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Políticas curriculares e qualidade do ensino de ciências no discurso pedagógico de professores de nível médio

Curriculum policies and quality of science education in teachers' pedagogical discourse

Resumos

Investigamos relações entre os sentidos de qualidade atribuídos, por professores de Física, Química e Biologia de duas escolas públicas, à educação científica e aqueles associados às políticas curriculares. Para tal, analisamos processos de recontextualização das políticas curriculares e da qualidade da educação científica no discurso pedagógico dos professores. Ainda que o sentido de formação para o mercado tenha sido associado à qualidade da educação científica pelos professores de ambas as escolas, os processos de recontextualização das políticas acabam moldando seus discursos pedagógicos de forma diferente: enquanto os professores da escola de alto Enem selecionam os conteúdos dos exames oficiais e usam a contextualização para enriquecê-los, os professores da escola de baixo Enem selecionam conhecimentos científicos úteis à realidade concreta dos alunos e contextualizam estes conhecimentos sem reconhecer este processo como garantidor de qualidade. Ao contrário, a contextualização passa a desempenhar o papel de prêmio de consolação.

Ensino de ciências; Ensino Médio; Discurso pedagógico; Currículo; Qualidade do ensino; Escola pública


We investigate relations between the meanings attributed by teachers of Physics, Chemistry and Biology from two public schools to the quality of science education and those associated with curricular policies. To do so, we analyzed re-contextualization processes of curriculum policies and the quality of science education in teachers' pedagogical discourse. Although a market based meaning for training has been associated with the quality of science education by teachers of both schools, the processes of re-contextualization policies end up shaping their pedagogical discourses differently: while high ENEM school teachers select the contents from the official examinations and use contextualization to enrich them, the low ENEM school teachers select some scientific knowledge useful to the concrete reality of the students and contextualize this knowledge without recognizing this process as quality assurance. Rather, contextualization plays the role of a consolation prize.

Science education; High school; Pedagogical discourse; Quality of education; Curriculum; Public school


Roberta Comissanha de CarvalhoI; Flavia RezendeII

ISociedade Educacional Jardim Escola Nosso Lar. Rua Vinte e quatro de Maio, n. 118, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: comissanha@hotmail.com

IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Centro de Ciências da Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes), Laboratório de Tecnologias Cognitivas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Investigamos relações entre os sentidos de qualidade atribuídos, por professores de Física, Química e Biologia de duas escolas públicas, à educação científica e aqueles associados às políticas curriculares. Para tal, analisamos processos de recontextualização das políticas curriculares e da qualidade da educação científica no discurso pedagógico dos professores. Ainda que o sentido de formação para o mercado tenha sido associado à qualidade da educação científica pelos professores de ambas as escolas, os processos de recontextualização das políticas acabam moldando seus discursos pedagógicos de forma diferente: enquanto os professores da escola de alto Enem selecionam os conteúdos dos exames oficiais e usam a contextualização para enriquecê-los, os professores da escola de baixo Enem selecionam conhecimentos científicos úteis à realidade concreta dos alunos e contextualizam estes conhecimentos sem reconhecer este processo como garantidor de qualidade. Ao contrário, a contextualização passa a desempenhar o papel de prêmio de consolação.

Palavras-chave: Ensino de ciências. Ensino Médio. Discurso pedagógico. Currículo. Qualidade do ensino. Escola pública.

ABSTRACT

We investigate relations between the meanings attributed by teachers of Physics, Chemistry and Biology from two public schools to the quality of science education and those associated with curricular policies. To do so, we analyzed re-contextualization processes of curriculum policies and the quality of science education in teachers' pedagogical discourse. Although a market based meaning for training has been associated with the quality of science education by teachers of both schools, the processes of re-contextualization policies end up shaping their pedagogical discourses differently: while high ENEM school teachers select the contents from the official examinations and use contextualization to enrich them, the low ENEM school teachers select some scientific knowledge useful to the concrete reality of the students and contextualize this knowledge without recognizing this process as quality assurance. Rather, contextualization plays the role of a consolation prize.

Keywords: Science education. High school. Pedagogical discourse. Quality of education. Curriculum. Public school.

Construindo o objeto

Este trabalho é parte de uma dissertação de mestrado (CARVALHO, 2011) desenvolvida no âmbito de um projeto de pesquisa maior1 1 Projeto "Ensino de ciências de qualidade na perspectiva dos professores de nível médio", desenvolvido em rede (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Minas Gerais), com financiamento do Edital Observatório da Educação (2008), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). que investigou a qualidade do ensino de ciências no nível médio, na perspectiva dos docentes, considerando uma diversidade de contextos educacionais e tomando como referência a avaliação medida por indicadores oficiais. Pretendemos aprofundar resultados já obtidos no âmbito desse projeto, buscando, agora, investigar possíveis relações entre os sentidos de qualidade atribuídos pelos professores à educação científica e a qualidade do ensino associada às médias do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) atribuídas às escolas.

Encontramos, na teoria de Bernstein (1996) sobre o discurso pedagógico, um referencial potente e pertinente, capaz de dar suporte à compreensão das relações que queremos investigar. Ao realizar uma análise crítica do currículo e do processo de escolarização, Bernstein (1996) colocou em questão o papel da educação na reprodução cultural das relações de classe, tornando evidente que a pedagogia, o currículo e a avaliação são formas de controle social (MAINARDES; STREMEL, 2010). A partir dessa crítica, o autor constrói uma teoria complexa, com base, sobretudo: nos conceitos de código, dispositivo pedagógico, discurso pedagógico; nos princípios de classificação e enquadramento, e no processo de recontextualização.

Sua teoria do dispositivo pedagógico examina o processo pelo qual uma disciplina é transformada para compor o conhecimento escolar, o currículo, os conteúdos e as relações a serem transmitidas. Este dispositivo se constitui de um conjunto de regras discursivas hierarquicamente relacionadas, classificadas em distributivas (que se aplicam ao campo intelectual do sistema educacional), recontextualizadoras e avaliativas. Essas regras, que regulam a comunicação pedagógica, estão relacionadas a três diferentes campos2 2 Bernstein utiliza o conceito de campo de Bourdieu (1988 apud BERNSTEIN, 1996), que se refere ao conjunto de relações de força entre agentes e/ ou instituições em luta por diferentes formas de poder, seja ele econômico, político ou cultural. : o campo de produção do discurso, o campo recontextualizador e o campo de reprodução do discurso.

Por meio das regras discursivas, o dispositivo pedagógico fornece a gramática intrínseca do discurso pedagógico que, para o autor, é muito mais que o conteúdo a ser ensinado ou que uma seleção de enunciados. O discurso pedagógico seria um princípio de recontextualização de outros discursos que serão seletivamente transmitidos e adquiridos.

Os processos de recontextualização consistem na passagem de um discurso de seu contexto original de produção para um outro contexto, onde é modificado, relacionado a outros discursos e, assim, reposicionado. Essa movimentação produz uma mudança no discurso por conta da influência da ideologia, sujeita a diferentes visões de mundo e aos interesses especializados e/ou políticos dos agentes recontextualizadores, cujos conflitos estruturam o campo recontextualizador, intermediário entre o campo de produção e o campo de reprodução do discurso, as escolas. Entre os campos recontextualizadores, destacam-se: o Estado e suas agências, e o campo recontextualizador pedagógico, constituído por departamentos e faculdades de educação, suas pesquisas, publicações, leitores e editores. Quando um discurso é apropriado por agentes dos campos recontextualizadores, em geral, ele é deslocado e, depois, relocado segundo um novo posicionamento ideológico. Uma vez no campo de reprodução, quando se torna ativo no processo pedagógico, o discurso sofre novas transformações e reposicionamentos.

O discurso pedagógico resultante destes processos é visto não apenas como texto ou fenômeno linguístico, mas articulado às práticas e identidades dos sujeitos, submetido a mudanças e constituído enquanto repertório que conforma as relações sociais. O discurso pedagógico seria, assim, um conjunto de normas que regula: a produção, reprodução, distribuição, transmissão, aquisição, avaliação e inter-relação dos textos, incluindo qualquer representação expressa pela fala, pela escrita, visualmente, espacialmente, nas posturas assumidas, na maneira de vestir, as quais expressam materialmente as relações sociais. Não há como identificá-lo com o conhecimento das matérias, já que se configura pela ligação de dois discursos: o discurso instrucional e o discurso regulativo. O discurso instrucional se refere aos conhecimentos mais específicos (o que e como transmiti-los), enquanto o discurso regulativo tem um cunho ideológico (discurso moral e de transmissão de valores e identidades), é regulador do discurso instrucional e determinante na ordem social.

Seguindo o quadro teórico proposto por Bernstein (1996), a relação entre o que é proposto pelos documentos oficiais e o que se pratica em sala de aula é estabelecida a partir de embates entre concepções políticas e econômicas diferenciadas, que permeiam a sociedade. Esta percepção está de acordo com a ideia de que o discurso oficial é sempre objeto de reinterpretação pelos agentes do campo de reprodução, com vistas à adequação a cada realidade escolar. Neste sentido, as políticas curriculares não se resumem apenas aos documentos escritos circulantes no campo da educação, mas são produções para além das instâncias governamentais. Isso não significa, contudo, desconsiderar o poder privilegiado que o Estado possui na produção dos sentidos das políticas curriculares, mas considerar que as práticas e propostas desenvolvidas nas escolas também são produtoras de sentidos para tais políticas.

Os discursos da qualidade da educação moldados pelas reformas educacionais dos anos 1990, sobretudo pelas políticas curriculares, são referência para o sistema oficial de avaliação, que engloba todos os exames oficiais, entre eles o Enem. É possível considerar os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Pcnem) da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias (BRASIL, 1999), como o documento que representa o conjunto dessas políticas e a referência para a qualidade oficial da educação científica. Elaborados a partir dos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, os Pcnem orientam a construção de um novo delineamento para o currículo do nível médio, ligado às exigências contemporâneas e adotando, como referencial, a contextualização do conhecimento, sendo as disciplinas agrupadas em áreas de acordo com suas semelhanças (BRASIL, 1999). Apoiado em habilidades e competências básicas, os Pcnem têm como objetivo preparar o jovem estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da cidadania. Foram implementados no ano 2000, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, e constituem um projeto governamental de reforma curricular aprovado pelo Conselho Nacional de Educação. O documento cumpre um duplo papel de difundir os princípios da reforma pretendida e orientar os professores na busca de novas abordagens e metodologias, tendo sido formulado não como um receituário ou como uma lista completa e exaustiva de conteúdos ou tópicos a serem abordados, mas visando à vida individual, social e profissional, atual e futura, dos estudantes. Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no Ensino Médio, a fim de gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas voltado para o acúmulo de informações (BRASIL, 1999).

A partir do referencial teórico brevemente descrito anteriormente, vimos como relevante tomar como objeto os sentidos das políticas curriculares e da qualidade da educação científica recontextualizados no discurso pedagógico de professores de escolas que diferem quanto ao índice oficial de qualidade, no sentido de compreender como se dão estas relações. Visto que estamos interessados em ter indícios do discurso pedagógico dos professores, nosso foco serão os processos de recontextualização instituídos por eles, procurando mostrar como suas ideologias são comunicadas e transmitidas no contexto educacional em que estes sujeitos estão inseridos.

Procedimentos metodológicos

Contexto da pesquisa

O contexto desta pesquisa foi constituído por duas escolas públicas estaduais, localizadas em bairros de classe média baixa do subúrbio do Rio de Janeiro: uma de Enem alto (escola A) e outra de Enem baixo (escola B). A escola A recebe alunos da rede municipal de ensino a partir de uma seleção que leva em conta o desempenho do aluno durante o segundo segmento do Ensino Fundamental, e dispõe de um convênio com uma instituição federal de ensino tecnológico, o que lhe confere um ambiente educacional diferenciado em relação às outras escolas da rede pública estadual. A escola B está localizada próxima a comunidades carentes e oferece ensino noturno regular. Por estas características, recebe alunos trabalhadores, sendo grande parte constituída de adultos.

Entrevistamos seis professores: um professor de Física, um de Química e um de Biologia da escola A (nomeados de Física-A, Química-A, Biologia-A); e um professor de Física, um de Química e um de Biologia da escola B (nomeados de Física-B, Química-B, Biologia-B). O primeiro contato com os entrevistados aconteceu por intermédio da direção das escolas. As entrevistas foram gravadas após manifestação de sua autorização, por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Elaboração do roteiro de entrevistas

O roteiro de entrevistas foi elaborado a partir dos resultados obtidos com um grupo focal com nove professores de Física, Química, Biologia e Matemática das redes pública e privada do Rio de Janeiro, que promoveu a discussão sobre a qualidade do ensino de ciências. As principais perspectivas e tensões observadas no discurso desses professores (REZENDE et al., 2011) serviram de base para a construção do roteiro. No apêndice A apêndice A , estão apresentadas todas as perguntas que usamos para dar continuidade ao estudo da qualidade da educação científica na dissertação (CARVALHO, 2011), e, em algumas delas, sinalizadas as respectivas tensões que buscávamos aprofundar. No presente artigo, recortamos a análise, nos detendo essencialmente à observação de processos de recontextualização relacionados às políticas curriculares e à qualidade da educação científica. Para tal, nos detivemos nas respostas dadas pelos professores às perguntas 1, 7, 8 e 14 do roteiro.

Procedimentos de análise

De acordo com o quadro teórico que assumimos, consideramos, na análise do discurso dos professores, a situação atual em que tais discursos foram gerados (entrevista frente a uma pesquisadora) e a relação de seus discursos com a realidade educacional em que estavam inseridos.

Tomando o discurso da qualidade oficial dado pelos aspectos centrais dos Pcnem -que também estão presentes em propostas curriculares estaduais, como, por exemplo no documento da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ)3 3 O documento "Proposta curricular: um novo formato" deixa explícita, na introdução, sua submissão às políticas curriculares oficiais: "Dessa forma, a Proposta Curricular que aqui se apresenta buscou ressignificar essa antiga Reorientação Curricular, tendo em vista a necessidade de compatibilizá-la, quando pertinente, a referências oficiais que também norteiam o programa (tais como Parâmetros Curriculares Nacionais, a Matriz de Referência do Enem, a Matriz de Referência do SAERJ e Matrizes de Referência da Prova Brasil e SAEB)" (RIO DE JANEIRO, 2010, p. 5). para a área de ciências da natureza -, realizamos a análise em duas etapas: (i) localizamos processos de recontextualização das políticas curriculares quando os professores se manifestaram em relação aos documentos oficiais e aos processos de seleção e legitimação do conhecimento escolar; e processos de recontextualização de outros discursos correntes no meio educacional relacionavam aspectos pedagógicos, políticos, sociais, educacionais à qualidade; (ii) buscamos descrever como, ao serem realocados de um contexto para outro, por meio de processos de recontextualização, estes discursos dão origem ao discurso pedagógico de cada professor, tecem sentidos de qualidade para a educação científica nas duas escolas.

Resultados da análise

Destacamos, nas duas seções seguintes, trechos das análises das entrevistas nos quais descrevemos processos de recontextualização das políticas curriculares e de outros discursos com os quais os professores das diferentes disciplinas constroem seus discursos pedagógicos e atribuem sentido à qualidade da educação científica nas escolas A e B.

Recontextualização das políticas curriculares no discurso pedagógico dos professores

a) O discurso pedagógico dos professores de Física

Devido ao tempo reduzido de que dispõe para abordar todos os conteúdos específicos de sua disciplina, Física-A recontextualiza a proposta curricular estadual, selecionando o conteúdo a ser abordado em função do que é cobrado nos exames oficiais de avaliação. Por outro lado, ela também recontextualiza o currículo oficial ao procurar contemplar conhecimentos científicos que possam ter significado na realidade em que os alunos estão inseridos:

"Aí tem duas coisinhas diferentes que eu sempre fico me batendo. Uma é se eu vou prepará-los para o vestibular ou se vou prepará-los para a vida, né, então, eu fico sempre me batendo nisso, eu procuro o meio termo, né, eu vou alertando pras questões de vestibular, aquelas coisinhas, aquelas pegadinhas e vou mostrar, procuro mostrar por meio das minhas aulas, as coisas que acontecem em volta da gente, no dia a dia deles".

Física-A também recontextualiza o currículo oficial, empobrecendo, segundo suas próprias palavras, sua prática pedagógica, ao excluir atividades de laboratório e extraclasse.

"Antigamente eu trabalhava, eu já trabalhei aqui o dia inteiro, quando eu saía tarde, seis horas, a gente saía olhando as estrelas, eu mostrando porque, eu falava de gravitação e entrava estrela, um pouquinho de astronomia, hoje já não dá, não, é aquilo ali mesmo, entendeu".

A professora critica os Pcnem por terem um caráter autoritário, serem distantes da realidade e de difícil compreensão por parte dos professores:

"[...] aquilo ali tem coisas que você consegue usar e coisas que você não consegue usar. O que me pareceu é que foi feito por um pessoal que tava mais assim na cúpula e não na realidade. [...] Eu acho que ele foi muito imposto, acho que tem coisa demais ali e acho que tá fora da realidade".

Na escola B, embora também se queixe da pequena carga horária para abordar os conteúdos da sua disciplina, Física-B escolhe conteúdos da proposta curricular estadual, sobretudo pela falta do embasamento dos alunos. Ele seleciona, então, conteúdos mínimos e mais fáceis, contextualizando-os para que seus alunos tenham algum conhecimento físico relacionado ao cotidiano.

"A gente tem um programa a ser cumprido e desse programa a ser cumprido eu seleciono coisas que, voltadas pro nosso dia a dia, o aluno ver uma temperatura, entender na televisão quando passa um carro de fórmula 1 que a velocidade dele deu aquela, saber uma ligação elétrica, o mínimo necessário que seja voltado para o dia a dia, é só isso mesmo que eu faço, quando dá".

Nesse trecho de seu discurso pedagógico, notamos que o professor equipara os conteúdos voltados para o dia a dia dos estudantes aos conhecimentos mínimos que precisam ter, equivalentes a uma qualidade mínima. Alegando novamente a falta de condições de aprendizagem dos estudantes, Física-B recontextualiza o livro didático, nivelando seu conteúdo à clientela da escola B:

"Não atingem o que tá escrito no livro [...] vem exercícios assim bem difíceis, sabe? Até pros próprios alunos de escola particular, imagina pra eles, imagina pro pessoal da noite! A gente adota, mas na maioria das vezes, adotamos porque foi imposição do Estado, uma imposição do governo, senão eu não adotaria [..] Agora, os exercícios dali eu sou obrigado a fugir porque eles não atingem, não conseguem atingir".

Ao ser perguntado sobre os Pcnem de Física, este professor diz que, apesar de considerá-los utópicos, lamenta o fato de recorrer ao documento apenas para preparar o planejamento de curso e nada mais, evidenciando como os Parâmetros são recontextualizados por ele. Quanto à obrigatoriedade ou não da proposta, se mostra confuso entre deparar-se com um documento imposto, ao qual deve seguir, e a necessidade de uma diretriz como essa para nortear o seu trabalho: "Eles impõem e a gente tem que seguir na medida do possível, mas é uma imposição, é uma imposição. Mas também, né, mas também a gente tem que fazer aquilo também, né, tem que fazer aquilo".

b) O discurso pedagógico dos professores de Química

Química-A tende a não alterar o currículo oficial do Estado, visando garantir, aos seus alunos, o ingresso no mercado de trabalho ou no vestibular: "eles também têm uma preocupação com nota, com o rendimento, porque eles querem ter direito à escolha e quem tiver nota mais alta vai escolher primeiro". Ainda que mencione a falta de tempo de que dispõe para tratar os conteúdos químicos, bem como a falta de base de alguns alunos da escola A, Química-A se mostra fiel às diretrizes preconizadas pela proposta curricular estadual.

Ao admitir que tomou por base a sequência de conteúdos apresentada nos Pcnem para a elaboração do planejamento anual da escola A, a professora acaba expressando como recontextualiza a ideia de contextualização, proposta no documento: "Olha, é sempre contextualizado, sem dúvida. A gente sempre fala muito na questão de como é que ele tem que se portar nos lugares. Tem até uns professores que fazem uns trabalhos interessantes, de como é que se porta num estágio, pega, em alguns momentos e faz um outro tipo de trabalho em sala".

Percebemos que a professora utiliza o conceito de contextualização atrelando-o à preparação (social) para o mercado de trabalho. Entretanto, quando perguntada sobre a relação entre a Química e o dia a dia dos alunos, ela confirma seu compromisso com a transmissão do conteúdo: "na minha maneira de ver é mais o conteúdo mesmo, pelo menos é a minha visão, na minha disciplina".

Na escola B, Química-B demonstra preocupação com o conteúdo, mas, ao deparar-se com um contexto que não lhe permite priorizá-lo, mostra-se decepcionado e expõe as necessidades e limitações de seus alunos como justificativa para a recontextualização do currículo oficial:

"É [conteúdo], mas não me aprofundando praticamente em parte nenhuma da Química que eu precisaria me aprofundar porque vai além da capacidade de entendimento deles. Eu perderia muito tempo tentando colocar na cabeça deles alguns conceitos que eu não conseguiria porque eles não têm conceitos básicos lá de trás".

Nesse trecho de seu discurso pedagógico, notamos que o professor valoriza o conteúdo embora admita que não consegue aprofundar os conceitos necessários. O processo de recontextualização curricular que o professor promove visa a adequar o currículo oficial à realidade e às limitações dos estudantes da sua escola.

Devido à falta de condições de aprendizagem dos alunos, sua disciplina passa a visar que os alunos "se tornem melhores pessoas porque aí vai mais enriquecê-los na cultura geral". Pretende garantir a eles que, ao se depararem com assuntos relativos à Química no dia a dia, fora do ambiente escolar, sejam capazes de relacioná-los aos conceitos químicos aprendidos na escola, já que, na realidade da escola B, "seguir uma carreira científica está fora das possibilidades dos alunos ou, pelo menos, da maioria deles". Assim, Química-B tende a adequar a proposta curricular estadual aos alunos da escola B, por meio da contextualização de alguns conceitos básicos de química, que julga que seus alunos serão capazes de aprender. O professor separa, em seu discurso, a Química "dura, de decorar tudo" e o ensino de Química "do cotidiano", que ele procura oferecer aos alunos:

"[...] a gente tem procurado abordar temas mais do cotidiano, sem falar tanto sobre aquela Química dura, de decorar tudo, então, eles têm ganho mais cultura com isso, isso eles têm ganho. Eles conseguem entender no dia a dia deles alguns fenômenos que a gente falou na sala de aula, então hoje eles conseguem entender melhor isso e conseguem relacionar algumas mudanças químicas com algumas consequências que eles têm, conseguem, às vezes, explicar pra outras pessoas, explicar em casa".

Percebemos, em seu discurso, que essa recontextualização, no entanto, não acontece devido ao fato de esse professor valorizar a formação para a vida como a mais importante finalidade do ensino de Química, mas por não conseguir, na escola B, aprofundar os conhecimentos e preparar os estudantes para o vestibular e mercado de trabalho como gostaria.

c) O discurso pedagógico dos professores de Biologia

Em sua prática, Biologia-A recontextualiza o currículo oficial do Estado, ampliando-o com outros conteúdos que considera relevantes para o vestibular: "A gente amplia o planejamento que é passado pra gente do Estado, [...] e tenta enxertar alguns conhecimentos [...] para que eles tenham esse conhecimento e aqueles que quiserem ir adiante conseguir pegar um livro com esse básico e ir adiante".

Biologia-A também recontextualiza o currículo oficial quando admite dar mais atenção aos conteúdos exigidos pelo vestibular ou pelo Enem e procura contextualizar o conteúdo de Biologia: "Quando eu tô apresentando um conteúdo, eu tô visando, assim, dando um foco maior no que pode cair num concurso pra eles, Enem, vestibular, mas eu tento sempre chamar a atenção pra ele, e até pra mim também, que aquilo tem uma relação com o corpo dele".

Biologia-A defende os Pcnem de Biologia como a melhor proposta curricular existente para os dias de hoje, deixando evidente que desejaria implementá-la promovendo poucas alterações.

Narrando a elaboração do planejamento anual, com base no documento curricular do Estado em anos anteriores, refere que este também toma por base as diretrizes dos Pcnem: "[...] aí nós recebemos, e aí o que a gente viu: que aquilo [...] pra ser adotado na escola, em todas as escolas estaduais, era a base, era o PCN. Ainda era o conteúdo, então não mudou nada". Em relação ao ano letivo corrente, seu comentário sobre o documento recebido do Estado transparece a mesma recontextualização anterior: "[...] recebemos esse ano uma orientação de currículo. [...] Tá bastante resumida, bastante, bastante, bastante resumida que a gente continua enxertando. Então, a gente nunca fugiu aos padrões dos PCNs, ao conteúdo dos PCNs. Em Biologia, a gente nunca fugiu".

Seu discurso pedagógico demonstra entender os Pcnem como um discurso de autoridade, com caráter prescritivo que determina como a educação de qualidade deve ser alcançada. A professora toma para si a concepção de qualidade presente na proposta: "eu acho importante não fugir dele porque ele foi muito bem elaborado. [...] Ainda não conseguiram fazer alguma coisa que substituísse", o que transparece o desejo de recontextualizá-lo por meio de sua implementação integral.

Na escola B, Biologia-B recontextualiza o currículo oficial em função da reduzida carga horária da sua disciplina e, também, devido à falta de base apresentada por seus alunos. Essa recontextualização se dá através da seleção de conteúdos básicos, e tem como função compensar a falta de tempo e adequá-la ao nível de sua clientela. Assim, seleciona e contextualiza conteúdos biológicos voltados ao entendimento de aspectos da saúde e do meio ambiente, e se justifica:

"Ele não aprende só para o trabalho, ele aprende pra vida dele também. [...] esse conhecimento pra ele, pra ele aproveitar na vida dele, pra ele multiplicar pros familiares dele, pra multiplicar pras pessoas que ele se relaciona. [...] você não vem aqui só pra aprender conteúdo porque você vai fazer uma prova, você também vai usar isso na sua vida cotidiana".

Nesse enunciado, ela separa o ensino voltado à preparação para o trabalho e o ensino que visa formar para a vida. A professora deixa evidente a tensão entre os objetivos que pretende alcançar e parece valorizar a formação para a vida, até por estar ciente de que não tem uma clientela que alcance a preparação para o mundo produtivo (ao menos, não em sua maioria).

No entanto, ao longo de seu discurso, notamos que essa professora parece assumir tal objetivo por considerá-lo como o único possível de ser alcançado na escola B. Percebemos que ela gostaria de preparar os alunos para o vestibular ou para o mercado de trabalho, quando se refere aos alunos que querem tirar um certificado para melhorar no trabalho e aos que pretendem continuar os estudos, demonstrando valorizar o fato de eles quererem "fazer fisioterapia, radiologia e enfermagem", por sua relação com a Biologia.

Já quando questiona-se sobre a importância de um determinado conteúdo para alunos idosos, a professora critica o currículo oficial: "você trabalhar divisão celular que a gente nem se aprofunda nisso e eu não sei nem pra que vai servir pra eles".

Qualidade da educação científica no discurso pedagógico dos professores

a) Discurso pedagógico dos professores de Física

Em relação à realidade da escola A, Física-A acredita que nada tem de mudar, e confere a ela a qualidade que julga ter uma escola particular: "Essa realidade aqui da escola é a melhor que eu tenho. [...] Essa escola aqui você pode dizer que ela funciona como um colégio particular". Neste ponto, separa as escolas públicas das escolas particulares, valorizando sua escola tal qual uma escola particular, representação característica do ensino de qualidade na sociedade atual. Ao mesmo tempo, deixa claro quanto considera sua escola uma exceção, sobretudo pelos atributos da clientela: "Eles competem dentro de todas as Olimpíadas que têm, sendo públicas ou não, em todas as Olimpíadas eles entram, tudo o que aparece eles estão [...] De início, foi [iniciativa] da escola porque não tomavam nem conhecimento, mas agora eles já, eles já sabem a época que tem a Olimpíada de Matemática, de Física".

Nesse enunciado, notamos que o fato de os alunos se inscreverem e apresentarem bons resultados em Olimpíadas de Matemática e Física é, para ela, um critério de valor da qualidade do ensino da sua escola. O discurso pedagógico dessa professora nos permite identificar, assim, como sua concepção de qualidade está voltada a aspectos quantitativos expressos pelos resultados dos estudantes e pela eficácia do processo de ensino e aprendizagem.

Na escola B, Física-B, distingue seus alunos dos demais alunos da escola pública diurna, considerando os seus em desvantagem no que tange às suas condições de aprendizagem. Faz um relato de sua realidade:

"Olha só, eu dou aula pra um público que não sabe nem escrever, eles não sabem nem escrever, escrevem o nome com letra minúscula, eles abreviam o último nome, os alunos veem uma prova, eles veem a, b, c, d e não sabem que é pra marcar. Fica difícil, às vezes, até pra mim responder, mas é utópica a coisa. E o que eu faço na escola pública, infelizmente, é tentar passar de tudo que eu sei, 10%, para que 10%, olha só eu vou passar 10% para que 10% consiga absorver e esses 10% que absorveram consiga guardar 10% do que ele absorveu para que no futuro ele possa aplicar 10% do que ele absorveu, do que eu passei, ah, muito complicado. A parcela é muito pequena, é mínima, quem aprende ali".

Para desqualificar o ensino da escola B, utiliza termos que amplificam sua imperfeição: "É bem deficiente. Muito aquém, anos luz aquém". Para justificar essa situação, o professor apresenta um discurso pedagógico voltado a uma visão determinista do processo de ensino e aprendizagem na qual a realidade socioeconômica dos estudantes define a realidade escolar, assim como interfere de maneira decisiva na qualidade da educação:

"[...] eles ficaram uns 10 anos sem estudar, esse distanciamento em termos de tempo dá uma enrolada também, e eles não comeram na época que tinha que comer, eles não brincaram na época que tinham que brincar, eles não se alimentaram, eles não fizeram a coisa regrada como nós. Não tem como aprender, porque tem gente que não aprende".

O professor relata que tenta fazer com que esses alunos aprendam, ilustrando sua tentativa com a descrição de uma de suas práticas em sala de aula, e sua frustração ao não conseguir:

"Eu coloco quatro exemplos exatamente iguais só trocando os números, a mesma equação, o mesmo questionamento, o mesmo objetivo em todas as questões, eu só troco de 50 pra 40, de 40 pra 30, de 30 pra 10, quando eu coloco 60 eles não acertam. O que que eu vou fazer? Eu me sinto inútil, eu me sinto incompetente! Mas eu vejo que não é culpa minha por que se eu faço em outros lugares que não sejam escola pública ou durante o dia eles atingem".

Notamos que o professor separa claramente as escolas públicas estaduais diurnas das noturnas, atribuindo qualidade superior às primeiras. Além disso, enfatiza, mais uma vez, a deficiência dos estudantes como principal responsável pela deficiência do ensino de Física, já que, se ele faz o mesmo nas diferentes escolas e obtém sucesso, o fracasso só pode ser atribuído aos alunos.

Apesar de todo o insucesso, o professor diz sentir-se responsável apenas por preparar os alunos para o vestibular ou para o mercado de trabalho e nada mais, deixando claro que dá à qualidade o sentido da qualidade oficial, medida por testes oficiais, como o vestibular.

b) Discurso pedagógico dos professores de Química

Química-A exalta a particularidade da sua escola atribuindo-a ao fato de ter "um convênio com uma instituição pública federal de ensino profissionalizante", o que deixa evidente a distinção da escola A, posicionada num patamar superior às outras escolas, e a valorização da formação voltada para o mercado de trabalho. Tal como nos Pcnem, o discurso dessa professora estabelece uma relação entre a educação e o mundo produtivo, o que denota uma concepção que relaciona a qualidade educacional à qualidade empresarial.

Como no decorrer de todo o seu discurso pedagógico, ela finaliza atribuindo valor superior à escola A em comparação às demais escolas: "nosso programa aqui tá ótimo (risos). Mas não é real. Esse programa tava bom. Entendeu, a proposta teórica", garantindo que, na sua escola, há um ensino de ciências de qualidade, mesmo que haja dificuldades.

Na escola B, quando Química-B se refere aos objetivos do Ensino Médio, deixa claro que estes visariam a preparação dos jovens para o vestibular:

"Veja bem, o ensino médio, se você pensar bem, ele tem que preparar pra um vestibular, se eu for tentar fazer isso aqui eu vou passar a minha vida inteira tentando sair de dois, três assuntos, entendeu? Então, eu seleciono, não aqueles que eu julgo importantes, porque pra mim, importante seria preparar o aluno pro mercado, mas seleciono o que eu julgo que eles vão conseguir atingir".

Notamos que ele classifica a escola B como inferior às demais devido ao fato de seus alunos não terem êxito na preparação para o vestibular ou para o mercado de trabalho. É evidente o maior valor que confere às escolas voltadas a estas finalidades, e sua frustração ao admitir que, na escola B, não será capaz disso, o que aproxima sua concepção de qualidade a uma concepção que valoriza o conteúdo específico e o alcance de resultados quantitativos.

Avaliando o ensino de ciências da escola pública atual, o professor qualifica-o como "muito fraco", e critica, por isso, o currículo do Ensino Médio noturno tal qual é organizado hoje em dia, pelo fato de incluir disciplinas como Artes e Educação Física, que segundo ele, deveriam ser excluídas pelo pouco tempo de que dispõem. Assim, o professor classifica a Química como superior às Artes e à Educação Física, valorizando-a como capaz de preparar "o aluno pra o que ele vai enfrentar daqui pra frente", enunciado em que parece estar se referindo, novamente, ao mercado de trabalho, dando pistas de que sua concepção de qualidade se relaciona à qualidade técnica voltada aos aspectos ditados pelo mundo produtivo.

c) Discurso pedagógico dos professores de Biologia

Considerando a escola A num nível mais elevado que as outras escolas públicas, Biologia-A atribui seu sucesso ao envolvimento e dedicação de todos os professores no processo de ensino e aprendizagem. Ela lamenta que o ensino de ciências da escola pública de hoje esteja ruim, atribuindo a falta de qualidade a fatores como a desmotivação do professor para promover atividades que poderiam, segundo a professora, levar a essa qualidade, como a feira de ciências:

"O ensino de ciências tá muito ruim, muito ruim mesmo. A gente não tem, eu acho que a gente não tem mais aquela estimulação, eu acho que aí também entra o professor, que a gente perdeu um pouco daquela vontade de trabalhar, de fazer feira de ciências. A gente já fez aqui [...] mas demanda tanta coisa fazer uma feira de ciências e aí a gente acaba priorizando outros projetos. Não que a gente não possa fazer [...] só que esbarra em muitas outras atividades".

Nesse trecho de seu discurso pedagógico, ela separa o presente do passado, e, consequentemente, a qualidade de ontem e a de hoje, posicionando a primeira num patamar supe­rior devido à maior disposição do professor e ao maior valor que era dado às ciências.

Seu discurso pedagógico desqualifica a educação pública dos dias de hoje, mas vislumbra que a qualidade pode ser possível se todos os atores desse processo estiverem envolvidos e verdadeiramente posicionados como responsáveis:

"Agora o governo precisa me dar e eu não tô falando de dinheiro não! Eu tô falando em me dar mais tempo, por favor, eu tô pedindo isso há mais de vinte anos quando eu entrei pro Estado, entrei no município, não, eu tinha quatro tempos de ciências, mas no primeiro ano que eu entrei pro estado eu tinha seis tempos de biologia. Então tinha um laboratório maravilhoso com tudo que se possa imaginar de um laboratório".

A professora acredita que o aumento salarial não garante a promoção da qualidade do ensino de Biologia que pretende, mas, sim, o aumento da carga horária e a infraestrutura adequada à sua prática pedagógica.

Na escola B, Biologia-B institui, como categorias, o passado e o presente ao referir-se à base que os alunos tinham antes, posicionando o passado numa escala superior ao presente dada à existência de uma "provinha pra entrar aqui no Estado". A professora afirma que, em função daquela seleção, "o aluno já vinha com outra bagagem [diferente da] que ele tem agora", e que, atualmente, "se você avançar muito o conteúdo [...] uma parcela fica e acompanha e a outra parte fica meio boiando". Esse trecho deixa clara a ênfase que dá aos conteúdos biológicos específicos e sua frustração por não conseguir alcançar tal objetivo em função, novamente, da defasagem apresentada pelos alunos. Ela categoriza os alunos da escola B, isolando-os dos demais alunos da escola pública devido ao fato de não terem o embasamento necessário para o aprofundamento dos conteúdos tal como gostaria, o que é apresentado como justificativa para a diferença: "A nossa clientela ela é um pouco diferente [...] como eles não têm embasamentos para que a gente consiga evoluir muito, aprofundar muito no conhecimento que, a gente também tem que respeitar esse, essa linha de conhecimento que ele traz".

Com essa distinção, a professora parece admitir que a abordagem dos conteúdos tal qual realizada na escola pública adquire quase a função de prêmio de consolação, por não conseguir abarcar outros objetivos. Seu discurso pedagógico justifica a recontextualização curricular da rede pública de ensino devido à falta de embasamento da sua clientela. Ela parece assim eximir-se de sua responsabilidade no atingimento da qualidade da educação tal como alcançada pela escola particular.

Categorizando mais uma vez a escola B e as escolas particulares, a professora isola a primeira, desqualificando-a por admitir que sua clientela é desfavorecida no que se refere a fatores externos à escola, aos quais é submetida, em especial, no ambiente familiar. Segundo ela, o aluno da escola pública é desprovido do que denomina de "educação paralela": "O cara [aluno da escola particular] tem em casa a mãe dele que é professora de Biologia, o pai dele que é professor de Português, o pai dele que é engenheiro, o pai dele que tem condições de pagar a moça ali do lado pra dar aula pra ele, e o meu aluno não tem".

A professora chama a atenção para tudo o que compõe o capital cultural dos alunos da escola particular em contraposição aos alunos da escola pública:

"O aluno [da escola B] não tá inserido dentro de uma família onde ele recebe uma coisa chamada de educação paralela. É a mãe que senta à mesa de jantar, a família toda sabe falar muito bem, tem um vocabulário muito ampliado [...] e que tem conhecimentos pra passar, e corrige o menino. Meu menino da escola pública, que não são todos, a mãe saiu cinco horas da manhã, deixou o garoto lá na escola e, quando chegar de noite, ela vai preparar a janta e não tá ensinando o menino a fazer o dever de casa. Ela não tem nem o vocabulário pra entender e nem pra passar pra ele".

A professora denuncia as condições sociais imbricadas na realidade escolar dos alunos da escola B, apontando-as, assim, como um agravante para o não-atingimento da qualidade.

Síntese dos resultados e considerações finais

As professoras da escola A têm em comum a queixa a respeito da redução da carga horária destinada às disciplinas científicas, o que as faz recontextualizar a proposta curricular estadual, selecionando conteúdos disciplinares específicos em função do que é exigido pelos exames oficiais. Os professores da escola B também consideram que a falta de tempo prejudica a qualidade do ensino de ciências, mas recontextualizam a proposta curricular estadual, sobretudo, em função das precárias condições de aprendizagem dos estudantes, adotando a contextualização dos conteúdos como a melhor forma de atendê-las.

Assim, a tensão entre seguir o currículo oficial das disciplinas científicas e alterá-lo para atender à realidade escolar, observada no discurso dos professores investigados por Rezende et al., (2011), também moldou o discurso dos professores pesquisados no presente estudo. Consideramos que avançamos ao podermos associar cada polo da tensão a um determinado grupo: na escola de alto Enem, os professores seguem o currículo oficial e priorizam os exames oficiais, enquanto, na escola de baixo Enem, adaptam o currículo às condições de aprendizagem dos alunos.

Coerentemente, para as professoras da escola A, a qualidade é medida com base nos resultados obtidos nos exames oficiais, e a qualidade da sua escola é exaltada ao denunciarem a distância entre sua realidade e a das demais escolas públicas. Segundo elas, é justamente às deficiências das outras escolas, bem como a aspectos sociais, que se deve a falta de qualidade do ensino de ciências dos dias de hoje.

Para os professores da escola B, a qualidade da educação se configura, inicialmente, a partir da desqualificação da sua escola em relação às demais escolas públicas ou privadas, em função da falta de condições de aprendizagem da clientela. Atrelam o sentido de qualidade à qualidade oficial dada pelo vestibular, e justificam a falta de qualidade da sua escola pelo determinismo socioeconômico que atinge irremediavelmente os estudantes.

Apesar das diferenças entre as realidades pesquisadas, o sentido de qualidade atribuído, pelos professores de ambas as escolas, à educação científica corresponde ao da qualidade oficial. A qualidade que valoriza o caráter instrumental e utilitarista da educação, evidenciado, sobretudo, após a Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971) e ratificado pelas reformas educacionais dos anos 1990, parece ter sido assimilada. Dessa forma, a educação e a educação científica, mais ainda, são assumidas como preparação da força de trabalho, e não como práticas formativas para todas as dimensões da vida. Nessa perspectiva, a qualidade do ensino passa a ser medida pelo quanto esse ensino está atendendo às exigências econômicas. Entretanto, notamos diferenças no processo de recontextualização desse discurso, conformadas pela realidade sociocultural de cada escola. Notamos que a posição superior alcançada pela escola A no Enem reflete uma prática de avaliação mais rigorosa e em conformidade com o que é cobrado pelos exames oficiais. Na escola de baixo Enem, apesar de os professores aceitarem, como meta, o padrão de avaliação oficial, não conseguem pautar sua prática por este padrão. Cinco, dos seis professores entrevistados, que já atuaram ou atuam no Ensino Médio noturno, conferem, a essa modalidade, qualidade inferior em relação às escolas diurnas. Essa classificação dá indícios de que o ensino público noturno é deficiente e não apresenta condições para atingir as metas da qualidade educacional oficial.

Nos processos de recontextualização das políticas curriculares, percebemos que o conceito de contextualização, um dos que alicerçam os documentos curriculares referentes ao ensino de ciências da natureza, está presente no discurso dos professores de ambas as escolas, ainda que seja recontextualizado de diferentes formas. Na escola A, os conhecimentos contextualizados podem representar uma forma de fazer com que o conteúdo de cada disciplina seja enriquecido ou atrelado à formação para o trabalho. Na escola B, o discurso da contextualização é recontextualizado como solução para a falta de condições de aprendizagem da clientela, as quais não permitem o investimento na preparação para o vestibular ou para o mercado de trabalho. Os professores se preocupam em integrar os conteúdos científicos a questões da realidade concreta sem reconhecer este processo como garantidor da qualidade do ensino de ciências. Ao contrário, a contextualização passa a desempenhar o papel de prêmio de consolação. Assim, a contextualização dos conteúdos científicos, estratégia de ensino recomendada pelos Pcnem, pode tanto ter a função de enriquecer a prática dos professores em uma dada realidade, quanto, em outra, viabilizar, mas empobrecer a prática pedagógica.

Foi possível mostrar como as políticas curriculares e outros discursos são recontextualizados por professores das ciências da natureza para compor o que concebem como qualidade da educação, evidenciando processos em que as políticas curriculares são recriadas na prática. Reconhecemos que nossos resultados, possíveis em função do quadro teórico que abraçamos, dialogam pouco com resultados publicados na área de ensino de ciências, que ainda estão voltados para a confrontação entre as políticas curriculares e a sua implementação na prática, focalizando as (indesejáveis) discrepâncias.

Embora cientes de que as políticas curriculares sejam recontextualizadas de diferentes formas pelos grupos disciplinares (LOPES, 2004), não conseguimos captar tais diferenças, o que consideramos como um limite do presente estudo e uma motivação para futuras pesquisas. A análise realizada apontou mais seguramente para a conclusão de que o discurso pedagógico dos professores representa um reflexo de suas realidades específicas, que se harmoniza com o modo pelo qual as políticas curriculares são recontextualizadas. Neste sentido, as diferenças entre as características socioculturais de cada escola foram determinantes em moldar os processos de recontextualização em função do contorno social que abraça irremediavelmente o fenômeno educativo.

Artigo recebido em 27/01/13.

Aceito em 18/05/13.

Apêndice A.

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  • BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm> Acesso em: 10 jan. 2012.
  • ______. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio Brasília, 1999.
  • CARVALHO, R. C. de. O discurso pedagógico de professores e a qualidade do ensino de ciências no nível médio 2011. 158 f. Dissertação (Mestrado) - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
  • LOPES, A. C. Políticas de currículo: mediação por grupos disciplinares de ensino de ciências e matemática. In: LOPES, A. C.; MACEDO, E. (Org.). Currículo de ciências em debate Campinas: Papirus, 2004. p. 45-75.
  • MAINARDES, J.; STREMEL, S. A teoria de Basil Bernstein e algumas de suas contribuições para as pesquisas sobre políticas educacionais e curriculares. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p. 1-24, 2010.
  • REZENDE, F. et al. Qualidade da educação científica na voz dos professores. Ciência & Educação, Bauru, v. 17, n. 2, p. 279-288, 2011.
  • RIO DE JANEIRO (ESTADO). Secretaria de Educação. Proposta curricular: um novo formato - ciências, biologia, física e química. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/downloads/CIENCIAS_Biologia_Fisica_Quimica.pdf> Acesso em: 07 ago. 2013.

apêndice A

  • Políticas curriculares e qualidade do ensino de ciências no discurso pedagógico de professores de nível médio

    Curriculum policies and quality of science education in teachers' pedagogical discourse
  • 1
    Projeto "Ensino de ciências de qualidade na perspectiva dos professores de nível médio", desenvolvido em rede (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Minas Gerais), com financiamento do Edital Observatório da Educação (2008), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 2
    Bernstein utiliza o conceito de campo de Bourdieu (1988 apud BERNSTEIN, 1996), que se refere ao conjunto de relações de força entre agentes e/ ou instituições em luta por diferentes formas de poder, seja ele econômico, político ou cultural.
  • 3
    O documento "Proposta curricular: um novo formato" deixa explícita, na introdução, sua submissão às políticas curriculares oficiais: "Dessa forma, a Proposta Curricular que aqui se apresenta buscou ressignificar essa antiga Reorientação Curricular, tendo em vista a necessidade de compatibilizá-la, quando pertinente, a referências oficiais que também norteiam o programa (tais como Parâmetros Curriculares Nacionais, a Matriz de Referência do Enem, a Matriz de Referência do SAERJ e Matrizes de Referência da Prova Brasil e SAEB)" (RIO DE JANEIRO, 2010, p. 5).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      27 Jan 2013
    • Aceito
      18 Maio 2013
    Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, campus de Bauru. Av. Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Campus Universitário - Vargem Limpa CEP 17033-360 Bauru - SP/ Brasil , Tel./Fax: (55 14) 3103 6177 - Bauru - SP - Brazil
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