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Desafios da coordenação federativa da Política de Assistência Social: o papel dos estados no financiamento

Desafíos de la coordinación federal de la Política de Asistencia Social: el papel de los estados en el financiamiento

Resumo

O artigo analisa o grau, a variação e os determinantes da corresponsabilidade do financiamento da política de assistência social pelos entes estaduais, verificando a contribuição dos mecanismos de coordenação e indução federativa, apontados por vários autores como fatores de sucesso. Com a revisão da literatura sobre federalismo e determinantes da descentralização de políticas sociais no Brasil, realizou-se uma análise documental e de dados quantitativos sobre a configuração e o cofinanciamento realizado pelos Estados, por meio dos Fundos Estaduais de Assistência Social, entre 2000 e 2018. Analisou-se ainda se os mecanismos de indução e coordenação representaram um aumento dos gastos no setor. Os resultados apontaram que, de um lado, eles foram capazes de produzir efeito no conjunto dos estados, mas, de outro, geraram grande heterogeneidade nas responsabilidades federativas entre eles.

Palavras-chave:
Assistência Social; Financiamento; Coordenação federativa

Resumen

Este artículo analiza el grado, la variación y los determinantes de corresponsabilidad del financiamiento de la política de asistencia social por los gobiernos de los estados, verificando si los mecanismos de coordinación e inducción federativa contribuyeron en este proceso, señalados por varios autores como factores de éxito. Con base en la revisión de la literatura sobre el federalismo y los determinantes de la descentralización de las políticas sociales en Brasil, se realizó un análisis documental y cuantitativo de la configuración y cofinanciamiento por parte de los estados a través de los Fondos de los Estados de Asistencia Social, entre 2000 y 2018. Asimismo, se examinó si los mecanismos de inducción y coordinación representaron un aumento del gasto en el sector. Los resultados mostraron que, por un lado, tuvieron un efecto en el conjunto de estados, pero, por otro, generaron una gran heterogeneidad en las responsabilidades federales entre ellos.

:
Asistencia social; Financiación; Coordinación federativa

Abstract

This article analyzes the degree, variation, and determinants of the states’ co-responsibility in financing the social assistance policy. The study verifies whether the mechanisms of coordination and federative induction contributed to this process. Based on a literature review on federalism and determinants of decentralization of social policies in Brazil, we conducted a documentary analysis and examined quantitative data on the states’ configuration and co-financing of social assistance policy using the State Social Assistance Funds between 2000 and 2018. The study explored whether induction and coordination mechanisms contributed to increasing expenditures in the sector. On the one hand, the results showed that these mechanisms have an impact on the states’ financing of social assistance policy. On the other, they generated great heterogeneity among the states regarding their responsibilities in the federal funding arrangement.

Keywords:
Social assistance; Financing; Federative coordination

INTRODUÇÃO

A implementação de políticas públicas em estados federativos tem de lidar com o desafio de combinar a autonomia dos entes com a necessidade de coordenação entre eles. A análise das relações federativas e dos mecanismos de coordenação intergovernamental em qualquer sistema federal é fundamental para a compreensão do alcance e das desigualdades no acesso e na qualidade de políticas sociais universalizantes e descentralizadas.

No caso do Brasil, o Sistema de Proteção Social foi expandido e reconfigurado com base na Constituição Federal de 1988 (CF-1988), pautado na instituição de um amplo rol de direitos sociais e nas diretrizes de descentralização e universalização das ofertas e participação social nos processos decisórios. Destaca-se, para fins do presente trabalho, a inclusão da Política de Assistência Social (PAS) no âmbito da Seguridade Social.

Diversos estudos analisaram o processo de descentralização das políticas sociais brasileiras a partir da redemocratização (ALMEIDA, 1996; ABRUCIO, 2006ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.; ARRETCHE, 2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000., 2006ARRETCHE, M. Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas políticas públicas?Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 11, n. 31, jun. 1996.; FRANZESE e ABRUCIO, 2009FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. A combinação entre federalismo e políticas públicas no Brasil pós-1988: os resultados nas áreas de saúde, assistência social e educação. In: FRANZESE, C. et al. Reflexões para Ibero-América: avaliação de programas sociais. Brasília, DF: Enap, 2009.). Dado que o movimento municipalista ganhou força durante o período, a implementação da diretriz descentralizadora enfatizou as responsabilidades de oferta de serviços sociais pelos municípios, ocorrendo a transferência de funções do governo federal - e, em alguns casos, do estadual - para o municipal ao longo da década seguinte. Assim, os estudos se voltaram principalmente para o desempenho dos municípios quanto ao gasto social e à expansão dos serviços públicos ofertados (GOMES e MACDOWELL, 2000GOMES, G. M.; MACDOWELL, M. C. Descentralização política, federalismo fiscal e criação de municípios: o que é mau para o econômico nem sempre é bom para o social. Brasília, DF: Ipea, TD 706, 2000.; SOUZA, 2004SOUZA, C. Governos locais e gestão de políticas sociais universais. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 27-41, 2004.). Considerando, porém, que o sistema federativo brasileiro se aproxima do modelo cooperativo - haja vista o grande número de competências compartilhadas definidas pela CF-1988 -, o perfil e a efetividade das políticas sociais dependem da participação, da articulação e da prioridade atribuída a cada política pelos três entes federados.

Desse ponto de vista, o papel e a participação dos entes estaduais no arranjo federativo de organização e prestação de serviços sociais no Brasil é ainda objeto de debate. Conforme aponta Souza (2018SOUZA, C. Federalismo e capacidades estatais: o papel do Estado-membro na política de assistência social. In: PIRES, R.; LOTTA, G.; OLIVEIRA, V. E. de(Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília, DF: Ipea, 2018., p. 271), “é grande o desconhecimento sobre o papel dos estados nas políticas sociais, especialmente se comparado às demais esferas de governo”. Assim, é relevante aprofundar a compreensão do papel desempenhado pelos entes estaduais nesse campo.

No caso da PAS, o processo de descentralização e de institucionalização dessa política se deu tardiamente, em comparação com outras políticas sociais, como saúde e educação (ALMEIDA, 1996ALMEIDA, M. T. Federalismos e políticas sociais. In: AFFONSO, R. B. A.; SILVA, P. L. B (Orgs.). Descentralização e políticas sociais. São Paulo: Fundap, 1996.; ARRECTHE, 2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000.; PALOTTI e COSTA, 2011PALOTTI, P. L. M.; COSTA, B. L. D. Relações intergovernamentais e descentralização: uma análise da implementação do Suas em Minas Gerais. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 211-235, jun. 2011.). Análises sobre esse processo têm apontado para a importância do sistema nacional da assistência social, da formulação e coordenação desempenhadas pelo governo federal e seus efeitos sobre a ampliação da implantação de serviços, bem como do fortalecimento de capacidade institucional dos entes subnacionais (ALMEIDA, 1996ALMEIDA, M. T. Federalismos e políticas sociais. In: AFFONSO, R. B. A.; SILVA, P. L. B (Orgs.). Descentralização e políticas sociais. São Paulo: Fundap, 1996.; ARRETCHE, 2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000. e 2006ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. In: SARAIVA, E; FERRAREZI, E. (Orgs.). Políticas públicas: coletânea. Brasília, DF: Enap, 2006.; FRANZESE e ABRUCIO, 2009FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. A combinação entre federalismo e políticas públicas no Brasil pós-1988: os resultados nas áreas de saúde, assistência social e educação. In: FRANZESE, C. et al. Reflexões para Ibero-América: avaliação de programas sociais. Brasília, DF: Enap, 2009.). No entanto, seus efeitos foram desiguais sobre estados e municípios.

Os municípios têm demonstrado papel ativo e consolidado na implementação de serviços e benefícios socioassistenciais; no incremento de capacidade institucional e na ampliação dos recursos humanos e financeiros; no processo de negociação e articulação federativa (JACCOUD, LICIO e LEANDRO, 2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018.) - enfim, nas responsabilidades federativas dessa política setorial. Já no caso dos estados, os poucos estudos dedicados ao papel desse ente no processo de descentralização e institucionalização da política identificam que a adesão ao Sistema Único de Assistência Social (Suas) por parte dos governos estaduais não foi acompanhada pelo mesmo nível de fortalecimento institucional apresentado pelos entes federal e municipais (SILVA, 2015SILVA, A. L. N. Os estados no Suas: uma análise da capacidade institucional dos governos estaduais na assistência social. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 49, n. 5, p. 167-1192, set./out. 2015.). Ademais, os estados assumiram função coadjuvante (SOUZA, 2018SOUZA, C. Federalismo e capacidades estatais: o papel do Estado-membro na política de assistência social. In: PIRES, R.; LOTTA, G.; OLIVEIRA, V. E. de(Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília, DF: Ipea, 2018.) na formulação e na implementação da assistência social, apresentando baixo comprometimento institucional e orçamentário de suas responsabilidades federativas (JACCOUD, LICIO e LEANDRO, 2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018.).

Os autores explicam que isso se deve ao papel residual e complementar delegado aos estados nas normativas e no desenho da política, com ampla discricionariedade e baixos incentivos políticos para sua atuação. Uma vez que têm obrigação secundária na formulação da política e quase nenhuma na implementação e na execução dos serviços socioassistenciais, os estados recebem baixos créditos políticos pelo desempenho de suas funções.

Entre as responsabilidades federativas assumidas pelos governos estaduais, destaca-se o cofinanciamento da PAS, que deve ser compartilhada entre os três entes federados, seguindo a lógica cooperativa definida pela CF-1988. Na década de 2000, o Brasil vivenciou um período de crescimento dos gastos em assistência social em relação ao total de gastos nas três esferas da federação (KHAIR, 2013KHAIR, A. A questão fiscal e o papel do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.). No conjunto de gastos em assistência social, todavia, Mesquita, Martins e Cruz (2012MESQUITA, A. C. S.; MARTINS, R. F.; CRUZ, T. M. E. Cofinan­ciamento e responsabilidade federativa na política de assistência social. Brasília, DF: Ipea, TD 1724, 2012.) apontaram que a menor participação é dos estados.

Além da importância óbvia do financiamento para a ampliação e a qualificação da implementação de políticas públicas, diversos estudos sobre os mecanismos de coordenação e indução federativa da PAS revelam o modelo de financiamento do Suas como um de seus mecanismos centrais (JACCOUD, LICIO e LEANDRO, 2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018.).

Tendo em vista o contexto brevemente exposto e visando contribuir para compreender os motivos pelos quais os estados têm assumido um dever residual e coadjuvante na implementação do Suas, o presente artigo busca analisar o grau, a variação e os determinantes da corresponsabilidade do financiamento no âmbito da política de assistência social pelos entes estaduais. Foram utilizados, como subsídios teóricos, estudos sobre o processo de descentralização das políticas sociais no Brasil e, como chave analítica, os conceitos de coordenação e indução federativa, com ênfase na PAS.

A DESCENTRALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E A CONFORMAÇÃO DE SEU MODELO DE FINANCIAMENTO

No campo das políticas sociais, os processos de descentralização, como forma de distribuição de poder, recursos e atribuições entre os entes de uma federação, têm ocupado lugar de destaque na agenda de pesquisa. Hoje, é possível apontar relativo consenso em torno da afirmação de que, mais do que definir um sistema político como federal, unitário, ou classificar uma política como mais ou menos descentralizada, são os arranjos institucionais e os mecanismos de coordenação orientadores de cada política específica que determinam o caráter das relações intergovernamentais, como vem demonstram, entre outros, os trabalhos de Arretche (2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000., 2006ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. In: SARAIVA, E; FERRAREZI, E. (Orgs.). Políticas públicas: coletânea. Brasília, DF: Enap, 2006.).

Do ponto de vista político-institucional, a CF-1988 inaugurou um novo momento do federalismo brasileiro (ABRUCIO, 2006ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.), marcado pela diretriz de descentralização aliada a uma forte onda municipalista e pela complexificação das relações intergovernamentais. Nesse contexto, a descentralização das políticas sociais foi fortemente influenciada pelo legado prévio das políticas setoriais (ARRETCHE, 2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000.) e pela adoção, por parte do governo federal, de um plano de âmbito nacional que definisse de forma clara como se daria a distribuição das atribuições exclusivas e compartilhadas entre os entes federativos (ALMEIDA, 1996ALMEIDA, M. T. Federalismos e políticas sociais. In: AFFONSO, R. B. A.; SILVA, P. L. B (Orgs.). Descentralização e políticas sociais. São Paulo: Fundap, 1996.). Foram levados em conta ainda mecanismos de coordenação intergovenamental - que podem amenizar os conflitos advindos das formas de atuação competitiva e da barganha política (FRANZESE e ABRUCIO, 2009FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. A combinação entre federalismo e políticas públicas no Brasil pós-1988: os resultados nas áreas de saúde, assistência social e educação. In: FRANZESE, C. et al. Reflexões para Ibero-América: avaliação de programas sociais. Brasília, DF: Enap, 2009.) - e de indução, fundamentais num contexto de crescimento da autonomia dos entes subnacionais, que precisam ser estimulados para adesão aos processos de transferência de funções na gestão e na execução de políticas sociais (ARRECTHE, 1996ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.).

Ademais, a literatura aponta que o modelo de federalismo fiscal adotado a partir da CF-1988 também influenciou o processo de descentralização das políticas sociais, definindo o modo como os recursos fiscais e tributários devem ser repartidos entre os entes, possibilitando (ou não) que todos obtenham uma capacidade de financiamento compatível com suas novas responsabilidades (ARRETCHE, 2010ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.; REZENDE, 2010REZENDE, F. Federalismo fiscal: em busca de um novo modelo. In: OLIVEIRA, R. P. de.; SANTANA, W. (Orgs.). Educação e federalismo no Brasil: combater as desigualdades, garantir a diversidade. Brasília, DF: Unesco, 2010.). Quanto à repartição das receitas, observou-se o fortalecimento da capacidade de arrecadação de estados e municípios pelas mudanças na autoridade tributária de cada ente e, principalmente, pela distribuição de receitas realizadas pelas transferências intergovernamentais constitucionais.

Seus efeitos, todavia, são limitados, pois as transferências contribuem para diminuir os desequilíbrios inter-regionais, mas em nível intrarregional tendem a favorecer os municípios de pequeno porte, não necessariamente os mais pobres (GOMES e MACDOWELL, 2000). Soma-se a isso que, ao longo dos anos 1990, os estados sofreram perdas significativas na partilha da receita, que limitam hoje sua capacidade de influência e intervenção no desenvolvimento de políticas públicas em nível local ou regional (MONTEIRO NETO, 2013MONTEIRO NETO, A. Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações no cenário atual. Rio de Janeiro: Ipea,TD 1894, 2013.).

A CF-1988 não incluiu um projeto claro de redistribuição dos encargos para estados e municípios, o que fez com que estes não assumissem de imediato suas atribuições no processo de descentralização das políticas sociais. Para reverter isso, a União desenvolveu estratégias importantes, como o fortalecimento da regulação nacional e a criação das transferências federais condicionadas (ARRETCHE, 2005ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. In: SARAIVA, E; FERRAREZI, E. (Orgs.). Políticas públicas: coletânea. Brasília, DF: Enap, 2006.) - estas tiveram um duplo efeito: estimularam a adesão dos governos subnacionais às políticas sociais descentralizadas e apresentaram resultados redistributivos expressivos, ainda que não suficientes para contornar as desigualdades territoriais estruturais do país.

Assim, as transferências intergovernamentais podem ser vistas como mecanismos de coordenação estratégicos no processo de descentralização das políticas sociais, além de agir como fator de fortalecimento da capacidade institucional desses entes. Ademais, a crise fiscal enfrentada pelo Brasil durante o período de redemocratização também é apontada como importante condicionante da transformação do sistema federativo (ALMEIDA, 1996ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.). Após 1988, os constrangimentos econômicos, somados à perda de recursos pela União ocasionada pela descentralização fiscal, foram preponderantes, de modo que Abrucio (2005ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010., p. 194) escreve que o governo federal, no início da década de 1990, procurou transformar a descentralização num jogo de repasse de funções, intitulado à época operação desmonte.

No caso da assistência social, Almeida (1996)ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006., Arrecthe (2000)ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000. e Palotti e Costa (2011PALOTTI, P. L. M.; COSTA, B. L. D. Relações intergovernamentais e descentralização: uma análise da implementação do Suas em Minas Gerais. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 211-235, jun. 2011.) dizem que o processo de descentralização e de institucionalização dessa política se deu tardiamente, em comparação com outras políticas sociais, como saúde e educação. Isso se deveu, em especial, ao legado anterior do setor, marcado pelo uso clientelista das intervenções sociais para com a população e como “moeda de troca” entre os governos locais e centrais, que tenderam a dificultar a superação de práticas de barganha política entre os entes federados.

Arretche (1996ARRETCHE, M. Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas políticas públicas?Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 11, n. 31, jun. 1996., p. 47) ressalta que as bases federativas do Estado brasileiro impactaram o processo de descentralização das políticas sociais, uma vez que, “resguardados pelo princípio da soberania, Estados e/ou municípios assumem a gestão de políticas públicas sob a prerrogativa da adesão, precisando, portanto, ser incentivados”. Além disso, o sistema político brasileiro partidário e competitivo tende a estimular conflitos intergovernamentais e aumentar as políticas sociais como instrumento de barganha política. Assim, a responsabilidade pública pela gestão da PAS se tornou um dos elementos de barganha. Nesse sentido, cada esfera busca minimizar seus custos, transferindo-os para os outros entes, e maximizar seus benefícios, entendidos como ganhos políticos gerados pela oferta das ações à população. A criação de estratégias para induzir a adesão dos entes à política adquire uma função central para seu sucesso. Dessa forma, devem-se fortalecer as funções do nível central, e não seu esvaziamento, como poderia ser esperado ao realizar-se a repartição de funções entre os entes federados.

Tendo em vista os argumentos identificados na literatura, tem-se que o desenho das relações intergovernamentais ganha destaque em muitos estudos sobre políticas sociais, como no caso da PAS. São apontados como fatores centrais o papel de coordenação e indução assumido pelo governo federal, a instituição de um sistema nacional de política pública, o fortalecimento da regulação nacional e a criação das transferências federais condicionadas - estas se transformaram num importante mecanismo de indução da adesão dos governos subnacionais, como no caso da PAS, que será discutido adiante. Assim, serão abordados os mecanismos de coordenação estratégicos no processo de descentralização da PAS e sua relação com o modelo de financiamento instituído.

MECANISMOS DE INDUÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E SUA RELAÇÃO COM O MODELO DE FINANCIAMENTO

Desde a CF-1988, em seu art. 204, estava claro que a assistência social deve se organizar com base nas diretrizes de participação popular e descentralização político-administrativa, “cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social”. Somente com a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), em 1993, porém, é que foi instituída uma proposta mais clara de reordenamento das funções entre os três níveis de governo. Tal lei definiu as bases de organização e operacionalização da política, avançando na definição das responsabilidades dos entes federativos. Seu modelo descentralizado explicitou a clara opção pela municipalização, ao priorizar o município como lócus central da execução dos serviços socioassistenciais, e definiu uma nova institucionalidade, em que foi delegado aos estados uma função residual (ARRETCHE, 2000ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: Fapesp, 2000.).

Antes da redemocratização, o financiamento da assistência social era caracterizado como sua forma de gestão e de operacionalização - a assistência social era um setor de ações fragmentadas e descontinuadas, centralizado no âmbito federal e baseado na lógica convenial. Visto que a maior parte das ofertas era realizada por entidades filantrópicas e religiosas, o aporte de recursos nas ações assistenciais consistia majoritariamente no repasse de recursos para essas entidades por meio de convênios. As intervenções assistenciais realizadas pela administração pública eram poucas e desarticuladas, alternando entre ações centralizadas em nível federal ou superpostas em nível subnacional, por falta de uma política nacional que lhes conferisse coordenação ou unidade.

A transformação do financiamento dessa política foi iniciada com a CF-1988 e com a publicação da Loas em 1993, que definiram diretrizes para a adequação do financiamento ao novo conceito de proteção social e ao novo modelo de gestão e execução proposto para a área. Destacam-se as diretrizes de instituição do comando único da gestão da assistência social, inclusive dos recursos, e do caráter compartilhado do financiamento, em que os três entes federados devem contribuir para o custeio de serviços e benefícios.

Uma das inovações no financiamento trazida pela Loas foi a vinculação, no caso da União, do repasse de recursos para os entes subnacionais à instituição em seu âmbito dos instrumentos de gestão - o conselho, o plano e o fundo de assistência social, conhecido como CPF. Inspirado no modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), o CPF se tornou um importante mecanismo de indução da adesão dos entes subnacionais à PAS, por meio da estratégia de habilitação de estados e municípios.1 1 Iniciado com a NOB 1997, foi com o Suas e a NOB 2005 que as regras e os incentivos de habilitação ficaram mais claros, por meio da definição de níveis de gestão vinculados ao porte populacional e a mecanismos de gestão, impulsionando a descentralização em curso.

Mais de uma década depois, a criação da Política Nacional de Assistência Social (Pnas), em 2004, bem como a aprovação da Norma Operacional Básica (NOB), em 2005, e da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, em 2009, tiveram um papel fundamental para delimitar o escopo das ofertas de assistência social e definir regras e procedimentos de gestão necessários à sua operacionalização. A partir daí, avançou-se na consolidação do modelo de financiamento do setor. Essas normativas estabeleciam as bases institucionais para a formação do Suas. A Pnas e a NOB 2005 detalharam as funções dos entes nacional e subnacionais no processo de implementação do Suas. Aos municípios, coube implantar as unidades estatais de promoção dos serviços de proteção social - os Centros de Referência de Assistência Social, gerir a rede de serviços ofertados por entidades socioassistenciais e cofinanciar as ofertas. À União, coube dar as diretrizes gerais do sistema, além de cofinanciar e realizar apoio técnico aos entes estaduais. Aos estados, caberia cofinanciar e realizar apoio técnico e capacitação para os entes municipais, bem como implantar serviços socioassistenciais de caráter regionalizado - no caso dos municípios com pequena população, cuja demanda não justificasse a implantação de serviços locais.

A Pnas e a NOB 2005 promoveram uma redefinição das bases do financiamento, que possibilitava sua adequação ao modelo de gestão proposto pelo Suas. Tavares (2009TAVARES, G. de C. O financiamento da política de assistência social na era Suas. In: MDS; UNESCO. Concepção e gestão da proteção social não contributiva no Brasil. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2009.) identifica que foi com a instituição das bases para a organização da assistência social como um sistema único na Pnas que se inaugurou a nova fase. Assim, o objetivo do modelo de financiamento passou a ser a efetiva aplicação de recursos financeiros para custear ofertas socioassistenciais bem-delimitadas e continuadas. Outro ponto importante foi a maior clareza na definição das responsabilidades dos entes subnacionais no cofinanciamento das ofertas e na sua forma de operacionalização. O cofinanciamento, operacionalizado por meio de transferências regulares e automáticas - ou seja, a despeito da celebração de instrumento jurídico ou congênere -, com valores predefinidos e previsibilidade, passou a ser essencial ao modelo da política. A definição do valor e de municípios e estados beneficiados deveria se basear em diagnósticos e indicadores sociais, a fim de construir intervenções mais efetivas para combater as desigualdades sociais e fortalecer a assistência social como política de Estado. Ademais, o cofinanciamento passou a ser organizado de acordo com pisos específicos para os serviços de proteção social básica, proteção social especial de média e de alta complexidade.

Em 2011, as inovações trazidas pela experiência de implantação do Suas foram incorporadas à Loas e levaram à pactuação de uma nova NOB em 2012. Entre as principais alterações trazidas na Loas no financiamento, destaca-se a ênfase no cofinanciamento e na cooperação entre os entes (art. 6º); na modalidade de transferências automáticas fundo a fundo, importante para garantir a previsibilidade dos recursos; e a criação de cofinanciamento para o aprimoramento da gestão.2 2 A criação dos Índices de Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família (IGD-M e IGD-E) e do Suas (IGD-Suas) foi um importante indutor de melhorias na gestão do sistema ao condicionar o repasse de recursos federais ao desempenho dos indicadores de gestão. Já a NOB 2012 delimitou o papel de cada ente federado no cofinanciamento, conferiu maior flexibilidade aos entes subnacionais por meio dos blocos de financiamento, deu destaque à pactuação de prioridades e metas para instituição de um novo regime de colaboração entre os entes - por meio do apoio técnico e financeiro -, bem como detalhou aspectos operacionais voltados ao aprimoramento dos fundos de assistência social e ao papel dos gestores (BRASIL, 2013BRASIL. Norma Operacional Básica do Suas 2012. Brasília, DF: MDS, 2013.).

A integração entre o processo de indução de adesão ao sistema (habilitação), a criação de institucionalidades (CPF) e a instituição do cofinanciamento via transferências continuadas fez com que fossem combinadas estratégias de indução do fortalecimento da capacidade de gestão e de incentivo financeiro, que agiram como catalisadores da adesão dos municípios ao SUAS. Entre 2003 e 2009, 99,4% dos municípios brasileiros e dos 26 estados - mais o Distrito Federal - já haviam realizado a adesão. O crescimento vertiginoso da rede socioassistencial observado entre 2005 e 2016 - por exemplo, os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) passaram de 4.195 unidades, em 2007, para 8.240, em 5.225 municípios, em 2016, com uma cobertura territorial de cerca de 93,8%3 3 Disponível em: <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/publicacao_eletronica/muse/Censo2014/equipamentos.html>. Acesso em: 17 jun. 2020. - e dos recursos federais, que aumentaram 168,9% entre 2000 e 2012 (KHAIR, 2013KHAIR, A. A questão fiscal e o papel do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.), também parecem apontar para o sucesso entre a combinação de estratégias de indução com incentivo financeiro.

Do ponto de vista dos mecanismos de coordenação federativa, Jaccoud, Licio e Leandro (2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018.) acrescentam a importância do fortalecimento da regulação da PAS para a sua conformação. Foi somente com a aprovação das NOBs que tais mecanismos federativos foram se instituindo na PAS, contribuindo para o fortalecimento das relações intergovernamentais:

A definição de papéis e responsabilidades dos entes federados ganhou corpo na agenda, assim como a pauta de articulação e coordenação intergovernamental. A gestão compartilhada foi adotada como referência para a organização das ofertas, materializada com a estruturação de um “sistema único”, agregando as três esferas de governo. A partilha decisória e a criação de instrumentos de regulação e de espaços de pactuação intergovernamentais foram valorizadas como estratégias para promover a coordenação, incentivar a cooperação e impulsionar a adesão e o cumprimento dos objetivos gerais da política (JACCOUD, LICIO e LEANDRO, 2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018., p. 24).

Franzese e Abrucio (2009FRANZESE, C.; ABRUCIO, F. L. A combinação entre federalismo e políticas públicas no Brasil pós-1988: os resultados nas áreas de saúde, assistência social e educação. In: FRANZESE, C. et al. Reflexões para Ibero-América: avaliação de programas sociais. Brasília, DF: Enap, 2009.) ressaltam os mecanismos de indução da descentralização criados pelas NOBs, seguindo os passos do SUS. Além do estabelecimento de níveis de gestão, do processo de habilitação e de critérios e instrumentos de transferências de recursos fundo a fundo, eles destacam a implementação de instâncias de articulação intergovernamental horizontais - fóruns de secretários municipais e estaduais - e verticais - comissões intergestores -, que favorecem a consolidação de um padrão de articulação federativa inovador, não previsto na CF-1988.

Os principais mecanismos de coordenação federativa criados no Suas são as instâncias de negociação e pactuação: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), em nível nacional, e as Comissões Intergestores Bipartite (CIB), em âmbitos estaduais. Conforme definido na NOB Suas 2005, todos os aspectos operacionais do processo de descentralização devem ser objeto de pactuação pelas comissões, entendida como fruto de negociações estabelecidas com anuência das esferas de governo envolvidas, que pressupõem a concordância de todos os envolvidos (e não votação) e a publicização das decisões em forma de resoluções. Fazem parte dessas comissões colegiados ou fóruns de representantes de gestores municipais, no caso de CIT e CIBs, e estaduais, no caso da CIT.

Outro mecanismo de checks and balances (ABRUCIO, 2006ABRUCIO, F. L. Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil. In: FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.) criado no Suas corresponde ao Pacto de Aprimoramento. Efetivado na CIT desde 2007, tal pacto define prioridades para estados e municípios quanto aos rumos da PAS, a fim de aprimorar suas ofertas e gestão. As prioridades são traduzidas em metas quantificáveis, com prazos e formas de monitoramento definidos.

No que tange ao financiamento, nessas instâncias deve haver a pactuação de critérios de elegibilidade e partilha para definição de valores e tipos de cofinanciamento destinados aos municípios. Todos os recursos novos incorporados ao orçamento da União e dos estados devem ser levados para discussão acerca dos critérios para expansão da cobertura do financiamento. Após a pactuação entre os gestores, tais critérios devem passar pela aprovação dos respectivos conselhos de assistência social.4 4 Os conselhos de assistência social são instâncias importantes de controle social que, por se diferenciarem dos mecanismos ligados às relações estritamente federativas, não foram incluídos nesta análise.

Jaccoud, Licio e Leandro (2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018.) destacaram que o financiamento correspondeu a uma das principais pautas da agenda da CIT e do pacto de aprimoração dos estados no período de 2005 a 2016, tais como a definição de critérios de elegibilidade e partilha dos recursos e a ampliação do cofinanciamento, respectivamente. No entanto, o estudo concluiu que os entes federados apresentaram diferenças quanto à integração ao Suas e à atuação na instância nacional de pactuação. Quanto ao papel dos estados, o municipalismo refletiu uma divisão de responsabilidades em que os estados se viram limitados na oferta direta de serviços. Isso parece ter contribuído para que os municípios assumissem uma atribuição ativa nos processos de pactuação nacional, em contraposição aos estados, que se limitaram a uma função residual no Suas, refletida tanto numa atuação menos ativa no processo decisório compartilhado quanto numa adesão limitada a pautas estratégicas pactuadas na CIT, como é o caso do processo de regionalização da oferta dos serviços de média e alta complexidade e dos pactos de aprimoramento de gestão (JACCOUD, LICIO e LEANDRO, 2018JACCOUD, L; LICIO, E. C.; LEANDRO, J. G. Implementação e coordenação de políticas públicas em âmbito federativo: o caso da Política Nacional de Assistência Social. In: XIMENES, D. de A. (Org.). Implementação de políticas públicas: questões sistêmicas, federativas e intersetoriais. Brasília, DF: Ipea, Enap, 2018., p. 26).

A tendência foi o fortalecimento das relações entre União e municípios e dos governos locais, por meio de uma nova burocracia e de clientelas. Restou aos estados um papel residual na implementação da PAS. Tendo em vista que o modelo de coordenação federativa do Suas está fortemente entrelaçado ao seu modelo de financiamento e que o cofinanciamento corresponde a uma das principais responsabilidades que restaram aos entes estaduais na PAS, serão analisados a composição e o funcionamento dos fundos estaduais de assistência social no Brasil - importante instrumento do financiamento do Suas -, o aporte de recursos pelos estados e o cofinanciamento aos municípios. Espera-se, assim, verificar o grau de responsabilidade federativa assumido pelos entes estaduais.

METODOLOGIA

Dados os objetivos do trabalho, pretende-se verificar se a forte regulação e a instituição de mecanismos de coordenação e indução federativa do Suas levaram ao aumento da responsabilidade pelo financiamento por parte dos estados. Para isso, primeiro será analisada a conformidade dos fundos de assistência social em relação aos critérios definidos pelas normativas e pelos instrumentos de pactuação do Suas.

A análise da conformação dos Fundos Estaduais de Assistência Social (Feas) partiu da revisão das normatizações atuais relativas ao papel dos estados no financiamento e da engenharia operacional do financiamento nesses entes, com base no exame dos dados sobre a operacionalização desses fundos coletados por meio do Censo Suas de 2010 a 2018. O Censo Suas corresponde a um formulário eletrônico, baseado em autodeclaração, aplicado anualmente pelo Ministério da Cidadania para monitoramento dos serviços, da gestão e dos conselhos de assistência social, instituído pelo Decreto 7.334/2010.

Em seguida, a análise da evolução do gasto em assistência social considera que a conformidade da constituição dos fundos de assistência social em relação aos critérios definidos pelas normativas do Suas implicaria o crescimento do volume de recursos no setor. Foram analisados dados do gasto estadual na função assistência social disponibilizados pelo Finbra/Tesouro Nacional (despesa empenhada). Os dados do Finbra trazem apenas o gasto agregado por função orçamentária.5 5 Outra ressalva é a imprecisão quanto à classificação dos recursos da função assistência social, como apontam Mesquita, Martins e Cruz (2012), agravada pela pulverização histórica dos recursos da PAS em diferentes órgãos. Assim, não foi possível distinguir o montante de recursos efetivamente executado nos fundos de assistência social e os valores destinados ao cofinanciamento de municípios.

Por fim, retornamos aos dados do Censo Suas para analisar se a conformidade dos Feas e o aporte de recursos no setor contribuíram para a efetivação da corresponsabilidade de cofinanciamento, verificada por meio do repasse de recursos financeiros na modalidade fundo ao fundo para os municípios sob sua jurisdição.

CONFORMAÇÃO DOS FUNDOS ESTADUAIS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

Os fundos de assistência social se tornaram um dos principais instrumentos de gestão para essa política e a institucionalização do modelo de financiamento do Suas. O financiamento compartilhado entre os três entes passou a ser operacionalizado por meio dele, utilizando a estratégia de transferências intergovernamentais da União para estados e municípios e dos estados para municípios sob sua jurisdição.

Os fundos de assistência social devem ser constituídos como fundos especiais (Lei nº 4.320/1964). Esse dispositivo vincula as receitas alocadas nos fundos à realização de determinados objetivos ou serviços, garantindo que os recursos repassados serão utilizados para o que se destinam. Determina ainda a criação de uma dotação consignada na Lei de Orçamento Anual, o que contribui para a transparência e o controle social dos recursos.

A NOB Suas 2012 definiu uma série de critérios relativos à alocação da totalidade de receitas e despesas relativas ao conjunto de ações de assistência social no fundo; à definição do órgão da administração pública responsável pela coordenação dessa política setorial como gestor do fundo, sob orientação e controle dos respectivos conselhos; à constituição do fundo como unidade orçamentária; ao cadastro do fundo no CNPJ na condição de matriz. A efetivação desses critérios será analisada a seguir.

Um dos fatores relevantes entre as diretrizes de gestão do setor é o comando único das ações socioassistenciais e a autonomia decisória do gestor da pasta, em termos administrativos e financeiros. Como aponta Sposati (2016SPOSATI, A. Financiamento e política pública de assistência social. Revista Parlamento e Sociedade, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 103-120, jul./dez. 2016.), existe a precedência da visão do setor como atividade e a resistência em reconhecê-la como política pública.

Em relação à gestão dos Feas, na maior parte dos estados a pasta da assistência social é compartilhada com outras políticas setoriais, sendo observado crescimento entre os anos de 2010, com 16 estados, e 2018, com 24 estados. Isso, contudo, não significou que as secretarias não tivessem criado um setor formalizado específico para a gestão orçamentária e financeira nem que o gestor da pasta da PAS não obtivesse controle dos gastos no setor. Em 2010, 22 órgãos gestores estaduais tinham o setor implantado na estrutura formal e de maneira informal. Em 2018, todos os estados tinham o setor constituído, ainda que o número de formalizados tenha caído para 17. Também não implicou perda da autoridade de gestão do fundo pelo gestor da pasta da assistência social - em 2010, em 20 estados o ordenador de despesas era o(a) secretário(a) estadual do setor; em 2018, esse número cresceu para 22. Tais dados sobre a formalização do setor para a gestão dos recursos e a definição dos gestores da pasta como ordenadores de despesa são indicativos de que a PAS tem relativa importância na estrutura organizacional do poder executivo estadual.

Em relação à operacionalização do financiamento, em 2014, todos os 26 estados alcançaram o cumprimento da obrigação de inscrição de CNPJ matriz do Feas. No caso de o fundo se constituir como unidade orçamentária, em 2010, os Feas de 25 estados, com exceção de Goiás, atendiam ao dispositivo. Goiás cumpriu a diretriz em 2011. Apesar de todos os Feas serem uma unidade orçamentária, isso não correspondeu ao cumprimento da diretriz de execução da totalidade dos recursos aplicados na assistência social no fundo. Pelo contrário, correspondeu ao fator de maior fragilidade do financiamento estadual. Em 2010, treze estados informaram executar todo o orçamento no Feas; os outros treze, parcialmente. Em 2018, esse cenário havia mudado pouco: somente treze estados informaram executar a totalidade do orçamento no fundo, enquanto onze executavam parcialmente e dois não executavam: Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

Essa fragilidade foi identificada por Mesquita, Martins e Cruz (2012MESQUITA, A. C. S.; MARTINS, R. F.; CRUZ, T. M. E. Cofinan­ciamento e responsabilidade federativa na política de assistência social. Brasília, DF: Ipea, TD 1724, 2012.), que apontam fundos paralelos ao fundo de assistência social como um dos principais desafios no campo da gestão financeira da PAS. Isso demonstra que não se alcançou a consolidação de um orçamento único por esfera de governo que reúna os recursos destinados à área, o que pode fragilizar a autonomia de gestão e o comando único pelo gestor. Ademais, a dispersão dos recursos dificulta o controle social da política, uma vez que os fundos devem ser submetidos à deliberação dos conselhos.

MONTANTE DO GASTO ESTADUAL EM ASSISTÊNCIA SOCIAL

Em 2009, Mesquita, Martins e Cruz (2012MESQUITA, A. C. S.; MARTINS, R. F.; CRUZ, T. M. E. Cofinan­ciamento e responsabilidade federativa na política de assistência social. Brasília, DF: Ipea, TD 1724, 2012.) identificaram que os entes estaduais aportaram menos recursos no setor - a União representou 78% do gasto público em assistência social, enquanto municípios e estados responderam por 14% e 8%, respectivamente. A elevada participação do nível federal está relacionada sobretudo ao custeio dos benefícios monetários: BPC e Programa Bolsa Família. Excluindo esses gastos - não obstante sua importância para a redução da desigualdade e da pobreza no Brasil -, são os municípios que mais alocam recursos em serviços e benefícios eventuais, respondendo por 49,6% do gasto público total na área em 2009. Os estados detiveram a segunda maior participação, com 27,5%, e a União contribuiu com 22,9%.

Para identificar a evolução dos gastos estaduais na PAS, foco deste estudo, primeiro foi realizada uma análise do gasto financeiro classificado na função assistência social (despesa empenhada), junto com a análise do percentual das despesas classificadas nessa função em relação ao gasto geral realizado pelos 26 estados no período de 2005 a 2018.

A tabelaabaixo mostra que, de modo geral, o gasto com assistência social representa um percentual baixo em relação ao total, sendo o valor mínimo observado de 0,27%, em 2014, e máximo de 2,21%, em 2013. Houve pequena oscilação do gasto no setor, entre 0,77% e 0,72%, entre 2005 e 2012, sendo o percentual mínimo observado em 2008, com 0,65%. De 2013 a 2018, observa-se grande variação na proporção de gasto, havendo uma queda abrupta em 2014 e 2016. Entre o início e o fim do período analisado, vemos que o gasto proporcional na função assistência social caiu, passando de 0,77%, em 2005, para 0,65%, em 2018. Em termos absolutos, houve variação positiva de crescimento anual entre o período de 2005 a 2011, apresentando perdas relativas a partir de 2012 - com exceção de 2013, em que há uma discrepância nos valores de gasto total e gasto no setor. Não obstante, o gasto no último ano correspondeu a 373,67% do gasto do início da série.

Tabela 1
Evolução da despesa empenhada na função assistência social em valores absolutos e em percentual em relação ao gasto total nos 26 estados brasileiros, de 2005 a 2018

A análise do gasto em assistência social é útil para mostrar a evolução das despesas e o esforço orçamentário na área, porém o padrão do gasto pode não acompanhar as alterações demográficas. A análise do gasto per capita pode auxiliar na compreensão sobre se o montante alocado no setor se aproxima do atendimento às necessidades da população e indica o esforço realizado pelo governo na provisão dos serviços públicos (OLIVEIRA, 1999OLIVEIRA, F. A. de. Evolução, determinantes e dinâmica do gasto social no Brasil (1980-1996). Brasília, DF: Ipea, TD649, 1999.).

Os dados abaixo revelam que o gasto em assistência social per capita no período cresceu, passando de R$ 24,11, em 2005, para R$ 79,73, em 2018. Esse crescimento, entretanto, acompanhou o aumento do gasto geral per capita dos estados, o que pode indicar que se tratou de uma variação geral da execução de recursos, e não necessariamente de um ganho para o setor.

Tabela 2
Evolução do gasto em assistência social e gasto total per capita nos 26 estados brasileiros de 2005 a 2018

É interessante também avaliar a variação do gasto entre os estados da federação, conforme apontado na literatura (SILVA, 2015SILVA, A. L. N. Os estados no Suas: uma análise da capacidade institucional dos governos estaduais na assistência social. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 49, n. 5, p. 167-1192, set./out. 2015.; SOUZA, 2018SOUZA, C. Federalismo e capacidades estatais: o papel do Estado-membro na política de assistência social. In: PIRES, R.; LOTTA, G.; OLIVEIRA, V. E. de(Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília, DF: Ipea, 2018.). A tabela abaixo aponta que existem diferenças entre as regiões brasileiras. Além de ser a região com maior percentual de gasto no setor em relação ao total, o Norte observou um crescimento do gasto em AS entre 2005 e 2018 (0,56%), Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste tiveram quedas e a Sul manteve quase a mesma proporção (cresceu 0,04%).

Comparando os gastos realizados na AS à média percentual de pessoas vulneráveis à pobreza, público potencial para essa política social, observa-se que as regiões Norte e Nordeste, que concentram mais população nessa situação, também têm os maiores gastos proporcionais. O Centro-Oeste e o Sudeste apresentam médias semelhantes de pessoas vulneráveis à pobreza, porém a primeira gastou proporcionalmente duas vezes mais que a segunda em 2018. Já o Sul e o Sudeste tinham percentuais de gastos semelhantes em 2005. No caso do primeiro, todavia, observou-se uma manutenção da proporção, com pequeno aumento; no do segundo, grande queda, perdendo quase metade de sua importância proporcional em relação ao gasto total.

Tabela 3
Gasto em assistência social por região em 2005 e 2018

A análise dos gastos entre estados aponta para uma grande heterogeneidade. A comparação entre os percentuais de gasto em assistência social nos dois anos mostra que doze estados apresentaram gastos igual ou abaixo da média (0,77%), em 2005, e treze, em 2018 (média de 0,65%). Desses, oito estados mantiveram gastos abaixo da média nesses anos: Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Destacam-se, entre as menores proporções de gastos, Minas Gerais, Mato Grosso e Pernambuco; entre as maiores, Amapá, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Rio Grande do Norte. A maior parte dos estados (17) teve redução de gasto entre 2005 e 2018. Entre os estados que tiveram crescimento, chamam a atenção Maranhão e Pará, com variação de 1,15% e 2,71%, respectivamente.

Gráfico 1
Proporção de gasto em assistência social em relação ao total por estado, em 2005 e 2018

FINANCIAMENTO COMPARTILHADO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: FRAGILIDADES NO COFINANCIAMENTO EM ÂMBITO ESTADUAL

Soma-se à baixa participação dos estados no gasto em assistência social o não cumprimento pela totalidade dos estados da responsabilidade de cofinanciamento por meio de repasses fundo a fundo, que corresponde ao pilar do modelo de financiamento compartilhado do setor. Em 2010, cinco (19,2%) estados informaram ter cofinanciado exclusivamente na modalidade fundo a fundo; dez (38,5%), somente por convênio; oito (30,8%), por meio de ambas; e três (11,5%) estados (Acre, Piauí e Goiás) não realizaram nenhum tipo de repasse para os municípios de sua jurisdição.

Em 2018, pode ser notado um avanço na instituição do repasse fundo a fundo: dos 26 estados, dezoito (69,2%) realizaram o cofinanciamento somente na modalidade fundo a fundo; dois (7,7%) utilizam as duas modalidades; outros dois (7,7%) informaram não ter realizado nenhum tipo de cofinanciamento (Roraima e Amazonas); e quatro (15,4%) não informaram (Acre, Piauí, Rondônia e Tocantins).

Observam-se, no entanto, fragilidades relacionadas à forma de organização, cobertura e regularidade do cofinanciamento. O repasse de recursos pelos estados não abrange a totalidade dos tipos de serviços ofertados pelos municípios nem o total de municípios sob jurisdição de cada um deles. Em 2010, dos 23 estados que realizavam o cofinanciamento, 21 fizeram repasses destinados à proteção social básica; dezesseis, à proteção social especial de média complexidade; doze, à proteção social especial de alta complexidade; e nove, a benefícios eventuais. Em 2018, esse quadro alterou pouco: dezoito estados informaram que repassaram recursos destinados à proteção social básica; dezenove, à proteção social especial de média complexidade; quinze, à de alta complexidade; doze, a benefícios eventuais; e cinco, a incentivo à gestão.

As taxas de cobertura do cofinanciamento estadual em relação ao total de municípios revelam importante melhora de cobertura, apesar de não se consolidar em todos os estados. Em 2010, somente 42% dos municípios brasileiros receberam cofinanciamento fundo a fundo, e 20,4% receberam via convênio dos entes estaduais. Em 2018, os estados informaram que 81% dos municípios eram cofinanciados fundo a fundo e apenas 2% via convênio, sendo que onze estados realizaram repasse fundo a fundo para todos os seus municípios.

Tabela 4
Quantidade de municípios que recebem cofinanciamento de assistência social por estado e modalidade, em 2010 e 2018

CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo analisar o grau, a variação e os determinantes da corresponsabilidade do financiamento no âmbito da PAS pelos entes estaduais. Tendo em vista que os fundos de assistência social são um dos principais instrumentos do financiamento dessa política, fortemente regulada, assumindo função indutora de adesão dos entes subnacionais ao seu modelo, analisou-se a conformação dos Feas frente ao disposto nas normativas e no modelo de financiamento do Suas. De forma geral, observou-se o amadurecimento da conformidade dos Feas, apesar de ainda haver fragilidades na sua operacionalização. Os órgãos gestores estaduais criaram institucionalidades previstas nas normativas do Suas no período analisado, como a instituição de setores formais e informais de gestão financeira e definição dos gestores da pasta como ordenadores de despesas do fundo. Na operacionalização do financiamento, apesar de os Feas serem fundos especiais, isso não implicou a aplicação da totalidade de recursos do setor neles, o que pode indicar a persistência da presença de fundos paralelos, histórico no campo da PAS.

Esperava-se que ao amadurecimento institucional e à conformidade dos fundos corresponderia o aumento do volume de gastos aplicados no setor. Apesar do crescimento dos valores absolutos do gasto na assistência social de 273,67%, os dados do Tesouro Nacional de 2005 a 2018 revelaram queda do esforço orçamentário, de 0,77% para 0,65%. Essa trajetória apresentou grande oscilação, mas os dados consolidados sobre o gasto per capita dos entes estaduais demonstram que as oscilações do gasto no setor, no quadro geral, acompanharam as oscilações do gasto total.

A análise por regiões e por estados, por sua vez, demonstrou, conforme já observado em estudos anteriores (SILVA, 2015SILVA, A. L. N. Os estados no Suas: uma análise da capacidade institucional dos governos estaduais na assistência social. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 49, n. 5, p. 167-1192, set./out. 2015.; SOUZA, 2018SOUZA, C. Federalismo e capacidades estatais: o papel do Estado-membro na política de assistência social. In: PIRES, R.; LOTTA, G.; OLIVEIRA, V. E. de(Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília, DF: Ipea, 2018.), uma grande heterogeneidade na alocação de recursos na PAS entre os estados. Esse resultado aponta que o fortalecimento da conformidade institucional e normativa dos Feas não gerou necessariamente maior execução financeira na política e, por consequência, impactos diretos em ampliação e qualificação. Os dados organizados por regiões mostraram que há diferenças importantes na evolução do gasto proporcional na PAS entre elas, sendo a Norte aquela com maior crescimento (0,56%) e a Nordeste e a Sudeste, com maior redução (-0,29% e -0,27%). É interessante notar que as regiões Norte e Nordeste, com maior concentração de pessoas vulneráveis à pobreza, público em potencial da PAS, apresentaram maior proporção de gastos no setor em relação ao total. Isso pode sugerir que a demanda social parece ter um efeito de incentivo político para que os estados assumam os custos de sua função no cofinanciamento das ofertas socioassistenciais.

Por fim, destaca-se que o amadurecimento institucional dos Feas foi acompanhado pela assunção, por parte dos governos estaduais, de sua responsabilidade pelo cofinanciamento fundo a fundo aos municípios sob sua jurisdição, mas ainda de forma parcial. A despeito de a cobertura ter aumentado consideravelmente - passando de 42% de municípios que receberam repasse fundo a fundo, em 2005, para 81%, em 2018 -, apenas onze estados cofinanciaram a totalidade de seus municípios nessa modalidade em 2018. Mais uma vez, são observadas heterogeneidades entre os entes. Minas Gerais e Mato Grosso, por exemplo, estão entre os estados com os menores gastos proporcionais, mas informaram cofinanciar, desde 2010, todos os seus municípios, enquanto Paraíba e Mato Grosso do Sul apresentaram maiores gastos proporcionais e cofinanciaram todos os municípios em 2018. Já o Maranhão apresentou significativo crescimento da proporção de recursos no setor entre 2005 e 2018 (de 0,49% para 1,64%), mas informou cofinanciar apenas um município em 2018.

Tendo em vista a análise da bibliografia e os resultados empíricos, conclui-se que o Suas conta com importantes mecanismos de coordenação e indução federativas, que levaram à criação de institucionalidade por meio dos Feas. No entanto, levando em consideração que o desenho da PAS delegou papel residual e discricionário aos estados, tais mecanismos geraram efeitos heterogêneos entre eles, destacadamente no desempenho do financiamento, foco do presente artigo. Destaca-se a relevância do desenvolvimento de estudos que aprofundem a compreensão dos motivos pelos quais os estados apresentam desempenhos tão heterogêneos, investigando a literatura sobre a função dos entes estaduais nos contextos federativos. Os custos de implementação versus os baixos retornos políticos esperados, uma vez que cabe aos municípios a implementação da grande maioria dos serviços à população, podem ser variáveis importantes a serem mais exploradas, pois, como apontam os resultados, as regiões com maior concentração de população vulnerável à pobreza apresentaram maiores gastos proporcionais no setor. Seria importante ainda realizar pesquisas futuras sobre a relação entre o fator político-partidário, o volume de investimentos no setor e as responsabilidades federativas, conforme sugerido em estudos anteriores (SILVA, 2015SILVA, A. L. N. Os estados no Suas: uma análise da capacidade institucional dos governos estaduais na assistência social. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 49, n. 5, p. 167-1192, set./out. 2015.; SOUZA, 2018SOUZA, C. Federalismo e capacidades estatais: o papel do Estado-membro na política de assistência social. In: PIRES, R.; LOTTA, G.; OLIVEIRA, V. E. de(Orgs.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília, DF: Ipea, 2018.).

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Iniciado com a NOB 1997, foi com o Suas e a NOB 2005 que as regras e os incentivos de habilitação ficaram mais claros, por meio da definição de níveis de gestão vinculados ao porte populacional e a mecanismos de gestão, impulsionando a descentralização em curso.
  • 2
    A criação dos Índices de Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família (IGD-M e IGD-E) e do Suas (IGD-Suas) foi um importante indutor de melhorias na gestão do sistema ao condicionar o repasse de recursos federais ao desempenho dos indicadores de gestão.
  • 3
    Disponível em: <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/publicacao_eletronica/muse/Censo2014/equipamentos.html>. Acesso em: 17 jun. 2020.
  • 4
    Os conselhos de assistência social são instâncias importantes de controle social que, por se diferenciarem dos mecanismos ligados às relações estritamente federativas, não foram incluídos nesta análise.
  • 5
    Outra ressalva é a imprecisão quanto à classificação dos recursos da função assistência social, como apontam Mesquita, Martins e Cruz (2012), agravada pela pulverização histórica dos recursos da PAS em diferentes órgãos.
  • 6
    Este artigo decorre da pesquisa realizada para dissertação de mestrado de um dos autores, modificada e atualizada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2019
  • Aceito
    28 Maio 2020
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