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Temporalidades juvenis e impactos do contexto pandêmico

Youth temporalities and the impacts of the pandemic context

Temporalidadesjuveniles e impactos del contextopandémico

Resumo:

Este artigo objetiva refletir sobre os impactos do contexto de pandemia nos modos como jovens experienciam o tempo. Para tanto, partimos de conversas mediadas pelas redes sociais com quatro jovens de diferentes idades, percursos escolares e contextos de vida, todos residentes em Porto Alegre (RS), Brasil. A análise do campo empírico se amparou em autores que vêm se dedicando a compreender diferentes dimensões das temporalidades juvenis, como Carmen Leccardi e José Machado Pais. Foi possível constatar mudanças nas percepções de temporalidade, que puderam ser observadas em duas dimensões: na organização do tempo cotidiano e nas projeções acerca do futuro. Para alguns jovens, o tempo pareceu ter acelerado enquanto para outros, o tempo pareceu mais arrastado e entediante. Além disso, alterações nas trajetórias escolares foram apontadas por alguns jovens como geradoras de mudanças em suas expectativas de futuro.

Palavras-chave:
Juventudes; Covid-19; Temporalidades Juvenis; Isolamento Social; Futuro

Abstract:

This article considers the impacts of the pandemic context on how young people experience time. To do so, we started with conversations mediated by social media with four young people of different ages, educational backgrounds, and life contexts, all residing in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. The analysis of these conversations was supported by authors who have been dedicated to understanding different dimensions of youth temporalities, such as Carmen Leccardi and José Machado Pais. It was possible to observe changes in the perceptions of temporality, both in the organization of daily time and in projections about the future. For some young people, time seemed to have accelerated while for others, time appeared to be more sluggish and tedious. In addition, changes in school trajectories were identified by some young people as generators of changes in their expectations for the future.

Keywords:
Youths; Covid-19; Youth Temporalities; Social isolation; Future

Resumen:

Este artículo tiene por objetivo reflexionar a respeto de los impactos del contexto de la pandemia en las formas en que los jóvenes experimentan el tiempo. Para ello partimos de conversaciones mediadas por redes sociales con cuatro jóvenes de diferentes edades, antecedentes educacionales y contextos de vida, todos residentes en Porto Alegre (RS), Brazil. El análisis del campo empírico fue apoyado por autores que se han dedicado a comprender diferentes dimensiones de las temporalidades juveniles, como Carmen Leccardi y José Machado Pais. Fue posible observar cambios en las percepciones de la temporalidad en dos dimensiones: en la organización del tiempo diario y en las proyecciones sobre el futuro. Para algunos jóvenes, el tiempo pareció haberse acelerado, mientras para otros, el tiempo pareció haberse vuelto más lento y aburrido. Además, algunos jóvenes identificaron los cambios em sus trayectorias escolares como generadores de cambios en sus expectativas de futuro.

Palabras clave:
Jóvenes; Covid-19; Temporalidades juveniles; Aislamiento social; Futuro

Introdução

A pandemia gerada pelo novo coronavírus trouxe alterações nas dinâmicas sociais e nos cotidianos individuais e sociais, não somente em função da doença, mas devido às medidas adotadas para frear a propagação do vírus. Os impactos dessas medidas foram sentidos e vividos de diferentes maneiras e intensidades, ao mesmo tempo em que se transformaram no decorrer da evolução e continuidade do contexto de pandemia.

O objetivo deste texto é refletir sobre os impactos da pandemia nos modos como jovens e adolescentes vivenciam o tempo. Para tanto, partimos da conversa com quatro jovens de diferentes idades, percursos escolares e contextos de vida, todos residentes em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil.

Tendo em vista o contexto de pandemia global em que esse artigo foi elaborado, e a intenção de gerar reflexões acerca do tema tão cedo fosse possível, optou-se pela composição de uma amostra por conveniência, priorizando o diálogo com jovens com quem já tínhamos contatos pré-estabelecidos.

Os interlocutores tinham entre 13 e 18 anos de idade e experienciavam diferentes situações juvenis. Apesar de o mais jovem deles ter idade inferior à classificação legal acerca da juventude, utilizamos aqui o conceito de juventude não apenas pautado por uma definição etária, mas também permeado por marcadores sociais, englobando tanto as faixas etárias compreendidas como jovens, quanto as compreendidas como adolescentes. Essa opção ancora-se em uma perspectiva política de subverter o conceito de adolescência, priorizando o uso do conceito de juventude, que demarca a multiplicidade das formas de vivenciar os momentos da vida em que certos marcadores sociais estão presentes (Coimbra, Bocco e Nascimento 2005).

Nesse sentido, enquanto o conceito de adolescência está mais fortemente relacionado com processos biológicos e biomédicos que marcam mudanças no corpo do indivíduo,2 2 Oliveira, Régia Cristina, e Cynthia Sarti. 2016. Físico e moral: o cérebro imaturo na explicação biomédica da medicina. Paper apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs. Acessado em 28 out. 2022. https://bit.ly/3DgXMVH. o conceito de juventude compreende uma condição social que pode iniciar simultaneamente mudanças de cunho biológico, contudo é marcada por transformações nas referências sociais e relacionais, as quais não obedecem a uma demarcação precisa como a definição etária (Dayrell 2003Dayrell, Juarez. 2003. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação 24: 40-52.https://doi.org/10.1590/S1413-24782003000300004.
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).

As conversas foram mediadas pelas redes sociais e, no caso dos jovens com menos de 18 anos foi, também, realizada uma conversa com os responsáveis, explicando as intenções da investigação. Os diálogos ocorreram entre setembro e outubro de 2020 e foram realizados tendo em vista quatro aspectos: organização da rotina e dos usos do tempo durante os primeiros meses de vigência das medidas de contenção do contágio do vírus; diferenças dessa rotina em relação ao período pré-pandêmico; percepções sobre a vivência temporal; e possíveis mudanças que esse contexto específico gerou nas projeções sobre o futuro.

Apesar de a amostra ser composta por apenas quatro jovens, os elementos trazidos por eles acerca dos quatro aspectos acima mencionados possibilitaram a construção das reflexões a que esse artigo se propunha. Longe de imaginar que as experiências mobilizadas por esses quatro jovens sejam representativas das múltiplas possibilidades de vivências juvenis durante esse período, entendemos que suas percepções funcionam como material inicial para estudo e reflexão acerca de alguns dos impactos desse contexto nas temporalidades juvenis.

O Quadro 1 sistematiza as principais informações de identificação sobre os jovens entrevistados.

Quadro 1
Informações básicas sobre os jovens entrevistados.

Os impactos da pandemia de Covid-19 na vida dos jovens, em especial as alterações profundas no cotidiano provocadas pelas medidas de isolamento social, por exemplo, podem ser pensadas a partir de uma diversidade de dimensões, desde o plano das subjetividades, incluindo as relações familiares, as interações com os pares, entre outros. Neste artigo, optamos por discutir os impactos desses cenários nas vivências cotidianas do tempo e sobre a projeções destes jovens para o futuro.

Tempo e temporalidades de uma perspectiva sociológica

Apesar de o conceito de tempo estar presente com frequência nos estudos sociológicos sobre juventude, muitas vezes, ele gera poucas reflexões e é entendido como algo “dado”. Isso é apenas reflexo de uma tendência mais geral dos estudos na área das ciências sociais que, com algumas exceções, dedicou-se pouco a discutir o tempo e as temporalidades. A naturalização do tempo e a ausência de questionamento criam a ilusão de que o tempo existe em si e sempre existiu.

Norbert Elias em sua obra Sobre o Tempo (1998) defende que o “tempo” é um instrumento de orientação que se tornou indispensável para que os indivíduos em sociedade realizem uma multiplicidade de tarefas diversas, mediadas por marcadores que utilizam símbolos culturalmente construídos nessa orientação. O tempo é, assim, uma representação simbólica das inúmeras redes de relações que conectam as experiências individuais, sociais e físicas dos seres humanos em sua relação com a natureza (Elias 1998Elias, Norbert. 1998. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar.).

Para o sociólogo alemão Harmut Rosa (2003)Rosa, Hartmut. 2003. Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a Desynchronized High–Speed Society. Constellations: An International Journal of Critical & Democratic Theory 10 (1): 3-33. https://doi.org/10.1111/1467-8675.00309.
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, a dimensão temporal precisa ser incorporada ao entendimento da lógica do desenvolvimento estrutural e cultural da modernidade, já que todas as dimensões materiais da sociedade são atravessadas pela temporalidade. A principal característica desta forma de temporalidade é a aceleração que é causa e efeito das principais transformações sociais que caracterizam a modernidade (diferenciação, racionalização, individualização e controle da natureza). O termo “aceleração social” diz respeito aos processos de mudança em diversas esferas da vida humana que acontecem de forma muito rápida ou acelerada. Rosa (2003)Rosa, Hartmut. 2003. Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a Desynchronized High–Speed Society. Constellations: An International Journal of Critical & Democratic Theory 10 (1): 3-33. https://doi.org/10.1111/1467-8675.00309.
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chama atenção para os processos de aceleração das mudanças sociais que desestabilizaram estruturas e padrões de orientação e ação, tornando-os instáveis e efêmeros. A aceleração social também é observada no próprio ritmo da vida social, nomeadamente o sentimento de que o tempo é escasso. Isso pode ser mensurado na contração do tempo dedicado a comer, dormir, passar tempo com a família etc., pois a aceleração implica fazer mais coisas em menos tempo, seja reduzindo pausas e intervalos, seja fazendo mais coisas simultaneamente (multitasking). O principal paradoxo da “aceleração social”, segundo Rosa (2003)Rosa, Hartmut. 2003. Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a Desynchronized High–Speed Society. Constellations: An International Journal of Critical & Democratic Theory 10 (1): 3-33. https://doi.org/10.1111/1467-8675.00309.
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é o fato de que a aceleração tecnológica produz mais “tempo livre” (economizado, por exemplo, no tempo ganho para obter informações por meio de pesquisas na internet), mas contraditoriamente, acumulamos mais tarefas e atividades que consomem esse tempo livre, (aceleração do ritmo de vida) gerando o fenômeno de “escassez de tempo”. Com o advento da pandemia de Covid-19, a suspensão de inúmeras atividades produziu efeitos diferentes: gerou um “excesso de tempo livre” (como o tempo economizado com deslocamentos para escola e trabalho, por exemplo), mas também um crescimento exponencial de atividades que consomem tempo (como tarefas de cuidados domésticos, de crianças e idosos, limpeza e alimentação). O tempo livre também passou a ser preenchido pelas novas possibilidades de ocupação proporcionadas pela aceleração tecnológica: reuniões virtuais, aulas online, lives, entre inúmeras outras formas de interação social.

É importante também compreender que, em diferentes sociedades e em diferentes momentos históricos, a relação da humanidade com o tempo foi se modificando e que essa relação influencia a forma como os indivíduos vivem o seu cotidiano. Para Carmen Leccardi (2005)Leccardi, Carmen. 2005. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Tempo Social 17 (2): 35-57. https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000200003.
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, a temporalidade contemporânea seria marcada por uma sensação de incerteza em relação ao futuro, que passa a ser associado a angústias relacionadas àquilo que não se pode controlar. Nessa perspectiva, há um deslocamento da centralidade temporal para o presente, que passa a ser visto de forma dissociada do passado e do futuro.

Esse efeito é particularmente contundente no contexto de pandemia, onde a sensação de incerteza em relação ao futuro se acentuou (incerteza de quanto tempo as medidas de isolamento social seriam necessárias, quando tratamentos e vacinas estariam disponíveis etc.) e o tempo presente adquiriu uma dimensão central na vida cotidiana. As profundas alterações na rotina levaram à necessidade de reorganização do tempo dedicado ao trabalho, aos estudos, aos afazeres domésticos e dos tempos “livres”. A impossibilidade de fazer planos de curto e, também, de médio prazo para o futuro (como o início e o término de atividades letivas, retorno a atividades de trabalho presenciais, agendar férias e viagens, celebrações etc.) aumentou a sensação de incerteza em relação à “volta à normalidade”, adiando ou mesmo suspendendo planos importantes para o futuro, ampliando o enfoque no presente.

O efeito de redução da importância do futuro enquanto temporalidade e o enraizamento no presente ou, como chamou Pais (2006)Pais, José Machado. 2006. Prefácio. Busca de si: expressividades e identidades juvenis. In Culturas Jovens: novos mapas do afeto, organizado por Maria Isabel M. de Almeida, e Fernanda Eugenio. E-book. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, a desfuturização do futuro, marca a necessidade constante de um investimento no agora, da garantia da satisfação imediata. Segundo o autor, “se falha a capacidade de imaginar o futuro, dá-se um refúgio no presente” (Pais 2012Pais, José Machado. 2012. A esperança em gerações de futuro sombrio. Estudos Avançados 26 (75): 267-80. https://doi.org/10.1590/S0103-40142012000200018.
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, 270).

Esse novo regime temporal influencia o modo como os indivíduos de forma geral (no mundo ocidental) se relacionam com o tempo. Contudo, pela íntima ligação que as juventudes possuem com o ato de projetar o futuro, essa nova temporalidade – acentuada pelo contexto pandêmico – acabou por marcar ainda mais significativamente as parcelas da sociedade compostas por jovens.

Partindo desse cenário, estudar as temporalidades juvenis compreende identificar tanto os modos como as juventudes contemporâneas vivenciam o tempo em sua dimensão cotidiana no presente, quanto identificar a forma como os jovens se relacionam com as temporalidades passadas e, sobretudo, com as projeções acerca do futuro.

Essa tarefa vem sendo empreendida por diferentes autores (Melucci 1996Melucci, Alberto. 1996. Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista Brasileira de Educação 4 (2): 3-14.; Leccardi 2005Leccardi, Carmen. 2005. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Tempo Social 17 (2): 35-57. https://doi.org/10.1590/S0103-20702005000200003.
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; Pais 2006Pais, José Machado. 2006. Prefácio. Busca de si: expressividades e identidades juvenis. In Culturas Jovens: novos mapas do afeto, organizado por Maria Isabel M. de Almeida, e Fernanda Eugenio. E-book. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012Pais, José Machado. 2012. A esperança em gerações de futuro sombrio. Estudos Avançados 26 (75): 267-80. https://doi.org/10.1590/S0103-40142012000200018.
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; Franch 2008Franch, Mônica. 2008. Tempos, contratempos e passatempos: um estudo sobre práticas e sentidos do tempo entre jovens de grupos populares do Grande Recife. Tese em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Pinto 2012Pinto, Edmara de C. 2012. Tempo da juventude ou juventude além do tempo? In Os tempos sociais e o mundo contemporâneo. Um debate para as ciências sociais e humanas, organizado por Emília Araújo, e Eduardo Duque, 235-8. Portugal: Universidade do Minho.) que, muito longe de defender a existência de uma única temporalidade, afetando de forma homogênea todos os jovens, buscam compreender nuances das influências dos regimes de temporalidade sobre a forma como os jovens se relacionam com o tempo.

Na construção deste artigo, nos dedicamos a refletir sobre a influência do contexto específico de impacto das medidas não farmacológicas de contenção do contágio pelo coronavírus, durante os primeiros meses de 2020, na vivência das temporalidades juvenis, seja em relação à percepção e ocupação do tempo no cotidiano, seja em relação a possíveis alterações de projetos de futuro.

Novas temporalidades cotidianas

O contexto de pandemia impôs uma série de mudanças na rotina de diferentes pessoas ao redor do mundo. De todas essas mudanças, talvez a mais significativa para o cotidiano geral tenha sido a necessidade de isolamento social. Os impactos desse cenário ainda são imensuráveis, mesmo que diferentes pesquisadores tenham se dedicado a refletir, ainda que de forma inicial, elementos gerais e específicos relacionados a essas mudanças.

Em situações históricas excepcionais, as estruturas temporais com as quais convivemos normalmente de forma naturalizada e quase imperceptível se tornam visíveis. No início da pandemia de Covid-19, o tempo individual foi suspenso em uma espécie de “bolha do presente” dentro da qual se esperava o retorno à lógica temporal anterior à emergência do vírus (Levrini et al. 2020Levrini, Olivia, Paola Fantini, Eleonora Barelli, Laura Branchetti, Sara Santanassi, e Giulia Tasquier. 2020. The Present Shock and Time Re-appropriation in the Pandemic Era. Science & Education 30 (1): 1-31.https://doi.org/10.1007/s11191-020-00159-x
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)

During this period, the dynamics—and inner velocities—of natural phenomena, social practices, biological and cultural needs, daily rituals, and intersubjective and affective relationships are unveiled, and we tend to feel a deep sense of disruption due to their emergence. (Levrini et al 2020Levrini, Olivia, Paola Fantini, Eleonora Barelli, Laura Branchetti, Sara Santanassi, e Giulia Tasquier. 2020. The Present Shock and Time Re-appropriation in the Pandemic Era. Science & Education 30 (1): 1-31.https://doi.org/10.1007/s11191-020-00159-x
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, 2).

Ainda segundo Levrini et al. (2020)Levrini, Olivia, Paola Fantini, Eleonora Barelli, Laura Branchetti, Sara Santanassi, e Giulia Tasquier. 2020. The Present Shock and Time Re-appropriation in the Pandemic Era. Science & Education 30 (1): 1-31.https://doi.org/10.1007/s11191-020-00159-x
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, a disruptura provocada pela pandemia de Covid-19 aparentemente suspendeu nossas temporalidades cotidianas, levando sociedades inteiras a ter que lidar com novas formas de lentidão, por meio de “novos rituais, novos hábitos e novas prioridades que possam normalizar o controle do tempo de nossas atividades cotidianas” (Levrini et al. 2020Levrini, Olivia, Paola Fantini, Eleonora Barelli, Laura Branchetti, Sara Santanassi, e Giulia Tasquier. 2020. The Present Shock and Time Re-appropriation in the Pandemic Era. Science & Education 30 (1): 1-31.https://doi.org/10.1007/s11191-020-00159-x
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, 8). Esse efeito foi particularmente contundente no caso de professores(as) e estudantes, cujos tempos de vida são predominantemente regidos por calendários escolares. A imprevisibilidade quanto à retomada futura dos calendários pré-pandemia e a suspensão de inúmeras atividades sociais (choque do presente) teria nos levado a nos reapropriarmos da temporalidade cotidiana, de nosso self e dos outros.

Buscamos aqui tecer algumas considerações sobre como esse cenário alterou as temporalidades juvenis, seja por diferenças na forma como os jovens e adolescentes ocupavam seus tempos nesse contexto de isolamento, seja pelos efeitos desse cenário de incertezas no exercício de construir projetos de futuro.

Em termos do tempo cotidiano, uma das maiores mudanças diz respeito à ausência do dia a dia no espaço escolar. A escola é uma das principais instituições socializadoras e sua existência possui íntima relação com o reconhecimento da infância e, posteriormente da juventude (Ariès 1960Ariès, Philippe.1960. História Social da Criança e da Família. Curitiba: Ed LTC.). Ao criar um espaço separado do mundo adulto, a escola permite que as vivências do tempo em crianças, adolescentes e jovens respeite uma lógica própria, mesmo que profundamente influenciada pelos tempos e ritmos dos processos de trabalho do mundo adulto.

É inegável que a inserção na escola ajuda a pautar a organização do tempo dos jovens, seja pela noção da escola como espaço central de “ocupação do tempo” (aulas, turnos, períodos) seja pelo fato de o percurso escolar marcar etapas nas trajetórias juvenis (estar no 1º, 2º, 3º ano)

Ao produzirem uma etnografia do tempo escolar, Souza e Franch (2014)3 3 Souza, Josilene P. de, e Mónica Franch. 2014. Ritmos, tempos medidos e tempos vividos: uma etnografia do tempo escolar. In Anais do 18º REDOR, 656-73. Recife, PE: Universidade Rural de Pernambuco. Acessado em 28 out. 2022. http://www.ufpb.br/evento/index.php/18redor/18redor/paper/viewFile/2033/668. mostram como a vivência temporal juvenil é fortemente influenciada por unidades de tempo presentes no ambiente escolar (como ano letivo, bimestre, mês e semana). As autoras ainda destacam a existência de duas temporalidades que atuam de forma simultânea e interligada no ambiente escolar: uma do tempo planejado, inscrita nas expectativas institucionais e nos planos de aula e, outra, do tempo realmente vivido, marcado por imprevistos e pela interação dos diferentes atores que compõem a rotina escolar.

Nesse sentido, apesar de mudanças recentes no papel da escola como instituição reguladora das temporalidades juvenis, para os jovens que conseguem permanecer no espaço escolar, essa instituição cumpre um papel importante na organização de suas rotinas diárias.

A impossibilidade de estar presencialmente no espaço escolar alterou profundamente a rotina de milhões de jovens no país. Algumas ações foram tomadas no sentido de buscar a continuidade do ensino mesmo em meio a um contexto de isolamento social. O que diferentes autores vêm apontando, contudo, é como as desigualdades sociais também condicionaram diferentes acessos à educação durante esse período.

[…] a ausência de aulas presenciais não tem significado, pelo menos para a rede privada de ensino, em que pesem as diferenças entre as escolas, o rompimento das atividades de ensino e aprendizagem. Como remediação inicial às restrições impostas à vida escolar, o ensino privado tem lançado mão das interações pedagógicas propiciadas pelos distintos ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs). Porém, o mesmo não pode ser dito das redes públicas de ensino. Nelas, as aulas estão canceladas e, quando muito, têm limitado suas ações a fornecer merenda escolar às famílias de seus alunos.4 4 Virginio, Alexandre S. 2020. Educação, desigualdade e Covid-19. Boletim n. 46 – Ciências sociais e coronavírus – Anpocs, 25 maio 2020. Acessado em 27 maio 2020. https://bit.ly/3TPhZZQ.

Nesse sentido, as desigualdades educacionais produziram novas desigualdades e diferenças na forma como os jovens acabaram ocupando o tempo durante o período mais intenso de isolamento social.

Ao relatar a sua rotina durante o isolamento social, Antônio (15 anos), que é aluno da rede privada de ensino, evidenciou a centralidade que as tarefas escolares desempenharam na ocupação do seu tempo cotidiano:

[…] Eu acordo todos os dias ali pelas 7h45, eu faço meu café da manhã pra mim […] depois eu vou para aula, que dura mais ou menos até o meio-dia. Depois eu vou almoçar com minha mãe e meu irmão, eu vejo um pouco de TV, até umas 14h30, aí eu vou tomar banho para começar a estudar. Eu estudo até umas 19h, às vezes 18h30, enfim, eu paro quando eu vejo que estou muito cansado, aí eu vou fazer um lanche, arrumo meu quarto, faço o máximo para ele parecer habitável, depois eu janto e jogo um pouco de video-game até normalmente umas 23h. Às vezes eu me passo, e fico jogando até a meia noite. Esse é mais ou menos o meu ciclo diário durante a quarentena. (Antônio, 15 anos, com. pess., out. 2020).

No caso de Antônio, as atividades de ensino na sua organização original foram transpostas para a modalidade remota, ocupando integralmente o período antes destinado às aulas presenciais. Chama atenção que o tempo passado diante da tela na modalidade online permaneceu o mesmo dedicado às aulas na modalidade presencial – o que nos leva a questionar quais são os impactos desta forma de interação mediada por plataformas de transmissão síncrona sobre sua capacidade de atenção, as possibilidades de interação com os(as) colegas e mesmo com o(a) professor(a). Na rotina de Antônio também estava previsto tempo para atividades autônomas de estudo, tarefas domésticas e mais interação com eletrônicos (vídeo game), o que aumentou consideravelmente o tempo passado em frente de uma tela.

Já os jovens inseridos nas instituições públicas de ensino sentiram uma redução do tempo dedicado à formação escolar, visto que, muitas vezes, as dificuldades de acesso a plataformas virtuais de interação síncrona ou de conexão presente na realidade de muitos alunos e professores fez com que a realização de atividades de ensino síncronas, diárias, fosse inviável. A rotina autonarrada de Heitor explicita o contraste em relação à rotina de Antônio descrita anteriormente:

Acordo, perto das 11h, fico um tempo no celular, depois vou para o videogame até a hora em que almoço, na frente do videogame (risos). Aí eu jogo [videogame] um pouquinho de tarde, até umas 15h mais ou menos, aí eu vou estudar, fazer um trabalho e essas coisas. Aí cada dia tá meio diferente. Às vezes eu fico jogando até as 16h… depende das atividades que tem do colégio. Aí eu olho o celular, faço umas coisas. Às vezes como uma coisa ali pelas 17h e aí volto para o videogame ou fico no celular. Aí depois é a hora que tomo banho e vou para o videogame jogar e fico direto até a hora de dormir e é isso. Ou às vezes eu vejo algum seriado, alguma coisa antes de dormir também. (Heitor, 13 anos, com. pess., set. 2020).

Essa rotina aponta uma redução do espaço antes dedicado aos estudos, preenchido por um incremento no tempo de jogos e interações online. Aponta, ainda, para a desorganização das rotinas escolares, que passaram a ser preenchidas por mais tempo em frente de telas (celular e videogame). Ao ser perguntado sobre o que mais sentia falta do período anterior à pandemia, o mesmo jovem respondeu que sentia falta “principalmente da rotina, porque agora é tudo muito parado”. (Heitor, 13 anos, com. pess, 2020)

Essa percepção de que a falta da escola contribui para a dificuldade de estabelecer uma rotina apareceu em mais de uma conversa. Esses resultados se aproximam da discussão proposta por Guizzo, Marcello e Müller (2020)Guizzo, Bianca, Fabiana Marcello, e Fernanda Müller. 2020. A reinvenção do cotidiano em tempos de pandemia. Educação e Pesquisa 46: e238077. https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046238077.
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, que sugerem a existência de um “cotidiano inventado” no contexto de isolamento social, a partir da reconfiguração dos papéis das principais instituições sociais do cotidiano de crianças e de jovens: as instituições de educação e a família. Segundo as autoras, estabelecer uma nova rotina nesse cenário foi particularmente desafiador.

Em meio a esse novo contexto, a ausência da convivência no espaço escolar gerou mudanças significativas na forma como adolescentes e jovens ocupavam o seu tempo, seja em experiências de aprendizado, seja na interação com seus pares. Enquanto alguns ocupavam o seu cotidiano com a realização de cursos e atividades, outros pareciam viver um cotidiano preenchido por grandes tempos de vazio, marcados pela ausência de atividades planejadas, que sugerem modos diferentes de socialização quanto à organização do tempo.

Por isso, apontamos que as vivências de temporalidade durante o contexto de isolamento social manifestaram-se em dois polos opostos: o do cansaço e o do tédio. Seguindo no debate das temporalidades juvenis, no polo do “cansaço” temos os jovens sobrecarregados pela realização de tarefas e trabalhos escolares sem uma adequada supervisão, aqueles (e especialmente aquelas) jovens que se viram obrigados a auxiliar nas tarefas domésticas e de cuidados com os irmãos mais novos, os jovens inseridos na educação superior e que vivenciaram a dificuldade de conciliar os cuidados domésticos com as atividades de ensino (e, por vezes, com o home office), bem como aqueles jovens inseridos no mercado de trabalho e que encontraram dificuldades na sobrecarga de trabalho no regime de home office (principalmente aqueles que já exerciam funções de parentalidade).

É importante destacar, entretanto, que tanto o “cansaço,” quanto o “tédio” são efeitos das mudanças que ocorreram nas rotinas cotidianas, levando a dificuldades de organização com impactos distintos na saúde e no bem-estar.

Para Antônio, por exemplo, os principais desafios enfrentados durante o período de isolamento se referiam à dificuldade de encontrar tempo para a realização de atividades físicas, conseguir dormir oito horas por noite e o fato de sentir-se mais cansado:

Meu principal desafio nessa rotina de isolamento é manter meu horário de sono. Manter as 8h recomendadas […] Porque às vezes não consigo ir dormir cedo, mas sempre tenho que acordar no mesmo horário. Outro desafio é conseguir encaixar no meu horário, na minha rotina um tempo para eu fazer atividade física. Porque, como eu disse, eu não tenho muito tempo […]

Antes da pandemia começar, eu ia muito para a rua, andava de bicicleta, jogava futebol, essas coisas. Agora não dá. Eu até tento fazer algumas atividades em casa, mas não é sempre que eu posso. No horário que seria indicado para eu fazer, eu estou em aula ou então fazendo as atividades para o colégio. Porque o colégio me manda bastante atividades e eu tenho que fazer. Eu tô me sentindo muito mais cansado, mesmo que minha rotina esteja sendo muito mais parada. (Antônio, 15 anos, com. pess., out. 2020).

É interessante que a escola de Antônio parece ter se preocupado em oferecer “bastante atividades” que contemplassem tanto os períodos de aulas síncronas, como tarefas extraclasse, mais uma vez reproduzindo os moldes das rotinas pré-pandemia. É como se o fato de o estudante estar “em casa” precisasse ser organizado pela escola – e não pelo estudante – evitando ou então desconsiderando as atividades que normalmente se desenvolvem neste espaço (atividades realizadas junto à família, atividades de lazer, atividades físicas e atividades fundamentais para a vida, como alimentação e sono). Há uma espécie de “disputa” sobre o tempo livre liberado pelo isolamento, que dispensou a necessidade de deslocamento e circunscreveu as possibilidades de realização de atividades externas, fora do espaço da casa.

Essa concepção de tempo que precisa ser totalmente preenchido dialoga profundamente com o conceito de aceleração do tempo apresentado por Rosa (2003)Rosa, Hartmut. 2003. Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a Desynchronized High–Speed Society. Constellations: An International Journal of Critical & Democratic Theory 10 (1): 3-33. https://doi.org/10.1111/1467-8675.00309.
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como a necessidade de evitar o desperdício do tempo, preenchendo-o com o máximo de atividades possíveis, gerando, por vezes, a sensação de “falta de tempo”, como referida por Antônio.

No outro polo, o “tédio” se expressou no cotidiano daqueles jovens que não estavam inseridos nem no mercado de trabalho, nem no espaço escolar; dos jovens para quem a escola se resumiu à realização de pequenos trabalhos; além de jovens e adolescentes que, por motivos diversos, não realizavam atividades dispendiosas em termos de tempo, seja nos cuidados da casa, seja em atividades remuneradas.

Para os dois jovens que não estavam estudando antes da pandemia, a nova rotina estava mais “devagar”, especialmente, pela falta de alternativas reconhecidas para preencher os novos tempos “livres” devido à ausência de atividades de ensino presenciais.

Minha rotina está um pouco devagar… no começo tive dificuldades pra me adaptar e meus dias são resumidos em trabalho e casa. (Jean 18 anos).

No começo até que era legal ficar mais por casa, mas agora eu me sinto bem sozinha e meio que tô cansada de ficar sem fazer nada. Às vezes não fazer nada cansa mais do que fazer muita coisa, né? Acho que meu dia-a-dia agora é bem devagar, sabe? (Rebecca, 17 anos, com. pess., out. 2020).

De forma semelhante, Heitor relatou a sensação de tédio, bastante relacionada à monotonia dos dias de isolamento.

Não sei, ao mesmo tempo que às vezes parece que o dia passa mais rápido, parece, assim, que todos os dias são iguais. É estranho porque principalmente assim de ficar sem rotina, parece que é sempre a mesma coisa, sabe? Às vezes eu nem sei que dia é.. Parece estar mais tedioso, parece que não tem nada pra fazer e parece que tudo eu já fiz […] quer dizer, não tem nada novo, uma novidade assim […].

[Antes] era um tempo bem mais ativo […] E agora os dias são todos parados. Então acho que agora está bem mais chato. (Heitor, 13 anos, com. pess. set. 2020).

Essa percepção sugere que diferentes capitais precisam ser mobilizados também para preencher os tempos “livres”, com atividades de consumo e entretenimento, geralmente proporcionadas por acesso pago à internet, produtos, mídias, canais, redes sociais, streaming, jogos, aulas online, cursos etc. Aliados à precariedade do acesso tecnológico que muitos jovens periféricos enfrentam (Nemer 2021Nemer, David. 2021. Tecnologia do oprimido-desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil. Vitória: Editora Millfontes.), é preciso considerar quais os tipos de atividades de entretenimento e aprendizagem online são conhecidas e compartilhadas por diferentes públicos juvenis.

Em entrevista recente, o historiador Ricardo Turin argumenta que um dos efeitos do contexto pandêmico nas vivências temporais foi o de confinar diferentes dimensões temporais, em uma convivência de cotemporalidades que se articulam a partir de tensões.

Nossa sociedade vive tempos extremamente dessincronizados. É essa pluralidade que faz com que tenhamos sensações divergentes, ou mesmo contraditórias. Estamos, ao mesmo tempo, mais acelerados e mais imobilizados na pandemia. O confinamento físico dos corpos representou uma expansão de suas existências virtuais, acelerando a digitalização de setores inteiros da sociedade. Aulas virtuais, home office, shows online, o consumo pela internet, as notícias, tudo isso embaralha nossas sensações temporais, pois tudo isso acontece no mesmo espaço (o confinamento da casa) e, muitas vezes, simultaneamente.5 5 Sayuri, Juliana. 2020 Tudo ao mesmo tempo: pandemia nos confinou a diferentes dimensões temporais. Entrevista com Ricardo Turin. TAB – UOL, 12 de ago. 2020. Acessado em 5 jan. 2021. https://bit.ly/3sGZ1sn.

Nesse sentido, podemos afirmar que, mais do que mudanças nas temporalidades juvenis cotidianas, a pandemia forçou, também, a convivência de diferentes temporalidades, tanto dos próprios jovens – em relação às diferentes dimensões de suas temporalidades – quanto das temporalidades juvenis com as temporalidades dos adultos (e, por vezes, das crianças) que passaram a conviver com uma intensidade maior do que anteriormente às medidas de isolamento social.

De forma similar, por ter uma espécie de temporalidade própria, a escola cumpre um papel de concentração da vivência temporal durante o período em que os jovens e adolescentes estão nesse espaço. Há uma presença necessária naquele tempo escolar. Estar concentrado no “aqui e agora” é uma exigência da rotina escolar, até mesmo quando essa presença é a de apenas “esperar o tempo passar”. Após o aumento das interações mediadas pelo mundo digital, houve a redução dessa “concentração de tempo”, dada a possibilidade da vivência múltipla do tempo no mundo digital. Como salienta Chartier (2010)Chartier, Roger. 2010. Escutar os mortos com os olhos. Estudos Avançados 24 (69): 6-30.https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000200002.
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, mesmo ao se fazer uma tarefa que exige concentração (como a leitura), o meio digital abre a possibilidade de uma fragmentação temporal dessa experiência.

Em um cenário onde basicamente a totalidade das atividades de ensino e aprendizagem ficou confinada ao espaço digital, ao mesmo tempo em que realiza uma leitura ou assiste a uma aula online, por exemplo, um jovem pode abrir outros aplicativos ou janelas no mesmo dispositivo, transitar entre diferentes abas, realizar um mecanismo de busca e ler apenas os trechos que contenham palavras específicas, enfim, vivenciar múltiplos fragmentos de experiências simultâneas. Assim, a prática de multitarefas (ou multitasking) passou a ser uma realidade no cotidiano juvenil, interagindo com novas percepções sobre o tempo.

Ampliação das incertezas quanto ao futuro

Se, por um lado, o contexto de isolamento social gerou mudanças profundas na forma como adolescentes e jovens ocupavam o seu tempo, diversos outros efeitos da pandemia afetaram as temporalidades juvenis no que tange à relação dos jovens com o futuro. O cenário pandêmico ampliou ainda mais a sensação de incertezas e inseguranças relacionadas ao futuro, seja pelo próprio temor em relação ao futuro social no que diz respeito à crise sanitária, seja pelos prejuízos que esse contexto trouxe quanto ao mercado de trabalho. No caso do Brasil, o contexto de crise política e social agravou ainda mais a situação.

Para os jovens com quem falamos, as percepções acerca de mudanças sobre o futuro eram heterogêneas. Ao ser perguntado em relação às projeções para o futuro, Jean (18 anos) disse que a pandemia afetou mais a sua rotina do que seus planos para o futuro, mesmo que agora fosse necessário pensar em novas estratégias para alcançar seus objetivos:

Acho que a pandemia afetou de forma mais significativa minha rotina mesmo, mas minhas metas pro futuro seguem as mesmas… só preciso encontrar novos caminhos para conquistar elas, a forma que a pandemia me prejudicou acho que foi na questão de isolamento e distanciamento social. (Jean, 18 anos, com. pess., set. 2020).

Já para Rebbeca, o novo cenário alterou suas perspectivas e projeções para o futuro, mesmo que de curto prazo:

Desde que eu me mudei eu não tô estudando, mas eu tinha me matriculado para voltar esse ano, né? Mas aí logo a escola fechou. Acho que eu vou ter que voltar a estudar só no outro ano. No fim, acho que isso tudo que tá acontecendo acabou que jogou pra frente o meu projeto de me formar, né? (Rebecca, 17 anos, com. pess., out. 2020).

As principais alterações nas projeções eram relacionadas à trajetória escolar.

Eu acho que a pandemia alterou de alguma forma meus planos para o futuro porque eu tava pensando em fazer uma faculdade top, mas isso consistia nesse ano estudar bastante, me preparar para o ano que vem, e aí estudar mais ainda pra depois fechar o estudos com chave de ouro e ir para um lugar top, talvez até na gringa… Mas agora com a quarentena, não é que ela me impede de estudar, mas realmente estudar e aprender mesmo, como se fosse numa aula presencial, não dá. Mas aqui já é muito mais difícil. (Antônio, 15 anos, com. pess., out. 2020).

A instituição escolar apareceu como elemento importante para pensar as construções de projetos de futuro dos jovens. Assim, além de um papel essencial na organização dos usos do tempo, ela também se relaciona com o debate acerca das temporalidades juvenis na medida em que o “sucesso” no percurso escolar costuma ser visto como elemento fundamental na construção de projetos de futuro por parte da juventude.

Como apontam Leão, Dayrell e Reis (2011)Leão, Geraldo, Juarez T. Dayrell, e Juliana Batista dos Reis. 2011. Juventude. Projetos de vida e ensino médio. Educação & Sociedade 32 (117): 1067-84. https://doi.org/10.1590/S0101-73302011000400010.
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, a escola possui um papel essencial na construção dos projetos de vida dos jovens, que costumam se manifestar enquanto “sonhos”, que envolvem desde a inserção no ensino superior, como maior qualificação visando a “disputa” por melhores postos de trabalho.

Para além de gerar modificações de ordem prática em sonhos e projeções de futuro, esse contexto de pandemia alterou também as motivações subjetivas dos jovens e adolescentes na busca pela realização de suas projeções:

Sim, acho que alterou [os projetos para o futuro]. Porque queria me focar mais nos estudos, mas isso me deu uma boa desanimada, né? Porque não tem material, não tem matéria nova, não tem aula… Tinha outras coisas que eu queria fazer também, e tá sendo bem difícil… Na verdade, foi bem um choque. Porque justo nesse ano que eu tava tentando ser mais ativo e né, não foi. Foi só ficar em casa sem fazer nada. Eu não tenho ânimo para fazer as coisas. (Heitor, 13 anos, com. pess., set. 2020).

Outro elemento interessante nesse sentido é o quanto esse período de isolamento social alterou a percepção cronológica de tempo para os mais jovens. Ao falar sobre sua rotina antes da pandemia, Antônio utilizou a expressão “antigamente”. Similarmente, ao falar sobre essa percepção de tempo, Heitor, com apenas 13 anos, comentou o quanto parecia distante o período pré-pandemia:

Então parece que a gente já acha “normal” ficar só em casa. Às vezes quando eu lembro como era quando não tinha o isolamento, parece tão distante, parece tão estranho ao mesmo tempo. Parece que foi há muito tempo e parece que a gente nunca mais vai sair disso. (Heitor, 13 anos, com. pess., set. 2020).

Assim, tendo em vista o tempo de vida de adolescentes e jovens, a duração desse período excepcional é proporcionalmente mais expressiva em suas vivências do que para os indivíduos com mais idade. Ainda há muito que se refletir nesse sentido, mas é interessante apontar o quanto o contexto de isolamento social produziu mudanças na percepção de tempo em diferentes dimensões. Nesse cenário, é possível que os jovens enxerguem o “futuro” como algo ainda mais distante.

Considerações finais

Esse artigo buscou tecer algumas reflexões acerca das mudanças trazidas pelo cenário social vivenciado em meio a pandemia da Covid-19, especialmente no ano de 2020.

Partindo da experiência dos quatro jovens que dialogaram conosco na construção dessas reflexões, foi possível constatar mudanças nas percepções de temporalidade, ao menos para esses jovens. Essas mudanças puderam ser observadas em duas dimensões: na organização do tempo cotidiano e nas projeções acerca do futuro.

A realidade gerada pelo distanciamento social fez com que a rotina cotidiana dos jovens fosse mais restrita ao ambiente doméstico. Com isso, a forma como os jovens passavam o tempo e organizavam a sua vida cotidiana se alterou profundamente. Para alguns jovens, o tempo pareceu ter acelerado e a sobreposição de atividades e temporalidades gerou uma sensação de cansaço e frustração por não conseguirem fazer tudo o que era necessário. Para outros, o tempo pareceu arrastado e confinado em um presente estendido, vagaroso e entediante. Nesse sentido, ter tempo sobrando parecia tão sufocante quanto não ter tempo suficiente.

Um dos principais marcadores dessa diferença foi a situação escolar. O único jovem entrevistado que estava inserido na rede privada de ensino (marcada pela manutenção de atividades letivas síncronas diárias) relatou sentir cansaço e falta de tempo. Os demais jovens, que se encontravam evadidos da escola ou inseridos no sistema público de ensino (que substituiu as atividades letivas por trabalhos e tarefas assíncronas) relataram tédio e desmotivação acerca da organização de seu cotidiano.

A escola também se mostrou como um elemento central na discussão sobre as mudanças nas projeções de futuro desses jovens. Para os jovens que relataram haver mudanças em suas expectativas de futuro, elas diziam respeito a alterações em suas trajetórias escolares.

Essas constatações reforçam a centralidade que a instituição escolar possui nas discussões acerca das temporalidades juvenis, a partir do duplo papel que exerce na relação entre jovens e o tempo, quais sejam: contribuir na organização da rotina e propiciar construção de expectativas acerca do futuro.

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  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    11 Jul 2022
  • Publicado
    07 Fev 2023
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