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Desigualdades, estratificação e justiça social

Inequalities, stratification and social justice

Desde os autores e obras fundadoras da Sociologia, a questão das desigualdades tem ocupado um lugar de destaque nesta disciplina, posteriormente se consolidando como um de seus grandes eixos temáticos. Há décadas podemos encontrar uma extensa e relevante produção nacional e internacional relacionada a questões como classes sociais, desigualdades de rendimentos, mobilidade sócio-ocupacional, desigualdades educacionais, hierarquias sociais, desigualdades raciais, de gênero etc. (cf. Silva e Hasenbalg, 2003SILVA, Nelson do Valle; HASENBALG, Carlos (orgs.). Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.; Hout e DiPrete, 2006HOUT, Michael; DIPRETE, Thomas. A. What we have learned: RC28's contributions to knowledge about social stratification. Research in social stratification and mobility, v. 24, n. 1, p. 1-20, 2006 <10.1016/j.rssm.2005.10.001>.
https://doi.org/10.1016/j.rssm.2005.10.0...
).

Nos últimos anos outras questões têm sido incorporadas a estes estudos, procurando novos ângulos através dos quais as desigualdades podem ser estudadas, e refletindo também as transformações pelas quais a sociedade vem passando. Nesse sentido, destacam-se aquelas análises que procuram estudar a estratificação a partir da esfera do consumo, das atitudes, das identidades e das fronteiras simbólicas entre os grupos sociais (Devine and Savage, 2005DEVINE, Fiona; SAVAGE, Mike. The cultural turn, sociology and class analysis. In: Fiona Devine, Mike Savage, John Scott e Rosemary Crompton (orgs.). Rethinking class: culture, identities & lifestyle. London: Palgrave Macmillan, 2005. p. 1-23.; Bennett et al., 2009BENNETT, Tony; SAVAGE, Mike; SILVA, Elizabeth B.; WARDE, Alan; GAYO-CAL, Modesto; WRIGHT, David (orgs.). Culture, class, distinction. London: Routledge, 2009.; Bourdieu, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008.; Lamont, 1992LAMONT, Michele. Money, moral & manners: the culture of the French and the American upper-middle class. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.). Trata-se, portanto, de um dos campos de estudo mais tradicionais e dinâmicos - do ponto de vista da produção de pesquisas empíricas - das Ciências Sociais.

Neste início de século o debate sobre o tema acabou ganhando visibilidade ainda maior. Se por um lado tem sido constatada a tendência ao aumento das desigualdades em muitos países desenvolvidos, por outro lado temos observado que uma parcela significativa das populações em países emergentes, como o Brasil, viveu experiências positivas de inclusão via crédito e consumo. A elevação da renda, a superação da pobreza extrema, a criação de empregos formais e a ampliação educacional estabeleceram patamares mais elevados de condições de vida. Contudo, elementos fundamentais para a promoção de equidade e justiça social ainda não foram alcançados, e os ganhos em renda e consumo nem sempre se traduziram em inclusão no sentido mais amplo.1 1 As expectativas e frustrações vividas durante o processo de construção de trajetórias constituem objeto relevante para qualquer análise sobre justiça social e igualdade.

Tais fatores têm despertado grande interesse por essa temática, que tem recebido inclusive a atenção do público não especializado, curioso por compreender os mecanismos através dos quais as desigualdades se mantêm, suas consequências, e como podem ser enfrentadas.

Portanto, buscar entender as recentes mudanças e, também, as permanências no que se refere às desigualdades e à estratificação social, se coloca como um dos grandes desafios à Sociologia neste século, de modo que a compreensão dos obstáculos à construção de uma sociedade mais justa continua sendo uma das principais tarefas desta disciplina. Por essas razões, acreditamos que os textos reunidos neste dossiê da Civitas - Revista de Ciências Sociais podem contribuir para o debate público e acadêmico a esse respeito. Seu objetivo central é evidenciar as múltiplas faces das desigualdades sociais, sua complexidade, seu dinamismo e como, com o passar do tempo, o tema das desigualdades adquiriu novas dimensões que ultrapassam os estudos focados exclusivamente em renda ou delimitados à área da estratificação.

O artigo de Mercedes Krause - La temporalidad del dinero: un mecanismo de reproducción sociocultural de las desigualdades sociales -, por exemplo, ao elaborar uma análise comparada da economia doméstica de famílias de classe média e classe trabalhadora moradoras da região metropolitana de Buenos Aires, torna evidente a limitação dos estudos focados exclusivamente no volume de rendimentos. Seu estudo qualitativo mostra que a reprodução das desigualdades passa também pelas diferentes maneiras como estas classes fazem uso do dinheiro, de acordo com sua orientação em relação ao presente e o futuro.2 2 Em função da limitação de tamanho, alguns artigos do dossiê, aqui citados, podem estar presentes somente na versão digital do mesmo.

Assim, os artigos reunidos neste dossiê abordam mudanças e permanências, no que diz respeito às múltiplas dimensões das desigualdades sociais e da estratificação, observadas nos últimos anos no Brasil, e também em outros países - como Argentina, China, Estados Unidos e África do Sul.

As profundas transformações que ocorreram nas sociedades contemporâneas levaram a mudanças significativas nas análises sociológicas em geral, e na área de Estratificação e Desigualdades em particular. Mesmo reconhecendo que fatores como classe, gênero, raça, renda, educação, entre outros, continuam sendo necessários para as pesquisas neste campo de conhecimento, existe hoje um consenso de que já não são suficientes. Para compreender a persistência das desigualdades, apesar dos valores igualitários modernos, é fundamental indagar como a sociedade constrói e elabora justificativas para elas, assim como seus efeitos e os possíveis caminhos para seu enfrentamento. Assim, ao lado dos elementos já clássicos dos estudos sobre desigualdades e estratificação - que chamamos de “suspeitos usuais” - as análises sociológicas passaram a adotar uma miríade de novas perspectivas, ampliando o escopo de suas investigações. Nesse movimento, surgem estudos sobre percepções, valores e noções de justiça social; estudos das elites, não somente econômicas, mas políticas, culturais e intelectuais; pesquisas sobre saúde, gerações, espaço e urbanismo; política econômica e de desenvolvimento; efeitos e consequências das desigualdades, em termos de criminalidade, violência e confiança interpessoal, para citar apenas alguns exemplos.

Há décadas, estudos realizados no Brasil têm contribuído para descrever os mecanismos que tornam a distribuição de bens materiais ou simbólicos desigual. O tema está longe de ter sido esgotado, dada sua importância para a compreensão da estrutura de classes e das relações sociais; porém, pouco conhecemos sobre a visão que os brasileiros têm das desigualdades e o vínculo que elaboram entre igualdade e justiça.

Como sociólogos, sabemos que a desigualdade não é um fato natural, mas sim uma construção social. Ela depende de circunstâncias e é, em grande parte, resultado das escolhas políticas feitas ao longo da história de cada sociedade. Daí a importância das comparações internacionais para as análises neste campo de estudos, em especial em um momento de reconfigurações geopolíticas e geoeconômicas. É necessário compreender o fenômeno das desigualdades como resultado da interação entre “realidades” e “percepções”, reconhecendo que estas duas dimensões não são distintas. E análises que inserem estas duas perspectivas podem oferecer uma visão mais clara das contingências e agências envolvidas nos processos de produção, de reprodução e, por que não, de superação das desigualdades.

Um de nossos objetivos, ao elaborar este dossiê, é provocar uma reflexão sobre os conceitos de igualdade e de justiça, enfatizando que eles não são coincidentes, embora estejam articulados - especialmente nas análises sociológicas do campo da estratificação e desigualdades.

O artigo (In)Equality and (in)justice, de autoria de Guillermina Jasso, trata justamente da intricada relação, ou ausência da mesma, entre desigualdades e avaliação de justiça. Conforme argumenta a própria autora,

Understanding the exact connection between inequality and justice is important because justice is classically regarded as the first line of defense against self-interest and inequality. Absent a strong and clear link between inequality and justice, the sense of justice would not awaken to exert its moral suasion, no matter how great the inequality or how fast its increase.

Em seu trabalho, a autora chega à conclusão de que não há uma conexão geral ou necessária entre desigualdade econômica e avaliações de justiça, de modo que os efeitos da primeira sobre a segunda podem ser inexistentes, ou mesmo ocorrer em sentido oposto ao imaginado.

O conceito de igualdade, no entanto, tem sido comumente usado como sinônimo do conceito de justiça social. Apesar de, nas sociedades contemporâneas, a ideia de justiça estar intrinsecamente vinculada ao combate às desigualdades, gostaríamos de chamar atenção para o fato de que estes dois conceitos - não apenas - não são correspondentes, como, nos mais diversos contextos, podem significar exatamente o oposto. A igualdade pode ser, em algumas circunstâncias, bastante injusta. Sabemos que esta afirmação é muito controvertida e provocativa, mas à luz dos trabalhos de John Rawls (2009)RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 2009. ou de Amartya Sen (2001)SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001., ela é plenamente compreensível.

Nós, sociólogos, temos como vício de ofício buscar na realidade a compreensão dos conceitos. Por isso, quereremos nos referir ao trabalho de Amartya Sen que exemplificou a desigualdade justa ou a igualdade injusta através de questões como a situação de indivíduos com necessidades especiais. Nesse caso específico, tratar com igualdade agentes que apresentam condições competitivas tão dispares e desvantajosas seria uma injustiça. Do mesmo modo, pode ser injusto quando agentes têm oportunidades iguais mas fazem investimentos distintos e, ainda assim, alcançam o mesmo resultado.

Sabemos que é difícil fazer esse exercício lógico em um país como o Brasil, tão distante de um ideal de igualdade de oportunidades. Contudo, os contextos não podem aprisionar os conceitos. É bom lembrar que em nome da justiça social muitas políticas focalizadas, que oferecem condições ou recompensas desiguais a grupos sociais distintos, têm sido demandadas e implementadas. Estas políticas são reconhecidas como justas, porque ao promover condições desiguais no processo ou no resultado, corrigem desigualdades socialmente reconhecidas na partida. Ao introduzir políticas compensatórias, de certa forma a sociedade reconhece seu próprio fracasso em garantir justiça para todos, igualmente.

Nesse sentido, atualmente uma das grandes novidades no enfrentamento das desigualdades no Brasil é a adoção de cotas raciais (além de considerar também critérios socioeconômicos) na seleção de muitas universidades públicas. Assim, busca-se corrigir as históricas, e ainda alarmantes, desvantagens da população negra em relação aos brancos no país. Tanto o artigo de Jerónimo Muniz - Inconsistências e consequências da variável raça para a mensuração de desigualdades - quanto o de Jordão Horta Nunes e Neville Julio de Vilasboas e Santos - A desigualdade no “topo ”: empregadores negros e brancos no mercado de trabalho brasileiro -, presentes neste dossiê, tratam dessa importante dimensão das desigualdades. Se o segundo constata e analisa as desvantagens de negros entre os empregadores, o primeiro trata das possíveis barreiras à formulação de políticas públicas voltadas para o combate às desigualdades raciais no Brasil, como as cotas raciais, em função da suposta dificuldade de se definir a população alvo.

É importante considerar, também, que o conceito de desigualdade dificilmente pode ser entendido no singular, dado a multiplicidade, pluralidade e capilaridade do fenômeno a que se refere.

O artigo escrito por Zhu Di - Homeownership of the young middle class: the case of elite university graduates - torna evidente as inúmeras e variadas dimensões em que a desigualdade se apresenta. Ela analisa a relação entre nível socioeconómico da família de origem e a possibilidade de jovens estudantes chineses se tornarem proprietários de imóveis; e demonstra que jovens proprietários, por sua vez, contam com indicadores de qualidade de vida mais favoráveis. Desse modo, seu trabalho expõe elementos centrais da análise de estratificação que aparecem relacionados e se reforçam mutuamente, como origem social, propriedade, qualidade de vida, segmentação socioespacial, dentre outros. Todos com impacto significativo nas chances de vida.

Por isso, é tão central a pergunta - “Igualdade de quê?” - que foi título escolhido para o primeiro capítulo do livro de Amartya Sen Inequailty reexamined: equality of what? Sen quer chamar atenção para o fato de que as desigualdades são multifacetadas e se baseiam em dois tipos de diversidade: a heterogeneidade humana e a pluralidade de dimensões segundo os quais a igualdade pode ser definida. Nesse contexto, igualdade em uma dimensão pode significar - e geralmente significa - desigualdade em outra. A igualdade deve, assim, ser analisada conjuntamente com outras questões.

Ao lado de sua preocupação com a promoção de justiça social, Sen enfatiza a importância do desenvolvimento das liberdades individuais. Conceitos abordados, muitas vezes, como opostos na Filosofia, igualdade e liberdade estão, para ele, associados. E de que forma? Somente com a expansão das liberdades individuais, os atores sociais podem realizar suas escolhas e ampliar suas oportunidades - sejam elas sociais, políticas ou econômicas. A supressão de liberdade é, nessa lente de compreensão, um limitador de oportunidades e escolhas - e, portanto, das possibilidades de agência.

Sen também sinaliza para a complexidade do conceito de desigualdade quando expande a noção de privação para além da renda, incluindo a carência de poder, participação e voz, exposição ao medo e à violência, acesso à comunicação, vulnerabilidade - enfim, a exclusão de direitos básicos e de bem-estar. Desigualdade não é exatamente um conceito que pode ser usado de forma uníssona, porque se apresenta em múltiplas dimensões, é multifacetado e, talvez, exatamente por sua característica variada e abrangente, é estável e resistente. E ao afirmar que desigualdade não é um conceito uníssono queremos, também, defender que tampouco é um conceito unívoco. Aliás, está muito longe disso, porque admite - e deve mesmo admitir - múltiplas interpretações. Assim, temos diante de nós a tensão entre a igualdade da condição humana, portanto uma perspectiva essencialmente iluminista, e a desigualdade que se apresenta na própria diversidade - ou heterogeneidade - dos indivíduos. E aqui podemos inserir como elementos de heterogeneidade a escolha e a agência - fatores centrais das liberdades individuais.

É nesta aparentemente inconciliável tensão, que os estudos sobre desigualdades se desenvolveram - e mais - passaram a demarcar o debate sobre justiça social no Brasil e no mundo.

Mas há muito tempo a Sociologia da estratificação superou este falso dilema. Sabemos que todas as sociedades experimentam desigualdades de algum tipo, que se apresentam em diferentes dimensões, como prestígio, poder, renda, entre tantas outras, e que suas origens são tão variadas quanto suas manifestações. Assim, ao não adotar como modelo uma sociedade plenamente igualitária, os estudos sobre desigualdades e estratificação dirigem seu foco para as oportunidades ou - dito de uma maneira mais adequada a este campo - para as chances de vida.

Aqui o que importa é o tamanho da desigualdade, os critérios de estratificação e a amplitude das distâncias nas oportunidades de alcançar posições na estrutura social. Para tanto, os estudos na área se debruçam sobre os mais diversos elementos que podem constituir barreiras à competição igualitária por posições. O artigo de Luiz Flávio Neubert, Arnaldo Mont’Alvão e Fernando Tavares - Estratificação social e usos do tempo: um estudo sobre os indivíduos inseridos no mercado de trabalho -, por exemplo, trata de uma questão que vem ganhando cada vez mais espaço dentro dos estudos sobre estratificação e desigualdades: o uso do tempo. Com base em uma pesquisa empírica realizado em Belo Horizonte, os autores examinam como indivíduos de diferentes estratos sociais organizam e utilizam seu tempo, buscando compreender de que modo o uso do tempo pode estar relacionado com o processo de produção e reprodução das desigualdades sociais.

Ao abandonar o mito da sociedade com recompensas idênticas, esta abordagem caminha em direção ao juízo de que as sociedades devem ser fluídas - e elas serão tão mais fluídas quanto igualitárias forem as chances de vida. Ao lado disso, busca avaliar a distância entre as posições sociais. Em uma sociedade com alto grau de fluidez, as distâncias sociais tendem a diminuir - aqui nos referimos às distâncias em renda, em prestígio ou status das ocupações, em educação, no acesso a determinados bens etc. Sociedades fluídas tendem a ser, em última instância, sociedades mais homogéneas.

De certo modo, há na ideia de fluidez social uma vitória da teoria de John Rawls. Sob o véu da ignorância, tenderíamos todos a realizar um pacto social mais justo, no qual as disparidades entre indivíduos seriam menores e o conjunto mais homogêneo. A fluidez pode ser o nosso “véu da ignorância”. Se considerarmos um sistema no qual as trocas entre posições sociais são mais constantes, as chances de obté-las mais igualitárias e as barreiras entre elas mais simples de transpor, um “acordo” ou um “contrato social” em torno de princípios da justiça - entendendo justiça como igualdade de oportunidades -seria bem mais fácil. Se eu não sei qual posição me cabe, tenderei a negociar no sentido de uma distribuição mais igualitária e mais justa. Se eu sei que a fluidez em minha sociedade é grande e, portanto, minhas chances de alcançar posições são tão prováveis como as de qualquer outro, estarei mais flexível para aceitar condições mais igualitárias para todos.

Assim, tanto o foco nas instituições, presente em Rawls, como o foco no comportamento individual e social, ou a vida que as pessoas são capazes de levar de acordo com o que valorizam, defendido por Sen, são relevantes.

Análises sobre desigualdades e justiça social implicam considerar não somente os condicionantes das escolhas e oportunidades, mas também as possibilidades para seu enfrentamento, especialmente em contextos sociais em que as condições de vida são marcadas por disparidades duráveis e profundas.

O combate às desigualdades depende, em grande parte, de vontade política, e nesse sentido a questão da representação tem papel central. O artigo de Clara Araújo, Valores e desigualdade de gênero: mediações entre participação política e representação democrática, também parte deste dossié, toca não apenas na dimensão de género das desigualdades, como em seu impacto para a representação feminina na política. A menor presença de mulheres nestes espaços é não apenas resultado, mas também, e principalmente, causa da enorme desigualdade de género presente em nossa sociedade. O artigo busca, assim, compreender alguns dos mecanismos que poderiam explicar a relação entre estes fenômenos.

Como mencionado antes, reconhecendo que todas as sociedades são desiguais, o foco dos estudos sobre estratificação e desigualdades está dirigido para dois fatores que são fundamentais, embora não sejam os únicos, para a avaliar a justiça ou injustiça do sistema de estratificação: (1) os níveis ou o “tamanho” das disparidades, tanto nas chances de vida como nas recompensas (renda, por exemplo), e a percepção dos indivíduos sobre os mesmos; (2) os critérios ou os determinantes da estratificação, ou seja, os critérios de alocação dos indivíduos em posições sociais, que podem ou não ser vistos como legítimos e justos.

São estas duas dimensões que podem indicar o quão justa ou injusta é uma sociedade, bem como o nível de tolerância às desigualdades que nela predomina. A ideia de uma relação estreita entre democracia e redução da tolerância às desigualdades prevalece na cultura política, mas a simples adoção de um sistema de democracia representativa e de um discurso voltado para as liberdades individuais pode ser condição necessária, mas não suficiente para a promoção de justiça, entendida como igualdade de oportunidades.

É a partir dessa noção que o caso da África do Sul se mostra tão emblemático e interessante, e é apresentado, neste dossiê, de forma bastante crítica, no artigo de Jayanathan Govender, intitulado Social justice in South Africa. Apesar do fim do regime de apartheid, e contrariando as expectativas mais otimistas, sua análise mostra que a desigualdade e pobreza continuam extremamente elevadas. Os custos sociais daí decorrentes, lembra o autor, são enormes, minando as possibilidades de um desenvolvimento social e econômico virtuoso. A situação descrita e analisada por Jayanathan Govender nos lembra, então, que situações de enorme desigualdade - de condições e oportunidades -, podem continuar existindo mesmo em países que adotam regime democrático e cujas constituições são elaboradas com base no compromisso com a justiça social.

No caso do Brasil, estudos sobre percepção das desigualdades (Scalon, 2004SCALON, Maria Celi. Imagens da desigualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.) mostram que prevalece a crença de que a distribuição de oportunidades e recursos se baseia em critérios de estratificação meritocráticos, tais como esforço, educação, qualificação ou inteligência. Isto pode levar a uma tendência em legitimar o sistema de estratificação. Como consequência, esta visão justificaria uma maior tolerância com a desigualdade de recompensas e a aceitação de limites mais elásticos para ela, dada a percepção de que os recursos seriam distribuídas de acordo com critérios meritocráticos.

No entanto, a igualdade de oportunidades que, em última instância, é o elemento chave para uma sociedade justa, adotando o conceito rawlsiano de justiça (Rawls, 1993), só pode ser alcançada com ação pública que agregue e combine diferentes estratégias. Nesse sentido, é imprescindível a articulação entre políticas públicas universais e políticas focais que, embora tenham caráter distinto e se apliquem a situações diversas, não são excludentes e tampouco conflitantes. É perfeitamente possível entendê-las como estratégias complementares, até porque a natureza multidimensional da desigualdade requer a combinação e articulação de ambas. Afinal se reconhecemos algumas políticas públicas como direitos - e podemos dar aqui o exemplo de educação básica, saúde e seguridade social - elas devem ser, necessariamente, universais. Afinal, direitos devem ser estendido a todos, sem exceção.

Desse modo, o modelo de desenvolvimento adotado em algumas das sociedades contemporâneas, e o Brasil não é exceção, focado na geração de crédito e consumo de bens individuais, sem o respectivo aprimoramento e investimento em políticas públicas universais, não é resposta suficiente e, tampouco, eficiente para combater as desigualdades. As limitações desta estratégia podem ser observadas em vários países do globo, muitos deles em processo de decadência económica.

O artigo de Sônia Guimarães, Desenvolvimento econômico-social e instituições no Brasil, trata justamente das desvantagens e dos riscos de uma política industrial e uma arquitetura institucional que tem levado à construção de uma ordem de acesso limitado - em oposição a uma ordem de acesso aberto -, minando as possibilidades de um desenvolvimento socialmente inclusivo e economicamente sustentável. Nele é discutido o papel do estado e do mercado diante de um novo paradigma de desenvolvimento, calcado na inovação, no avanço tecnológico e no conhecimento. Nesse sentido, as projeções para o Brasil ainda são, infelizmente, pouco animadoras.

Finalmente, devemos lembrar que as desigualdades são objeto de preocupação não apenas em função de valores éticos e morais, mas também porque suas consequências objetivas muitas vezes atingem a sociedade em seu conjunto. Este é o caso da violência, muitas vezes tomado como exemplo de efeito negativo das desigualdades, que atingiria, em maior ou menor grau, todos os membros de uma sociedade.

O artigo de Eduardo Ribeiro e Ignacio Cano, intitulado Vitimização letal e desigualdade no Brasil: evidências em nível municipal, mostra, no entanto, que a relação entre desigualdades e violência é mais complexa e sensível à unidade de análise escolhida do que se pode supor de início. Através de uma rigorosa análise empírica, os dados analisados mostram que é a renda dos mais pobres - esta, por sua vez, uma consequência parcial das desigualdades - e não a desigualdade de renda em si, que está diretamente relacionada à incidência da violência letal.

Ainda assim, a questão da vitimização letal é um ponto nodal no debate sobre justiça. Afinal, há direito mais fundamental do que o direito à vida? Se as chances de permanecer vivo são desigualmente distribuídas, segundo renda, geração, raça ou qualquer outra característica, estamos diante de uma sociedade que expõe a face mais dramática e cruel da ausência de justiça, aqui entendida para além de sua dimensão legal.

O conjunto de artigos incluídos nesta edição da Civitas - Revista de Ciências Sociais busca assim apresentar diferentes ângulos do que se convencionou chamar desigualdades sociais, suas causas e consequências, bem como introduzir um breve debate sobre a delicada relação entre igualdade e justiça. Trata-se de um tema muito amplo e abrangente que, obviamente, não poderia ser esgotado em uma publicação. Nosso objetivo foi incorporar diferentes tópicos da Sociologia, como gênero, violência, pobreza, desenvolvimento, inovação, oportunidades, herança, raça, classe, participação política, uso do tempo, entre outros, revelando suas conexões com a questão central do dossiê, que é a justiça social. Esperamos ter cumprido minimamente este objetivo, e desejamos a todos uma boa leitura!

  • 1
    As expectativas e frustrações vividas durante o processo de construção de trajetórias constituem objeto relevante para qualquer análise sobre justiça social e igualdade.
  • 2
    Em função da limitação de tamanho, alguns artigos do dossiê, aqui citados, podem estar presentes somente na versão digital do mesmo.

Referências

  • BENNETT, Tony; SAVAGE, Mike; SILVA, Elizabeth B.; WARDE, Alan; GAYO-CAL, Modesto; WRIGHT, David (orgs.). Culture, class, distinction. London: Routledge, 2009.
  • BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008.
  • DEVINE, Fiona; SAVAGE, Mike. The cultural turn, sociology and class analysis. In: Fiona Devine, Mike Savage, John Scott e Rosemary Crompton (orgs.). Rethinking class: culture, identities & lifestyle. London: Palgrave Macmillan, 2005. p. 1-23.
  • HOUT, Michael; DIPRETE, Thomas. A. What we have learned: RC28's contributions to knowledge about social stratification. Research in social stratification and mobility, v. 24, n. 1, p. 1-20, 2006 <10.1016/j.rssm.2005.10.001>.
    » https://doi.org/10.1016/j.rssm.2005.10.001
  • LAMONT, Michele. Money, moral & manners: the culture of the French and the American upper-middle class. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.
  • RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 2009.
  • SCALON, Maria Celi. Imagens da desigualdade Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
  • SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • SILVA, Nelson do Valle; HASENBALG, Carlos (orgs.). Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016
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