “[...] matar a vida, freá-la, com a redução dos [seres humanos] a puras coisas, [para] aliená-los, mistificá-los [...]” (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 73), anulando a potência de suas movências no/com o mundo, com os outros e com a história, na dimensão simbólica e material.

A dinâmica opressor-oprimido é complexa, ambígua, incidente nas dimensões micro e macrossociais (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP.), envolvendo contradições em níveis subjetivos e objetivos, conformando a consciência, as ações interpessoais, institucionais que, dialeticamente, (re)produzem-se na estrutura social e conformam situações-limites nas vidas dos sujeitos, calcadas na desesperança, no fatalismo histórico, exigindo a busca pelo inédito-viável (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

Freire aborda as opressões em diversas dimensões em suas obras. Ele pontua que, no livro Pedagogia do Oprimido, de 1968, busca-se analisar os fenômenos de opressão, com interesse nos oprimidos como uma classe social, pela influência de Marx e de suas próprias vivências. Porém, afirma que, mesmo com essa evidência, seu objetivo primordial foi oferecer certos parâmetros e a teorização sobre as estruturas de opressão, como lentes de análise que se moldam dependentemente do contexto das múltiplas opressões – visando, sobretudo, a vidas mais libertas para os seres humanos: “O que eu gostaria de pensar é que, sem querer universalizar a opressão, eu fiz algumas contribuições positivas para a compreensão de estruturas opressivas” (Freire, 2001aFreire, P. (2001a). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP., p. 263).

Nessa sistematização, Freire designa as especificidades de opressões, trazendo elementos de classe, mas também de raça/etnia, gênero, sexualidade etc. para o debate em obras posteriores (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP., 2001aFreire, P. (2001a). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP., 2001bFreire, P. (2001b). Política e educação. São Paulo: Cortez.), concluindo que a luta contra a opressão é coletiva, isto é, deve ocorrer pela força dos sujeitos oprimidos por esses elementos.

É na unidade na diversidade, agregando sujeitos oprimidos por especificidades iguais e distintas, “[...] que está em questão a libertação e a criação de estruturas libertadoras [...]” (Freire, 2001aFreire, P. (2001a). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP., p. 266). O fazer/pensar “[...] progressista é leal à radical vocação do ser humano para a autonomia e se entrega aberto e crítico à compreensão da importância da posição de classe, de sexo [gênero] e de raça para a luta de libertação” (Freire, 2001bFreire, P. (2001b). Política e educação. São Paulo: Cortez., p. 46).

O fio que se tece é o que se intenciona em direção à criação de caminhos da libertação social e coletiva – entre os diversos oprimidos e diferentes níveis de opressão (subjetivo/objetivos - micro/macrossociais). Exige-se, assim, inspirando-nos nas elaborações freireanas, uma postura de combate ao antagônico estruturante (as relações sociais constituintes das diferentes opressões), edificando uma práxis para a antiopressão.

Em nosso pensar/fazer, a terapia ocupacional social é o que se colocaria no campo de combate, tendo em vista o reconhecimento de sua função política-ideológica, para a antiopressão (Farias & Lopes, 2021Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021). Pensar/fazer como prática da liberdade: a terapia ocupacional e o centenário de Paulo Freire. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, 1-5. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoED292021.
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). Salientamos que a força do termo para dizer que não basta operar uma práxis não opressiva, é necessária uma práxis que esteja atenta a combater às estruturas de opressões, não se aligeirando do compromisso em meio aos conflitos.

Ademais, na dimensão da antiopressão, não correríamos o risco de negligenciar ou negar algum tipo de opressão, dada uma compreensão baseado naquilo que causa a desumanização dos sujeitos, individuais e coletivos, na estrutura social e na dialética macro-microssocial. Temos, portanto, uma categoria de análise que nos possibilita compreender as diversas dinâmicas de opressão, incluindo suas especificidades (sem universalizar), e, principalmente, as relações de poder que retroalimentam e se direcionam a contingentes iguais e distintos de sujeitos.

Tais premissas requerem uma práxis terapêutico-ocupacional intencionada2 2 A força na intencionalidade a que recorremos não é ocasional, em diálogo com Freire, pontuamos anteriormente que a práxis como prática da liberdade requer reafirmação constante de sua intenção, “[...] sendo necessário que ela esteja, de forma consciente, orientada para tal [finalidade]” (Farias & Lopes, 2020, p. 1350). para a liberdade, que alargue as possibilidades de humanização de sujeitos que carregam marcas importantes da opressão cotidiana, em prol de autonomia, inserção social e fortalecimento de vidas que consigam achar/abrir caminhos individuais-coletivos. Fala-se de uma ação profissional pautada na educação como prática da liberdade, isto é, que se afirma no compromisso ético-político, na criticidade-problematização, na democratização e na rigorosidade técnico-científica (Farias & Lopes, 2020Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2020). Terapia ocupacional social: formulações à luz de referenciais freireanos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1346-1356. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1970.
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).

Mas em que miramos para pensar/fazer práticas para a antiopressão junto aos sujeitos? Para nós, em diálogo com Barros et al. (2002)Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103., a terapia ocupacional social se volta para a vida cotidiana, que é onde a vida acontece e as relações de opressão se estabelecem como situações-limites (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), nas contradições entre alienação e transformação (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra., 2016bHeller, A. (2016b). Sociología de la vida cotidiana. México: El sudamericano.; Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra.; Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.).

Trata-se de um caminho direcionado para entender o que é necessidade, o que é inserção e o que é liberdade diante de contextos históricos, para ajudar a vida acontecer, na forma das escolhas mais possíveis dos diferentes sujeitos (individuais, coletivos, históricos, culturais). No pensar/fazer da terapia ocupacional, é esse cotidiano que nos interessa, muito complexo e com várias dimensões que se articulam.

A vida cotidiana é a vida de cada e todo dia, organizada na distribuição do tempo, nas repetições, nas exceções, nos gestos, nas ações, no que se sabe etc., num relacionamento recíproco com a História – cotidianidade sem História é esvaziada e História sem cotidianidade é impotente, sem devir (Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra.; Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra.). Feitos históricos partem e retornam sempre à vida cotidiana: a cotidianidade diz do passado e de suas assimilações no presente, onde nem sempre se visibilizam.

Os sujeitos mergulham e são mergulhados numa cotidianidade marcada pela alienação, o que potencializa demandas de esforços para poder negá-la ou transformá-la, sendo necessário revelar a riqueza escondida nessa dimensão da vida para acessar o extraordinário do ordinário. Essa alienação se estabelece, sobretudo, pela complexidade da desigualdade social, baseada na divisão do trabalho, da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais, impedindo a muitos a dimensão da liberdade, criação e transformação da vida que se vive – engendrando desumanização, a relação muda entre a vida particular (individualidade restrita a cada um) e a vida do humano-genérico (coletividade que atravessa a todos) (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra.; Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra.; Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.).

Assim, a alienação reflete a consciência de sujeitos imersos em uma compreensão de si e de mundo pseudoconcretizada, onde, aparentemente, as contradições estão dadas na aparência restrita à superfície do real (fenômeno). “O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O fenômeno indica a essência, ao mesmo tempo, a esconde” (Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra., p.15); esse autor vê a essência como núcleo interno da realidade, manifestando-se no fenômeno de forma inadequada, parcial ou por um ângulo limitado.

O fenômeno denuncia a essência, mas imediata e superficialmente, exigindo dos sujeitos esforços para apreender a unidade do fenômeno e sua essência. Essa dimensão rasa atravessa a vida cotidiana reduzida ao prático-utilitário – fazer alienado, em que impera a fetichização das relações, em que os sujeitos concebem o mundo como algo pronto, perdendo a consciência de que esse mundo é criação.

Decorre uma apartação dos sujeitos da gênese do mundo humano, da cultura e humanização da natureza, exprimindo a práxis das operações diárias, em que o próprio ser humano é objeto de manipulação (das coisas e de outros seres humanos), e com muito se transformando em hábito e ação mecânica.

Nesse viés, os sujeitos apenas se ocupam sem pensar, há a “[...] manipulação dos aparelhos do mundo, mas não a criação do mundo humano [...]” (Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra., p.74, grifos do autor); a cotidianidade, marcada pela sociabilidade capitalista e múltiplas opressões, é tomada pela pseudoconcreticidade, enevoando a compreensão da realidade concreta, para a manutenção do cotidiano alienado.

Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática. pontua que a alienação dissimula o lugar de criação e produção de vida (em sentido mais amplo), afastando o cotidiano de sua riqueza. Trata-se de uma dissimulação que transforma a consciência criadora em passiva e infeliz. Isso está relacionado à sociedade burocrática e de consumo dirigido, notadamente para grupos subalternizados, apoiado na apropriação de tempos, espaços, corpos e desejos; uma sociedade sustentada na privação e exploração, tornando o cotidiano funcional às lógicas de opressão.

Todavia, o cotidiano, apesar de propício à alienação, não é necessariamente alienado, sendo uma estrutura possível de conter a “unidade consciente do humano-genérico e do individual-particular” (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra., p. 64). Eis uma perspectiva do ser humano na cotidianidade enquanto essência unitária, como ser coparticipante da sociedade coletiva.

Para Heller (2016b)Heller, A. (2016b). Sociología de la vida cotidiana. México: El sudamericano., Heidegger (1951)Heidegger, M. (1951). El ser y el tiempo. México: FCE. descreve a vida cotidiana como alienada por princípio, sendo que o ponto nodal da teoria dele está precisamente nessa vida alienada. Haveria apenas uma saída para o indivíduo e apenas em sentido negativo: a escolha do ser para a morte como ser autêntico. Entretanto, a autora destaca a elaboração de uma concepção que, como teoria da vida cotidiana, não nega sua afinidade com a alienação, afirmando que, junto à estrutura intranscendível da vida cotidiana e apesar dela, uma vida cotidiana não-alienada também é concebível.

Segundo Kosik (2002)Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra., o ser humano é jogado no mundo, sendo que sua autenticidade ou inautenticidade deve ser provada por si mesmo, na luta e na práxis, na sua história e numa realidade que pode ser modicada, transformada, sendo a libertação essencial para o encontro com a autenticidade; a cotidianidade alienada dificulta essa construção, mas não a torna impossível.

Por fim, esse processo exige estratégias desestabilizadoras da ordem do cotidiano alienado/desumanizado/mortificado, implicando a vida móvel, a existência consciente de estar no e com o mundo, e o fazer cotidiano intencionado para a liberdade. Tal aspecto pode, nos limites de um pensar/fazer profissional, ser colocado pela terapia ocupacional social em sua práxis.

Revolução da/na Vida Cotidiana: Violência, Suspensão e Criação

A vida cerceada pelas opressões suprime as experiências da cotidianidade em suas possibilidades do pensar e fazer. Com base em Freire (2013)Freire, P. (2013). À sombra desta mangueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra., apesar dessa cotidianidade estruturada na opressão, destacamos a curiosidade crítica que resiste/existe, que promove rachaduras que podem alimentar um pensar/fazer distinto, a fim de examinarmos criticamente os processos de vida e as chances de transformar o mundo e gozar os bens sociais. Observamos, aqui, o caminho para a transformação revolucionária da vida cotidiana, em diálogo com Heller (2016a)Heller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra.. Para nós, a ação da terapia ocupacional social pode, junto aos sujeitos da intervenção, fomentar essa direção.

Além do já dito, o que denominamos anteriormente como categorias: a violência, de Kosik (2002)Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra., a suspensão, de Heller (2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra., 2016bHeller, A. (2016b). Sociología de la vida cotidiana. México: El sudamericano.), e a criação, de Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática., são formulações que vislumbram movimentos potentes – práxis para romper com a alienação e revolucionar a vida cotidiana.

Baseando-se nesses aportes, como a seguir discutido, arriscamo-nos a usar essas categorias num percurso para o pensar/fazer terapêutico-ocupacional social, colocando-as em lugar de relevância para a realização de uma práxis profissional perfilada para a antiopressão e para a libertação, no sentido freireano.

Violência – justa raiva e a indignação (o ódio que pode mover)

Kosik (2002)Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra. pontua que a transformação da vida cotidiana alienada só é possível num processo histórico em que se arranca a intimidade imediata da cotidianidade da experiência acrítica e supostamente natural, superando aquilo que limita o conhecimento da realidade concreta (da essência das coisas). “Para que o [ser humano] possa descobrir a verdade da cotidianidade alienada, deve conseguir dela se desligar, liberá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma ‘violência’” (Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra., p. 89).

O pensar/fazer terapêutico-ocupacional social, quanto à produção da violência indignada e que pode mover, visa espaços/experiências em que os sujeitos se deparam com conflitos, podendo, de forma dialogada e vivencial, elaborar a raiva advinda das realidades injustas que os cercam, visibilizando certa indignação, passível de ser trabalhada coletivamente e direcionada.

Isso configuraria uma condução terapêutico-ocupacional social feita de movimentos dialético-críticos, lidando com a cotidianidade em si, que não se manifesta no imediato, num exercício para compreender a essência. A violência exercida pelos sujeitos da opressão é um ato calcado na justa raiva (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP.; Kosik, 2002Kosik, K. (2002). Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra.) e na indignação – que pode produzir movimento direcionado para a liberdade.

Exemplificando, em nossa experiência no trabalho terapêutico-ocupacional social, com os jovens pobres rurais, numa escola rural de São Carlos – SP, utilizando a tecnologia social Oficinas de Atividade, Dinâmicas e Projetos (Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(3), 591-602. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.081.
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), realizamos uma atividade em que esses sujeitos relatavam o que reivindicariam para melhorarem suas vidas. Surgiram relatos como: o desejo por transporte público e lugares para sociabilizar e se divertir; a necessidade de ambulância na Unidade Básica de Saúde; a vontade de ter dinheiro para comer o que se quer e para chegar onde se quer; entre outros que traziam as marcas da vulnerabilidade. Foi interessante notarmos que, com base nas suas próprias enunciações, deparavam-se com necessidades que estavam naturalizadas, tidas como intransponíveis, no sentido de conformidade, de que “é desse jeito mesmo”. Os jovens se questionavam, envolvidos pelo trabalho de mediação realizado, refletindo acerca dos motivos dessas problemáticas que embarreiram suas vidas e não daqueles outros (os “ricos”, em suas palavras), o que, inicialmente, gerava indignação.

Assim, produziu-se certa indignação entre aqueles sujeitos sobre a realidade colocada, realidade referente às experiências individuais, mas que compõem, sobretudo, a vida coletiva daqueles que ali vivem. Observamos a produção de uma raiva, ainda não elaborada em relação ao “que fazer e para onde direcionar” aquele ódio à opressão, a força da violência, produzindo “o meu mais sincero foda-se”, como na Figura 1.

Figura 1
Pichação em um muro no Brasil, autoria desconhecida. Fonte: Pinterest (2021)Pinterest. (2021). 18 pichações totalmente sinceras que farão você querer... [Imagem]. Recuperado em 22 de julho de 2021, de https://www.pinterest.pt/pin/70368812912171429/
https://www.pinterest.pt/pin/70368812912...
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Suspensão – esforço para problematizar de onde se vem e para onde se pode ir (reflexão)

Heller (2016a)Heller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra. reconhece o potencial dos indivíduos para se constituírem como sujeitos particulares e humano-genéricos, unitariamente. Esses aspectos são fragmentados pela manipulação e alienação, sublinhando-se, porém, que os sujeitos têm sua cotidianidade funcionalmente atrelada às chances de liberdade. Possibilidades de libertação se dão com a suspensão das particularidades frente ao humano-genérico e essa suspensão pode ocorrer nas situações em que são mais relevantes a moralidade, o compromisso pessoal e o risco nas decisões da vida cotidiana.

A suspensão da vida cotidiana acontece e, logo, há o retorno à cotidianidade, mas de outra maneira, transformada, sendo a catarse o cume dessa suspensão/elevação. A catarse pode abolir a hierarquia cotidiana espontânea, alienada (forjada na muda coexistência do particular com o genérico), fazendo emergir uma hierarquia consciente (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra.).

Nesse sentido, a práxis da terapia ocupacional social se edifica no tensionamento, junto aos sujeitos, no desvelar que a vida cotidiana tem uma hierarquia espontânea, pautada em papéis sociais alienados, para fomentar reflexões e experiência, um pensar/fazer que viabilize a consciência das contradições e que quer um conduzir da vida que se vive, mesmo dentro dos condicionantes sociais.

Buscar a abolição da hierarquia cotidiana espontânea e alienada imprime uma relação consciente do indivíduo com a generalidade da sociedade e com as contradições que movem as vidas, que pode encontrar seu potencial para transformar “a própria ordenação da cotidianidade numa ação moral e política” (Heller, 2016aHeller, A. (2016a). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra., p.68, grifos da autora).

Na ação terapêutico-ocupacional social, a suspensão pode ser colocada como centro do pensar/fazer, em que a atividade, nos termos da terapia ocupacional, por exemplo, direcione-se a suspender (elevar) a vida cotidiana, ou melhor, um recorte dela, para propor uma leitura crítica sobre o que se vive – num diálogo entre a particularidade do sujeito e as questões coletivas, locais ou não, históricas, políticas, econômicas e culturais.

Recorrendo ao exemplo das Oficinas com jovens pobres rurais, após o momento descrito, quando se produziu certa revolta/indignação, foram propostas atividades e dinâmicas para se pensar sobre as desigualdades sociais mais a fundo, tomando-se a elaboração de um Fanzine, em que se trabalhou com problemáticas advindas de: classismo, racismo, machismo, homofobia, preconceito linguístico, preconceito contra pessoas rurais, capacitismo etc.

Em duplas, os jovens se responsabilizaram por uma dessas problemáticas, que constituiria uma das páginas do fanzine, tendo que responder sobre: O que é essa opressão? Qual é sua história? Quais são os caminhos para o enfrentamento desta [ou daquela] questão? Eles puderam pensar sobre as origens de algumas de suas vivências, entendendo como são constituídos, social e historicamente, diante de opressões, que estruturam suas vidas cotidianas, bem como da sua comunidade e de boa parte da sociedade. Se as pessoas pobres não têm acesso adequado ao transporte público, serviços de saúde, ao alimento desejado e mais, quais são os motivos? Decerto não seria um desejo divino, ou seria? Debate esse que subvertia certa anestesia histórica imposta pelo cotidiano alienado.

O processo de suspensão incitou elaborações como: “Nem tudo é culpa do diabo!” (Figura 2). Superando explicações míticas sobre a realidade socialmente constituída por seres humanos, nas esferas da ética e da política, com a problematização da realidade e ultrapassando a indignação, busca-se compreender de onde essas opressões vêm e para onde se pode ir para subvertê-las, além da raiva que poderia imobilizar. Ou seja, ao percebermos estruturas de produção históricas, entendemos que elas são passíveis de modificações, dentro de um jogo de forças.

Figura 2
Pichação em um muro no Brasil (Juiz de Fora – Minas Gerais), foto enviada por Camila Pimenta para o site Olhe os Muros. Fonte: Olhe os Muros (2021)Olhe os Muros. (2021). Recuperado em 22 de julho de 2021, de https://olheosmuros.com.br/post/152873777237/juiz-de-fora-mg-foto-enviada-por-pimentabacana
https://olheosmuros.com.br/post/15287377...
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Criação permanente – a transformação (ação)

Apoiando-nos em Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática., o cotidiano alienado impossibilita a vida criadora e autônoma, configurando-se como estratégia de manutenção da ordem baseada na opressão, exploração e exclusão de atores que ameaçam desestabilizar o status quo. Nessa cotidianidade, há cisão entre o cotidiano (alienado) e a festa (uma vida voltada para a felicidade, a liberdade), perdendo-se o sentido de “obra” (valor de uso) e tudo se tornando produto (valor de troca) – imperativo do mercado/consumo e da racionalidade instrumental que organiza, programa e domina a vida. “Nessas circunstâncias, operou-se um gigantesco desvio da capacidade criadora. [...] A atividade criadora de obras é substituída por uma passividade contemplativa” (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática., p. 207, grifo do autor).

Por isso, Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática. sinaliza que é na vida cotidiana que devemos operar esforços para o desenvolvimento da consciência humana, focalizando a libertação das práticas de opressão, resgatando, assim, a vida criadora e buscando a revolução cultural permanente, que perpassa a dimensão da transformação da vida, em nível sociocultural e econômico.

A vida criadora se compreende na grandeza do cotidiano, em que os sujeitos se apropriam do corpo, espaço, tempo, desejo e consciência – da criação de um mundo prático-sensível, enquanto obra e não produto (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.).

Na ação terapêutico-ocupacional social, isso pode se dar numa articulação, por estratégias diversas, para que os sujeitos se apropriem, de maneira mais radical possível, dos meios que envolvem arte, técnica, ciência, filosofia, cidadania, crítica ao mundo e ao sentido das coisas. Que se volte para a “[...] capacidade [dos seres humanos] de criar uma obra a partir do cotidiano, dos seus altos e baixos – a possibilidade de fazer da vida cotidiana uma obra, para os indivíduos, os grupos, as classes” (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática., p. 43).

Com severa crítica à ideologia produtivista e instrumental e às lógicas da opressão, a força da intencionalidade é a revolução cultural voltada à reabilitação plena das noções de obra, criação, liberdade, apropriação, valor de uso e ser humano (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.); isso só é possível, tomando-se a indignação que move e o processo de suspensão sobre questões que circunscrevem os espaços e as vivências, visibilizando-se a abertura de caminhos para a antiopressão e a liberdade.

A constituição de criação momentânea na práxis terapêutico-ocupacional social é central, como um momento de elaboração entre aquilo que é indignação e problematização, como espaço de experimentação, vivência e diálogo. Todavia, essa ação precisa estar direcionada (não se restringindo ao plano subjetivo/imediato da ação), para se chegar na criação em sentido lato, de criação permanente – algo que fica, mesmo quando se volta para imersão do dia-a-dia. No fazer/pensar terapêutico-ocupacional, é imprescindível visarmos à vida que acontece lá fora.

Esse é um caminho para criação de outros modos de vida possíveis – em que se recuperam, “[...] frente à lógica irremediável das estruturas, os espaços onde os sujeitos transmutam estruturas em processos e se inserem na história” (Touraine, 1988 como citado em Lobo, 1992Lobo, E. S. (1992). Caminhos da Sociologia no Brasil: modos de vida e experiência. Tempo Social , 4(1-2), 7-15. http://dx.doi.org/10.1590/ts.v4i1/2.84907.
http://dx.doi.org/10.1590/ts.v4i1/2.8490...
, p. 7), operando-se mudanças para criação de destinos e percursos – frente às opressões e possibilidades de liberdade. Empenhamo-nos para que, de algum modo, a criação se torne uma constância na vida cotidiana, para além da vivência terapêutico-ocupacional.

Esse aspecto dialoga com aquilo que Freire (1981Freire, P. (1981). Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) coloca como conscientização, referindo-se à tomada de consciência sobre processos que nos oprimem, como sujeitos individuais e coletivos, mas, mais do que isso, baliza a ação para a transformação da realidade concreta, mesmo dentro dos limites colocados.

Ou seja, na realização do pensar/fazer terapêutico- ocupacional social, por exemplo, são possíveis processos de criação momentâneas nos espaços de encontro/experiências; entretanto, a mira que se coloca é a transformação concreta da vida, fruto de um espaço de criação e de existência livre, no sentido de traçar os limites da vida, mas também das formas de negociá-los, na busca por inédito-viáveis.

Como nos dizeres no muro da Figura 3, vislumbramos os espaços do nosso fazer como momentos de um processo em que os sujeitos elaborem a invasão (com violência e suspensão), com muitas cores da vida cotidiana alienada, para que possam explodir/criar, tingindo novas paredes da vida.

Figura 3
Pichação em um muro no Brasil, autoria desconhecida. Fonte: Tumblr (2021)Tumblr. (2021). Recuperado em 22 de julho de 2021, de https://41.media.tumblr.com/fb5a5ffb71b56da522747ad3b4e086df/tumblr_ns69pnqvG81s40q3fo1_500.jpg
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Ainda seguindo com o exemplo do trabalho realizado com os jovens pobres rurais, entre o momento de violência e da suspensão e criação (momentânea), mirava-se na criação permanente, naquilo que era possível articular entre a demanda do sujeito/grupo e as possibilidades de uma vida mais alargada e intencionada para a criação.

Portanto, nas Oficinas, as atividades referentes à temática projetos de vida traziam para o debate, entre outros temas, o acesso à universidade, desejo de muitos; contudo, era bastante invisibilizado como possibilidade, por serem aqueles jovens de classes populares, a maioria pobre e negra. Assim, tentávamos elaborar os caminhos para subverter essa impossibilidade, trazendo informações sobre universidades públicas (que muitos pensavam ser pagas), direito à Educação Superior, políticas de acesso (envolvendo isenção de taxa de inscrição e políticas de ações afirmativas), bem como políticas de permanência, ligadas à assistência estudantil, nessas instituições. Junto aos jovens, era possível pensar a operacionalização para se buscar a efetivação desse desejo, considerando o engajamento necessário para a criação de inéditos-viáveis, articulando-se um diálogo em que se falasse sobre desejo e esforço/força individual/grupal/familiar, sobre a função daquele espaço escolar em que nos encontrávamos, dos processos de escolarização e da escola em suas vidas – contexto microssocial, mas também sobre a sociedade brasileira, a configuração das forças coletivas e estruturais em cena, numa dimensão macrossocial.

Nesse caso, podemos pensar, apoiado na indignação e na problematização, em possibilidades de transgressão (ainda que restritas), como o acesso à universidade – entendido como um caminho de criação que pode permanecer, voltando-se para destinos mais alargados, formulando conjuntamente subsídios para que os jovens agenciem conflitos e negociações sociais. Foi essencial o trabalho terapêutico-ocupacional social para contribuir no fomento dos diálogos, com destaque ao trabalho articulado entre as Oficinas coletivas, o cuidado singular e territorial, os recursos sociais disponíveis, como a escola, e a dinamização de redes (Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(3), 591-602. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.081.
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.081...
).

Destaca-se que violência, suspensão e criação estão em composição, dizendo, mesmo que separadamente, acerca de processos para a revolução da vida cotidiana, sendo parte do nosso esforço teórico assimilar isso conjuntamente para informar a práxis da terapia ocupacional social.

Essas categorias teórico-metodológicas podem circunscrever um caminho (que é dialético) com proposições interessantes, certamente não prescritivas, para um pensar/fazer da/na terapia ocupacional, dado o seu enraizamento no trabalho prático.

A terapia ocupacional é uma profissão que, diante de muitas dificuldades para a vida acontecer, quer trabalhar com a possibilidade de que ela aconteça melhor; isso só nos parece possível com base na leitura da vida cotidiana e com ações em torno dela, junto aos indivíduos e coletivos perpassados pelos processos de opressão. Trate-se, enfim, de uma ação que caminha para a práxis endereçada ao combate das opressões – voltada para a antiopressão, intencionada para a vida com mais liberdade (humanizada), em que se lida com as violências experimentadas, com a suspensão do que parece comum e com a criação de inéditos-viáveis.

Essa tarefa é urgente para toda terapia ocupacional, especialmente para aquela que se quer social, urgência que se reafirma na conjuntura atual, com demandas advindas de um contexto global marcado pela gestão neoliberal do Estado, com a supressão de acesso a bens sociais, pelo neoconservadorismo na cultura, a cercear liberdades conquistadas e por conquistar, somando-se aos inacreditáveis efeitos do SARS-CoV-2 e da pandemia trazida por ele desde o final de 2019, que estreitam a vida dos sujeitos marcados pela desumanização.

  • 1
    Fundamentado em Freire, as opressões se referem a processos edificados em uma estrutura social, que se desenvolve nas relações sociais em diferentes dimensões, micro e macrossociais. Trata-se de uma estrutura social, que “[...] é, em última análise, não a soma (nem também a justaposição) da infraestrutura [base material de produção, relações de produção, forças econômicas] com a supra-estrutura [formas de consciência social, questões ideológicas, artísticas, jurídicas, culturais, políticas, educativas, etc.], mas a dialetização entre as duas” (Freire, 1981Freire, P. (1981). Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 69).
  • 2
    A força na intencionalidade a que recorremos não é ocasional, em diálogo com Freire, pontuamos anteriormente que a práxis como prática da liberdade requer reafirmação constante de sua intenção, “[...] sendo necessário que ela esteja, de forma consciente, orientada para tal [finalidade]” (Farias & Lopes, 2020Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2020). Terapia ocupacional social: formulações à luz de referenciais freireanos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1346-1356. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1970.
    http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoE...
    , p. 1350).
  • Como citar: Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2022). Terapia ocupacional social, antiopressão e liberdade: considerações sobre a revolução da/na vida cotidiana. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3100. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoEN234531001
  • Fonte de Financiamento CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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Editado por

Editora de seção

Profa Dra. Patrícia Leme de Oliveira Borba

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2021
  • Aceito
    09 Out 2021
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