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Farmacovigilância: cada vez mais, um dever de todos

EDITORIAL

Farmacovigilância: cada vez mais, um dever de todos

Sonia Mansoldo Dainesi

Hospital das Clínicas, Faculty of Medicine, University os São Paulo - São Paulo/SP, Brazil. E-mail: sonia.dainesi@hcnet.usp.br

Todos os medicamentos têm efeitos colaterais e, portanto, devem ser acompanhados após sua introdução no mercado. Esta é a maneira mais simples de definir Farmacovigilância. Outra maneira poderia ser dizendo "Primeiro, não prejudique", um princípio da Medicina, introduzido por Hipócrates e seguido através dos séculos por todos os médicos e profissionais da área de saúde. Alternativa seria, ainda, relembrar que a ausência de evidência não é o mesmo que evidência de ausência.1 É já bem conhecido que um longo tempo pode ser necessário para que se identifique um problema com um novo medicamento. A aspirina é certamente um bom exemplo e a talidomida é outro ainda melhor. Uma extensa revisão desta controversa droga, publicada em 1999, mostra uma análise do contexto histórico do desastre da talidomida e o retorno deste medicamento como tratamento para algumas condições clínicas muito graves onde nenhuma outra opção terapêutica satisfatória está disponível.2 Hoje, mais de 30 anos depois do desastre, a droga está de volta, como novas indicações, mas com uma bula muito detalhada e restritiva.3

Em setembro de 2004, a Merck & Co. anunciou a retirada voluntária do mercado mundial do rofecoxibe (Vioxx®), um anti-inflamatório não-esteroidal amplamente utilizado, devido a questões de segurança. Este episódio e alguns outros temas posteriores levantaram muitas questões importantes relacionadas à política de aprovação de medicamentos, às evidências científicas e ao papel da farmacovigilância.4 Uma desconfortável conseqüência deste episódio foi, indubitavelmente, a erosão da confiança pública no processo de desenvolvimento, aprovação e acompanhamento dos medicamentos. E, surpreendentemente, não somente as indústrias farmacêuticas, mas também as agências regulatórias, como a FDA (Food and Drug Administration) americana, assim como os próprios investigadores que participaram dos estudos, nenhum deles escapou das críticas.5,6 Ao final, a questão que permanece é como a confiança pública pode ser recuperada depois deste episódio.

Quando um novo medicamento é introduzido no mercado, os dados de eficácia e segurança são comumente baseados na experiência de vários milhares de pacientes que foram incluídos nos estudos clínicos pré-aprovação. Mesmo com um plano muito rigoroso de desenvolvimento, alguns eventos adversos podem não ser detectados neste período, assim como interações medicamentosas ou condições clínicas pré-existentes, que podem não ser bem avaliadas antes do produto de fato estar no mercado.7,8 Na verdade, esta é a clássica crítica feita aos estudos clínicos, uma vez que eles não conseguem refletir o mundo real, coisa que só a prática clínica, após o lançamento, terá a capacidade de fazer.

Há uma importante lição atrás disto tudo. Os sistemas de relato espontâneo de eventos adversos possibilitam a detecção de uma incidência aumentada de eventos raros, tais como hepatite fulminante ou rabdomiólise, após a introdução de um novo produto no mercado. Entretanto, a detecção de incidência aumentada de um evento adverso comum, tal como um acidente cerebral vascular ou um infarto do miocárdio é muito mais difícil. E o problema está no fato de que esta última situação traz um impacto para a saúde pública muito maior que a primeira. Considerando-se que os estudos epidemiológicos com desfechos cardiovasculares, por exemplo, são sujeitos a possíveis diferentes interpretações, a avaliação do verdadeiro risco associado a determinado tratamento ou procedimento exige estudos clínicos controlados especificamente desenhados para este fim.9 Este é um dos desafios para quem trabalha com desenvolvimento de drogas e farmacovigilância, neste novo século. Algumas estratégias bem sucedidas estão já implementadas na maior parte dos países, tais como o Relato Espontâneo de Suspeita de Reação Adversa. Outras estratégias podem ser utilizadas para aumentar a notificação, tais como: ênfase na educação de graduandos de medicina e residentes; ampliação na base de relatos, incluindo, por exemplo, farmacêuticos e enfermeiros; introdução de links eletrônicos para facilitar o relato pela Internet; adequado feedback aos relatores através de comunicações personalizadas ou boletins periódicos; implantação dos assim chamados "hospitais-sentinela", etc10. O desafio para aqueles que trabalham com Farmacovigilância será, portanto, investigar e documentar, em termos epidemiológicos e socioeconômicos, se o perfil de segurança obtido nos estudos clínicos, em populações extremamente selecionadas ainda permanecem verdadeiros quando os medicamentos passam a ser utilizados na prática clínica.11

Uma abordagem mais ampla está sendo atualmente aplicada, inclusive pela Agência Brasileira, ANVISA, ao se falar em questões relativas à segurança: primeiro, em vez de se focar exclusivamente na detecção de eventos adversos, deve-se focar também na sua prevenção; além disso, as agências regulatórias devem se preocupar com os eventos adversos, indubitavelmente, mas devem também zelar pela qualidade dos produtos e, finalmente, não se pode colocar o foco somente em dados tradicionais de eficácia e segurança, como fazíamos no passado, mas sim no conceito ampliado do uso racional dos medicamentos.

O que a grande controvérsia dos inibidores da COX-2 significa para todos nós? Primeiro, que a vigilância pós-marketing (Farmacovigilância) é uma tarefa importante e que pode ser aperfeiçoada pela FDA e certamente no resto do mundo. Segundo, os médicos certamente entendem que os medicamentos apresentam riscos e benefícios, mas o público leigo espera perfeição quando uma nova droga chega ao mercado. Quando algo como o caso Vioxx® acontece, a análise risco-benefício é colocada em cheque. Terceiro, as exigências regulatórias para a introdução de novos medicamentos provavelmente aumentarão. Geralmente, dez a quinze anos são necessários para que um novo medicamento alcance o mercado, desde a descoberta/invenção dos cientistas até a aprovação regulatória. A FDA deve impor novos requisitos para autorização de novas drogas, tornando o processo mais difícil para as companhias farmacêuticas voltadas para inovação.

Embora sistemas regulatórios eficientes sejam de fato necessários para proteger os pacientes, eles sempre dependerão da ativa participação de todos os profissionais de saúde. Torna-se clara a necessidade de uma cultura que encoraje a divulgação dos erros, em vez de escondê-los.12 Adicionalmente, as dificuldades que as agências regulatórias ora enfrentam provavelmente refletem a grande complexidade do tema, mais do que uma possível fragilidade dos sistemas regulatórios.

Somando alguns fatos tais como: mais estudos requeridos pelas agências regulatórias para aprovação de novas drogas, mais pacientes recebendo mais medicamentos e maior combinação de medicamentos e por mais tempo (parcialmente devido a maior longevidade que felizmente presenciamos), a conseqüência é evidente: mais eventos adversos devem ser relatados.13 Adicionalmente, hoje há maior consciência pública sobre o potencial dos medicamentos como causadores de eventos adversos. Uma das lições que nos resta dos episódios recentes é que os médicos necessitam estar cientes da natureza preliminar dos dados disponibilizados quando do lançamento de um novo medicamento, sejam eles relativos à sua eficácia ou à sua segurança. Evidentemente, há uma equação muito complicada envolvendo, entre outros fatores, a natureza da condição clínica sendo tratada, as estratégias terapêuticas já disponíveis e a relação risco-benefício do novo tratamento.5 As decisões regulatórias são necessariamente baseadas no conhecimento científico, que deve ponderar os benefícios e os riscos; mas, indubitavelmente, deve-se assegurar que não esteja sendo negado o acesso aos pacientes que realmente necessitem daquela medicação.

Nenhum medicamento é isento de riscos. Todos têm efeitos colaterais que necessitam ser balanceados versus os potenciais benefícios. E é por isto que o julgamento médico é absolutamente essencial. Além disso, os esforços para melhorar os sistemas de relato de eventos adversos devem receber especial atenção de toda a comunidade de profissionais de saúde. Este é o único modo de garantir a qualidade e a segurança dos medicamentos que nós e nossos pacientes utilizamos.

REFERENCES

1. Fitzgerald GA. Coxibs and cardiovascular disease. New England J Med. 2004;351:1709-11.

2. Oliveira MA, Bermudez JAZ, Souza ACM. Talidomida no Brasil: vigilância com responsabilidade compartilhada? Cadernos de Saúde Pública. 1999;15(1):99-112.

3. Thalomid® (thalidomide). Draft/Proposed prescribing information. Available at: http://www.fda.gov/cder/foi/label/2003/20785slr022,023,024_thalomid_lbl.pdf, accessed on May 4th, 2005.

4. Coxibs, science and the public trust. Editorial. Arch Intern Med. 2005;165:158-160.

5. Horton R. Vioxx, the implosion of Merck, and aftershocks at the FDA. The Lancet. 2004;364:1995-96.

6. Topol EJ. Failing the public health - Rofecoxib, Merck and the FDA. New England J Med. 2004;351:1707-09.

7. Trontell A. Expecting the unexpected - Drug safety, pharmacovigilance and the prepared mind. New England J Med. 2004;351(14):1385-87.

8. Dainesi SM, Juquiram AB, Biazetti L. Farmacovigilância. Um dever de todos. Parte I. Rev Soc Bras Cancerologia. 2001;anoIV(13):33-37.

9. Drazen JM. COX-2 inhibitors - A lesson in unexpected problems. New Engl J Med. 2005;352(11):1131-1132.

10. Barnes J. Challenges for pharmacovigilance in ther new millenium. Inpharma. 1999;1211: 20-21.

11. Talbot JCC, Nilsson BS. Pharmacovigilance in the pharmaceutical industry. Br. J Clin Pharmacol. 1998;45:427-431.

12. Altman OF, Clancy C, Blendon RJ. Improving patient safety - Five years after the IOM Report. New Engl J Med. 2004;351(20):2041-43.

13. Peachey J. From pharmacovigilance to pharmacoperformance. Drug Safety. 2002;25(6):399-405.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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