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Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras

Financialization, urban governance and corporate power in Brazilian cities

Resumo

A financeirização da economia global e suas múltiplas consequências têm sido cada vez mais discutidas pela literatura especializada, sobretudo após a grande crise mundial de 2007-2008. Nesse contexto, a relação entre mercados financeiros e os setores tradicionalmente produtores do espaço urbano se demonstra particularmente relevante para a compreensão dos rumos tomados pelo desenvolvimento das cidades no início do século XXI. Estaria havendo o surgimento de uma coalizão urbano-imobiliário-financeira, que se torna hegemônica ao direcionar tal desenvolvimento. A presente pesquisa busca um melhor entendimento dessa coalizão, de seu poder nos municípios e, sobretudo, de suas variações territoriais. Para tanto, são analisados dados relativos a doações eleitorais, indicando predomínio daqueles agentes ligados à acumulação urbana somente nas principais metrópoles brasileiras.

financeirização; governança urbana; eleições; financiamento eleitoral; complexo urbano-imobiliário-financeiro

Abstract

The financialization of the global economy and its multiple consequences have been increasingly debated by the specialized literature, especially in the aftermath of the 2007-2008 global crisis. In this context, the relationships between financial markets and economic sectors traditionally associated with the production of urban space are particularly relevant for a better understanding of urban development in the beginning of the 21st century. The hypothesis is that a financial-real estate-urban coalition has emerged and is becoming hegemonic while leading the above-mentioned development. The present study aims to better comprehend that coalition, its power in the municipalities and, foremost, its territorial variations. To achieve this, electoral funding data are analyzed, with results indicating that the agents related to urban accumulation are predominant only in the main Brazilian metropolises.

financialization; urban governance; elections; electoral funding; financial-real estate-urban complex

Introdução

Baseado nas recentes explorações das interseções entre estudos urbanos e estudos sobre financeirização da economia ( Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ), o presente artigo busca trazer novos elementos teóricos e empíricos que contribuam para o avanço das reflexões acerca das transformações suscitadas pelo fenômeno da financeirização sobre a governança urbano-metropolitana brasileira. Em particular, objetiva-se investigar de forma mais detalhada a suposta formação de novas coalizões urbanas hegemônicas que estariam se articulando no sentido de aprofundar os laços entre os capitais financeiros, imobiliários, dentre outros, voltados à acumulação urbana, e agentes locais de Estado ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. ; Ribeiro, 2020RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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), bem como a efetiva extensão territorial de seu domínio no contexto metropolitano e nacional.

Nesse sentido, o texto que sucede a esta introdução está dividido em quatro partes. Na primeira, é realizada uma revisão da bibliografia referente ao processo de financeirização, suas consequências urbanas e políticas e suas variações territoriais. Em seguida, delineiam-se, brevemente, os métodos de investigação, baseados na utilização de dados de financiamento corporativo de campanhas eleitorais municipais. Na terceira parte, os resultados da exploração empírica são apresentados, indicando, sobretudo, aqueles que dizem respeito especificamente às perguntas de pesquisa. Por último, na conclusão, os resultados são articulados a entendimentos atualmente consolidados na literatura especializada, apontando para a necessidade de um entendimento mais espacialmente contextualizado da influência político-econômica de novas coalizões de poder vinculadas à acumulação urbana.

Os processos de globalização e financeirização e suas consequências urbanas

As formas de organização social, econômica e política, em diferentes partes do mundo e escalas, têm passado por transformações particularmente profundas ao longo dos últimos 40 anos. Esse fenômeno é usualmente representado pelo conceito de globalização. Embora sua definição mais precisa seja objeto de inúmeras disputas envolvendo uma ampla gama de disciplinas e autores, poucos negariam a importância da intensificação das relações internacionais, em diferentes níveis, como componente fundamental de sua caracterização ( Al-Rodhan e Stoudmann, 2006AL-RODHAN, N. R. F.; STOUDMANN, A. G. (2006). Definitions of globalization: a comprehensive overview and a proposed definition . Geneva, Geneva Centre for Security Policy. Disponível em: http://www.gcsp.ch. Acesso em: 1 mar 2020.
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). Nesse contexto, as políticas neoliberais, que reivindicam a abertura dos mercados nacionais e a primazia dos agentes de mercado perante o Estado, têm se disseminado pelo mundo. Porém, isso ocorre de forma variada nos diferentes espaços onde tais políticas “aterrissam”, em especial no que se refere às formas de experimentação regulatória, de transferência interjurisdicional de políticas e de formação de regimes de normas transnacionais (Brenner, Peck e Theodore, 2012).

Concomitantemente, do ponto de vista mais estritamente econômico, destaca-se a transição do modo de produção fordista para o modo de produção flexível ( Harvey, 1991HARVEY, D.(1991). Condição pós-moderna . São Paulo, Loyola. ). Dentre as principais caraterísticas dessa transição, estão a dispersão das plantas produtivas na escala global e um inequívoco crescimento da participação do setor de serviços na economia mundial. Nesse âmbito, a emergência do setor financeiro assume especial importância, sendo interpretada de diferentes maneiras por distintas correntes teóricas, dependendo da visão que cada uma tem sobre o processo de globalização ( Martins, 2011MARTINS, C. (2011). Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina . São Paulo, Boitempo. ). Apesar das divergências, as abordagens convergem no reconhecimento do fenômeno da financeirização e de sua relevância para o processo de globalização nas últimas décadas.

Embora não haja um consenso quanto à definição conceitual da financeirização ( Lapavitsas, 2011LAPAVITSAS, C. (2011). Theorizing financialization. Work, Employment and Society , v. 25, n. 4, pp. 611-626. ), alguns autores têm buscado conceituar esse fenômeno de forma mais abrangente, de maneira a abarcar distintas visões. Para Aalbers (2015)AALBERS, M. B. (2015). The potential for financialization. Dialogues in Human Geography , v. 5, n. 2, pp. 214-219. , por exemplo, a financeirização seria um processo de crescente predomínio de atores, mercados e práticas financeiras em diferentes escalas, resultando em transformações estruturais de economias, empresas, estados e domicílios.

Assim, há uma tendência a se destacar as mudanças políticas, econômicas e sociais decorrentes do crescente predomínio de lógicas financeirizadas de organização do capitalismo no mundo. Contudo, esse processo também não se dá de maneira homogênea no espaço e no tempo. Christophers (2015)CHRISTOPHERS, B. (2015). The limits to financialization. Dialogues in Human Geography , v. 5, n. 2, pp. 183-200. demonstra como a produção acadêmica sobre o tema cresce de maneira exponencial entre o fim do século XX e o início do século XXI. E tanto Klink e Souza (2017)KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. quanto Bonicenha (2017)BONICENHA, R. C. (2017). Financeirização e território: uma revisão da literatura recente. In: XVII ENANPUR. Anais ... São Paulo. chamam a atenção para o fato de os EUA e o Reino Unido terem iniciado e concentrado essa produção intelectual, por conta de a manifestação da financeirização ocorrer de forma mais intensa nesses países, ainda que haja uma tendência de alastramento para outras formações sociais e regiões do mundo.

Apesar da intensificação recente e da concentração geográfica, pode-se depurar lógicas mais gerais. Aalbers (2015)AALBERS, M. B. (2015). The potential for financialization. Dialogues in Human Geography , v. 5, n. 2, pp. 214-219. situa historicamente a financeirização como um momento particular dentro do processo de transferência de capitais entre diferentes setores da economia global – denominado, por Harvey (1982)HARVEY, D. (1982). The Limits to Capital. Chicago, University of Chicago Press. , como a prática de “capital switching”. Tal transferência ocorre de maneira a resolver problemas de superacumulação existentes no circuito primário do capital (isto é, nos setores de produção industrial) através do escoamento de novos investimentos para o circuito secundário (isto é, para a produção do ambiente construído na forma de infraestrutura urbana e moradia), que, em momentos de crise capitalista, acaba por oferecer maior capacidade de absorção de capital excedente. Para além do circuito terciário, que abarca setores ligados à reprodução social das condições de acumulação e de trabalho, como saúde, educação, ciência e tecnologia, o circuito quaternário, formado pelos mercados financeiros, estaria atualmente cumprindo essa função de absorção de capitais excedentes oriundos dos demais circuitos com vistas à resolução de crises, antes desempenhada pelo circuito secundário ( Aalbers, 2015AALBERS, M. B. (2015). The potential for financialization. Dialogues in Human Geography , v. 5, n. 2, pp. 214-219. ). Uma das principais vias de relação entre o circuito secundário e quaternário se dá através do mecanismo da securitização, que passa a permitir a negociação de mercadorias sem liquidez (como imóveis e obras de infraestrutura) nos mercados financeiros globais, de alta volatilidade ( Bonicenha, 2017BONICENHA, R. C. (2017). Financeirização e território: uma revisão da literatura recente. In: XVII ENANPUR. Anais ... São Paulo. ).

Essas considerações sobre o fenômeno da financeirização, sua inserção nos processos de globalização e neoliberalização e seu escopo geográfico suscitam questões inevitáveis referentes às suas implicações sobre a produção do espaço urbano ( Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ). Em uma das formulações pioneiras acerca do tema, Sassen (1991SASSEN, S. (1991). The Global City . Princeton, NJ, Princeton University Press. , 2001SASSEN, S (2001). “The global city: strategic site/new frontier”. In: ISIN, E. F. (ed.). Democracy, Citizenship and the Global City . Nova York, Routledge. ) identifica a constituição de uma geografia própria da globalização, marcada por ambas as dinâmicas de centralização e de dispersão. Se, por um lado, ocorre a dispersão espacial das atividades econômicas, em diferentes escalas; por outro lado, tal processo demanda uma nova centralização territorial para se controlar os novos fluxos daí derivados. Assim, as chamadas cidades globais seriam os nós controladores desses processos de dispersão, representadas pelos principais centros financeiros e de negócios do mundo. Esses centros urbanos tendem a concentrar serviços financeiros específicos, desempenhando de forma única papéis de comando dentro da rede global de cidades. Por sua vez, tal função demandaria tanto empregos gerenciais ocupados por força de trabalho altamente qualificada quanto substanciais contingentes de trabalhadores não qualificados e sub-remunerados, criando, assim, uma organização intraurbana particularmente polarizada.

O conceito de cidades globais, entretanto, foi alvo de diversas críticas. Alguns autores reivindicam que, embora a abordagem de Sassen e de seus adeptos tenha suscitado o debate acerca das relações entre globalização, financeirização e produção do urbano, sua referência original na experiência de cidades do chamado Norte Global limitaria seu escopo de aplicação, deixando de fora a imensa maioria das cidades do Sul Global, vistas como menos importantes para os esforços de teorização ( Robinson, 2002ROBINSON, J. (2002). Global and world cities: a view from off the map. International Journal of Urban and Regional Research , v. 26, n. 3, pp. 531-554. ; Watson, 2007WATSON, V. (2007). Seeing from the South: Refocusing urban planning on the globe’s central urban issues. Urban Studies , v. 46, n. 11, pp. 1-17. ; Parnell e Robinson, 2012PARNELL, S.; ROBINSON, J. (2012). (Re)Theorizing cities from the global south: Looking beyond neoliberalism. Urban Geography, v. 33, n. 4, pp. 593-617. ). Outros afirmam que nem mesmo a complexidade das ditas cidades globais do Sul Global é, de fato, contemplada de maneira adequada.

Ferreira (2003)FERREIRA, J. S. W. (2003). São Paulo: o mito da cidade-global . Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. , por exemplo, analisa o caso de São Paulo à luz do conceito de cidade global. Ele critica a normatividade dessa abordagem, que sugere um único modelo a ser incorporado pelas cidades calcado no incentivo à terceirização avançada da economia e aos investimentos imobiliários voltados à construção de escritórios de negócios de alto padrão. O autor demonstra, também, que a capital paulista não apresenta os atributos típicos da cidade global, pois não participa da rota dos grandes fluxos da economia mundial, não passa pelos processos de desindustrialização estrutural e não apresenta uma sobreposição do setor “terciário avançado” – isto é, dos bancos, seguradoras e instituições financeiras – sobre os demais setores da economia, pelo menos não nas mesmas proporções dos processos ocorridos nas cidades dos países desenvolvidos. Dessa forma, o discurso que classifica São Paulo como cidade global estaria descolado da realidade, desempenhando mais a função ideológica de legitimação das demandas do setor imobiliário e de seus empreendimentos junto à esfera pública e aos representantes governamentais.

Entretanto, embora Ferreira (ibid.) negue a suposta avançada internacionalização dos investimentos imobiliários na cidade, ele admite que já havia um processo de financeirização do setor em curso no fim do século XX, ainda que de forma restrita à ação de alguns tipos de agentes, como os fundos nacionais de pensão. A história por ele construída dos empreendimentos comerciais na principal cidade do país demonstra esse fato.

Fix (2011)FIX, M. de A. B. (2011). Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil . Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. parcialmente corrobora esse diagnóstico sobre o mercado imobiliário paulista e brasileiro, ao concluir, após meticuloso exame do histórico da estrutura societária das empresas de incorporação imobiliária, que

o setor é difícil de ser inteiramente capturado por capital internacional, [pois] os conhecimentos locais, a pressão sobre o poder público (executivo, legislativo e judiciário), a falta de articulação com a economia mundial, a pouca proximidade entre os mercados de capitais e o mercado imobiliário são alguns dos fatores que dificultam a metamorfose completa. (p. 150)

Assim, haveria maior dificuldade de internacionalização do setor imobiliário, sobretudo quando comparado com outros setores. Entretanto, a autora também identifica um avanço na abertura de capitais das empresas do setor, com 17 delas listadas na bolsa de valores de São Paulo e uma na bolsa de Nova York, e na elaboração de instrumentos visando ao aprofundamento da financeirização do setor no início do século XXI, o que estaria abrindo novas portas para a entrada de investidores estrangeiros. Tal abertura foi posteriormente corroborada por outros trabalhos também centrados na realidade paulistana ( Santoro e Rolnik, 2017SANTORO, P. F.; ROLNIK, R. (2017). Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 406-431. ; Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ).

Uma das estratégias utilizadas pelos defensores da financeirização foi a de voltar a atrair os fundos de pensão, uma vez que estes centralizam recursos próximos a R$502 bilhões, equivalentes a 17% do PIB brasileiro. Nesse sentido, nova regulamentação passou a liberar os fundos de pensão a investirem até 100% do seu patrimônio em imóveis, através do mercado de capitais. Além disso, o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), criado em 1997, busca captar fundos em um mercado secundário de títulos de créditos e recebíveis imobiliários.1 1 De acordo com Fix (2011) , o SFI difere-se do Sistema Financeiro de Habitação, que é voltado especificamente para o financiamento de habitação social e tem origem de recursos restrita ao Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). De modo a viabilizar a conexão entre o setor imobiliário e o mercado de capitais, o SFI criou instrumentos como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), as Cédulas de Crédito Imobiliário (CCIs) e as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs). Os CRIs, por exemplo, agrupam e convertem créditos imobiliários em títulos imobiliários, passíveis de negociação no mercado financeiro e de capitais.

Outro novo instrumento com o mesmo objetivo é o Certificado de Potencial Construtivo Adicional (Cepac), criado pelo Estatuto das Cidades, de 2001, implementado primeiramente pela prefeitura de São Paulo, em 2004, e posteriormente utilizado pelo projeto de revitalização urbana Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, no fim dos anos 2000. Emitido pelo poder municipal na forma de um determinado volume de metros quadrados, esse certificado permite, ao seu detentor, construir além dos limites originalmente impostos pela legislação de uso do solo. Uma vez leiloados, os Cepacs também podem ser negociados nas bolsas de valores. Assim, segundo Fix, “qualquer um pode adquirir esses títulos, para utilizar diretamente em um empreendimento, ou para tentar obter ganhos no mercado secundário, retendo-os até que a região se valorize mais, por exemplo”. Para o autor, ao vincular ativos de renda variável à valorização dos espaços urbanos, “cria-se a possibilidade de um novo tipo de especulação imobiliária financeirizada, com os investimentos feitos segundo os parâmetros e as expectativas próprios de uma lógica de valorização de tipo financeiro” (Fix, 2011, pp. 182-183). Além disso, fundos de investimentos imobiliários também serviram de instrumentos de aprofundamento da financeirização do mercado imobiliário paulistano ( Santoro e Rolnik, 2017SANTORO, P. F.; ROLNIK, R. (2017). Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 406-431. ).

Efeitos sobre a governança urbana e formação de um complexo urbano-imobiliário-financeiro

Tais tendências mais recentes de aproximação entre renda, juros e ganhos oriundos dos mercados de terra e imóveis fizeram com que alguns autores identificassem a consolidação de um “circuito financeiro-imobiliário” ( Ribeiro, 2020RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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), resultando na formação de um “complexo imobiliário-financeiro” ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. ). Inspirado pela ideia de complexo militar-industrial ( Pursell, 1972PURSELL, C. W. (1972). The military industrial complex . Nova York, Harper & Row. ), o conceito de complexo imobiliário-financeiro foi originalmente proposto por Aalbers com o intuito de chamar a atenção para as conexões político-econômicas entre o mercado imobiliário, as finanças e o Estado na economia global.2 2 Vale mencionar que a utilização do conceito de complexo não é exatamente nova. Na literatura nacional, por exemplo, Cano (1998) desenvolveu a noção de complexo econômico cafeeiro para explicar os processos históricos de desenvolvimento no País. Assim, Aalbers pretende mais precisamente investigar em que medida o recente crescimento dos setores imobiliário e financeiro ocorre em detrimento de outros setores econômicos e como esse processo se diferencia geograficamente.3 3 Para maiores detalhes sobre a investigação proposta por Aalbers, ver https://ees.kuleuven.be/geography/projects/refcom/project/index.html .

Para Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. , no âmbito nacional, a formação desse complexo tem como consequência transformações na governança urbana das principais cidades brasileiras. Isto se dá através de uma confluência de interesses entre operadores do mercado financeiro, incorporadoras imobiliárias, empresas de construção e representantes do setor público. Por um lado, a valorização dos ativos financeiros vinculados ao mercado imobiliário depende da própria expectativa de valorização do solo em dado local. Essa expectativa, por outro lado, aumenta à medida que haja investimentos públicos na região no sentido de se fornecer infraestrutura adequada ao desenvolvimento do empreendimento financiado por títulos financeiros. E a conversão desses investimentos públicos em infraestrutura urbana é realizada por empresas de construção civil.

Ocorre, portanto, uma convergência formadora de uma coalizão composta por esses agentes, que exerce hegemonia política e cultural nas cidades brasileiras (ibid.). Ribeiro (2020)RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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, valendo-se do conceito de “sagrada aliança” elaborado por Lessa e Dain (1984)LESSA, C.; DAIN, S. (1984). Capitalismo associado: algumas referências sobre o tema Estado e desenvolvimento. In: Desenvolvimento Capitalista no Brasil . São Paulo, Brasiliense. , identifica uma poderosa coalizão “de interesses dominantes fundados nos circuitos econômicos que organizam a acumulação urbana no Brasil – capital imobiliário, capital de concessões de serviços coletivos, capital empreiteiro – com vigência local e que, nos últimos anos, alcançou presença importante no bloco nacional de poder” ( Ribeiro, 2020RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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, p. 37), portanto acrescentando outros atores importantes, para além daqueles mais restritos aos setores da construção e do mercado imobiliário. Parece-nos mais adequado, de fato, falar em acumulação urbana, o que aponta para o potencial de envolvimento de setores como o de concessão de serviços coletivos nesse complexo. Entendemos que seria mais condizente, portanto, redefinir essa denominação, ampliando as possibilidades de formação dessas coalizões ao focar na provável confluência de interesses entre setores econômicos diretamente ligados à acumulação urbana e ao mercado financeiro, de maneira a melhor captar o potencial de abrangência dessas coalizões de poder. Mais do que um complexo imobiliário-financeiro, este seria um complexo urbano-imobiliário-financeiro (Cuif). Desse modo, esta é a definição adotada no presente trabalho.

Conforme salientado por Jessop (2016)JESSOP, B. (2016). The State, Past, Present, Future. Cambridge, Polity. , a atuação de um bloco hegemônico, isto é, de uma aliança duradoura entre frações de classe que comanda os rumos do desenvolvimento em uma dada formação social, geralmente se dá através da liderança de uma dessas frações sobre as demais, assumindo o protagonismo na defesa do conjunto de interesses envolvidos perante a sociedade. Em sua análise, Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. identifica as empreiteiras brasileiras como representantes dessa fração líder, em função de sua longa atuação junto ao poder público no Brasil. Para além do aspecto ideológico, tal liderança se reflete de forma bastante concreta, através de mecanismos bem articulados que se retroalimentam, com os financiamentos de campanha eleitoral assumindo o papel de elo de ligação. De acordo com a autora,

para as empreiteiras, as doações funcionam como uma espécie de “seguro”, garantindo que serão contratadas pelo novo governo e pagas dentro dos prazos se tiverem contratos em andamento. Para os políticos envolvidos, trata-se de uma “retribuição” pelo apoio recebido. Em contrapartida, a continuidade da relação depende das margens de lucro obtidas nas obras, sobrelucro que “paga” seu investimento na manutenção das articulações políticas [...]. No limite, essa articulação possibilita que as grandes e superempreiteiras não apenas redirecionem o orçamento público – inclusive através de lobbies nos legislativos –, mas também formulem os projetos de infraestrutura que irão executar, “vendendo-os” para seus potenciais clientes, ou seja, os governos e empresas estatais [...]. Fecha-se, assim, o círculo: as “avenidas imobiliárias” [articuladas pelas incorporadoras que captam recursos no mercado financeiro] financiam o custo das obras propostas pelas empreiteiras, abrindo simultaneamente novas frentes para a extração de renda e alimentando a máquina de financiamento das campanhas. ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. , pp. 277-278)

Os trabalhos de Rolnik (ibid.) e de Ribeiro (2020)RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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, baseados nas pesquisas anteriormente desenvolvidas por Fix (2011)FIX, M. de A. B. (2011). Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil . Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. e Ferreira (2003)FERREIRA, J. S. W. (2003). São Paulo: o mito da cidade-global . Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. , são parte dos recentes esforços investigativos que buscam a melhor compreensão das implicações da financeirização da economia global sobre a governança urbana das cidades brasileiras ( Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ). Eles fornecem bases para o avanço na identificação das implicações resultantes das recentes imbricações entre mercado financeiro, mercado imobiliário e setores ligados à acumulação urbana em geral, bem como do protagonismo assumido pelo setor da construção na articulação dos diferentes interesses presentes na coalizão envolvendo empreiteiras, incorporadoras, fundos de investimento, concessionários de serviços coletivos urbanos e representantes do poder público.

Contudo, ainda há uma série de questões em aberto. Em primeiro lugar, tendo em vista que a globalização e a financeirização não se dão de forma homogênea no território – conforme demonstram Ferreira (2003)FERREIRA, J. S. W. (2003). São Paulo: o mito da cidade-global . Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. , ao verificar a maior validade de aplicação de conceitos como cidade global em cidades do Norte Global do que nas metrópoles periféricas, e as observações de Brenner, Peck e Theodore (2012) sobre as variações territoriais do processo de neoliberalização –, vale indagar: em que medida a influência do setor financeiro, o protagonismo do setor da construção e a formação do Cuif ocorrem em outras cidades brasileiras, para além dos casos usualmente estudados de São Paulo e, em menor grau, do Rio de Janeiro? Quais seriam as variações territoriais nesse sentido? E pode-se afirmar que, de fato, há uma predominância hegemônica dos agentes elencados acima diante dos demais setores da economia, tanto nas metrópoles já estudadas quanto naquelas ainda sem investigação?

A busca por respostas a essas perguntas deve trazer novidades importantes para a teorização das recentes transformações pelas quais as cidades estão passando, em especial se desejamos ampliar o escopo das considerações acerca dessas mudanças para além da maior metrópole do País.

Método de investigação

Considerando que a constatação de Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. e Ribeiro (2020)RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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sobre a centralidade dos mecanismos de financiamento de campanha para a articulação dos interesses hegemônicos esteja correta, é plausível supor que o volume de doações realizadas em eleições pelos setores formadores do Cuif irá refletir esse domínio perante os demais grupos econômicos. A grande maioria dos estudos sobre doações de campanha no Brasil tem sistematicamente demonstrado que o financiamento de candidaturas para cargos executivos e legislativos, em geral, funciona como eficiente instrumento de intervenção capitalista sobre a elaboração de políticas públicas ( Mancuso, 2015MANCUSO, W. P. (2015). Investimento eleitoral no Brasil: balanço da literatura (2001-2012) e agenda de pesquisa. Revista de Sociologia Política, v. 23, n. 54, pp. 155-183. ).

Em busca de respostas para as perguntas elencadas acima, de maneira a entender se, de fato, o Cuif e seus agentes se apresentam como uma força hegemônica nas metrópoles brasileiras e se há grandes variações territoriais quanto ao grau de seu suposto predomínio sobre os demais setores da economia, são apresentados, abaixo, os resultados de exploração empírica detalhada de dados relativos à participação de diferentes setores nas campanhas eleitorais municipais.

Os métodos utilizados para a consecução dos objetivos propostos são de natureza quantitativa. A investigação foi desenvolvida, sobretudo, com base no repositório de dados relacionados ao financiamento das campanhas municipais de 2012. Isto se justifica, primeiramente, pelo fato de esta ser a instância administrativa que constitucionalmente tem a prerrogativa de decisões acerca da utilização do solo, além de deter o controle de diversos serviços coletivos urbanos – aspecto fundamental para a articulação das coalizões locais estudadas. O recorte temporal dá-se por conta de a campanha municipal eleitoral de 2012 ter sido a última a acontecer antes da importante alteração legislativa promovida pela lei n. 13.165/2015, que passou a proibir doações realizadas por pessoas jurídicas, até então permitidas,4 4 Desde 1994, a lei n. 8.713/1993 permitia as doações realizadas por pessoas jurídicas. e que, portanto, dificulta a identificação das ligações entre empresariado e sistema político institucional. Além disso, as eleições de 2012, além de serem aquelas mais recentemente realizadas seguindo as regras antigas, foram também as que contaram com dados mais amplamente publicizados. Isto porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pela organização de eleições no País, vem aumentando, a cada eleição, o grau de transparência dos dados eleitorais ( Santos, 2016SANTOS, B. C. dos (2016). Interesses econômicos, representação política e produção legislativa no Brasil sob a ótica do financiamento de campanhas eleitorais . Tese de doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. ).5 5 Apesar disso, espera-se que, em breve, a análise aqui apresentada possa ser estendida para as eleições anteriores e posteriores, na medida em que os dados detalhados venham a ser disponibilizados.

Esse repositório de dados do TSE6 6 A base de dados do TSE relativa a doações de campanha está disponibilizada neste link: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais . traz informações fundamentais para a pesquisa proposta, como o CNPJ/CPF dos doadores e os valores por eles doados. A partir de cruzamento dessas informações com as atividades econômicas presentes em cadastro de pessoas jurídicas disponibilizado pela receita federal,7 7 Disponíveis para todos os CPF/CNPJ no seguinte link: http://www.receita.fazenda.gov.br/PessoaJuridica/CNPJ/cnpjreva/Cnpjreva_Solicitacao.asp . é possível categorizar doadores de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) do IBGE. Tal classificação se estrutura a partir da divisão das atividades econômicas em 22 grandes setores econômicos, que, por sua vez, se encontram divididos em centenas de subsetores.8 8 Os 22 grandes setores são divididos em: A – agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura; B – indústrias extrativas; C – indústrias de transformação; D – eletricidade e gás; E – água, esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontaminação; F – construção; G – comércio; reparação de veículos automotores e motocicletas; H – transporte, armazenagem e correio; I – alojamento e alimentação; J – informação e comunicação; K – atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados; L – atividades imobiliárias; M – atividades profissionais, científicas e técnicas; N – atividades administrativas e serviços complementares; O – administração pública, defesa e seguridade social; P – educação; Q – saúde humana e serviços sociais; R – artes, cultura, esporte e recreação; S – outras atividades de serviços; T – serviços domésticos; e U – organismos internacionais e outras instituições extraterritoriais.

Tendo em vista o objetivo de se compreender a participação dos diferentes setores econômicos no financiamento de campanhas locais, foram somente consideradas aquelas doações realizadas por pessoas jurídicas em nível municipal.9 9 Até 2012, o financiamento de campanhas eleitorais municipais contava com três grandes fontes: pessoas jurídicas, pessoas físicas e recursos próprios dos candidatos. E as doações dessas fontes tinham três possibilidades de destinatários imediatos: os partidos, os candidatos e os comitês eleitorais, criados pelos partidos para arrecadar recursos especificamente para cada eleição. Uma vez recebida a primeira doação, esta poderia sempre ser repassada para outros potenciais destinatários. Por exemplo, um candidato poderia receber uma doação de uma pessoa física ou jurídica e redirecionar o total ou parte desse montante para outro candidato, ou mesmo para um comitê eleitoral de campanha ou, ainda, para o seu próprio partido. Partidos e comitês de campanha também poderiam adotar o mesmo procedimento de repasse. De forma a evitar contagem dupla, foram selecionadas somente as doações diretas, ou seja, as transferências realizadas de empresas para candidatos, partidos e comitês, desconsiderando os repasses posteriores. Também foram consideradas somente aquelas doações realizadas diretamente no nível municipal (havia a possibilidade de parte dos recursos ser destinada aos diretórios nacionais ou estaduais dos partidos. Nesses casos, esses diretórios, posteriormente, efetuavam repasses para o nível municipal, seja para candidatos, comitês ou para o próprio diretório local).

Assim, o procedimento exposto acima, cuja aplicação semelhante já havia sido realizada por outros autores em outras instâncias ( Santos, 2016SANTOS, B. C. dos (2016). Interesses econômicos, representação política e produção legislativa no Brasil sob a ótica do financiamento de campanhas eleitorais . Tese de doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. ), permite a constatação da participação percentual de cada grande setor/subsetor no total de doações realizadas para todos os candidatos a cargos executivos e legislativos em cada município. No presente trabalho, essa averiguação se deu em duas etapas. Num primeiro momento, verificou-se quais foram os grandes setores CNAE que mais contribuíram com doações de campanha. Conforme poderá ser visto abaixo, isto particularmente propiciou uma análise mais precisa sobre a suposta liderança do setor da construção, sugerida pela literatura. Já, na segunda etapa, utilizou-se a divisão por subsetores para se averiguar, de forma mais precisa, a participação das doações dos agentes potencialmente formadores do Cuif. Ambas as etapas foram articuladas em três diferentes níveis escalares: 1) conjunto de municípios-polo das principais metrópoles do País, 2) conjunto de municípios membros das principais regiões metropolitanas e 3) total de municípios brasileiros. Os resultados dessa exploração estão descritos a seguir.

Resultados

Influências setoriais

O primeiro resultado que chama a atenção é a predominância aguda dos empresários do comércio, da construção e das indústrias de transformação como doadores. Esses três setores foram responsáveis por mais de dois terços do total de R$936,7 milhões doados por pessoas jurídicas nos municípios brasileiros em 2012, conforme demonstrado no Gráfico 1 . Embora com uma participação bem mais reduzida, vale mencionar também setores como o de atividades administrativas e serviços complementares, de atividades financeiras e de transportes, armazenagem e correios, por conta de suas contribuições não desprezíveis, que, juntas, somam 13% do total.

Gráfico 1
– Participação dos grande setores CNAE nas eleições municipais de 2012

Nesse primeiro panorama geral, já se pode perceber a importância de alguns grandes setores a princípio mais identificados pela literatura como agentes da coalizão formadora do Cuif (construção, atividades financeiras, transporte, armazenagem e correios) ainda que também seja bastante expressiva a contribuição de outros setores a princípio não pertencentes a tal coalizão, em especial o comércio e indústrias de transformação. Fica também evidente a disparidade de magnitude da participação entre os grandes setores supostamente formadores daquela coalizão, com a construção desempenhando um papel muito mais central de pressão econômica sobre o sistema político-eleitoral local do que o setor de atividades financeiras, de transportes, armazenagem e correios e, em ainda maior medida, de atividades imobiliárias e de outros serviços urbanos.

A influência político-econômica dos diferentes grandes setores, contudo, está longe de acontecer de forma homogênea no território. De modo a melhor capturar as dinâmicas territoriais de domínio setorial sobre o financiamento de campanhas municipais, foram analisadas variações em três diferentes níveis, isto é, nos municípios-polo das principais metrópoles, no âmbito intrametropolitano das mesmas Regiões Metropolitanas (RMs) e no âmbito nacional. O recorte metropolitano adotado para os dois primeiros níveis consiste naquelas RMs identificadas pelo IBGE como “as principais cabeças de rede do sistema urbano” ao fim da década de 2000. São elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, Salvador, Manaus, Belém, Curitiba, Porto Alegre e Goiânia.10 10 Brasília também é incluída nessa classificação. Porém, uma vez que não há eleições municipais no distrito federal, aquela aglomeração não pôde ser considerada no presente estudo. Tais aglomerações são classificadas como “metrópoles nacionais” em função da abrangência diferenciada de suas áreas de influência, de seus portes populacionais – pois juntas abrigavam 34% da população brasileira – e do seu protagonismo econômico, já que serviam de sede para 677 das 1000 maiores empresas do País ( O’Neill, 2008O’NEILL, M. M. (2008). Rede urbana. Redes geográficas – IBGE . Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv47603_cap6_pt1.pdf. Acesso em: 3 mar 2020.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
, p. 261). Em suma, essas aglomerações urbanas representam os principais centros de poder nacionais.

Ao se analisar a participação de grandes setores no financiamento eleitoral dos municípios-polo dessas RMs, nota-se substancial heterogeneidade, conforme demonstrado no gráfico abaixo. De especial interesse para a presente pesquisa é a variação da força do setor da construção. Há um primeiro grupo de municípios em que a influência daquele empresariado é forte, com contribuição setorial acima dos 40%, formado por São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e Belo Horizonte – destaque-se, aqui, a participação ligeiramente acima de 50% nas capitais paulista e fluminense. Característica marcante desse grupo é a inequívoca sobreposição da construção perante a contribuição combinada dos outros dois “gigantes nacionais” das doações, isto é, o comércio e as indústrias de transformação.

Gráfico 2
– Contribuições setoriais nas doações eleitorais de 2012 em municípios-polo de RMs de primeira grandeza

Já Fortaleza, Goiânia e Recife formam um segundo grupo de municípios-polo marcados por uma influência moderada, porém não predominante da construção, com participação do setor variando entre 20% e 40%. Nesses casos, a contribuição combinada dos grandes setores do comércio e das indústrias de transformação é mais volumosa. Por último, Manaus, Curitiba e Belém apresentam apenas uma leve influência da construção, abaixo dos 20%, e preponderância bem mais clara tanto do comércio quanto das indústrias de transformação.

Esses primeiros resultados sugerem uma tendência de maior influência da construção nos municípios-polo das RMs com maiores contingentes populacionais e estruturas produtivas – as RMs de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre são também as mais populosas e com maiores Produtos Internos Brutos (PIBs). Embora de forma menos marcada e nítida, percebe-se, também, tendência ligeiramente semelhante no que se refere à influência do grande setor de atividades financeiras, já que sua maior participação relativa ocorreu em São Paulo e em Belo Horizonte.

Em linhas gerais, essa variação também é confirmada pela análise intrametropolitana, conforme demonstram os mapas de predomínio setorial, que indicam qual grande setor teve maior participação nas doações. No primeiro grupo de RMs, o predomínio da construção engloba, não apenas os municípios-polo, mas também boa parte daqueles municípios mais próximos do centro metropolitano e com maior importância econômica e populacional ( Mapas 1, 2, 3, 4 e 5 ).

Mapas 1, 2, 3, 4 e 5
– Predomínio setorial nas doações eleitorais de 2012 RMs São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e Belo Horizonte

Além disso, o comércio tende a assumir consistente protagonismo em diversas áreas periféricas mais distantes desses mesmos polos, sobretudo em São Paulo (Zona Oeste), Rio de Janeiro (Zona Norte) e Salvador (Zona Centro-Norte). Já, na RM Porto Alegre, é a indústria da transformação que tende a assumir esse papel em praticamente toda a periferia. Na RM de Belo Horizonte, isto ocorre com a categoria “outros setores”, puxada, em especial, pela participação das atividades extrativas nos municípios mais periféricos (extremo Sul e Norte). Quanto a esta última RM, cabe, ainda, assinalar o predomínio peculiar das atividades financeiras em alguns dos municípios mais próximos do polo.

Mais uma vez, o principal contraste entre este e o segundo grupo de RMs caracteriza-se pela influência bem mais restrita, embora não desprezível, do grande setor da construção. Na RM Goiânia, o predomínio ocorre apenas no município-polo e de forma bastante tênue, sem se alastrar para os demais.11 11 Neste caso a construção contribuiu com 30% das doações, seguida de perto pelo comércio, com 28%. Já, nas RMs Recife e Fortaleza, tal preponderância é notada somente em alguns poucos municípios periféricos. Neste último caso, cabe também incluir, excepcionalmente, a RM Manaus ( Mapas 6, 7, 8 e 9 ).

Mapas 6, 7, 8 e 9
– Predomínio setorial nas doações eleitorais de 2012 RMs Goiânia, Recife, Fortaleza e Manaus

O terceiro grupo de RMs, por sua vez, não registrou predomínio da construção em nenhum de seus respectivos municípios metropolitanos, conforme indicado nos Mapas 10 e 22 . Nestes, a influência do comércio e das indústrias de transformação assume clara centralidade territorial.

Mapas 10 e 11
– Predomínio setorial nas doações de campanha 2012 para as RMs Curitiba e Belém

Mapas 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22
– Espacialização do indicador de influência do Cuif nas eleições das RMs Recife, Fortaleza, Goiânia, Salvador, Belém, Curitiba e Manaus

Complementarmente, o resultado da exploração dos dados em nível nacional corrobora tais tendências. Conforme demonstra a mensuração dos coeficientes de Kendall e Spearman no Quadro 1 ,12 12 Os valores dos coeficientes de Spearman e Kendall são medidas de correlação não paramétricas entre universos distintos de dados, que variam entre -1 e 1. Valores positivos indicam associações positivas e valores negativos demonstram associações negativas. Quanto mais próximo de 0 for o resultado, menor é a correlação aferida. há uma correlação direta não linear bastante significativa entre o tamanho dos municípios brasileiros e o grau de influência do grande setor da construção nas eleições municipais. Ou seja, em boa medida, quanto maior a população municipal, maior tende a ser a participação da construção no financiamento de campanhas.

Quadro 1
– Coeficientes de correlação entre as variáveis População Municipal 2012 e Participação das Doações da Construção no município

Importante ressaltar, ainda, que, quando aplicadas as mesmas mensurações às participações do grande setor do comércio, a correlação com o tamanho da população local foi consideravelmente mais fraca (Kendall de 0,162/Spearman de 0,240). Ou seja, a força desse setor tende a estar mais desatrelada do porte dos municípios, portanto expressando-se territorialmente de maneira mais dispersa e menos concentrada. Em especial, percebe-se uma influência do comércio bem mais intensa do que a da construção no interior do País.

Assim, o conjunto dos resultados obtidos nas três diferentes escalas traz elementos relevantes para o entendimento mais aprofundado da influência daqueles que seriam os principais agentes formadores de coalizões de poder locais em torno da acumulação urbana. Nesse sentido, sobretudo, verificou-se o protagonismo bastante substantivo dos agentes ligados às atividades de construção e, apenas de forma bem mais coadjuvante e discreta, às atividades financeiras. Contudo, tal aguda influência está bastante territorialmente restrita aos municípios mais centrais das três grandes metrópoles do Sudeste e, em relativa menor medida, da principal da região Sul e da região Nordeste. Nas demais metrópoles e no resto dos municípios brasileiros, essa influência tende a ser muito limitada. Portanto, a princípio, a análise da participação dos grandes setores nas doações eleitorais de 2012 permite apenas indicar a forte possibilidade de hegemonia capitaneada pelos agentes da construção no topo da hierarquia da rede urbana brasileira.

O poder do Cuif sobre as eleições municipais

Embora importante, esta exploração empírica por si só impõe limites para o avanço de considerações mais precisas sobre o poder do Cuif em si, dentro e fora das metrópoles do País. Isto porque a classificação setorial até aqui utilizada promove categorização bastante abrangente. Suas divisões internas podem apresentar variações substanciais quanto às relações de cada subsetor com a chamada acumulação urbano-financeira. Por exemplo, a grande categoria “K – atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados” engloba tanto subsetores que expressam explicitamente a conexão entre intermediação financeira e mercado imobiliário, como “Companhias hipotecárias” e “Fundos de investimentos Imobiliários”, como também outros que parecem ter pouca ou nenhuma conexão, como “Seguros de vida” e “Planos de auxílio-funeral”. Da mesma forma, grandes categorias, a princípio sem relação direta com a acumulação urbana – como, por exemplo, os grandes setores das Indústrias de Transformação e do Comércio – possuem subsetores com interesse direto na reprodução do urbano – por exemplo, respectivamente, o subsetor “Fabricação de cimento” e o de “Comércio atacadista de materiais de construção em geral”, dentre outros.

Por conta dessas particularidades, optou-se por, de forma complementar à análise até aqui realizada, utilizar também os subsetores da classificação CNAE, em seu nível mais desagregado, para se identificar da forma mais precisa possível o que seria o Cuif e sua influência, de acordo com os dados disponibilizados pelo TSE. Assim, partindo-se do critério de ligação direta de reprodução do capital com reprodução do urbano, foram identificados e agrupados os subsetores formadores do Cuif.13 13 Por conta da grande quantidade de subsetores e da limitação de espaço, não é possível disponibilizar aqui suas respectivas descrições. Contudo, tais descrições podem ser acessadas através do endereço eletrônico https://cnae.ibge.gov.br/classificacoes/download-concla.html , representadas pelos seguintes códigos CNAE: 4110700, 4120400, 4211101, 4211102, 4213800, 4221901, 4221902, 4221903, 4221904, 4221905, 4222701, 4223500, 4291000, 4292801, 4299501, 4299599, 4311801, 4311802, 4312600, 4313400, 4319300, 4321500, 4322301, 4322302, 4322303, 4329103, 4329104, 4329105, 4329199, 4330401, 4330402, 4330403, 4330404, 4330405, 4330499, 4391600, 4399101, 4399102, 4399103, 4399104, 4399105, 4399199, 6810201, 6810202, 6821801, 6821802, 6822600, 7111100, 7112000, 7119703, 7119799, 4912402, 4912403, 4921301, 4921302, 4923001, 4923002, 4929901, 4929903, 4929999, 4950700, 5011402, 5012202, 5091201, 5091202, 5099801, 5099899, 5221400, 5222200, 5223100, 5229001, 5229002, 5229099, 5232000, 5239700, 3600601, 3600602, 3701100, 3702900, 3811400, 3812200, 3821100, 3822000, 3900500, 6421200, 6422100, 6423900, 6431000, 6432800, 6433600, 6435201, 6435202, 6435203, 6436100, 6461100, 6462000, 6463800, 6470101, 6470102, 6470103, 6491300, 6492100, 6493000, 6499901, 6499902, 6499903, 6499904, 6499905, 6499999, 6611801, 6611802, 6611803, 6611804, 6612601, 6612602, 6612605, 6619303, 6630400, 4613300, 4615000, 4649404, 4649405, 4649406, 4662100, 4674500, 4679601, 4679602, 4679603, 4679604, 4679699, 4744003, 4744004, 4744005, 4744099, 4754701, 4754702, 4754703, 1622601, 1622699, 2229303, 2320600, 2330302, 2330303, 2330304, 2330305, 2342701, 2342702, 2391502, 2599301, 2854200, 3101200, 3102100, 3103900, 3104700, 3314717, 7711000, 8111700, 8112500, 8121400.

A partir de tal recorte, a exploração empírica indica padrões de influência parecidos com aqueles verificados para o grande setor da construção, ainda que com significativas peculiaridades. Em primeiro lugar, no âmbito mais geral, a contribuição do conjunto dos subsetores formadores do Cuif consistiu em 34% do total de doações realizadas por CNPJs em 2012, indicando um protagonismo ainda maior do que aquele verificado para o grande setor da construção. Tal tendência também se verifica no percentual de contribuição do Cuif em cada município-polo das principais RMs do País, com valores relativos comparativamente mais substantivos, conforme Gráfico 3 .

Gráfico 3
– Participação das doações do Cuif nos municípios-polo das principais RMs brasileiras

Com o intuito de melhor analisar esses dados, foi criado um indicador de influência do Cuif, classificando-a em cada município como sendo nenhuma (0%), baixa (maior que 0% e menor ou igual a 25%), média (maior que 25% e menor ou igual a 50%), alta (maior que 50% e menor ou igual a 75%) ou muito alta (maior que 75%). Assim, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre sofrem uma alta influência, enquanto os demais municípios-polo estão sob influência média do Cuif. Isto quer dizer que o primeiro grupo está bem mais propenso à hegemonia daqueles subsetores diretamente ligados à acumulação urbana.

Padrões semelhantes de variação territorial também foram identificados após aplicação desse indicador no ambiente intrametropolitano, conforme demonstram os Mapas 12, 13, 14 e 15 . No primeiro grupo, em geral, percebe-se influência alta não só no município-polo, mas também em outros municípios adjacentes, relativamente menos periféricos e maiores populacionalmente; enquanto, no interior/periferia, predominam municípios sob média ou baixa influência. Mais uma vez, a RM de Belo Horizonte destaca-se pela quantidade de áreas sob alta e até mesmo muito alta influência do Cuif.

Mapas 12, 13, 14 e 15
– Espacialização do indicador de influência do CUIF nas eleições das RMs Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre

O segundo grupo de RMs apresenta a ocorrência mais rarefeita de municípios sob alta ou muito alta influência. Estes tendem a estar nas respectivas franjas metropolitanas, em municípios quase sempre menores e mais distantes do município-polo. Em Curitiba, Belém e Manaus, tal influência é particularmente baixa ( Mapas 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 ).

Novamente, a tendência de influência mais alta em áreas mais centrais também se confirma na escala nacional. A aferição dos coeficientes de Kendall e Spearman indica correlação significativa, positiva e moderada entre participação nas doações do Cuif e tamanho populacional dos municípios brasileiros, conforme ilustrado no Quadro 2 .

Quadro 2
– Coeficientes de correlação entre as variáveis População Municipal 2012 e Participação das Doações do CUIF no município

Conclusões

Os resultados permitem apontar algumas conclusões preliminares. A primeira delas é que, talvez com exceção da RM Belo Horizonte, há relativa baixa influência do setor de atividades financeiras nas eleições municipais de 2012. Não há indicações de que a financeirização da economia global esteja se convertendo em poder diretamente exercido pelos agentes financeiros sobre os sistemas políticos locais no País. Tal constatação está de acordo com a maior limitação de financeirização das economias locais brasileiras e com a histórica predominância dos fundos públicos nesse processo, já apontada por outros autores ( Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ). Claro, isto não significa, necessariamente, que o setor não possua poder de influência. Esta poderia, hipoteticamente, estar sendo exercida em outras escalas, para além da esfera local. Ou, ainda, talvez os agentes financeiros atuem na escala municipal através de outros mecanismos, para além do financiamento de campanha. Essas são questões que precisam ser tratadas por futuros trabalhos. O mesmo vale para a peculiaridade encontrada na RM Belo Horizonte.

Além disso, o histórico protagonismo do setor da construção, indicado pela literatura ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças . São Paulo, Boitempo. ; Ribeiro, 2020RIBEIRO, L. C. Q. (2020). As metrópoles e o direito à cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira . Texto para discussão 012 – INCT Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf . Acesso em: 20 fev 2020.
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), foi amplamente corroborado pelo papel central desempenhado por seus agentes no financiamento de campanhas em 2012. Isto reforça a hipótese de a construção funcionar como principal setor articulador das coalizões de poder centradas na acumulação urbana. Contudo, verificou-se uma distribuição bastante desigual, no território, desse seu poder de influência. As empresas da construção tendem a ser mais influentes quanto maior for o município, o que faz com que sua atuação nas regiões periféricas do País, dos estados e das metrópoles seja bem menos relevante do que nas áreas centrais. Mesmo no universo dos municípios-polo metropolitanos de primeira grandeza, o predomínio do setor no financiamento de campanhas é restrito aos cinco principais centros e com substanciais variações. Isto pode indicar que esse setor é mais articulado com outras escalas, uma vez que essas cidades tendem a apresentar conexões político-econômicas muito mais fortes com outros níveis de governo e de institucionalidade. Como outra hipótese derivada dessa primeira exploração empírica, fica a indicação da necessidade de aprofundamento posterior sobre sua pertinência.

Considerações semelhantes podem ser feitas sobre a coalizão que potencialmente forma o complexo urbano-imobiliário-financeiro (Cuif) em si, ainda que a concentração territorial, nesse caso, seja ligeiramente mais branda do que aquela registrada para o setor da construção. A confluência dos dois resultados embasa a observação de que o processo de alastramento do poder de influência dessa coalizão e de seus agentes-chave, pelo menos no que se refere às doações de campanhas eleitorais municipais, ainda aparenta estar em uma fase bastante incipiente, uma vez que, no próprio universo metropolitano, e principalmente fora dele, os subsetores formadores do Cuif e o grande setor de construção ainda estão longe de apresentarem um predomínio mais amplo e consistente. Este último fato converge com os acertados apontamentos feitos por alguns autores sobre o estágio menos avançado de financeirização ( Klink e Souza, 2017KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2017). Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole . São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406. ) e, portanto, de consolidação de um complexo urbano-imobiliário-financeiro nos países periféricos, quando comparados com países centrais.

Assim, há elementos bastante sólidos para se afirmar que existe uma hegemonia dos agentes com interesses capitalistas diretamente ligados à reprodução do urbano nas áreas centrais das principais metrópoles brasileiras. Ao mesmo tempo, não é possível estender tal diagnóstico, normalmente resultante de estudos focados nas duas principais cidades do País, para as demais cidades, que, na verdade, constituem a imensa maioria dos centros urbanos brasileiros e abrigam a maior parte da população. Portanto, as consequências dos processos de financeirização sobre a governança urbana brasileira ainda era bastante incipiente no início da segunda década do século XXI.

Referências

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  • WATSON, V. (2007). Seeing from the South: Refocusing urban planning on the globe’s central urban issues. Urban Studies , v. 46, n. 11, pp. 1-17.

Notas

  • 1
    De acordo com Fix (2011)FIX, M. de A. B. (2011). Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil . Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. , o SFI difere-se do Sistema Financeiro de Habitação, que é voltado especificamente para o financiamento de habitação social e tem origem de recursos restrita ao Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
  • 2
    Vale mencionar que a utilização do conceito de complexo não é exatamente nova. Na literatura nacional, por exemplo, Cano (1998)CANO, W. (1998). Raízes da concentração industrial em São Paulo . Campinas, IE/Unicamp. desenvolveu a noção de complexo econômico cafeeiro para explicar os processos históricos de desenvolvimento no País.
  • 3
    Para maiores detalhes sobre a investigação proposta por Aalbers, ver https://ees.kuleuven.be/geography/projects/refcom/project/index.html .
  • 4
    Desde 1994, a lei n. 8.713/1993 permitia as doações realizadas por pessoas jurídicas.
  • 5
    Apesar disso, espera-se que, em breve, a análise aqui apresentada possa ser estendida para as eleições anteriores e posteriores, na medida em que os dados detalhados venham a ser disponibilizados.
  • 6
    A base de dados do TSE relativa a doações de campanha está disponibilizada neste link: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais .
  • 7
  • 8
    Os 22 grandes setores são divididos em: A – agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura; B – indústrias extrativas; C – indústrias de transformação; D – eletricidade e gás; E – água, esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontaminação; F – construção; G – comércio; reparação de veículos automotores e motocicletas; H – transporte, armazenagem e correio; I – alojamento e alimentação; J – informação e comunicação; K – atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados; L – atividades imobiliárias; M – atividades profissionais, científicas e técnicas; N – atividades administrativas e serviços complementares; O – administração pública, defesa e seguridade social; P – educação; Q – saúde humana e serviços sociais; R – artes, cultura, esporte e recreação; S – outras atividades de serviços; T – serviços domésticos; e U – organismos internacionais e outras instituições extraterritoriais.
  • 9
    Até 2012, o financiamento de campanhas eleitorais municipais contava com três grandes fontes: pessoas jurídicas, pessoas físicas e recursos próprios dos candidatos. E as doações dessas fontes tinham três possibilidades de destinatários imediatos: os partidos, os candidatos e os comitês eleitorais, criados pelos partidos para arrecadar recursos especificamente para cada eleição. Uma vez recebida a primeira doação, esta poderia sempre ser repassada para outros potenciais destinatários. Por exemplo, um candidato poderia receber uma doação de uma pessoa física ou jurídica e redirecionar o total ou parte desse montante para outro candidato, ou mesmo para um comitê eleitoral de campanha ou, ainda, para o seu próprio partido. Partidos e comitês de campanha também poderiam adotar o mesmo procedimento de repasse. De forma a evitar contagem dupla, foram selecionadas somente as doações diretas, ou seja, as transferências realizadas de empresas para candidatos, partidos e comitês, desconsiderando os repasses posteriores. Também foram consideradas somente aquelas doações realizadas diretamente no nível municipal (havia a possibilidade de parte dos recursos ser destinada aos diretórios nacionais ou estaduais dos partidos. Nesses casos, esses diretórios, posteriormente, efetuavam repasses para o nível municipal, seja para candidatos, comitês ou para o próprio diretório local).
  • 10
    Brasília também é incluída nessa classificação. Porém, uma vez que não há eleições municipais no distrito federal, aquela aglomeração não pôde ser considerada no presente estudo.
  • 11
    Neste caso a construção contribuiu com 30% das doações, seguida de perto pelo comércio, com 28%.
  • 12
    Os valores dos coeficientes de Spearman e Kendall são medidas de correlação não paramétricas entre universos distintos de dados, que variam entre -1 e 1. Valores positivos indicam associações positivas e valores negativos demonstram associações negativas. Quanto mais próximo de 0 for o resultado, menor é a correlação aferida.
  • 13
    Por conta da grande quantidade de subsetores e da limitação de espaço, não é possível disponibilizar aqui suas respectivas descrições. Contudo, tais descrições podem ser acessadas através do endereço eletrônico https://cnae.ibge.gov.br/classificacoes/download-concla.html , representadas pelos seguintes códigos CNAE: 4110700, 4120400, 4211101, 4211102, 4213800, 4221901, 4221902, 4221903, 4221904, 4221905, 4222701, 4223500, 4291000, 4292801, 4299501, 4299599, 4311801, 4311802, 4312600, 4313400, 4319300, 4321500, 4322301, 4322302, 4322303, 4329103, 4329104, 4329105, 4329199, 4330401, 4330402, 4330403, 4330404, 4330405, 4330499, 4391600, 4399101, 4399102, 4399103, 4399104, 4399105, 4399199, 6810201, 6810202, 6821801, 6821802, 6822600, 7111100, 7112000, 7119703, 7119799, 4912402, 4912403, 4921301, 4921302, 4923001, 4923002, 4929901, 4929903, 4929999, 4950700, 5011402, 5012202, 5091201, 5091202, 5099801, 5099899, 5221400, 5222200, 5223100, 5229001, 5229002, 5229099, 5232000, 5239700, 3600601, 3600602, 3701100, 3702900, 3811400, 3812200, 3821100, 3822000, 3900500, 6421200, 6422100, 6423900, 6431000, 6432800, 6433600, 6435201, 6435202, 6435203, 6436100, 6461100, 6462000, 6463800, 6470101, 6470102, 6470103, 6491300, 6492100, 6493000, 6499901, 6499902, 6499903, 6499904, 6499905, 6499999, 6611801, 6611802, 6611803, 6611804, 6612601, 6612602, 6612605, 6619303, 6630400, 4613300, 4615000, 4649404, 4649405, 4649406, 4662100, 4674500, 4679601, 4679602, 4679603, 4679604, 4679699, 4744003, 4744004, 4744005, 4744099, 4754701, 4754702, 4754703, 1622601, 1622699, 2229303, 2320600, 2330302, 2330303, 2330304, 2330305, 2342701, 2342702, 2391502, 2599301, 2854200, 3101200, 3102100, 3103900, 3104700, 3314717, 7711000, 8111700, 8112500, 8121400.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    6 Abr 2020
  • Aceito
    14 Ago 2020
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