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Lucro, cuidado e parentesco: Traçando os limites do “tráfico” de crianças

Care, profit, and kinship: Tracing the limits of child trafficking

Resumo:

Com foco no contexto brasileiro, proponho neste artigo discutir como determinadas noções envolvendo dinheiro, cuidado e parentesco subjazem às leis que decretam o término do relacionamento entre pais de nascimento e seus filhos que foram adotados por outras famílias. Inspirada em discussões de biopolítica, considero as leis e a legislação como parte das “novas tecnologias reprodutivas”. Apoiando-me numa etnografia multi-situada no Brasil, que me levou das vilas de Porto Alegre à observação de procedimentos no Juizado da Infância e da Juventude, bem como a entrevistas com pais adotivos, introduzo na análise o tema do dinheiro para melhor entender alguns argumentos usados para justificar o processo de “desparenteamento” típico da adoção plena. Investigo então como as tecnologias legais em torno da adoção influenciam os sentimentos, assim como as práticas, de certas mães de nascimento e adotivas no Brasil.

Palavras-chave:
Adoção de crianças; Parentesco; Antropologia do direito; Tecnologias reprodutivas

Abstract:

Focusing on the Brazilian context, I propose in this article to discuss how certain notions involving money, care, and kinship underwrite laws that decree the termination of relations between birth parents and their children who have been adopted into other families. Inspired in discussions on biopolitics, I consider laws and legislation as part of the “new reproductive technologies”. Relying on a multi-sited ethnography in southern Brazil that took me from shanty towns in Porto Alegre to the observation of court proceedings as well as interviews with adoptive parents, I introduce the theme of money in order to bring out some of the arguments used to justify the procedures of “de-kinning” typical of plenary adoption. I then investigate how the legal technologies surrounding adoption influence the sentiments and practices of certain birth and adoptive mothers in Brazil.

Keywords:
Adoption of children; Kinship; Anthropology of law; Reproductive technologies

Com foco no contexto brasileiro, proponho neste artigo discutir como determinadas noções envolvendo lucro, cuidado e parentesco subjazem às leis que decretam o término do relacionamento entre pais de nascimento e seus filhos que foram adotados por outras famílias. Inspirada em discussões de biopolítica, considero as leis e a legislação como parte das “novas tecnologias reprodutivas” (Rabinow e Rose 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. Biopower today. BioSocieties, v. 1, n. 2, p. 195-217, Jun. 2006 <10.1017/S1745855206040014>.; Dolgin, 1997DOLGIN, J. L. Defining the family: law, technology and reproduction in an uneasy age. New York: New York University Press, 1997.). Investigo então como as tecnologias legais em torno da adoção influenciam os sentimentos, assim como as práticas, de certas mães de nascimento e adotivas no Brasil.

Como Briggs e Marre (2009)BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. Introduction. In: BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. International adoption: global inequalities and the circulation of children (Orgs.). New York: New York University Press, 2009. p. 1-28. demonstraram, a adoção de crianças quase inevitavelmente envolve questões de tremenda desigualdade social, econômica e política. Naquilo que analistas descrevem como a “reprodução estratificada” (Colen, 1995COLEN, Shellee. “Like a mother to them”: stratified reproduction and West Indian childcare workers and employers in New York. In: GINSBURG, Faye D.; RAPP, Rayna (Orgs.). Conceiving the New World order: the global politics of reproduction. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 78-102.), encontramos crianças adotivas tiradas de situações de violência (guerra, ditaduras, pobreza) para serem criadas em famílias de condições, se não privilegiadas, pelo menos “bem de vida”. As dinâmicas envolvidas neste tipo de transferência de criança apresentam um acesso privilegiado ao que poderíamos chamar de economia política do parentesco (Ginsburg e Rapp, 1995GINSBURG, Faye D.; RAPP, Rayna (Orgs.). Conceiving the New World order: the global politics of reproduction. Berkeley: University of California Press, 1995.).

Também interessa considerar como as práticas vigentes de adoção se inserem no assim chamado sistema de “parentesco euro-americano”. Desde Schneider (1984)SCHNEIDER, David. A critique of the study of kinship. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1984. e Strathern (1992)STRATHERN, Marilyn. Reproducing the future: anthropology, kinship and the new reproductive technologies. New York: Routledge, 1992., antropólogos nos lembram que este sistema envolve uma mistura de valores que enfatiza, por um lado, uma crença em um componente “natural” – fundamentada em substâncias compartilhadas (sangue e sêmen) – e, por outro lado, um componente jurídico-social calcado na escolha individual, o afeto e o cuidado. Este último componente tem sido destacado particularmente no caso de famílias adotivas (denominadas por certos observadores como “famílias de escolha”), em que certos processos de “parenteamento” (kinning) têm se tornado paradigmáticos da maneira como se criam relações de parentesco (Howell, 2006HOWELL, Signe. The kinning of foreigners: transnational adoption in a global perspective. New York: Berghahn Books, 2006.).

Antropólogos que focam nas práticas adotivas frequentemente contrastam a adoção plena e legal, que implica o apagamento da família de nascimento, com as práticas da circulação informal encontradas em contextos “tradicionais” em que as crianças acumulam uma série de figuras parentais (ver Yngvesson, 2010YNGVESSON, Barbara. Belonging in na adopted world: race, identity, and transnational adoption. Chicago: University of Chicago Press, 2010.; Briggs e Marre 2009BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. Introduction. In: BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. International adoption: global inequalities and the circulation of children (Orgs.). New York: New York University Press, 2009. p. 1-28.; Fonseca, 1995FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.). Sugerem que, no primeiro caso (do contexto legal), a resistência dos pais adotivos em “compartilhar o parentesco” com a família original das suas crianças é típica do sistema euro-americano de valores (Ouellette, 1996OUELLETTE, Françoise-Romaine. Statut et identité de l'enfant dans le discours de l'adoption. Gradhiva, Paris, v. 19, p. 63-76. 1996.). A família adotiva, conforme essa perspectiva, deve “imitar a natureza” e, nesta, como reza um adágio brasileiro: “Mãe é uma só”. Contudo, em anos recentes, analistas têm sofisticado seus modelos para por em relevo o aspecto heterogêneo e cambiante dos valores. A crescente aceitação do divórcio e do recasamento e a proliferação de unidades domésticas que incluem padrastos têm tornado a pluripaternidade banal em diversas situações (Cadoret, 1995CADORET, Anne. Parenté plurielle: anthropologie du placement familial. Paris: Harmattan, 1995.; Le Gall e Bettahar, 2001LE GALL, Didier; BETTAHAR, Yamina (Orgs.). La pluriparentalité. Paris: PUF, 2001.). Como pesquisadores já demonstraram (Fons, Piella e Valdés, 2010FONS, Virginia; PIELLA, Anna; VALDES, Maria (Orgs.). Procreación, crianza y género: Aproximaciones antropológicas a la parentalidad. Barcelona: PPU, 2010.), o parentesco euro-americano se caracteriza – não menos que o parentesco em outros contextos – por sua habilidade em se desdobrar, se re-localizar e se ajustar a novas situações (Thompson, 2005THOMPSON, Charis. Making parents: the ontological choreography of reproductive technologies. London: MIT Press, 2005.). Em uma palavra, ele se caracteriza por sua “plasticidade”.1 1 Jeanette Edwards inspirou esta reflexão dialogando com a audiência após seu painel no Simpósio Internacional “Procreación, crianza y género: aproximaciones antropológicas a la parentalidad”, Barcelona, maio, 2010.

Entretanto, pesquisadores fazem bem de nos lembrar que, na prática, encontramos uma aplicação “partidária” desta plasticidade. Existem algumas situações em que afastar-se de modelos hegemônicos de família é aceitável – talvez até mesmo celebrado. Em outras, parece que encontramos políticas de tolerância zero. Pensar quais situações correspondem a estes diversos tratamentos nos abre o caminho para a economia política do parentesco. Consideremos, por exemplo, a crença na inseparabilidade da m/paternidade biológica e o cuidado envolvido na criação das crianças. Enquanto mães adotivas (mulheres que não deram à luz, mas que cuidam da criança) são comumente apresentadas como exemplos do árduo trabalho que envolve a criação de relações e identidades familiares, pouco se fala acerca do processo de “des-parenteamento” ao qual são submetidas as mães de nascimento (mulheres que dão à luz, mas que não cuidam da criança). Análises antropológicas que “desnaturalizaram” tão brilhantemente as relações familiares, mostrando as múltiplas maneiras de criar parentesco apesar da ausência de um vínculo consanguíneo (Carsten, 2000CARSTEN, Janet. Cultures of relateness: new approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.), têm sido muito mais tímidas no exame de lugares comuns sobre “mães abandonantes” e a “óbvia” anulação de seu status materno.

Apoiando-me numa etnografia multi-situada no Brasil, que me levou das vilas de Porto Alegre à observação de procedimentos no Juizado da Infância e da Juventude, bem como a entrevistas com pais adotivos, introduzo na análise o tema do dinheiro para melhor entender alguns argumentos usados para justificar o processo de “desparenteamento” típico da adoção plena. Como deve se tornar claro nas considerações finais deste artigo, boa parte da minha análise está inspirada no trabalho de V. Zelizer (1994)ZELIZER, Viviana. Pricing the priceless child: the changing social values of children. New York: Basic Books, 1994.. Esta autora sustenta que a moralidade vigente (o consenso de “mundos hostis”) tem relegado o dinheiro e o sentimento a dois domínios mutuamente excludentes que não devem se misturar: o sentimento complica assuntos comerciais, dinheiro corrompe os afetos. Assim, testemunhamos o desconforto (ora manifesto por desgosto, ora por ultraje) que pessoas envolvidas com a adoção sentem ao ver crianças – encarnação do afeto familiar – misturadas com assuntos financeiros. Observando, contudo, que estes domínios supostamente separados efetivamente se misturam no decorrer da maioria das atividades cotidianas, Zelizer nos leva a pensar como este “consenso moral” é variavelmente acionado.2 2 Ver Fassin (2011) para uma demonstração semelhante sobre a aplicação variável das leis de adoção na França. Seguindo este tema, eu interrogo o medo enorme de “comercializar” crianças adotadas (evidente na legislação internacional bem como no tratamento midiático de escândalos em outras partes do globo), examinando como ele serve para justificar uma forma particular de adoção nacional, imprimindo contornos politicamente corretos ao princípio da “ruptura limpa” (clean break) – que postula uma cisão completa das relações entre a criança adotada e sua vida pré-adotiva.

Começo por uma rápida descrição de como, historicamente, o “princípio da ruptura limpa” que dita uma separação radical entre pais de nascimento e pais adotivos (virtualmente impossibilitando qualquer forma de paternidade compartilhada) avançou junto com o medo de um “mercado de bebês”. Num segundo momento, através de trabalhos etnográficos de campo (meus e outros), pretendo dar voz a algumas mães de nascimento e mães adotivas que – a despeito das injunções legais – tiveram algum tipo de contato. Examinando como o medo da influência contaminadora do dinheiro ressoa entre diversas pessoas envolvidas, espero deslocar o debate para um novo foco em que preocupações monetárias estão entremeadas àquelas sobre relacionamentos. Finalmente, olho para sutilezas nas leis nacionais e internacionais, traçando uma comparação entre leis contra o “tráfico de mulheres” e as contra o “tráfico de crianças” para colocar a pergunta: a quem as leis protegem?

A criança “sem preço”

Viviana Zelizer (1994)ZELIZER, Viviana. Pricing the priceless child: the changing social values of children. New York: Basic Books, 1994., propicia um sugestivo pano de fundo para este debate em sua análise da política de colocação de crianças nos Estados Unidos do final do século dezenove e início do século vinte. O estudo de arquivos institucionais sugere que, durante a maior parte do século dezenove, crianças eram toleradas, apreciadas ou procuradas conforme o trabalho que fossem capazes de fornecer. Meninos parrudos eram mais procurados do que meninas franzinas, e bebês eram vistos como um fardo. Os pais que não queriam ficar com seu recém-nascido podiam dá-lo para uma “fazenda de bebês” ou anunciar no jornal para uma família substituta. Em todo caso, esperava-se deles que fornecessem uma espécie de dote – um pagamento aos novos guardiões da criança – que compensasse os esforços dos cuidadores até que a criança fosse grande o bastante para garantir o seu próprio sustento. Nas primeiras décadas do século vinte, a noção da criança sentimentalizada – poupada do trabalho remunerado, investida com uma importância familiar puramente emocional – inverteu esta lógica. Apoiando-se em observações nessa época do surgimento de um “mercado bebê”, a autora comenta: “Ironicamente, enquanto o bebê “inútil” do século dezenove tinha que ser protegido porque ninguém o queria, o bebê “sem preço” (priceless) do século vinte “precisa mais que nunca de proteção … [porque] há pessoas demais tentando agarrá-lo” (1994, p. 193). Com a nova sensibilidade familiar, veio uma mudança no perfil das famílias adotantes (profissionais abastados ao invés de operários ou fazendeiros) e das crianças desejadas (“meninas de olhos azuis e cabelos dourados” ao invés de meninos robustos). E, dependendo da criança, os intermediários podiam dobrar seus lucros, demandando um bom pagamento dos pais adotivos bem como a contrapartida que exigiam tradicionalmente da mãe ou dos pais de nascimento.

Uma classe emergente de profissionais encarregados do bem-estar do “menor” (assistentes sociais, psicólogos etc.) tomou para si a tarefa de proteger essas crianças (agora) “sagradas” contra a poluição de um mercado comercial, mas eles também enfrentaram certo dilema. Já que queriam se distanciar dos intermediários venais que ousavam lucrar com a “venda fria e calculista de outro ser humano”, como poderiam cobrar taxas? Até os anos 1940, muitas instituições de adoção (orfanatos etc.) se recusavam a estipular taxas de serviços, apoiando-se exclusivamente em doações voluntárias, consideradas mais dignas das atitudes altruísticas que se esperavam de todos aqueles envolvidos:

A mudança de doações para [o pagamento de] taxas [profissionais] foi, portanto, um assunto delicado. Afinal, até 1939, os candidatos a pais adotivos eram avisados, “Nunca pague nada a ninguém por uma criança – agências confiáveis nunca cobram taxas”. (Zelizer, 1994ZELIZER, Viviana. Pricing the priceless child: the changing social values of children. New York: Basic Books, 1994., p. 204, tradução do inglês por CF)

Foi preciso inventar novas estratégias para justificar o pagamento de serviços profissionais. O dinheiro supostamente não ia para os indivíduos, e sim para as instituições cujo único objetivo era garantir o bem-estar das crianças. Em alguns serviços de adoção, as taxas eram apresentadas como uma resposta ao desejo dos pais adotivos de darem “algo em troca” (1994, p. 205). Contudo, a reconfiguração da legitimidade do dinheiro no campo da colocação de crianças admitiu algumas aberturas, e não outras. Por exemplo, a lógica do dinheiro “contaminador” continuou a ser usada para evitar ou minimizar subsídios a famílias de acolhimento. Estas, não mais autorizadas a esperar compensações através do trabalho da criança, eram agora levadas a se sentir mercenárias por exigir auxílio financeiro para suprir as necessidades das crianças. O pagamento das contas médicas e hospitalares de uma mãe de nascimento, uma prática comum em adoções independentes e sem fins lucrativos, também se tornou suspeito. Em outras palavras, o dinheiro podia fluir legitimamente de pais adotivos em geral abastados para uma classe emergente de profissionais. Quando distribuído para os escalões mais baixos – famílias de nascimento ou mesmo famílias acolhedoras –, o dinheiro representava uma perigosa transgressão ao que era considerado a pedra angular do cuidado bem-sucedido das crianças: o princípio do altruísmo.

Banindo lucro, reforçando formalidades legais

Se a justaposição de dinheiro e afeto parece aceita como inevitável em procedimentos envolvendo agências credenciadas de adoção, esta aceitação cai para zero em situações do outro lado da barreira de classe – isto é, aquelas envolvendo os pais de nascimento (quase sempre oriundos de contextos de grande precariedade social e econômica). Podemos exemplificar esta falta de tolerância com um relato que irrompeu em manchetes de jornais porto-alegrenses em março de 2009. Certo casal teria “vendido” seu bebê. Os pais “confessaram” seu crime explicando que eram pobres e tinham que pensar nas suas outras três crianças. Assim, durante essa quarta gravidez, localizaram um casal de pais adotivos através da patroa de uma vizinha. O casal adotante concordou em pagar todas as despesas hospitalares bem como uma pequena mensalidade de R$ 100,00 (cerca de US$ 50 à época). Tudo transcorreu bem até a criança nascer. Os administradores do hospital, achando estranho que uma mulher evidentemente pobre, de pele escura, tivesse um quarto privado, alertaram as autoridades legais. Uma visita pós-parto à casa da gestante confirmou a suspeita de que ela não ficou com o seu filho. Sob ameaça judicial, a mãe conseguiu trazer seu filho de volta dentro de uma hora. Porém, uma visita surpresa das autoridades no dia seguinte mostrou que a criança estava mais uma vez vivendo alhures, com seus pais adotivos. Agora, diante do medo de processo penal, a mãe de nascimento mudou a sua história para insistir que nunca aceitou dinheiro, e que tinha sido pressionada pelos pais adotivos para abrir mão da criança. Na época, funcionários do Juizado entrevistados por jornalistas aproveitaram a oportunidade para alertar a população, reiteradas vezes, que a única forma legítima de adoção de uma criança era endereçar sua demanda diretamente aos serviços de adoção do Tribunal.

Este episódio anuncia uma ambiguidade básica no sistema de adoção legal do Brasil. O artigo 166 do Estatuto da Criança, de 1990, permite o que se conhece por “adoção direta”: a possibilidade dos pais de nascimento passarem a sua criança para uma outra família, sob a condição da corte examinar e aprovar a transação. As estimativas são que, até recentemente, entre 50 e 75% das adoções legais no Brasil ocorriam assim, restringindo a interferência do juizado ao passo final – de aceitar ou rejeitar o arranjo acordado entre as famílias de nascimento e a adotiva (Ayres, 2008AYRES, Lygia Santa Maria. Adoção: de menor a criança, de criança a filho. Curitiba: Juruá Editora, 2008.). Apesar do processo ser tecnicamente legal, encontramos cada vez mais autoridades – nos hospitais, nos conselhos tutelares e nas procuradorias públicas – denunciando esta forma de “adoção direta” como se fosse igual à comercialização de bebês.

Houve, nos últimos anos, esforços judiciários, em consonância com legislação internacional, para a criação de um cadastro nacional único de crianças adotáveis, submetendo a adoção do início até o fim ao controle de uma autoridade central – o Juizado de Crianças e Adolescentes. Procedendo conforme o tipo de adoção plena estipulado pela Convenção de Haia sobre a Proteção de Crianças e a Cooperação para a Adoção Internacional (1993), as crianças não são “dadas” por seus pais a uma outra família. Elas são declaradas “abandonadas” pelas autoridades estatais e entregues anonimamente pelo tribunal para os seus novos pais adotivos.3 3 Ver Yngvesson (2002) sobre a distinção entre “dar” e “entregar” (give and give away) no processo de adoção. Desde o início dos anos 1990, os profissionais do judiciário brasileiro têm investido considerável energia na qualidade dos seus serviços de adoção e não aceitam de bom grado a existência de outras formas de mediação. Assim, não é mera coincidência que, em muitos dos escândalos midiáticos, o problema ressaltado não é tanto o dinheiro pago às gestantes, mas o fato do processo ter escapado às mãos da supervisão judiciária.

A ambivalência vivenciada pelos brasileiros em relação às autoridades legais pode ser vista na chamada “Lei de Adoção” (Lei n° 12 010) promulgada em 3 de agosto de 2009. Embora haja reiterada menção ao Cadastro Nacional de Adoção (instituído em 2009), uma cláusula que criminalizava a adoção direta, tornando arranjos extrajudiciais passíveis de punição de prisão ou de multa, foi retirada da lei umas poucas semanas antes dela ser aprovada no Congresso (Couto, 2009COUTO, Rodrigo. Na mídia: os filhos de uma nova lei. Correio Braziliense, Brasília, 15/07/2009 <http://mercadante.com.br/noticias/ultimas/na-midia-os-filhos-de-uma-nova-lei/>.
http://mercadante.com.br/noticias/ultima...
). Ao invés de criminalizar a adoção direta, a versão final da lei busca regular melhor o processo, acrescentando seis subparágrafos ao artigo existente (166) do Estatuto da Criança.

A persistência da adoção direta se deve em grande medida aos adotantes em potencial que perdem paciência com os longos prazos (geralmente de dois a cinco anos) que enfrentam ao esperar na fila do Cadastro Nacional. Neste procedimento oficial, há menos de uma criança para cada cinco adotantes potenciais,4 4 Em maio de 2010, jornais noticiaram que o Cadastro Nacional Único continha uma lista de 5000 crianças adotáveis, e uma lista de espera de 27000 candidatos à paternidade adotada (ver Folha de São Paulo, 09/05/2010). e muitas das crianças disponíveis (sendo mais velhas, mais escuras, ou de frágil condição de saúde) não correspondem ao perfil procurado pela maioria dos adotantes. Contudo, pesquisa etnográfica sugere que as mães de nascimento podem ter um interesse ainda maior na adoção direta. As duas histórias seguintes, a primeira extraída de minhas próprias atividades de campo, a segunda das de uma colega pesquisadora, foram escolhidas como ilustrações desta hipótese.

Lucia – ajuda, contato e cuidado

Lucia é uma mãe adotiva de quarenta e poucos anos de idade que eu conheci em 2007.5 5 Informações estabelecidas ao longo de uma série de entrevistas em Porto Alegre, realizadas no âmbito de um projeto de pesquisa enfocando adultos adotados (Fonseca, 2009b). Na época, ela havia realizado há pouco o seu sonho de adotar uma segunda criança. A adoção de seu primeiro filho, já adolescente, fora realizada através dos trâmites oficiais do Juizado e ela e seu marido queriam repetir a experiência. Num primeiro momento, eles receberam uma avaliação positiva do Juizado reconhecendo suas habilidades como pais. Porém, a equipe especializada do juizado considerava o apartamento deles, de um dormitório, inadequado para uma família de duas crianças, e assim o pedido do casal foi classificado como “não prioritário”. Apesar de Lucia trabalhar como secretária em uma pequena empresa de propriedade dos seus pais, e seu marido ser funcionário público, os proventos do casal não permitiam a compra de uma casa maior. Através de divisões improvisadas, eles haviam criado um segundo quarto, mas as autoridades juvenis insistiam: deveria haver um quarto separado para cada criança. Informados da longa lista de candidatos a pais registrada no Tribunal, eles perceberam que suas chances de receber uma criança eram mínimas.

Lúcia conta que havia praticamente perdido esperança quando, de repente, recebeu um telefonema de uma ex-vizinha anunciando que sua faxineira engravidara. Uma mulher com “problemas de bebida”, e “confusão mental” episódica, Simone – a grávida – tinha manifestado o desejo de dar seu bebê em adoção, assim como ela havia feito com dois de seus três filhos anteriores. Como em tantos outros casos, a mulher grávida evidentemente sentia mais confiança na mediação de sua empregadora do que nos serviços impessoais de adoção dos Tribunais.

Aconselhada por sua amiga a evitar o contato direto com a mulher grávida (“Eu conheço Simone, ela vai tentar tirar vantagem de ti”), Lucia conseguiu manter uma distância inicial. Mas aos cinco meses da gravidez, a gestante recebeu um tiro que colocou a sua gravidez em risco; ela parou de trabalhar e se mudou para a casa da sua eventual empregadora (ex-vizinha de Lúcia). Daquele momento em diante, as duas mães – Lucia e Simone – começaram a conversar diariamente ao telefone, estabelecendo uma espécie de respeitável amizade em que as duas mulheres partilhavam informação não identificadora a respeito de suas respectivas famílias bem como atualizações sobre o desenvolvimento do feto. Lucia admite que duas vezes durante aqueles últimos meses de gravidez ela e o seu marido providenciaram compras de supermercado para a manutenção da casa da gestante, “porque ela mesma não podia trabalhar”. Mas, ela insiste, nunca deram dinheiro.

As duas mulheres nunca haviam se encontrado frente a frente quando Simone finalmente entrou em trabalho de parto. Lucia e seu marido, que imediatamente foram ao hospital e estavam entre os primeiros admiradores do bebê no berçário, cuidadosamente evitaram o quarto da mãe de nascimento. “Todo mundo” (sua ex-vizinha, seus próprios pais etc.) tinha alertado Lúcia que, para prevenir eventuais complicações causadas pela mãe de nascimento pedindo dinheiro ou, pior, a volta da criança, ela deveria evitar qualquer contato; não deveria deixar escapar nenhuma informação identificadora. A mediação da ex-vizinha serviria como garantia de anonimato para a transferência da criança da parturiente aos braços expectantes dos seus pais adotivos.

As coisas, contudo, não saíram conforme o planejado. A criança teve uma leve icterícia, e o hospital insistiu em mantê-la por um par de dias. A mãe de nascimento, que até então tinha boa parte das despesas cobertas pela Saúde Pública, poderia ficar para cuidar do bebê, mas depois de 24 horas ela deveria responsabilizar-se pelas próprias refeições. Jogando a cautela às favas, Lucia começou a trazer comida para Simone, cimentando um relacionamento pessoal com a jovem mãe: “Eu disse que se era para ela tentar se aproveitar de mim, ela já teria começado há tempo.” O pessoal do hospital passou a aceitar Lúcia como a avó do bebê.

A complicação maior ocorreu no dia em que a criança foi autorizada a ir para casa. Lucia e seu marido estavam esperando à porta do hospital por Simone e seu bebê, mas a mulher veio aos prantos e de mãos vazias. Um telefonema anônimo ao hospital tinha denunciado a sua situação como uma “venda” de bebês, e agora eles tinham que enfrentar acusações dos profissionais do hospital junto à possibilidade de um processo criminal. Numerosas reuniões informais seguiram no hospital, nas quais Simone afirmava reiteradamente não ter recebido qualquer pagamento pela criança. Além do mais, ela insistia que não daria a sua criança em adoção para qualquer outra além de Lucia. Excluída esta alternativa, ela levaria relutantemente a criança para casa, para viver em condições altamente precárias. Concluídas as investigações, Lucia e seu marido – que foram obrigados a contratar um advogado que intermediasse as negociações com o juizado – foram autorizados a iniciar procedimentos oficiais de adoção, levando a sua filha recém-nascida para casa dois dias depois.

Lucia manteve um contato episódico com a mãe de nascimento pelos meses seguintes até que ela tomou conhecimento da morte, por novo ferimento à bala, da mulher. Embora entristecida pela perda, ela expressa sua satisfação de ter conhecido pessoalmente Simone e de poder fornecer para sua filha muitos detalhes de sua biografia bem como, se for preciso, possíveis pistas para o encontro de parentes consanguíneos. Não há qualquer dúvida na mente de Lucia: ela não comprou seu bebê, não exerceu pressões indevidas sobre a mãe de nascimento. Ela ajudou Simone durante a sua gravidez, e, no final, ela foi obrigada a pagar um advogado para completar a adoção. Porém, acima de tudo, ela enfatiza a relação de respeito mútuo que ela formou com a mãe de nascimento da sua filha. Além do mais, ela está convencida de que esta relação beneficiará o seu próprio relacionamento com a sua filha adotiva. O epílogo pungente desta narrativa é que a própria Lucia é filha adotiva. Seus pais adotivos negaram-lhe quaisquer informações sobre a sua família de nascimento, e apenas nos recentes anos ela foi capaz de vivenciar um contato, altamente gratificante, com parentes de sua família de origem.

Adriana – contato mediado, contratos quebrados

Seria errôneo, contudo, pretender que todas as transferências de crianças ocorram de forma tão harmoniosa. Talvez possamos aprender mais sobre as ambivalências básicas das pessoas ao observar um caso que revela suspeitas inconvenientes e demandas questionáveis em ambos os lados da transação. A história que se segue é parte do trabalho de Fernanda Mariano (2008)MARIANO, Fernanda Neisa. Adoções “prontas” ou diretas: buscando conhecer seus caminhos e percalços. Tese de Doutorado na USP, FFCLRP, Departamento de Psicologia e Educação, PPG em Psicologia, 2008., uma psicóloga judiciária e professora universitária no estado de São Paulo, que visitou Adriana, certa mãe de nascimento, em intervalos intermitentes ao longo de sua gravidez indesejada. A mãe de nascimento estava criando apenas um de seus filhos; os outros haviam sido distribuídos entre os diferentes parentes deles. Motivada pela firme resolução de ter finalmente, durante esta décima gravidez, alguém zelando por ela – alguém que estaria com ela no hospital e que pagaria suas despesas hospitalares, incluindo os custos de uma operação cesariana e uma ligadura de trompas – ela foi à procura de pais adotivos para o seu bebê.6 6 Existem, no Brasil, serviços públicos gratuitos para todas as etapas do parto bem como para a esterilização. Adriana, porém, demonstra pouca habilidade no acesso a estes serviços básicos. Ela também alega ter tido dificuldades em acessar subsídios governamentais tais como bolsa família.

O casal eleito, amigos do ex-empregador de Adriana, foi cuidadoso ao evitar o contato direto com a mulher que tinha sido rotulada por mais de um observador como “negligente” e “desequilibrada”. Todos os contatos se deram através da mediação de um advogado que deveria providenciar formas modestas de ajuda ao longo da gravidez: uma cesta básica, remédios quando necessário, e leite para a filha de um ano de idade de Adriana. Primeiramente Adriana parecia satisfeita – curtindo a ideia de estar ajudando uma mulher sem filho a vivenciar as alegrias de uma família. O advogado ia com ela às consultas médicas pré-natais e, pela primeira vez, ela viu o seu bebê numa máquina de ultrassom. Por sugestão do advogado, ela escreveu uma carta para ser guardada para futura referência da criança, recebendo em contrapartida promessas de fotografias e outras lembrancinhas.

Porém, na metade da gravidez, a resolução de Adriana começou a ruir. O que a criança pensaria dela – uma “mãe abandonante” – quando ela crescesse? Não haveria alguma forma dela participar, junto aos pais adotivos, da maternagem do filho? Aliás, ela não estava recebendo o tratamento que ela esperava: o advogado estava sempre a pedir recibos para o reembolso de suas despesas – notas que ela alegava ter perdido ou esquecido. Classificada por seu médico como uma “gravidez de risco”, ela foi avisada que não devia pegar novas faxinas, mas o advogado se recusou a compensá-la pelos salários perdidos. Adriana se decepcionou profundamente por não ter tido contato pessoal com os futuros pais adotivos do seu nenê e desconfiou que o advogado estaria corrompendo o que de outra forma poderia ter sido um entendimento mútuo entre as duas famílias. Ainda por cima, as vizinhas de Adriana estavam exercendo pressão para ela desistir do negócio, insistindo que elas ajudariam a cuidar do bebê. Elas insinuaram que ela estava sendo passada para trás, que os pais adotivos não estavam mantendo a sua parte do trato. Foi neste momento que Adriana começou a objetar que ela se sentia como uma “cadela” que estava entregando seu filhote. Confrontado às hesitações da gestante, o advogado rebateu com ameaças: seus clientes já haviam investido muito dinheiro e, se ela recuasse na decisão, eles abririam um processo contra ela pedindo reembolso, e ela correria o risco de ser presa.

O contato final da pesquisadora ocorreu um pouco depois do nascimento do bebê. Conforme Adriana conta a história, logo depois do nascimento, uma amiga do casal adotante veio junto com o advogado e o pessoal do hospital para levar o seu nenê embora: “O que eu podia fazer”? Embora ela mal estivesse em condições de andar, ela foi obrigada a passar por diferentes escritórios burocráticos para tirar a certidão de nascimento e assinar outros documentos. Conforme ela foi orientada, declarou a criança “de pai desconhecido” embora estivesse vivendo com este pai na época, e depois ela foi deixada em casa, para se virar como podia durante o período de recuperação. Na sua última entrevista com a pesquisadora, reclamando que tinha sido pressionada, que não tinha recebido o tratamento que esperava, e que sequer tinha certeza dos médicos terem ligado suas trompas, Adriana confessou estar “pensando seriamente” em ir à Justiça para pedir seu filho de volta.

Neste pior dos cenários da adoção direta, seria conveniente creditar os conflitos à mente “desequilibrada” de Adriana, mas o conhecimento de outros casos semelhantes nos leva a sugerir que Adriana está dando voz – mesmo que cruamente – a ambivalências sentidas por muitas outras mães de nascimento. Tais ambivalências não emergem no debate público com frequência – graças à imagem reconfortante, promovida pelos pais adotivos e seus intermediários, de mães biológicas como vítimas passivas. Os pais de nascimento são vistos como “nobres” e “abnegados” quando demonstram atitudes de contrição, vergonha, submissão e eventualmente gratidão (para com os pais adotivos) esperadas deles. Acima de tudo, a “boa” mãe de nascimento é aquela que aceita ser completamente esquecida. Os casos acima – e o de Adriana em particular – são provocativos exatamente por mostrarem que as coisas não são tão simples assim.

Quem está sendo protegida?

Tem-se declarado com grande insistência que a objeção à adoção direta – ou, de fato, a qualquer contato entre as famílias de nascimento e adotiva – é que torna famílias de nascimento vulneráveis a pressões de adotantes que fariam qualquer coisa para ter um filho. Esse argumento reconhece tacitamente a desigualdade que existe em praticamente todos os processos de adoção – sublinhando o “poder de compra” de adotantes relativamente prósperos que poderiam tirar vantagem de famílias vítimas de pobreza. De fato, a história de Adriana dá sustento a este medo. Porém, como a antropóloga Villalta apontou, no contexto argentino, já que a adoção direta é vista como forma encoberta de tráfico de bebês, a “proteção” de mães de nascimento pela lei também as exclui da possibilidade de participar da escolha da família adotiva” (2011, p. 112). Curiosamente, a ideia de proteger mães de nascimento se coaduna frequentemente com a ideia destas mulheres serem moralmente incompetentes. Como um juiz no contexto argentino comenta, “é muito discutível se a corte deve ou não dar ouvidos a uma mulher que optou por abandonar a sua criança” (Villalta, 2011VILLALTA, Carla. Entregas, adopciones y dilemas en el campo de organismos destinados a la infancia. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 103-123, abr. 2011., p. 106).

Ironicamente, esta atitude da autoridade judicial não é de todo estranha àquela expressa por pessoas que eu encontrei durante a pesquisa em bairros de baixa renda em Porto Alegre. Desde os primeiros dias de campo (início dos anos 80), estudei a prática da “circulação de crianças”, em que jovens são transferidos de uma família para outra, seja por meses, por anos ou pela vida inteira – completamente à revelia de qualquer supervisão legal (Fonseca, 1995FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.). Reparei que, embora esta prática esteja ancorada em redes de solidariedade e ajuda mútua, não é isenta de conflito. Em alguns casos, a mãe de nascimento pode reaparecer após anos, alegando que sua vida melhorou e que ela está preparada para assumir a sua criança. Tais casos provocam inúmeros debates entre as diferentes mães sobre a quem compete o direito prioritário à criança. Não era incomum escutar objeções indignadas endereçadas às mães de nascimento: “Tudo que aquelas mulheres querem é que alguém cuide dos seus filhos de graça”. As mães cuidadoras podiam inclusive considerar o interesse renovado de mães de nascimento como uma forma de chantagem emocional: “Ela na verdade não quer a criança de volta; ela só está dizendo isso para nos obrigar a dar algum tipo de ajuda.” Estas acusações vão muito além de alegações de incompetência. Apresentam as mães de nascimento como mulheres sem o mérito moral para serem chamadas de mães.

Há, contudo, outro lado desta história que, graças à pesquisa de campo, emerge com igual intensidade – o de mães de nascimento que tendem a evocar um conjunto diferenciado de significados para justificar suas atitudes. A maioria das mulheres que entrevistei negou qualquer conotação no sentido de ter “abandonado” um filho. Argumentavam, pelo contrário, que elas tinham sacrificado suas próprias emoções de modo a garantir às suas crianças uma vida melhor. Elas tinham agido como mães responsáveis e amorosas tomando cuidado para escolher uma boa família adotiva. (Seguiam frequentemente com descrições sobre todos os confortos dos quais a criança gozava em sua nova, relativamente próspera, família.) A relação de respeito mútuo que elas mantinham com os pais adotivos coroava as provas quanto aos resultados positivos de seu consentimento bem ponderado. Quando podiam, elas enfatizavam a delicada paciência demonstrada pela mãe adotiva em potencial (frequentemente escolhida dentro da família estendida da criança) ao confrontar-se com as ambivalências da mãe que lhe doava seu filho (Fonseca et al. 1994FONSECA, Claudia; GOLDOPHIM, Nuno; ROSA, Rogerio; CARDARELLO, Andrea. Ciranda, cirandinha: histórias da circulação de crianças em grupos populares. Porto Alegre: Navisual/Ufrgs, 1994 (Vídeo).; Fonseca, 2006FONSECA, Claudia. Da circulação de crianças à adoção internacional: questões de pertencimento e posse. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 11-43, jan.-jun. 2006.). Parecia ser importante para essas mulheres declarar em suas narrativas que: a) elas sabiam onde estavam seus filhos, e, portanto, podiam continuar avaliando seu bem-estar no contexto da nova família; e b) elas tinham sido tratadas pelos pais adotivos enquanto parceiras válidas nas decisões que afetariam seus filhos. Em outras palavras, tinham estabelecido uma espécie de relação (mesmo se breve ou extremamente episódica) com os pais adotivos, na qual sentiam que sua dignidade de mães gestantes havia sido preservada.

É claro, seria difícil que os pais de nascimento admitissem em entrevista que tinham tentado extrair benefícios pessoais da colocação da sua criança. Contudo, como vimos no escândalo jornalístico citado acima, se chegar à atenção pública a ideia de que beneficiaram da situação, os pais de nascimento justificarão esse fato evocando a necessidade de cuidar bem das suas outras crianças – irmãos da criança adotada. A ideia é que, mais que uma questão de enriquecimento pessoal, o dinheiro pode ser uma ferramenta para a solidariedade familiar. Esta hipótese inspira uma interpretação interessante sobre as acusações que escutamos de certa mulher, de que sua vizinha havia dado seu bebê em adoção “como se fosse um cacho de bananas”. A comparação pode estar simplesmente realçando a condenação moral previsível de qualquer mulher que escolhe não ficar com seu filho. Também pode significar que a mãe agiu irresponsavelmente, barateando o valor do seu bebê e negligenciando as necessidades de outros membros da família, por não exigir um presente apropriado em troca.

Marilyn Strathern (1992)STRATHERN, Marilyn. Reproducing the future: anthropology, kinship and the new reproductive technologies. New York: Routledge, 1992. joga luz sobre as várias maneiras possíveis de interpretar a transferência de crianças. Destacando diferenças entre perspectivas melanésias e europeias, a antropóloga sugere que a lógica ocidental de consumo é definida não tanto pelo dinheiro como pela imagem de um mercado impessoal, calcado no indivíduo autônomo exercendo seu livre arbítrio. Conforme esta perspectiva, mesmo o altruísmo caridoso segue as diretrizes da lógica de consumo ocidental, valorizando a noção de doações anônimas a um recipiente sem rosto. A ideia do desprendimento que acompanha a ação caridosa seria estranha à economia da dádiva melanésia, cujo objetivo principal é produzir relações e fortalecer obrigações mútuas. A própria ideia de ser possível “entregar” objetos – sejam crianças ou pulseiras – como se fossem destacáveis das relações originais que as engendraram – carrega conotações particularmente ocidentais de propriedade e pertencimento (ver também Yngvesson, 2002YNGVESSON, Barbara. Placing the ‘gift child’ in transnational adoption. Law & Society Review, Malden, v. 36, n. 2, p. 227-256, 2002.).

A análise de Strathern provoca uma guinada interessante nas usuais acusações contra a comercialização de crianças. Na perspectiva dessa autora, a adoção legal – que apresenta crianças como bens “destacáveis” no circuito anônimo de doações altruísticas – estaria mais próxima à lógica de mercadorias, enquanto os pequenos pagamentos, líquidos e em espécie, feitos por pais adotivos à família de nascimento – simbolizando relações e obrigações mútuas – estariam mais perto do espírito da dádiva.

É significativo que são os pais adotivos que relacionam a influência contaminadora do dinheiro à necessidade de cortarem todos os contatos com a família de nascimento, e são eles que valorizam as relações claramente contratuais estabelecidas pelos juizados. Uma advogada, especialista em adoção direta, nos disse em entrevista que sempre adverte seus clientes: “É melhor você não ajudar demais durante a gravidez da mulher; você nunca pode ter certeza de que ela não vai mudar de ideia”. A mesma advogada explica ser imprudente que o casal adotante receba a criança antes de finalizar o processo no juizado: “É o juiz que garante os direitos dos pais adotivos”. Nesse mesmo sentido, não é nada surpreendente encontrar pesquisas sugerindo que os adotantes em potencial submetem-se aos longos tramites do processo adotivo no juizado justamente porque más experiências em tentativas anteriores de adoção direta (Oliveira e Abreu, 2009OLIVEIRA, Juliana A.; ABREU, Domingos. Fugindo da regra, entrando na Lei: famílias que adotam no Juizado da Infância da cidade de Fortaleza. Rio de Janeiro, 2009. (Trabalho apresentado no workshop Revisitando o melhor interesse da criança, UERJ)). O anonimato garantido pelo juizado agrada os pais adotivos justamente porque esvazia de antemão a possibilidade de uma relação, reduzindo o poder de barganha da mãe de nascimento a zero.

Os pais de nascimento, por sua vez, parecem depositar grande valor nas relações. Assim, evitam os serviços judiciais que lhes negam esta possibilidade. Uma advogada que entrevistei, ao descrever uma cena da qual participou, ilustra o tipo de perplexidade que mães de nascimento podem vivenciar quando confrontadas com os termos da adoção plena. O episódio ocorreu durante uma audiência na qual o juiz estava oficializando uma adoção direta planejada e arranjada pela própria mãe de nascimento. Seguindo o trâmite usual, o juiz tentou explicar os termos legais da adoção da maneira mais clara possível. Sublinhando o fato de que, após a assinatura da renúncia à criança, a mãe não teria mais contato ou informação relacionada à criança, ele concluiu: “Você nunca mais vai ver a sua criança. Será como se o seu bebê tivesse morrido. Você aceita estas condições?” Para a consternação de todos os presentes, a mulher, visivelmente perturbada pelas palavras do juiz, disse “não”. O acordo descrito pelo juiz, evidentemente, não era aquele que ela tinha imaginado quando fez o arranjo com os pais adotivos de sua criança. A audiência foi imediatamente suspensa e as autoridades da corte estavam se retirando quando a mãe de nascimento, ao tentar em vão entregar o bebê para o casal que escolhera, se deu conta de que, sem querer, ela havia inviabilizado a adoção. Nessas alturas, descobrindo que não tinha outra opção, a mãe de nascimento pediu para chamar todo mundo de volta e re-convocar a sessão. Episódios como este nos induzem a pensar que são os relacionamentos, e não o dinheiro, o que mais importa na “barganha” da mãe de nascimento.

Legislação internacional: medo do tráfico, políticas de controle

Podemos situar a adoção dentro de um campo amplo de pessoas que se deslocam entre países por questões de dinheiro e afeto (Constable, 2009CONSTABLE, Nicole. The commodification of intimacy: marriage, sex, and reproductive labor. Annual Reviews of Anthropology, Palo Alto, v. 38, p. 49-64, Oct. 2009 <10.1146/annurev.anthro.37.081407.085133>.; Coutin, Maurer e Yngvesson, 2002COUTIN, Susan; MAURER, Bil; Yngvesson, Barbara. In the mirror: the legitimation work of globalization. Law & Social Inquiry, Malden, v. 27, n. 4, p. 801-843, Oct. 2002.). Adriana Piscitelli (2009)PISCITELLI, Adriana. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 15, n. 31, p. 101-136, jun. 2009., fitando profissionais do sexo, levanta uma série de considerações relevantes à nossa discussão. Em particular, endereçando-se ao controle legal da atividade, chama atenção para ambiguidades na própria definição do “tráfico” de mulheres. Por exemplo, no artigo 3 do Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças (Palermo, 2000), o elemento definidor do “tráfico” envolve não apenas os meios ilícitos de recrutamento (fraude, coerção e pagamento) como também a intenção de explorar as pessoas: “A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos” (Nações Unidas, 2000UNITED Nations. Optional protocol to the convention on the rights of the child on the sale of children, child prostitution and child pornography, 2000. <http://www.unhchr.ch/html/menu2/6/crc/treaties/opsc.htm> (10 abr. 2009).
http://www.unhchr.ch/html/menu2/6/crc/tr...
, art. 3°). Contudo, onde o Protocolo de Palermo implicitamente sugere que alguns trabalhadores do sexo podem escolher livremente cruzar fronteiras nacionais e assim não entram na categoria de “tráfico”, o Código Penal Brasileiro vincula potencialmente toda prostituição ao “tráfico”. Desconsiderando a questão da coerção, a lei brasileira criminaliza qualquer um que “facilite” uma mulher a cruzar fronteiras nacionais para trabalhar na indústria do sexo.

Trabalhando com base em pesquisa etnográfica entre mulheres brasileiras vivendo na Espanha e Itália – algumas das quais alternando prostituição com outros empregos, outras que são profissionais em tempo integral, e ainda outras que casaram com um cliente –, Piscitelli ressalta ambiguidades ligadas às proibições legais em torno dos deslocamentos de seus informantes. Embora a pesquisadora tenha encontrado intermediários comerciais – que financiavam a passagem de uma mulher para que trabalhasse em algum clube noturno, ela também encontrou redes sociais informais baseadas em amizades de longa data. Nenhuma das entrevistadas falou que tinha sido coagida a trabalhar ou obrigada a continuar na prostituição contra a sua vontade. As mulheres (que possuem um nível educacional acima da média) falavam de seus deslocamentos transnacionais como uma maneira de melhor canalizar seus recursos profissionais em projetos de ascensão socioeconômica. Contudo, um bom número destas mulheres já foi submetido a interrogatórios policiais humilhantes, encarceramento e deportação em nome do combate ao “tráfico” de mulheres. Em suma, o estudo de Piscitelli nos lembra como pode ser tênue a linha entre proteção e perseguição às pessoas envolvidas.

Existem paralelos instigadores que podemos assinalar entre as observações de Piscitelli sobre o “tráfico” de mulheres e nossa análise sobre o “tráfico” de crianças. Uma primeira semelhança é que tanto a prostituição quanto a adoção se prestam a abusos, exigindo, portanto, alguma regulamentação governamental. Ao longo do primeiro “boom” na adoção internacional (durante os anos 70 e 80), inúmeros escândalos apontaram para um lucrativo “comércio de bebês” que parecia florescer na América Latina e em países Africanos e Asiáticos onde o controle legal era mínimo (Briggs e Marre, 2009BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. Introduction. In: BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. International adoption: global inequalities and the circulation of children (Orgs.). New York: New York University Press, 2009. p. 1-28.). Os escândalos sublinhavam o fato de que a adoção tinha se tornado uma indústria com grande potencial de lucro. Assim, dispararam um alarme em fóruns internacionais, firmando a convicção de que, se a adoção não fosse estritamente regulamentada, as crianças adotadas seriam transformadas em mercadoria. Em resposta a este tipo de alarme, legisladores nacionais e internacionais decretaram regulações cada vez mais detalhadas sobre a circulação de crianças, culminando na Conferência Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional (Haia, 1993). Curiosamente, a regulamentação parece ter estimulado a adoção internacional, e, ultimamente, os índices anuais batem recordes (Selman, 2009SELMAN, Peter. The movement of children for international adoption: developments and trends in receiving states and states of origin, 1998-2004. In: BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. International adoption: global inequalities and the circulation of children (Orgs.). New York: New York University Press, 2009. p. 32-51.). Porém, nestas décadas posteriores à Convenção de Haia, os escândalos envolvendo o “tráfico de órfãos” diminuíram ou, ao menos, tornaram-se mais episódicos.

Uma segunda similaridade diz respeito às ambiguidades da definição legal do “tráfico”. Quando escândalos vêm à baila – tal como o incidente Darfur (Fonseca, 2009aFONSECA, Claudia. Transnational negotiations of the mechanisms of governance: regularizing child adoption. Vibrant, Brasília, v. 6, n. 1, p. 8-36, jan.-jul. 2009a.) ou, mais recentemente, a suposta abdução de crianças haitianas – parece existir certa confusão sobre o que exatamente se define como “tráfico”. Não obstante as manchetes sobre “tráfico de crianças”, escândalos tais como aqueles em Darfur ou Haiti não se enquadrariam tecnicamente nesta categoria. Embora houvesse acusações iniciais de que as crianças seriam usadas em redes de pedofilia ou para a extração de órgãos, era claro para a maioria das pessoas envolvidas que as crianças em questão estavam sendo “sequestradas” não para serem exploradas comercialmente, mas para serem criadas como filhos e filhas em lares europeus e norte-americanos. Esse tipo de irregularidade não se enquadra no Protocolo de Palermo. Cabe, isto sim, em outras legislações internacionais tais como a Convenção de Haia ou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à venda de crianças, prostituição e pornografia infantis (Nações Unidas, 2000b). Embora o grosso deste último documento seja centrado em abusos ligados a sexo, ele estabelece uma ampla definição para a venda de crianças – “qualquer ato ou transação pela qual uma criança é transferida por qualquer pessoa ou grupo de pessoas para outra pessoa ou grupo em troca de remuneração ou qualquer outra retribuição” (art. 2º). Nas recomendações para a definição de atos criminosos, preocupações sobre “remuneração” perdem terreno para preocupações sobre a legalidade formal, isto é, o “consentimento obtido de forma indevida, como mediação, para a adoção de uma criança em violação dos instrumentos internacionais aplicáveis em matéria de adoção” (art. 3). O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) junta os dois problemas – remuneração e ilegalidade – no mesmo artigo (239), definindo como crime sujeito a multa e de quatro a seis anos de prisão: “Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro.”

Esta fusão de lucro com irregularidade legal é uma terceira similaridade que encontramos nas medidas legais formuladas para controlar o “tráfico” das pessoas. É significativo que o protocolo sobre a “venda de crianças” define atos criminosos em termos não de lucro, mas de violação da lei internacional. No campo da adoção, certas formas de lucro são aceitáveis. Tomemos, por exemplo, as recomendações postuladas em uma avaliação da Convenção de Haia, pela Secretaria Permanente da Conferência de Haia e empreendida pelo ISS (Serviço Social Internacional, 2005INTERNATIONAL Social Service. Evaluation of the practical operation of the Hague Convention of 9 May 1993 on Protection of children and co-operation in respect of inter-country adoption, 2005.). O relatório do ISS reconhece a importância de agências credenciadas de adoção para diversos serviços – a preparação e o apoio às crianças, o aconselhamento de famílias de nascimento e o acompanhamento de famílias adotivas etc. – que as autoridades centrais dos países doadores ou acolhedores teriam dificuldade em prover. Evidentemente, para assegurar serviços de alta qualidade, estas agências – quase sempre sediadas em “países acolhedores” do hemisfério norte – devem estipular taxas profissionais cobradas aos pais adotivos em potencial. Na América do Norte, onde críticos questionaram o caráter “sem fins lucrativos” de algumas organizações, agências mais respeitáveis se esforçam em garantir uma política de transparência, publicando o preço de seus vários serviços na internet (os preços podendo alcançar dezenas de milhares de dólares). Mesmo agências europeias, cujos serviços são subsidiados por seus respetivos governos, ainda alertam os pais adotivos em potencial quanto à carestia de uma adoção internacional.

Por outro lado, assim como outros países “doadores”, o Brasil tem tentado afastar a adoção de conotações comerciais concentrando procedimentos em juizados da infância onde serviços (aconselhamento, estudos domiciliares etc.) são prestados sem nenhuma cobrança de taxas. O ponto curioso é que, por lei, os juizados pedem que adotantes estrangeiros em potencial passem por uma “agência especializada e credenciada em seu país de origem”. Fazendo isso, cria-se uma articulação que coloca em confronto filosofias diversas sobre o uso legítimo de dinheiro no campo da adoção.

O documento do ISS oferece uma pista para o entendimento quanto aos perigos do uso do dinheiro em transações adotivas. Recomenda medidas enérgicas contra as pressões exercidas por pais adotivos potenciais, agências credenciadas e as autoridades de seus respetivos países que, no afã de sua procura por bebês em boa saúde, arriscam cometer abusos e desconsiderar o melhor interesse da criança (ISS, 2005INTERNATIONAL Social Service. Evaluation of the practical operation of the Hague Convention of 9 May 1993 on Protection of children and co-operation in respect of inter-country adoption, 2005., p. 3).

Entre os maiores vetores de abuso potencial, o documento destaca adoções “independentes” ou “diretas” – aqueles acertos arranjados “diretamente […] entre os pais de nascimento ou tutores da criança e os pais adotivos potenciais sem a intervenção de uma terceira parte profissional no processo de colocação” (ISS, 2005INTERNATIONAL Social Service. Evaluation of the practical operation of the Hague Convention of 9 May 1993 on Protection of children and co-operation in respect of inter-country adoption, 2005., item 6). Consistente com esta perspectiva, o relatório destaca a importância do princípio de “ruptura limpa” da Convenção de Haia, ampliando sua esfera de impacto. Artigo 29 da Convenção de Haia estipula um limite temporal à sua recomendação: não deve haver contato entre pais adotivos potenciais e pais de nascimento antes de intermediários credenciados fazerem o acerto da família adotiva com a criança adotada, completando todos os procedimentos necessários. O documento ISS sugere que mesmo depois de completar esses procedimentos, qualquer contato seria “incompatível com o espírito” da Convenção de Haia. Citando o Relatório Explanatório da Convenção de Haia, estipula um banimento radical e permanente de qualquer tipo de comunicação entre pais de nascimento e pais adotivos:

o artigo 29 sanciona, como regra, a proibição de contatos em termos gerais, portanto incluindo não apenas “[contatos] diretos, sem supervisão”, mas igualmente contatos “indiretos” ou “supervisionados” ([…]: visitas, correio postal, telefonemas, fax, e-mail) (ISS, 2005INTERNATIONAL Social Service. Evaluation of the practical operation of the Hague Convention of 9 May 1993 on Protection of children and co-operation in respect of inter-country adoption, 2005., p. 6).

Neste documento, em um encadeamento particular de associações, a adoção “sem fins lucrativos” se traduz por adoção sem nenhum contato entre as diferentes famílias, isto é, onde os mediadores garantem uma “ruptura limpa” na biografia da criança. Os riscos do contato pre-adotivo (que poderia eventualmente incitar impulsos comerciais) justificam o embargo ao contato pós-adotivo, acionando o medo da mercantilização para justificar medidas que vão muito além dos riscos principais.

Esse uso de “risco” para expandir medidas de controle apresenta uma última comparação com o “tráfico de mulheres”. Inspirados nessa comparação, levantamos a hipótese de que, tal como no caso descrito por Piscitelli, as preocupações legislativas cunhadas aparentemente para garantir a proteção (de famílias de nascimento) resultam em medidas que são recebidas pela próprias “vítimas” como mais opressoras do que protetivas.

Considerações finais

O anonimato exigido pelo juizado nos procedimentos de adoção foi consequência da crescente valorização da criança sentimentalizada e do desejo de prevenir contra um mercado cada vez mais tentador de bebês. Nos anos 60, políticas de adoção em praticamente todos os países ocidentais estavam ditando o princípio da “ruptura limpa”, segundo o qual a mãe de nascimento se tornava anônima, completamente eliminada da vida pós-adotiva de seu filho. A política era justificada pela alegação de que eram as próprias mães de nascimento – mães solteiras buscando esconder a vergonha de uma criança ilegítima – que exigiam o anonimato. Contudo, historiadores notam que a confidencialidade jurídica – que protege os procedimentos jurídicos contra a intrusão indiscreta de “terceiras partes” – teria sido suficiente para satisfazer a ampla maioria das mulheres (Samuels, 2001SAMUELS, Elizabeth. The idea of adoption: an inquiry into the history of adult adoptee access to birth records. Rutgers Law Review, New Jersey, v. 53, p. 367-437, Winter 2001.). Baseada em minha pesquisa, sugiro que o anonimato parece coincidir mais com os gostos dos pais adotivos. Apenas com a garantia do anonimato completo, impossibilitando qualquer contato com a família de nascimento, é que eles se sentiriam resguardados das ambivalências e eventuais demandas da mãe de nascimento.

É claro, os dilemas apresentados por adoções transnacionais e interclasses não permitem uma solução fácil. A regulação legal e a supervisão profissional são, sem dúvida, necessárias. As pessoas envolvidas não podem ser distribuídas em categorias fáceis de “gente boa” e “gente ruim”. Pais de nascimento não são sempre vítimas inocentes; pais adotivos podem bem merecer certa “proteção”. Entretanto, seria recomendável precaver-se contra a naturalização de qualquer política de adoção em particular como se ela fosse assunto consensual. Apresentar o anonimato como sendo a melhor solução para o interesse de todas as partes envolvidas – como se a maioria das mães de nascimento buscasse esta medida ou acatasse de bom grado formas análogas de proteção – apenas reforça a violência simbólica. Reduzir a ideia de troca, inerente às mais diversas relações sociais, a uma mera transação comercial motivada por avareza individual é ignorar outros estilos de raciocínio historicamente forjados, é passar por cima de paradoxos desconfortáveis – intrínsecos nos procedimentos da adoção legal contemporânea.

  • 1
    Jeanette Edwards inspirou esta reflexão dialogando com a audiência após seu painel no Simpósio Internacional “Procreación, crianza y género: aproximaciones antropológicas a la parentalidad”, Barcelona, maio, 2010.
  • 2
    Ver Fassin (2011)FASSIN, Didier. The mystery child and the politics of reproduction. In: BROWNER, Carole H.; SARGENT, Carolyn F. (Orgs.). Reproduction, globalization, and the state: new theoretical and ethnographic perspectives. Durham: Duke University Press, 2011. p. 239-248. para uma demonstração semelhante sobre a aplicação variável das leis de adoção na França.
  • 3
    Ver Yngvesson (2002)YNGVESSON, Barbara. Placing the ‘gift child’ in transnational adoption. Law & Society Review, Malden, v. 36, n. 2, p. 227-256, 2002. sobre a distinção entre “dar” e “entregar” (give and give away) no processo de adoção.
  • 4
    Em maio de 2010, jornais noticiaram que o Cadastro Nacional Único continha uma lista de 5000 crianças adotáveis, e uma lista de espera de 27000 candidatos à paternidade adotada (ver Folha de São Paulo, 09/05/2010).
  • 5
    Informações estabelecidas ao longo de uma série de entrevistas em Porto Alegre, realizadas no âmbito de um projeto de pesquisa enfocando adultos adotados (Fonseca, 2009bFONSECA, Claudia. Family belonging and class hierarchy: secrecy, rupture and equality as seen through the narratives of Brazilian adoptees. Journal of Latin American and Caribean Anthropology, Malden, v. 14, n. 1, p. 92-114, 2009b <10.1111/j.1935-4940.2009.01040.x>.).
  • 6
    Existem, no Brasil, serviços públicos gratuitos para todas as etapas do parto bem como para a esterilização. Adriana, porém, demonstra pouca habilidade no acesso a estes serviços básicos. Ela também alega ter tido dificuldades em acessar subsídios governamentais tais como bolsa família.

Referências

  • AYRES, Lygia Santa Maria. Adoção: de menor a criança, de criança a filho. Curitiba: Juruá Editora, 2008.
  • BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. Introduction. In: BRIGGS, Laura; MARRE, Diana. International adoption: global inequalities and the circulation of children (Orgs.). New York: New York University Press, 2009. p. 1-28.
  • CADORET, Anne. Parenté plurielle: anthropologie du placement familial. Paris: Harmattan, 1995.
  • CARSTEN, Janet. Cultures of relateness: new approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
  • COLEN, Shellee. “Like a mother to them”: stratified reproduction and West Indian childcare workers and employers in New York. In: GINSBURG, Faye D.; RAPP, Rayna (Orgs.). Conceiving the New World order: the global politics of reproduction. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 78-102.
  • CONSTABLE, Nicole. The commodification of intimacy: marriage, sex, and reproductive labor. Annual Reviews of Anthropology, Palo Alto, v. 38, p. 49-64, Oct. 2009 <10.1146/annurev.anthro.37.081407.085133>.
  • COUTIN, Susan; MAURER, Bil; Yngvesson, Barbara. In the mirror: the legitimation work of globalization. Law & Social Inquiry, Malden, v. 27, n. 4, p. 801-843, Oct. 2002.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2013

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2013
  • Aceito
    09 Out 2013
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