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Entre ruínas e muros: a perspectiva de crianças sobre a remoção de uma favela no Rio de Janeiro

Between ruins and walls: children's perspective on the eviction of a favela in Rio de Janeiro

Entre ruinas y muros: la perspectiva de los niños sobre el desalojo de una favela en Río de Janeiro

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a perspectiva de crianças a respeito do processo de remoção da favela Metrô Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro, a partir de trabalho de campo e oficinas realizadas tanto com crianças que ainda vivem na localidade quanto com algumas que foram reassentadas em um condomínio popular nos arredores. Estreitando o diálogo entre a antropologia urbana e a antropologia da criança, a pesquisa evoca a pluralidade de experiências urbanas infantis e a necessidade de reconhecer as crianças como atores sociais legítimos na construção da cidade. Por fim, discute o papel exercido pelo estado no referido processo de remoção que, em vez de zelar pelos direitos das crianças, atuou como violador desses direitos, inclusive do direito à cidade.

Palavras-chave:
Crianças; Remoção; Favela Metrô Mangueira; Direito à cidade

Abstract

This article aims to discuss the perspective of children about the eviction process of the Metrô Mangueira favela, in the North Zone of Rio de Janeiro, based on fieldwork and workshops conducted both with children who still live there and with some who were resettled in a nearby popular condominium. Narrowing the dialogue between urban anthropology and child anthropology, the research evokes the plurality of children's urban experiences and the need to recognise children as legitimate social actors in the construction of the city. Finally, it discusses the role played by the State in the eviction process, which, instead of watching over the children's rights, acted as a violator of these rights, including the right to the city.

Keywords:
Children; Eviction; Favela Metrô Mangueira; Right to the city

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la perspectiva de los niños con respecto al proceso de desalojo de la favela Metrô Mangueira, en la Zona Norte de Río de Janeiro, a partir de un trabajo de campo y de talleres realizados tanto con niños que aún viven allí como con algunos que fueron reubicados en un condominio popular cercano. Estrechando el diálogo entre la antropología urbana y la antropología infantil, la investigación evoca la pluralidad de las experiencias urbanas de los niños y la necesidad de reconocerlos como actores sociales legítimos en la construcción de la ciudad. Por último, se discute el papel desempeñado por el estado en el proceso de traslado, que, en lugar de velar por los derechos de los niños, actuó como violador de estos derechos, incluido el derecho a la ciudad.

Palabras clave:
Niños; Desalojo; Favela Metrô Mangueira; Derecho a la ciudad

Desde o momento em que começaram a despontar na paisagem do Rio de Janeiro, as favelas têm sido consideradas espaços incômodos e indesejáveis. Representação instável e polissêmica, a favela já recebeu, ao longo do século 20, rótulos como lepra estética, território da pobreza e berço da criminalidade, sendo objeto de políticas públicas que oscilam entre a sua erradicação através do deslocamento forçado de seus moradores a projetos de urbanização e implantação de serviços públicos.

A literatura especializada (Perlman 1977Perlman, Janice. 1977. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Valladares 1978Valladares, Lícia do Prado. 1978. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar.; Mello et al. 2012Mello, Marco Antonio da Silva, Luiz Antonio Machado da Silva, Leticia de Luna Freire, e Soraya Silveira Simões, orgs. 2012. Favelas cariocas ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond., entre outros) sustenta que o auge das remoções de favelas ocorreu durante a ditadura civil-militar, entre as décadas de 1960 e 1970, transferindo grandes populações das áreas centrais para conjuntos habitacionais nas regiões periféricas e desvalorizadas. Apesar dos avanços significativos trazidos pela redemocratização do país, que se refletiu no fortalecimento do viés urbanizador, no Rio de Janeiro houve um processo singular de reatualização dos discursos e práticas de remoção ao longo dos anos 2000, intensificada pela realização de megaeventos esportivos internacionais na cidade (Magalhães 2019Magalhães, Alexandre de A. 2019. Remoções de favelas no Rio de Janeiro: entre formas de controle e resistências. Curitiba: Appris.; Freire 2021Freire, Leticia de Luna. 2021. Qual é o lugar das favelas no Rio dos megaeventos? In Pensando as favelas cariocas, organizado por Rafael Soares Gonçalves, Mario Brum e Mauro Amoroso, vol. 1, 233-58. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Pallas.) e pelo predomínio cada vez maior do valor de troca sobre o valor de uso da cidade (Lefebvre 2016Lefebvre, Henri. 2016. O direito à cidade. Itapevi: Nebli.). Ainda que esse contexto social e político se diferencie daquele do regime militar, o número de pessoas removidas durante as duas primeiras gestões do prefeito Eduardo Paes (2009-2016) superou o do governo Carlos Lacerda (1961-1965), alcançando, apenas até 2013, a marca de cerca de 67 mil pessoas na cidade (Faulhaber e Azevedo 2015Faulhaber, Lucas, e Lena Azevedo. 2015. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro: Mórula Editorial.).

Independentemente das diferentes conjunturas, as crianças sempre apareceram como vítimas destes processos, ficando à mercê de para onde suas famílias fossem deslocadas. Contudo, ainda há uma lacuna de pesquisas empíricas dedicadas a ouvir o que as crianças têm a dizer sobre tais processos e como eles impactam a sua vida e a sua relação com a cidade. Algumas exceções são a pesquisa de Rocco (2015)Rocco, Marcelo. 2015. A produção do espaço urbano na perspectiva da criança: entre a brincadeira e o conflito na Favela da Paz em São Paulo. Dissertação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. com crianças da Favela da Paz, na Zona Leste de São Paulo, tendo como cenário a ameaça de remoção das famílias no contento da Copa do Mundo de 2014, e a pesquisa de Silva (2022)Silva, Anna Cecília Costa da. 2022. Mudar de casa, mudar de escola? A remoção da comunidade Teixeira Mendes a partir do Ciep Municipalizado 097 – Carlos Chagas, Duque de Caxias. In Educação e Favela: refletindo sobre antigos e novos desafios, organizado por Leticia de Luna Freire e Neiva Vieira da Cunha, 99-127. Rio de Janeiro: Consequência Editora. sobre como a remoção da favela Teixeira Mendes, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, impactou a vida escolar das crianças. Outros estudos realizados sobre/com crianças nos grandes centros urbanos brasileiros a partir de distintos olhares disciplinares, ainda que não focados no tema da remoção, como Castro (2004)Castro, Lúcia R. de. 2004. A aventura urbana: crianças e jovens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras., Debortoli, Martins e Martins (2008Debortoli, José Alfredo O., Maria de Fátima A. Martins, e Sérgio Martins, orgs. 2008. Infâncias na metrópole. Belo Horizonte: Editora UFMG.), Farias e Müller (2017Farias, Rhaísa N. P., e Fernanda Müller. 2017. A cidade como espaço da infância. Educação & Realidade 42 (1): 261-82. https://doi.org/10.1590/2175-623654542.
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) e Azevedo (2019)Azevedo, Giselle A. N., org. 2019. Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU/Proarq. também contribuem para enfatizar a pluralidade de experiências vividas pelas crianças e a necessidade de reconhecê-las como atores sociais legítimos na construção da cidade.

Na antropologia, como aponta Clarice Cohn (2005)Cohn, Clarice. 2005. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar., ainda que a criança apareça como objeto de atenção em estudos ligados à Escola de Cultura e Personalidade, nas décadas de 1920 e 1930, e em estudos posteriores ligados à escola estrutural-funcionalista, é somente na década de 1960, com a reformulação de conceitos centrais da disciplina, que a criança passou a ser encarada como protagonista na definição de sua própria condição. O reconhecimento da criança como sujeito, ao mesmo tempo receptor e produtor de cultura, abriu um universo de investigações possíveis sobre o que é a infância em diferentes contextos socioculturais.

Em nosso caso, chegamos às crianças através da reflexão sobre as transformações do espaço urbano na capital fluminense. Uma de nossas principais fontes de inspiração foi a etnografia realizada por Vogel e Mello no final dos anos 1970 no Catumbi, na região central do Rio de Janeiro, que analisa com maestria as mudanças que o tradicional bairro sofreu com o processo de renovação urbana então em curso (Vogel, Mello e Molica 2017Vogel, Arno, Marco Antonio da S. Mello, e Orlando Molica. 2017. Quando a rua vira casa. A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. 4. ed. Niterói: Eduff.). A partir das observações in loco, mas também por meio de desenhos, mapas de animação, fotografias etc., as crianças também eram reconhecidas no campo como interlocutores qualificados, revelando uma cognição urbana própria, com suas competências e escalas particulares. Incluindo as escolas locais, a pesquisa reuniu ainda um rico conjunto de desenhos e redações das crianças a respeito do bairro.

Esta proposta foi retomada e aprofundada em uma pesquisa posterior levada a cabo, em 1983, por uma equipe comandada por um antropólogo, uma pedagoga e um arquiteto (Vogel, Vogel e Leitão 1995Vogel, Arno, Vera Lúcia de O. Vogel, e Gerônimo E. Leitão. 1995. Como as crianças veem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas.). A análise de mais de 3.000 cartas e desenhos produzidos em 24 escolas distribuídas por todo o município asseguraram a presença das mais distintas perspectivas sobre o Rio de Janeiro, constituindo-se no primeiro ensaio de vocalização do ponto de vista de crianças e adolescentes sobre a cidade e a sociedade, como descreve Mello no prefácio do livro Como as crianças veem a cidade.

Partindo, como defendem os autores, do pressuposto de que as crianças são usuárias competentes da cidade, este artigo aposta no diálogo entre a Antropologia Urbana e a Antropologia da Criança, propondo compreender a perspectiva das crianças sobre o lugar onde vivem e sobre a remoção da favela. Como desdobramento de um projeto de pesquisa,2 2 O projeto “Entre a casa e a escola: efeitos da mobilidade residencial forçada sobre a experiência escolar de crianças e jovens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro” foi apoiado, entre 2016 e 2022, pelo Pibic/CNPq e desenvolvido no âmbito do Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (Nupec), na Faculdade de Educação da Uerj, com a participação de graduandos e pós-graduandos de diversas formações. buscamos refletir sobre como crianças moradoras e ex-moradoras da favela Metrô Mangueira, vizinha ao célebre estádio do Maracanã, experienciaram e conferiram sentidos ao processo de remoção parcial e forçada de famílias no bojo de um projeto de renovação urbana com vistas à realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro.

O trabalho de campo foi realizado esparsamente entre 2017 e 2019, contemplando a realização de entrevistas, observação participante e visitas guiadas, bem como o desenvolvimento de seis oficinas com crianças, duas na favela Metrô Mangueira e quatro em um dos condomínios populares onde muitas famílias foram reassentadas, sendo esta atividade das oficinas aquela na qual concentraremos aqui nossa atenção. O artigo é dividido em quatro partes. Na primeira, apresentamos o contexto em que se deu a remoção da favela. Na segunda, descrevemos o escopo da pesquisa, abordando os desafios do trabalho de campo e a dinâmica das oficinas com as crianças. Na terceira, debruçamo-nos na análise das narrativas e dos materiais produzidos por elas acerca da remoção e das mudanças geradas em suas vidas. Ao final, refletimos sobre o lugar das crianças, de suas memórias e experiências no contexto urbano pesquisado, questionando o papel do estado como violador dos seus direitos, incluindo o direito à cidade.

A remoção da favela Metrô Mangueira

A favela Metrô Mangueira possui este nome por estar margeada pela estação de trem e metrô Maracanã e ser vizinha à Mangueira, ocupação do final do século 19 do Morro do Telégrafo e hoje considerada um bairro, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Na fronteira entre os bairros Maracanã, Vila Isabel e Mangueira e próxima ao Estádio Jornalista Mário Filho (mais conhecido como Maracanã) e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Metrô Mangueira podia ser considerada uma favela de médio porte, com cerca de 700 famílias, em um local de fácil acesso ao sistema modal de transporte e a uma variedade de serviços e áreas de lazer.

Figura 1
A favela e seu entorno – 2019

A remoção foi longa, tendo início em 2010, quando uma equipe da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) chegou à favela marcando as residências com a sigla do órgão. Atendendo ao pedido dos moradores por explicações, o subprefeito da região informou que o terreno era da prefeitura e que ela desejava “limpar a área”, oferecendo às famílias três opções: “Cosmos, abrigo ou rua” (Magalhães 2019Magalhães, Alexandre de A. 2019. Remoções de favelas no Rio de Janeiro: entre formas de controle e resistências. Curitiba: Appris.). Com a cidade eleita para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a remoção era justificada pelo genérico argumento de se tratar de “área de risco”, mas, segundo moradores, a intenção era construir um estacionamento para os visitantes do estádio de futebol. Naquele momento, 107 famílias foram removidas para um condomínio do programa federal Minha Casa Minha Vida (MCMV), em Cosmos, na zona oeste, a 60 km da favela (Faulhaber e Azevedo 2015Faulhaber, Lucas, e Lena Azevedo. 2015. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro: Mórula Editorial.; Meireles e Falbo 2016Meireles, Manuela e Ricardo Falbo. 2016. Cidade do Rio de Janeiro, Comunidade Metrô Mangueira e Defensoria Pública. In A resistência à remoção de favelas no Rio de Janeiro, organizado por Alexandre Mendes, e Giuseppe Cocco, 223-40. Rio de Janeiro: Revan.).

Diante da truculência dos agentes da prefeitura, sempre acompanhados de força policial para realizar as demolições, os moradores começaram a protestar e ganhar apoio de vários movimentos sociais, além de contarem com a assessoria do Núcleo de Terras e Habitação (Nuth) da Defensoria Pública. Sob forte pressão social, a prefeitura acabou assentando, em 2011, 246 famílias no Condomínio Residencial Mangueira I, construído com recursos do MCMV próximo à favela. Em 2012, 217 famílias foram transferidas para o Condomínio Residencial Mangueira II, construído ao lado do anterior. Outras 92 famílias foram reassentadas no condomínio Bairro Carioca, também na zona norte.

Com a maioria das famílias removidas, restaram dezenas de estabelecimentos e oficinas mecânicas às margens da avenida Radial Oeste, onde muitos moradores trabalhavam. Sem abandonar o argumento do risco, a justificativa para a remoção passou a ser a construção de um polo automotivo, com o objetivo de reordenar o espaço, gerar emprego e renda na região. Segundo a SMH, 685 famílias da favela Metrô Mangueira teriam sido reassentadas até 2014. Nesse ano, a Copa do Mundo foi realizada no estádio do Maracanã sem grandes contratempos, sem o polo automotivo e com várias famílias ainda residindo na favela em meio a escombros.

Em 2015, a Defensoria Pública conseguiu aprovar uma liminar suspendendo as demolições de moradias e oficinas. Pouco depois, o Nuth, junto com a Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, moveu uma Ação Civil Pública para garantir a permanência das famílias até o final do ano letivo de 2015 devido à situação escolar das crianças e adolescentes da favela. Para subsidiar a ação, uma equipe da Faculdade de Serviço Social da Uerj realizou um levantamento socioeconômico dos moradores da favela. Entre as 77 famílias entrevistadas, identificou-se que quase metade dos moradores era formada por crianças e adolescentes (33,3% com idades entre zero e 12 anos e 13,2% entre 13 e 18 anos), a maioria negra e/ou parda, tendo algumas delas nascido na própria favela. Entre os diversos tópicos levantados, apontou-se que, na faixa de zero a seis anos, apenas 6% tinham acesso à educação infantil e na faixa de seis a nove anos 25% das crianças estavam matriculadas em escolas da região. Se as condições habitacionais e escolares não eram as mais adequadas, o estudo concluía que a remoção poderia agravar os problemas sociais enfrentados pela população, uma vez que os moradores mantinham forte relação com o território, trabalhando e estudando na região.4 4 Programa de Educação Tutorial (PET). 2015. Levantamento socioeconômico dos moradores da Favela Metrô Mangueira: Relatório de Pesquisa. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social. Ainda em 2015, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ratificou a decisão da liminar, determinando a suspensão imediata das demolições de moradias. Alegando existir ainda na favela 34 crianças e nove adolescentes, o juiz estabeleceu multa de R$ 100 mil por cada residência destruída, argumentando ser “inconcebível permitir que famílias compostas por crianças e adolescentes, vulneráveis, sejam desalojadas de suas residências, sem ter para onde ir”.5 5 Acreditamos que a discrepância entre o número de crianças e adolescentes citado no levantamento feito pelas assistentes sociais e na decisão do juiz se deva ao fato de várias famílias terem saído da favela frente ao cenário de abandono e insalubridade deixado pela prefeitura na área – estratégia comum do poder público para levar adiante um processo de remoção. Vieira, Isabela. 2015. Vara da Infância proíbe demolição de casas na Favela Metrô-Mangueira. Agência Brasil, 28 ago. 2015. Acessado em 27 mar. 2020. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-08/vara-da-infancia-proibe-demolicao-de-casas-na-favela-metro. Ademais, exigiu que a prefeitura apresentasse um plano detalhado sobre o reassentamento das famílias, informando para onde iriam, a escola que as crianças frequentariam e a previsão do aluguel social. Sem sabermos se o plano foi ou não apresentado, fato é que a ação judicial conseguiu paralisar provisoriamente o processo de remoção.

Em 2016, com a favela repleta de escombros e sem qualquer indício do polo automotivo, residências vazias passaram a ser reocupadas por famílias sem-teto. A abertura e o encerramento dos Jogos Olímpicos ocorreram no estádio do Maracanã sem contratempos, a despeito de vários protestos na cidade. Desde então, a favela permanece em estado de abandono, com famílias vivendo em meio a escombros e sem qualquer tipo de urbanização na área.

O escopo da pesquisa

Se toda pesquisa possui suas particularidades, inerentes às características do campo e dos sujeitos envolvidos, a pesquisa com crianças impõe a necessidade de lançar mão de métodos e técnicas não convencionais no trabalho antropológico. Sem abandonar as observações direta e participante, ainda que o pesquisador pertença à mesma sociedade, ele precisa aprender a se comunicar com as crianças, tendo como referência o seu universo sociocultural. Entre os fatores que atravessam essa interação estão as já conhecidas condições étnico-raciais, de gênero e de classe, mas também sua própria condição de adulto, o que coloca diversos desafios ao pesquisador e a necessidade de criar estratégias para superá-los, como já analisou Pires (2007)Pires, Flávia. 2007. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia 50 (1): 225-70. https://doi.org/10.1590/S0034-77012007000100006.
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em sua pesquisa com crianças do semiárido paraibano.

Na favela que estudamos, as crianças, muitas vezes criadas apenas pelas mães, participavam de muitas situações no cotidiano da localidade, não sendo tão nítida no espaço público a divisão moral entre o mundo das crianças e o dos adultos. Livrar-nos dos olhos disciplinadores dos familiares, a fim de que as crianças ficassem à vontade conosco, era tarefa a ser enfrentada. Diferentemente de Pires, porém, que passou a morar no campo e receber as crianças em sua casa, nós ficávamos nas áreas comuns, à beira das casas das crianças, e nossa aproximação com elas foi, em grande parte, possível mediante o apoio de “dona Maria”.

Ela era uma das moradoras da favela que, por sua antiguidade e significativa atuação na luta contra a remoção, havia se tornado uma liderança local. Foi graças a ela que, ao acionar a Defensoria Pública, o processo de remoção estacionou sob o argumento de que havia muitas crianças em idade escolar na favela e que elas não poderiam ter seus estudos prejudicados pela demolição autoritária de suas moradias. A própria dona Maria foi removida para Cosmos, mas voltou à favela por dificuldades de seguir sua vida em bairro tão distante. Por cuidar de muitas crianças na favela durante a ausência de seus pais, era carinhosamente chamada por elas de “vó”. Seu apoio foi fundamental para nos aproximarmos das crianças sem despertar desconfiança das famílias ou mesmo dos traficantes de drogas que vigiavam a área. A aceitação da nossa proposta de realizar atividades lúdicas com as crianças foi imediata, talvez não tanto pela proposta em si, mas pelo fato de que qualquer atividade ali seria bem-vinda diante da percepção de “vazio” em termos de serviços voltados às crianças da favela.

A presença da Faculdade de Educação da Uerj − instituição que ali representávamos – era bem-vista. Ainda que nossa proposta não consistisse em um trabalho propriamente pedagógico, alguns moradores achavam que daríamos “aulas”, o que nos exigiu contornar certas expectativas em torno de nosso trabalho com as crianças, que se refletisse, por exemplo, no desempenho escolar. Aos poucos, conforme interagíamos em campo, foi se amenizando esse complexo “controle de impressões” (Berreman 1990Berreman, Gerald D. 1990. Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do Himalaia. In Desvendando máscaras sociais, organizado por Alba Zaluar Guimarães, 123-74. Rio de Janeiro: Francisco Alves.). Um aspecto que também distinguia nossa experiência em campo é que sempre chegávamos em grupo, o que tanto nos conferia maior visibilidade quanto nos possibilitava dividir a atenção e a observação das crianças.6 6 Apesar do perfil diverso da equipe, cuja maioria dos estudantes não tinha experiência com pesquisa etnográfica, as análises aqui realizadas são fruto deste esforço e aprendizado coletivo. O trabalho de campo em grupo também se constituiu, nesse sentido, em um espaço de formação.

Foi assim que, em duas manhãs de sábado de outubro de 2017, nos dirigimos à favela e ocupamos, com cangas e diversos materiais de papelaria, o “campinho” − uma área aberta, de terra batida, no meio da favela onde ocorriam as reuniões e eventos coletivos, assim como grande parte das brincadeiras infantis. Devido à sua centralidade, qualquer coisa que acontecesse ali era facilmente vista por todos. Aos poucos, algumas crianças iam se aproximando por curiosidade enquanto outras eram convidadas por dona Maria a participar.

Os participantes eram, em sua maioria, crianças com idades entre três e oito anos, o que fez com que as dividíssemos em dois grupos em função dos interesses e comportamentos diferenciados. Enquanto com as crianças menores foram desenvolvidas brincadeiras mais livres, com as maiores propusemos uma roda de conversa, pedindo que se apresentassem e nos contassem um pouco sobre a vida na favela, o que gostavam e o que não gostavam, suas memórias e percepções sobre o processo de remoção, produzindo desenhos a respeito destes temas. Ao final, realizávamos um lanche coletivo, no intuito de tornar o ambiente mais agradável e motivar o retorno voluntário das crianças, esquivando-nos de sermos associados ao espaço escolar, ligado, na representação delas, a obrigações e regras excessivas. Realizar as atividades naquele espaço ao ar livre trouxe vantagens, como a facilidade de vermos e sermos vistos pelas crianças, mas também desvantagens, como a dispersão das crianças no espaço, a vigilância dos adultos e o sol escaldante do verão carioca.

Tendo em vista a pouca idade da maioria das crianças na favela, era difícil verbalizarem de maneira clara suas experiências em relação à remoção, sendo nossa análise elaborada com base nos desenhos produzidos e nas nossas próprias observações. Quando passamos a realizar as oficinas com crianças de um dos condomínios populares construídos nos arredores e onde muitas das famílias foram reassentadas, algumas questões puderam ser mais aprofundadas, em função da maior regularidade dos encontros e do próprio perfil dessas crianças. No condomínio, tivemos o apoio do síndico e de duas moradoras, cujas relações de confiança foram paulatinamente tecidas. Ali realizamos um número maior de atividades no ano seguinte, que ora ocorreram no salão de festas do condomínio, ora na área externa de um dos blocos de apartamentos, contando com a colaboração das duas moradoras, que também eram vizinhas. A dinâmica das atividades foi semelhante à primeira oficina, priorizando o uso de recursos lúdicos. O número de participantes oscilava entre 10 e 20, com idades entre seis e 13 anos, alguns deles oriundos da favela. Por terem essa dupla experiência e serem mais velhas, eles respondiam com mais facilidade a algumas de nossas indagações na construção deste trabalho. Compartilhamos a seguir um pouco do que aprendemos com as crianças, na favela e no condomínio.

A perspectiva das crianças

As crianças da favela possuem uma concepção do espaço substancialmente dividido em três grandes áreas: “o campinho”, que, como dissemos, exerce uma centralidade física e social; “as oficinas”, onde se concentram as oficinas mecânicas e estabelecimentos comerciais automobilísticos que margeiam a avenida Radial Oeste e são fontes de trabalho para os moradores; e, finalmente, “o conjunto”, que é como elas se referem aos dois condomínios próximos à favela (Mangueira 1 e Mangueira 2), onde foi reassentada a maioria das famílias. As crianças do Condomínio Residencial Mangueira 2, que participaram das oficinas, compartilham desta representação espacial, mas muitas se referem ao Metrô Mangueira apenas pelo genérico termo de “favelinha”, evocando seu contraste com a centenária Mangueira e seus mais de 17 mil habitantes.

Algumas crianças chegaram a dizer que, após se mudarem para os apartamentos, nunca mais estiveram na favela, o que nos parecia reforçar a tentativa de suas famílias de apagamento da experiência traumática da remoção e mesmo de um estilo de vida que consideravam inferior diante da mobilidade social representada pela moradia em um condomínio privado, mesmo que voltado às classes populares.7 7 Embora a forma arquitetônica dos condomínios populares não seja muito distinta do modelo de moradia historicamente pertencente às classes média e alta do Rio de Janeiro, a sua estrutura predial costuma ser bastante inferior, além da organização e dos conflitos também se configurarem de maneira diferente, como mostra a pesquisa de Conceição (2018). Essa hierarquia também aparecia entre crianças que ainda residiam na favela, como percebemos ao chegarmos para realizar a primeira oficina. Diante do estranhamento inicial frente à nossa equipe, que tinha um perfil étnico-racial e socioeconômico heterogêneo, uma menina perguntou a uma das integrantes: “Você mora no morro?”. Antes que ela respondesse, outra menina comentou: “Ela é muito educada e bem arrumada. Ela mora em apartamento, não em favela como a gente”.

Com a favela já parcialmente removida, buscamos no trabalho de campo exercitar aquilo que Cunha (2021)Cunha, Neiva V. da. 2021. Viagem, experiência e memória: narrativas de profissionais de Saúde Pública dos anos 30. 2. ed. Rio de Janeiro: Autografia. denomina de “etnografia retrospectiva” para compreender como as crianças vivenciaram esse processo. Embora a remoção fosse um fato marcante em suas vidas, algumas crianças evitavam falar sobre ela, como se isso evocasse um trauma que preferiam esquecer. Algumas também diziam que a remoção tinha ocorrido “há tanto tempo” que já não lembravam direito porque eram “muito pequenas”. Ainda que o intervalo de três ou quatro anos tenha, entre as crianças, outra dimensão, pensamos não se tratar simplesmente de uma questão etária, mas de maneiras distintas de elaboração do pensamento e da memória.

Como Halbwachs (1994)Halbwachs, Maurice. 1994. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Éditions Albin Michel. já alertara, a memória é um processo de reconstrução do passado que depende de um sistema de representações compartilhadas pelo grupo, sendo, nesse sentido, coletiva. O pensamento na criança e no adulto, porém, se orienta em sentidos opostos, em parte devido a sua natureza, mas também em função das condições sociais em que cada um se encontra. Segundo o autor, a criança possuiria uma ideia mais vaga de sociedade, reproduzindo-se em um quadro mais estreito de acontecimentos geralmente ligados aos ambientes doméstico e escolar. Assim, a criança teria muito mais motivos para lamentar quando deixasse a casa onde passou anos de sua tenra idade, já que “toda a sua vida esteve ali concentrada e todas as suas memórias estavam ligadas a ela” (Halbwachs 1994Halbwachs, Maurice. 1994. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Éditions Albin Michel., 98, tradução livre). “Com a casa deslocada, a família dispersa ou extinta”, prossegue o autor, “ela não pode mais contar com ninguém a não ser consigo mesmo para preservar a imagem da casa e tudo o que está preso a ela” (1994, 98, tradução livre). Lidar com essas diferentes temporalidades e quadros sociais da memória era, sem dúvida, um dos maiores desafios em nossa pesquisa.

Quando abordamos o tema da remoção, a maioria das crianças se referia ao evento como “a guerra”, sendo a demolição das suas moradias ressaltada por algumas delas como “o dia da guerra”. Ao evocarem essa metáfora de “guerra”, elas pareciam menos defender uma polaridade moral entre “favela” e “cidade”, tão presente no senso comum, do que expressar a dramaticidade e a violência do ocorrido. Muitas das crianças participaram dos conflitos entre os moradores e os agentes estatais que chegavam à localidade para efetivar as ordens de despejo e as demolições das casas, em algumas situações com famílias sendo intimadas a sair em menos de 24h. Maria Clara8 8 Optamos por utilizar nomes fictícios para as crianças, a fim de proteger suas identidades, mas preservar a identificação de gênero. , por exemplo, relatou: “Quando a polícia invadia a gente tacava pedra e tampava o nariz com pano com vinagre por causa do spray de pimenta”. A menina apontou ainda uma casa que “foi demolida e não deu tempo nem da mãe pegar as roupinhas do bebê. Demoliram com tudo dentro. Depois o pessoal do ferro velho vinha e pegava tudo”. Outro exemplo é o relato de Lucas, removido para o condomínio: “Eu só lembro da gritaria, do barulho, daquele bagulho lá que destruía as casas dos outros, lembro que a polícia assustava todo mundo e da minha tia mandando eu não sair”. Ou, ainda, o relato de Mariana, destacando a visibilidade do episódio à época: “A gente ficou famoso. É só você procurar no YouTube ‘guerra na favelinha do metrô’ que você vai ver”.

Sem dúvida, um dos impactos mais sensíveis da remoção para as crianças foi a perda violenta da casa, que, mais do que espaço de moradia, é o espaço central da família, o lugar onde se processa a sua socialização primária. Seguindo Vogel, Vogel e Leitão (1995, 16), partilhamos da ideia de que as crianças “[…] podem saber pouco ou nada sobre a problemática urbana que existe para além das suas portas e janelas, mas, certamente, sabem muito (muito mais do que se imagina) a respeito da casa”. Considerando casa e família como dimensões indissociáveis, perder a casa era, para essas crianças, perder um pouco de sua própria história.

Outro impacto da remoção, relatado tanto entre as crianças do condomínio quanto entre as da favela, foi a perda repentina dos amigos cujas famílias tiveram que deixar a favela às pressas, sem tempo sequer para despedidas. É o caso, por exemplo, daquele vizinho da mesma idade com quem a criança brincava todos os dias depois da escola e que, de um dia para outro, mudou-se para algum lugar desconhecido e nunca mais puderam estar juntos ou ter notícias um do outro. Ou mesmo da menina que, ao apontar as ruínas de uma residência removida, nos relatou: “Aqui era a casa da minha amiga. Só que agora ela não é mais minha amiga não. Ela está morando na rua 28 de Setembro. Ela agora vai até ao shopping, tia”.

Sobre a vida na favela, os “amigos” constituem um dos aspectos mais importantes e prazerosos para as crianças, juntamente com a “família” e a “casa”. Entre o que mais gostavam ali, as crianças também fizeram alusão à localização privilegiada da favela, mas estes aspectos não se sobrepunham às relações sociais familiares e de amizade. Ciente da precariedade do lugar, uma menina afirmou: “A única coisa que a gente gosta aqui são os amigos”. Outra comentou: “É para desenhar só o que a gente gosta? Ah então vou desenhar só minha casa mesmo”. Os desenhos abaixo, feitos nas oficinas, expressam a preponderância da casa e da família. No primeiro, a menina representou-se dentro de casa, ao lado da mãe vendo televisão, escrevendo no alto a frase “Em gosto das amigas”. No segundo, a referência às amigas é ainda mais forte, mas também aparecem os vizinhos ilustres da favela (o estádio e a universidade). Para não deixar dúvidas, a menina ainda escreveu: “Eu amo minhas amigas”.

Figura 2
Desenho de Ana, 8 anos, representando ela ao lado da mãe e sua casa – 2017
Figura 3
Desenho de Maria, 7 anos, representando o “Maracanã”, a “Uerj” e as “amigas” – 2017

Para as crianças que ainda residiam na favela, o que mais incomodava naquele momento era a presença de “lixo” e de “ratos” em meio aos escombros das construções demolidas. Além de deixarem o ambiente “feio” e “sujo”, as ruínas das antigas moradias tornaram-se testemunhos vivos da violência desproporcional exercida pelo Estado contra as famílias. Desde a remoção parcial da favela, nenhuma obra de urbanização foi realizada e o “campinho” continuava a ser um ponto de referência das crianças. Uma menina de dez anos chegou a nos dizer que nunca tinha ido a um equipamento cultural na cidade, como museu ou teatro, sendo aquela área na favela sua única opção de lazer, funcionando como uma espécie de quintal. As crianças continuavam brincando ali, mas agora tendo que compartilhar o espaço com ratos, porcos, lixos e entulhos.

A brincadeira aparecia como uma das características que mais as distinguiam dos adultos. Como disse Luana, 12 anos: “Ser criança para mim é muito especial porque a gente pode aproveitar as brincadeiras. Quando crescem os adultos não brincam”. Ao buscarmos compreender o que significava, para elas, “ser criança”, o ato de brincar (e os sentimentos de prazer e liberdade a ele vinculados) apareceu de modo predominante nas falas dos participantes das oficinas no condomínio, evidenciando também o seu maior acesso a bens de consumo e opções de lazer. Como disse Gustavo, 10 anos: “É bom pra caramba porque a gente pode brincar, ir no pula-pula ou ir no shopping comprar várias coisas. Fazer brincadeiras de crianças e comer doces”.

A experiência de ser criança naquele contexto, porém, não estava ligada apenas ao prazer, mas também a obrigações, deveres e sanções, quase sempre por estarem em uma posição de subalternidade e dependência em relação aos adultos. Desse modo, se entre os pontos positivos apareceram ideias como “ser feliz”, “comer doces”, “brincar”, “passear” e “jogar bola”; entre os pontos negativos, elas citaram: “levar ordens”, “ser obrigado”, “apanhar”, “ficar de castigo”, “reprovar na prova”, “colocar lixo para fora”, “passear com o cachorro”, “varrer a casa”, “fazer comida”, “lavar louça”, “lavar banheiro” etc. Ainda que uma delas tenha dito que “o bom de ser criança é não trabalhar” e outra que é “não pagar as contas”, sendo tais tarefas pensadas como exclusividade dos adultos, o trabalho doméstico fazia parte do cotidiano destas crianças, que auxiliam nos cuidados da casa, da família e dos animais de estimação. Uma menina, por exemplo, nos disse que, quando a mãe estava impossibilitada, era ela quem preparava a comida para toda a família. Mesmo que tais tarefas fossem percebidas como aspectos negativos de ser criança naquele contexto, não deixavam de ser uma forma de elas contribuírem na organização da rotina familiar e aprenderem valores em torno da divisão social do trabalho, ainda que ligada à desigualdade de gênero.

Entre as crianças reassentadas no condomínio, identificavam-se vantagens da vida na favela, como o fato de que a família tinha menos despesas e que elas próprias tinham mais liberdade – “ficávamos mais soltas” – mas também várias vantagens naquele novo ambiente, como o maior sentimento de segurança (da moradia e si mesmas), já que o risco de remoção ali era menor e que a própria arquitetura do condomínio, com muros que cercam os 11 blocos e uma única entrada e saída, repelia a circulação de estranhos e a presença do tráfico de drogas. Ao mesmo tempo em que as crianças reassentadas no condomínio viam maior liberdade para se apropriar dos espaços livres na favela, as crianças que ainda residiam na favela sugeriam que essa liberdade era relativa, pois as brincadeiras no “campinho” podiam ser interrompidas a qualquer momento pela eminência de conflito armado entre traficantes e policiais e, em geral, imaginavam ser a vida no condomínio melhor do que na favela pelas mesmas razões já mencionadas. Se, por um lado, as crianças do condomínio podiam brincar mais tranquilas fora de casa, por estarem em um local mais protegido da violência armada, por outro diziam que a sua presença nos espaços comuns do condomínio não era bem-vista por todos os moradores. “Os vizinhos reclamam que a gente faz barulho”, queixou-se um menino, relatando ter que interromper com frequência suas brincadeiras por conta da reclamação de algum morador.

Ademais, se na favela o “campinho” era um ponto de encontro entre as crianças, possibilitando as interações mesmo entre as que não se conheciam previamente, no condomínio, apesar de haver áreas de uso comum que poderiam ser apropriadas para o lazer, como calçadas e ruas, eles não funcionam como espaços espontâneos de sociabilidade. Além do modelo condominial acabar não estimulando a interação social e sim o anonimato e a privacidade, diferentemente da favela, no condomínio as crianças não cresceram juntas, havendo moradores das mais diversas origens.

Dialogando com Vogel, Mello e Molica (2017Vogel, Arno, Marco Antonio da S. Mello, e Orlando Molica. 2017. Quando a rua vira casa. A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. 4. ed. Niterói: Eduff.) sobre a apropriação dos espaços para fins de lazer, consideramos que os espaços exteriores dos apartamentos do Condomínio Residencial Mangueira II não favorecem os contatos, tendo uma função estritamente circulatória. Quando estes espaços são apropriados pelas crianças, a presença delas ali é alvo de reclamação de outros moradores, como se elas estivessem “fora do lugar”. Enquanto a favela apresenta uma diversidade de usos dos espaços comuns pelos moradores − tal como os autores encontraram no bairro do Catumbi − a figura do apartamento, apesar de representar, entre as crianças, status social, acaba alimentando “[…] uma insatisfação estrutural nos que o habitam, fazendo-os reclamar o espaço que gostariam de desfrutar” (Vogel, Vogel e Leitão 1995Vogel, Arno, Vera Lúcia de O. Vogel, e Gerônimo E. Leitão. 1995. Como as crianças veem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas., 19). Entre as ruínas da favela e os muros do condomínio, a liberdade das crianças nos espaços comuns era, em diferentes graus, negociada.

Para continuar vendo a cidade com as crianças

Em sua pesquisa com escolares nos anos 1980, Vogel, Vogel e Leitão (1995Vogel, Arno, Vera Lúcia de O. Vogel, e Gerônimo E. Leitão. 1995. Como as crianças veem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas., 137) concluíram que as crianças veem o Rio de Janeiro através de totalizações, em uma versão muito próxima do pensamento urbanístico que concebe a cidade como um organismo, que se mantém pela conexão entre muitas coisas. “As crianças e demais habitantes do meio urbano estão em um círculo e giram com ele”, constataram os autores.

Todavia, as cidades são historicamente pensadas, projetadas e construídas por adultos, não levando em conta o ponto de vista e a experiência infantil. O que buscamos mostrar, portanto, é que, enquanto usuárias competentes da cidade, as crianças da favela e do condomínio estudados produzem saberes sobre o espaço urbano, permeado por visões de mundo totalizadoras, mas também por suas experiências pessoais. Ver a cidade com essas crianças implica vê-la a partir do cotidiano dos contextos em que estão inseridas. Esse olhar do cotidiano não está preocupado com o que a cidade tem de vantagens, belezas e aventuras, mas com o que o morador precisa, usa ou merece. É um olhar para dentro que nem sempre gosta do que vê (Vogel, Vogel e Leitão 1995Vogel, Arno, Vera Lúcia de O. Vogel, e Gerônimo E. Leitão. 1995. Como as crianças veem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas.).

Sobre o processo de remoção, as crianças carregam uma grande carga emocional sintetizada na ideia de “guerra”. Se essa ideia evoca, como vimos, dois lados em disputa, é o estado − representado pelos agentes da Segurança Pública, da Defesa Civil e da Secretaria Municipal de Habitação − que age, na visão das crianças da favela e do condomínio, como inimigo dos moradores. Não queremos com isso negar a importante atuação de agentes do estado, por exemplo, através da Defensoria Pública, na defesa dos moradores, mas destacar que, no imaginário dessas crianças, a ideia da “guerra” evoca sobretudo a violência exercida pelo estado nos processos de interdição e de demolição das moradias, constituindo lembranças, para elas, muito traumatizantes.

Apesar de suas transformações, a favela continua a ser socialmente percebida como um problema. Ao mesmo tempo, as crianças, faveladas ou não, são reconhecidas pela legislação brasileira como um grupo social vulnerável, devendo ser protegidas pela família e pelo estado. Como enfrentar, porém, situações nas quais o estado é justamente aquele que viola os direitos das crianças? Enquanto parte dos trabalhos sobre crianças nas Ciências Sociais se dedica a investigar contextos nos quais a criança é institucionalmente tutelada, nosso estudo abordou um cenário no qual aquele que é legalmente um dos responsáveis pela proteção é o mesmo que viola um dos direitos mais básicos das crianças e de todo ser humano, que é o direito à moradia digna.

Diante das distintas condições a que as crianças ficaram sujeitas, a maioria das que permaneceram na favela considera que a vida está “pior do que antes”, tendo em vista a maior precariedade do espaço, enquanto aquelas reassentadas no condomínio afirmam, de maneira vaga, que a vida agora está “melhor do que antes”. Vivendo entre ruínas ou entre muros, todas tiveram, de alguma maneira, que reconstruir seu cotidiano e seus modos de ser criança após a remoção.

Se, por um lado, as crianças que foram reassentadas no condomínio passaram a ter acesso a bens e serviços antes inacessíveis, por outro sentem que sua presença ali é constrangida e pouco desejada, permanecendo em uma relativa condição de marginalidade na polis. Ao não terem garantidos, não apenas o acesso pleno aos recursos que a cidade incorpora, mas os valores da convivialidade e do encontro, bem como a participação cívica, as crianças acabam impossibilitadas de exercer aquilo que o filósofo Henri Lefebvre (2016)Lefebvre, Henri. 2016. O direito à cidade. Itapevi: Nebli. denominou de “direito à cidade”, o que inclui o direito de mudá-la e reinventá-la de acordo com os nossos anseios e desejos. Por isso, cada vez mais, é preciso continuar vendo a cidade com as crianças.

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    O projeto “Entre a casa e a escola: efeitos da mobilidade residencial forçada sobre a experiência escolar de crianças e jovens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro” foi apoiado, entre 2016 e 2022, pelo Pibic/CNPq e desenvolvido no âmbito do Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (Nupec), na Faculdade de Educação da Uerj, com a participação de graduandos e pós-graduandos de diversas formações.
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    Com inserções feitas pelos geógrafos Vinícius Vasconcelos e Lívia Araújo.
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    Programa de Educação Tutorial (PET). 2015. Levantamento socioeconômico dos moradores da Favela Metrô Mangueira: Relatório de Pesquisa. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social.
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    Acreditamos que a discrepância entre o número de crianças e adolescentes citado no levantamento feito pelas assistentes sociais e na decisão do juiz se deva ao fato de várias famílias terem saído da favela frente ao cenário de abandono e insalubridade deixado pela prefeitura na área – estratégia comum do poder público para levar adiante um processo de remoção. Vieira, Isabela. 2015. Vara da Infância proíbe demolição de casas na Favela Metrô-Mangueira. Agência Brasil, 28 ago. 2015. Acessado em 27 mar. 2020. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-08/vara-da-infancia-proibe-demolicao-de-casas-na-favela-metro.
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    Apesar do perfil diverso da equipe, cuja maioria dos estudantes não tinha experiência com pesquisa etnográfica, as análises aqui realizadas são fruto deste esforço e aprendizado coletivo. O trabalho de campo em grupo também se constituiu, nesse sentido, em um espaço de formação.
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    Embora a forma arquitetônica dos condomínios populares não seja muito distinta do modelo de moradia historicamente pertencente às classes média e alta do Rio de Janeiro, a sua estrutura predial costuma ser bastante inferior, além da organização e dos conflitos também se configurarem de maneira diferente, como mostra a pesquisa de Conceição (2018)Conceição, Wellington da S. 2018. “Sossega moleque, agora você mora em condomínio”: segregação, gestão e resistência nas novas políticas de moradia popular no Rio de Janeiro. Curitiba: Appris..
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    Optamos por utilizar nomes fictícios para as crianças, a fim de proteger suas identidades, mas preservar a identificação de gênero.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação da autora antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2021
  • Aceito
    29 Jun 2022
  • Publicado
    19 Abr 2023
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