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Nietzsche, Debussy e o sul da música: esboços de uma cartossonografia

Nietzsche, Debussy and the south of the music: outlines of a cartosonography

Resumo:

o artigo apresenta de forma seminal a noção de cartossonografia, um modo de considerar a música por suas regiões sonoras. Para tanto, tenta estabelecer uma relação de proximidade entre Nietzsche e Debussy. Do filósofo, procura compreender a ideia de um Sul da música, enquanto do compositor se investiga as formas pelas quais ele estabeleceu um novo caminho para a música numa busca por sonoridades francesas. Além disso, ambos têm em comum um percurso que vai da adesão ao rompimento com Wagner.

Palavras-chave:
Cartonossografia; Nietzsche; Debussy; música; tonalismo

Abstract:

The article presents, in a seminal way, the notion of a cartsonography, amannerof considering music by its sonorous regions. For this purpose, it intends to establish a relationship of proximity between Nietzsche and Debussy. Regarding the philosopher, it seeks to comprehend the idea of a South in music, and regarding the composer, in turn, it investigates the ways in which he laid down a new direction for music in a search for French sonorities. Furthermore, both have in common a route that leads from adherence to rupture with Wagner.

Keywords:
Cartosonography; Nietzsche; Debussy; Music; Tonalism

Para minha amiga Scarlett Marton

Prelúdio

Este texto pode ser considerado uma pequena amostra que resulta de um projeto de pesquisa financiado pelo CNPQ, em cuja equipe tive a honra de contar com a participação de dois integrantes do Grupo de Estudos Nietzsche: Scarlett Marton e Fernando Barros. O projeto tinha por título “Reflexões musicais em Wagner, Nietzsche e Debussy”. O que proponho aqui é um ensaio seminal sobre a cartossonografia, um modo de considerar a música por suas regiões sonoras. No Ocidente, a história da música, em uma perspectiva teórica, está ligada ao seu início na Grécia, com seus modos vinculados às regiões, tais como a Dória, a Frígia, a Jônia etc.1 1 “A arte grega da época clássica é um rio onde se misturam correntes de proveniências muito diversas: umas fornecidas pelas variadas raças de que se compunha a nação helênica; outras, ainda, pelos povos asiáticos que entraram na órbita de sua cultura. Em nenhum lugar esse caráter sintético da arte grega melhor se identifica do que no sistema dos modos musicais” (Théodore Reinach, 2011, p. 50). até culminar na escala tonal, com seus modos maior e menor, cuja supremacia dominou por pelo menos dois séculos a música ocidental, tendo visto esse predomínio recuar justamente com a emergência, na música erudita, de muitos outros modos e escalas, muitos deles outra vez ligados a regiões, países, culturas, etnias e assim por diante.

Mesmo no interior da emergência e consolidação do tonalismo, há momentos marcantes, envolvendo inclusive polêmicas, que revelam essa regionalidade. A ópera tem seu surgimento na Itália; as formas que exerceriam um forte predomínio, como a sonata e a sinfonia, estão ligadas sobretudo à tradição alemã; podemos lembrar da polêmica dos bufões, que confrontou a música cantada ao estilo francês e italiano; o advento da obra wagneriana não só demarca uma postura germanista do compositor, como esta postura já traz uma relação ambígua entre Alemanha e França, como atesta o importante escrito de Baudelaire, Richard Wagner e Tannhäuser em Paris.2 2 Baudelaire, 2013. Para a relação entre Wagner e a França, e sua posição revolucionária e nacionalista, desde os eventos de 1848, passando pela leitura que Baudelaire faz do compositor, assim como sua aceitação do projeto político wagneriano posto em ação em Bayreuth, ver Lacoue-Labarthe, 2013, p. 69 ss. Além disso, para além do Ocidente, que já indica uma região, temos as várias histórias de outras músicas e povos, como seus modos e suas linguagens, como a da África, da China, da Índia, para citar apenas algumas delas.

Mas por que Nietzsche e Debussy? Porque ambos deram, com suas respectivas obras, contribuições decisivas para o ressurgimento de novas sonoridades, e tiveram uma preocupação candente com o esgotamento do sistema tonal no final do Século XIX, apontando para novos caminhos que possibilitaram uma abertura e ampliação das possibilidades musicais. Contribuíram, pois, para o enriquecimento de nossa audição, na medida em que proclamaram a necessidade de ampliar as regiões musicais a que devermos ter acesso e experimentar. Por isso, escolhemos a questão do Sul da música em Nietzsche, de modo a entender em que consiste o apelo do filósofo para que a arte sonora se aproximasse do Sul, assim como devemos compreender por que o contato de Debussy com a música Russa e sobretudo com a música javanesa, na Exposição Universal de Paris, em 1889, foram experiências decisivas para as transformações que faria na harmonia e na música de um modo geral.

Um diálogo improvável

Assim como a música ocupa um lugar central na obra de Nietzsche, a filosofia tem se interessado pelos aspectos formais e renovadores das composições de Debussy.3 3 Cf. Vladimir Jankélévicth, 1947 e 2019; Julian Johnson, 2020. Todavia, esses dois nomes parecem nunca dividir o mesmo palco das reflexões sobre música e filosofia.4 4 Em 1912, Raphael Cor (1912) publicou um conjunto de ensaios intitulado Ensaios sobre sensibilidade contemporânea, entre os quais havia um sobre Nietzsche e outro sobre Debussy, mas sem traçar paralelos entre os dois; o compositor francês é aproximado a Bergson, numa comparação que tem sido frequente, a tal ponto que Jankélévicth questiona esse suposto aspecto bergsoniano da música de Debussy. A seu ver, esse título pode ser mais apropriadamente dado a Fauré (Jankélévicth, 2019, p. 49). Na pesquisa que tenho desenvolvido, só recentemente encontrei um estudo que abordasse uma aproximação entre Nietzsche e Debussy, justamente a partir da relação com Wagner. Trata-se da tese de Tekla B. Babyak (2014), na qual ela defende que três elementos da música de Debussy, nacionalismo, exotismo e anti-wagnerismo, buscaram em Nietzsche as ferramentas para sua execução. Nietzsche foi um filósofo, como sabemos, em cuja vida e obra a música teve uma presença bastante forte, e desde a relação com Wagner sua influência sobre a música nunca cessou. De uma forma ou de outra, como pensador da música ou como criador, sua produção tem despertado o interesse de teóricos da música e de muitos compositores. Poderíamos citar Richard Strauss, Mahler, Delius, Bártok, Schnitkke e ainda outros para atestar esse interesse.5 5 Assim falava Zaratustra foi transformado em poema sinfônico por Richard Strauss, enquanto Mahler usou passagens do livro em sua terceira sinfonia; inspirado nessa mesma obra, o compositor inglês Delius compôs sua Mass of life. Na verdade, ele compôs inicialmente um ciclo chamado Mitternachts-Lied Zarathustra’s que depois foi incorporado à Missa. Béla Bartok era um leitor atento de Nietzsche e se disse influenciado por suas ideias (Cf. Lauro Machado Coelho, 2010, p. 72; D. Lille, 1968, p. 209- 228). O compositor russo Shnittke apresentou peças musicais do filósofo em que atuou como regente, embora não tenha registros (Marco Aurélio Scarpinella Bueno, 2007, p. 223). O compositor dinamarquês Vagn Gylding Holmboe compôs um Requiem for Nietzsche para tenor, barítono, coro e orquestra. Recentemente, o compositor alemão Wolfgang Rihm compôs uma fantasia operística Dionysos - Cenas e ditirambos a partir de textos de Friedrich Nietzsche” para solistas, coro e orquestra (Cf. Ivanka Stoianova, 2015). Contudo, não é isso o que acontece em relação a Debussy. Tendo sido, assim como Nietzsche, um wagneriano no início de sua trajetória artística, e um escritor incansável de críticas musicais e de cartas, encontram-se nesses escritos pouquíssimas menções ao filósofo.

A bem da verdade, Debussy não demonstra, em seus escritos, maiores interesses por filósofos, tampouco por teóricos da música.6 6 André Suarès considera Debussy o grande compositor da época simbolista, e essa era sua ligação artístico-cultural e intelectual: “Disseram-me que ele [Debussy] lia pouco. Ele, um dos menos incultos entre os músicos, cultivando apenas seu parque e suas flores musicais, nem a poesia de outros tempos, nem a filosofia, nem o pensamento religioso o ocupam (André Suarès, 1936, p. 156). Não apenas sua produção musical, ao contrário da de Wagner e de outros compositores, não parece ter sido produzida espelhando pontos de vista filosóficos, como é possível ser o contrário verdadeiro, isto é, foi um certo desprezo pelos cânones e pelas teorias clássicas, inclusive as musicais, que fez a música de Debussy uma das mais importantes desde o seu aparecimento.7 7 Edward Lockspeicer considera que Debussy foi precedido por alguns nomes no que toca a revolta contra o sistema tonal, como Liszt, Mussorgsky, Grieg etc. Todavia, o compositor francês foi primeiro a formular de modo consciente essa revolta. Nesse sentido, cita conversas entre Debussy e Guiraud, seu antigo professor, nas quais o este ouviu seu ex-aluno questionar vários elementos teóricos, como o fato de as enarmonias poderem ser usadas livremente, embora seja necessário distinguir entre o Sol bemol e o Fá sustenido; ou que as tonalidades relativas eram absurdas, pois a música não é maior nem menor, pois são ambas ao mesmo tempo. Apesar disso, Edward Lockspeicer conclui que Debussy foi um romântico tardio e o iniciador experimental de uma nova era, mas nunca um músico intelectual (Edward Lockspeiser, 1936, p. 226-227). Ainda sobre a produção de Debussy como crítico, Cf. Eric Frederick Jensen, 2014, (cap. 15, pp. 242-253); De igual modo, e olhando em sentido inverso, embora fosse quase impossível a Nietzsche conhecer a obra de Debussy, ele pouco teve contato com o ambiente intelectual francês do qual o compositor pode ser considerado uma forte expressão e com a qual se irmana, como o simbolismo na literatura e o impressionismo na pintura, proximidade que não raro seus intérpretes enxergam. Qual seria então as possíveis afinidades entre Nietzsche e Debussy? O que poderia haver de comum entre eles? Há alguma aproximação estética entre os dois?

As reflexões de Nietzsche sobre a música atravessam sua obra com um forte acento nas preocupações culturais, sobretudo com relação à Alemanha, levando-o a conceber muitas vezes a música como um ponto de vista privilegiado para interpretar a moral, a política, os costumes, além das diferenças entre povos e culturas.8 8 A esse respeito, para além de toda a discussão de O nascimento de tragédia, vale conferir dois textos importantes da fase intermediária e tardia da obra de Nietzsche. O parágrafo 171 de Opiniões e sentenças diversas (VM/OS 171, KSA 2.450) e os aforismos 254-256 de Além do bem e do mal (JGB/BM 254, 256 KSA 5.198 e 5.201). Nietzsche concebeu uma importante parcela de sua análise musical por meio do que poderia chamar de uma cartossonografia, aquele seu modo próprio de analisar povos e pátrias a partir da sonoridade musical de diferentes regiões, considerando, com isso, a relação entre valores e culturas.9 9 Nesse contexto da importância de Nietzsche para os compositores, como afirmamos antes, e sua ligação com povos e pátrias, vale mencionar o livro de Rebecca Mitchell, Nietzsche’s Orphans. Music, Metaphysics, and the Twilight of the Russian Empire. A autora analisa a recepção que músicos e filósofos russos fizeram da obra de Nietzsche, em especial o Nascimento da tragédia, uma relação marcada pela proximidade e afastamento, uma vez que concordavam com o argumento nietzschiano da decadência da música, embora discordassem de que a música de Wagner fosse a solução. Se o crepúsculo foi bem visto pelo filósofo, a aurora não poderia ser vislumbrada com a música alemã, mas com a russa (Cf. Rebecca Mitchell, 2015). Nesse aspecto, é possível, por exemplo, ver na relação que o jovem Nietzsche estabelece entre Alemanha e Grécia um modelo dessa interpretação, assim como é lícito compreender sua reviravolta tardia dessa mesma perspectiva, quando ele passa a combater a cultura alemã em favor da francesa,10 10 Mesmo as mudanças por que passa a filosofia de Nietzsche, no caso específico de Wagner e da música, trazem a marca dessa perspectiva. Se o elogio inicial a Wagner se associava à metafísica alemã de Kant e Schopenhauer, as críticas que fará ao compositor dialogam com a psicologia francesa, justamente com a noção de decadência, tomada de empréstimo das análises que Paul Bourget fez de Baudelaire. Todo o contexto, portanto, remete à relação entre Alemanha e França, e dos nomes que orbitaram em torno de Wagner. Em Ecce homo, ao expor sua perspicácia para as questões psicológicas, Nietzsche se volta para a França e para o caso Wagner: “Como artista não se tem outra pátria na Europa além de Paris: a délicatesse nos cinco sentidos artísticos que a arte de Wagner pressupõe, os dedos para as nuances, a morbidez psicológica, encontram-se somente em Paris (EH/EH, Por que sou tão inteligente 5, KSA, 6.288, tradução de Paulo César de Souza [PCS]). Para uma exposição da décadence, cf. também Müller-Lauter, 1999. e por vezes prefira a civilização romana à cultura grega. Isso por certo está em harmonia com o abandono de suas posturas nacionalistas iniciais quando, em suas obras tardias, sai em defesa de uma Europa supranacional. Nesse percurso, o filósofo começa a fazer um elogio à cultura do Sul em contraponto à do Norte, apresentando uma polarização entre Alemanha e França.

Debussy, por um caminho próprio, terá um posicionamento similar, cuja singularidade musical diante da tradição passa por um confronto com a escola alemã, em especial com a estética wagneriana de que fora adepto por um breve período. Nietzsche e Debussy vão, portanto, tomar partido por uma forma musical que expressasse as culturas do Sul como porto de refúgio para uma tradição cujos princípios vinham sendo posto em questão, como ocorria com a música tonal no final do Século XIX.11 11 Para uma discussão sobre os posicionamentos de Nietzsche e de Debussy sobre o tonalismo, Cf.: Márcio Lima, 2017 e 2018; Boyd Pomeroy, 2003.

A crítica de Nietzsche

Embora a crítica à modernidade ou às ideias modernas seja mais bem elaborada no período tardio da obra de Nietzsche, esses conceitos já estavam presentes no percurso inicial do filósofo, quando, em O nascimento da tragédia, propõe uma superação da cultura da época, tributária ainda do socratismo, por meio do renascimento de uma época trágica. Como filólogo, e tendo a história com uma de seus interesses centrais, é certo que a questão do confronto entre antigos e modernos se impôs muito cedo para ele. Contudo, em seu início filosófico, é possível que sua tomada de posição em torno da crítica à cultura de sua época foi amplificada pelo contato com Wagner. Nietzsche toma partido não apenas da condenação wagneriana da ópera como sintoma maior da decadência da música, como considera o próprio compositor de Tristão aquele que vai suplantar essa forma musical e trazer de volta o impulso musical dionisíaco da tragédia grega.

Porque Nietzsche está de fato interessado em ver a música trilhar um novo caminho para fora de uma tradição já bem constituída, a tomada de posição em favor de Wagner não está isenta de ambiguidades. Sim, porque a despeito de desejar uma nova música dionisíaca, que não fosse mais nem moderna nem romântica, o filósofo nem sempre concordou com as soluções wagnerianas. À diferença das páginas elogiosas de O nascimento da tragédia, cartas e escritos não publicados vão em outra direção. É como se Nietzsche estivesse convencido dos apelos teóricos de Wagner acerca da necessidade de encontrar uma nova linguagem para a música e para a ópera, embora não estivesse tão convicto assim de que, em termos da estética sonora, a obra wagneriana cumprisse tal pape.l12 12 Para uma discussão sobre Nietzsche e Wagner, ver Marton, 2015. Com respeito às concordâncias com Wagner, Nietzsche muitas vezes se contrapõe à utilização que desde a Idade Média se faz das terminologias gregas nas artes de um modo geral. Se no período medieval continuou-se a usar as escalas gregas, não raro essa utilização segue uma outra regra. A escala grega lócria passou a ser, diz Nietzsche, a escala dórica, aquela utilizada na liturgia e base para o canto gregoriano. 13 13 Em seu erudito estudo da música grega, Théodore Reinach mostra que o sistema de transposição utilizado pelos teóricos tardios se baseou em confusões e erros acerca dos modos gregos: “a ordem verdadeira dos modos gregos postos na escala natural é exatamente o inverso daquele dos modos eclesiásticos. Essa confusão, fonte de muitas outras, perpetuou-se na música da igreja até nossos dias e muito contribuiu para dar à teoria dos modos e dos tons gregos uma reputação de obscuridade que ela está longe de merecer (Théodore Reinach, 2011, p.74-75). Essa mesma confusão, prossegue o filósofo, também invade a arte dramática, pois a grande ópera, que quer se passar por uma arte trágica, não seria reconhecida por um antigo grego como tal. E Shakespeare, que para os modernos é um autor trágico, seria por esse mesmo heleno considerado autor daquele gênero herdeiro da tragédia e denominado de comédia nova (GMD/DM, 1, KSA Drama Musical Grego, KSA 1.515).

Ainda sobre a ópera como gênero trágico, Nietzsche defende que há um equívoco de fundo, pois quando os criadores da ópera quiseram imitar a tragédia baseando-se no recitativo, ficaram presos a uma ilusão idílica. Os gregos não conheciam a acentuação musical como será a base da música moderna e operística, pois lá o ritmo era o do tempo e da melodia, e não da intensidade. Enquanto na modernidade as relações rítmicas têm um esquematismo rigoroso, a acentuação musical grega se desenvolveu pela fineza de suas escalas musicais do ritmo e do tempo, graças a uma aptidão dos gregos para a dança (Cf. NF/FP 9 [111], 1871, KSA 7.316).14 14 Carlotta Santini nos lembra que os intérpretes de Nietzsche têm reconhecido a influência de Hanslick sobre o filósofo, inclusive nos pontos de discordância que desde os anos 1870 ele manifestava com Wagner. O ponto central seria a confusão entre música de efeitos e música de afetos. Aquela buscava atingir o público de acordo com a ocasião, como num simpósio, para glorificar um vencedor etc., ao passo que esta, incluindo Wagner, busca não um efeito ético, mas uma emoção, uma finalidade patética (Santini, 2016, p. 279 e s.).

Nas considerações de Nietzsche sobre a música grega antiga e a moderna e sua adesão inicial a Wagner é possível destacar três tendências. Uma, que demarca as diferenças entre a linguagem musical antiga e a moderna; outra, aquela que associa, nos parágrafos finais de O nascimento da tragédia, as construções harmônicas de Tristão e Isolda com a arquitetura sonora dos gregos trágicos. Entre uma e outra, estão os argumentos expostos em muitos fragmentos póstumos que põem em xeque essa associação, sobretudo na relação entre a música, de um lado, e as palavras e ação do outro.

O percurso de Debussy

Assim como Nietzsche, Debussy também foi um entusiasta de Wagner no início de sua carreira como compositor. Também em seu caso, a busca por uma linguagem que conduzisse a música para fora das regras do tonalismo, e que significasse uma afirmação da tradição de seu país, a França, foi uma constante desde cedo. Em fevereiro de 1889 (Cf. Debussy, 2005DEBUSSY, Claude. Correspondance (1872-1918). Paris: Gallimard, 2005. , p. 67/68), ele respondeu a uma série de perguntas sobre seus gostos e personalidade. Sobre seus poetas e compositores preferidos, menciona o nome de Baudelaire, e apenas o dele, enquanto elenca 3 músicos, um italiano e dois alemães: Palestrina, Bach e Wagner. Três nomes, aliás, que têm uma presença bastante significativa em O nascimento da tragédia.

No momento em que respondia a esses questionamentos, Debussy compusera, havia pouco tempo, os Cinco poemas de Baudelaire, sua obra em que a influência wagneriana se deixa notar com mais força. Segundo o compositor, era preciso enriquecer a escala tonal com outras escalas, além de ser preciso afogar o tom (il faut noyer le ton, Jensen, 2014JENSEN, Eric Frederick. Debussy. 1ª. Ed. Oxford. Oxford University Press, 2014., p. 144). Nessas peças sobre os poemas de Baudelaire o compositor utilizará com mais força o cromatismo wagneriano de Tristão, possivelmente ainda sob o impacto de sua viagem a Bayreuth, em 1888. Essa influência voluntária demarca essa transição importante que Debussy faz entre a música alemã e a busca por uma linguagem própria francesa. E as peças revelam a importância desse pano de fundo, na medida em que Wagner teve seu momento francês marcado pelo interesse que Baudelaire demonstrou pelo compositor. Musicar os cinco poemas do poeta francês, lançando mão das técnicas wagnerianas parecem reunir essas duas faces das preocupações estéticas de Debussy: encontrar uma linguagem própria para a música francesa e sair do círculo fechado da escala tonal. Baudelaire e Wagner tornam-se peças-chave para esse propósito. No caso dos poemas, como veremos ainda, a relação da linguagem com a música será uma constante na obra debussyana, e seu afastamento de Wagner tornará mais acentuada essa preocupação. Como afirma Eric Frederick Jensen “As canções de Baudelaire foram vistas como uma resposta àqueles que consideravam que a música francesa não era capaz ou incapaz de responder às inovações harmônicas de Wagner” (Jensen, 2014JENSEN, Eric Frederick. Debussy. 1ª. Ed. Oxford. Oxford University Press, 2014., p. 153).

Enquanto Nietzsche escrevia, no final de 1888, O caso Wagner para denunciar, entre outras coisas, o perigo para a música que representava a influência wagneriana em várias partes do mundo, meses antes, no verão, Debussy chegava ao ápice de seu entusiasmo por essa música quando assistiu, em Bayreuth, às apresentações de Parsifal e de Os mestres cantores. Embora não haja nenhum registro nas cartas de Debussy sobre essa sua viagem, não é improvável que a visita tenha provocado aquele sentimento que, segundo Nietzsche, era o mais comum nos telegramas de quem ia ao templo wagneriano: já me arrependi (Typisches Telegramm aus Bayreuth: bereits bereut, FW/CW, Pós-Escrito, KSA 6.44). Se as inovações harmônicas de Wagner representaram a porta de entrada de Debussy para novas formas de composições para além da escala tonal, dois outros eventos são ainda mais significativos. Sua estada na Rússia, quando acompanhava, como professor dos filhos de Madame von Meck, e sua visita, em 1889, da Exposição Universal de Paris, onde pode presenciar cantores, dançarinos e orquestras nacionais da África, Arábia, Oriente, Escandinávia e da Rússia, em que músicas exóticas e primitivas eram apresentadas. Foi aí que ele ouviu o gamelão javanês, ciganos húngaros e danças tribais africanas (Edward Lockspeiser, 1936LOCKSPEISER, Edward. Debussy: The Master Musicians. 1ª. Ed. Londres: J. M. Dent & Sons, 1936., p. 39).

Em busca de novas regiões sonoras

Além de ter em comum com Nietzsche o afastamento da estética wagneriana, Debussy também vai partilhar com o filósofo a busca por alternativa a essa estética num confronto em que a própria presença de Wagner se torna incontornável. Tanto quanto Nietzsche, Debussy nunca cessará de denunciar a influência maléfica vinda de Bayreuth. Nos dois casos, a França poderia oferecer ainda uma outra música. É bem verdade que Nietzsche ainda pensa de uma perspectiva ampla, numa música que fosse afim a sua ideia de uma cultura superior; no caso de Debussy, parece tratar-se apenas de construir ou quem sabe reconstruir uma estética musical de caráter francês.

No “Ensaio de autocrítica”, Nietzsche afirma sua ilusão inicial em relação à música de Wagner, uma vez que depositou suas esperanças lá onde não havia nada a esperar, e que a música alemã, seja ela romântica ou wagneriana, era, de todas, a menos grega (Cf. GT/NT, Ensaio de autocrítica 6, KSA 1.19). Ora, como dissemos, nos escritos não publicados, há indícios suficientes de que essa associação entre música grega e alemã não se dava, tal como o filósofo defendeu em O nascimento da tragédia. Contudo, se se tratava de tomar a música grega e suas escalas como exemplo para uma outra música que não fosse a moderna, sem dúvida Wagner era o que mais perto disso se aproximava, pelo menos em termos da música de concerto, uma vez que as músicas populares e folclóricas ainda não haviam ocupado o centro do palco. Daí o interesse de Debussy por todas essas linguagens com que teve contato na Exposição de 1889.15 15 Jean Barraqué afirma que mais do que a experiência com a música russa, especialmente os concertos dirigidos por Rimsky, foram as tradições do extremo-oriente que impressionaram Debussy. A seu ver, o compositor francês foi o primeiro músico moderno que se deixou seduzir pela magia do exotismo, sem jamais abandonar esse seu entusiasmo, a ponto de “ocidentalizar” as sonoridades ouvidas na Exposição, e de afirmar que a o contraponto da música javanesa faz os de Palestrina parecerem jogos infantis (Jean Barraqué, 1994, p. 94-96; Debussy, 1989, p. 198).

Mas se em Nietzsche a autocrítica visa fazer o ajuste de contas, ele abandona sua perspectiva inicial de tentar buscar na Grécia um modelo de superação da modernidade tonal. Ao dissociar aquela relação entre gregos e alemães, o filósofo muda radicalmente sua perspectiva, ainda que mantenha seu olhar para o mesmo ponto central, ou seja, o lugar da música na cultura. Agora opositor da música e da cultura germânicas, Nietzsche parece ampliar ainda mais os critérios intrínsecos à escrita musical como um elemento incontornável, e passa a esboçar as linhas de uma música que ele chama de mediterrânea, uma música que se afastasse do frio norte e fosse a expressão da alma do sul, enfim, ele quer chegar ao sul da música. Infelizmente, parece que Nietzsche está em grande desvantagem em relação ao jovem que escreveu O nascimento da tragédia. É possível mesmo que o jovem Nietzsche já compartilhasse aquela situação geral do final do século XIX de já não era possível a imposição da escala tonal; Bela Bartok16 16 Cf. Lauro Machado Coelho, 2010, p. 9. depois vai afirmar que encontrou nas escalas folclóricas uma alternativa para essa tirania das escalas maiores e menores. Se for assim, o jovem Nietzsche ainda encontrou em Wagner uma nova sonoridade, um auspício de que a superação era possível. Ao romper com Wagner, ele parece se resignar com a tradição e vai encontrar em Bizet pelo menos essa sonoridade do sul que passou a defender. Para além dessa França que passou a ser um modelo privilegiado de cultura, Nietzsche considerava ainda que devia haver uma cultura francesa que presava por sua tradição do bom gosto e que ele mesmo não conhecia. Ele estava certo, e pelo menos em termos musicais a França vai ter em Debussy um grande renovador da linguagem musical e compositor incontornável para as gerações seguintes.17 17 A esse respeito, Otto Maria Carpeaux afirma que Debussy é um músico único, um criador cuja linguagem artística não tem qualquer paralelo antes e não terá nenhum continuador, um paradoxo, haja vista sua influência em várias partes, desde a Europa Oriental até as Américas (Carpeaux, 1968, p. 271). De certa forma, Julian Johnson oferece uma resposta diferente para as duas questões. Para tanto, lembra uma série de estudos que apontam as influências de outros compositores, o que indicaria que a linguagem musical de Debussy é “essencialmente tradicional”, no sentido de que não são os elementos em si que são inovadores, mas as maneiras como eles são combinados em uma nova sintaxe; por outro lado, se seus imitadores foram logo esquecidos, é difícil conceber grande parte da música dos últimos cem anos sem Debussy (Julian Johnson, 2020, p. 9-11).

Segundo Copland,

Com Debussy, os analistas viram-se diante de acordes que já não podiam ser explicados pela teoria harmônica. Se perguntassem a Debussy por que usara aqueles acordes, estou certo de que ele daria a única resposta possível: “Porque eu gosto assim!” É como se um compositor finalmente resolvesse confiar no seu ouvido...o que Debussy realizou foi a anulação de todas as teorias vigentes na ciência harmônica. Sua obra inaugurou um período de completa liberdade harmônica, que tem sido para muitos ouvintes uma barreira insuperável. Eles se queixam de que essa música nova é cheia de “dissonâncias” e de que toda a história da música é uma prova no sentido de que deve haver uma mistura razoável de consonâncias e dissonâncias (Copland, 2009, p. 155-156).18 18 Pierre Boulez (1958) considera Prélude à l’après-midi d’un Faune a primeira obra da música moderna.

Diferente de Nietzsche, cujos escritos finais mostram em grande medida o abandono dos critérios propriamente musicológicos com relação às análises de Wagner, em Debussy grande parte de suas inovações musicais está relacionada com o confronto com as técnicas wagnerianas.

A forma com que cada um se posiciona em momentos distintos sobre as construções wagnerianas podem nos ajudar a compreender essas questões. Destaquemos, por exemplo, a relação entre música e palavra, e o papel que a música sinfônica representa para a ação dramática. No caso de Nietzsche, ele já havia afirmado a distância que havia na forma como gregos e modernos tratavam a relação entre música e palavra. Se viu em Wagner uma retomada do espírito grego, num importante fragmento de 1871 (NF/FP 12 [1], KSA 7.319), pensando no Beethoven de Wagner e em Tristão e Isolda, nega a possibilidade de a música sinfônica potencializar a ação dramática, e aqui caberia a mesma denúncia a Wagner que fez à tradição moderna, isto é, de que a música se torna escrava das palavras, concepção que sempre combateu. Ora, em sua visão posterior, embora denuncie Wagner como um ator e que seu maior talento é para a ação dramática (FW/CW 8, KSA 6.29) Nietzsche não mais considera a relação entre música e palavra, tampouco esse elemento crucial da estética wagneriana, que é a força sinfônica como potencializadora do drama e da ação.

Esse é um ponto importante também para Debussy, cuja obra é marcada pelo trabalho de musicar poemas ou então dar títulos poéticos às suas composições. Seu trabalho mais importante nessa esfera é ópera Pelléas et Melisande. Ainda que seja um libelo antiwagneriano, a dívida com o compositor alemão é enorme, a começar pela supressão das tradicionais árias, recitativos e também os duetos (Não é possível duas pessoas conversarem ao mesmo tempo, e muitas vezes gritando, diz ele). Contudo, o mais marcante da ópera são as concepções estéticas diversas daquelas que Debussy vê em Wagner, a quem atribui uma influência nefasta, uma vez que não é possível fazer música sinfônica no teatro. “É impossível conciliar o movimento dramático com o movimento sinfônico...Os heróis de Wagner não sabem o que dizer em certos momentos, apenas porque devem permitir que a sinfonia se desenvolva” (Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 235). Para superar esses problemas, Debussy foi levado a compor sua ópera não sobre um movimento musical, mas sobre uma palavra musical.

Nietzsche já denunciava que os bons músicos alemães escrevem mal, por isso o estilo alemão tinha pouco a ver com os sons e os ouvidos (JGB/BM 247, KSA 5.190). Para Debussy, toda frase tem um ritmo, e em música é importante respeitar as palavras sem sublinhá-las mais que o necessário. Por isso, em Pelléas procurou suprimir o que chamava de música inútil, 135 compassos para explicar um estado de alma que fica sem explicação ao término do longo trecho. É o próprio personagem que deve explicar seu estado, e não recorrer a uma divagação sinfônica. Essa técnica, segundo o compositor, baseia-se não apenas no ritmo natural, mas numa teoria do acento. Assim, o acento da dor ou da alegria é expresso ao mesmo tempo no lado lírico e no lado musical (Cf. Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 236).

Toda essa concepção musical que encontra na ópera Pelléas et Melisande sua mais genuína expressão, como é possível notar, resulta de uma longa relação com a escola alemã, sobretudo com a obra de Wagner.19 19 A esse propósito, ver François Lesure, 1992, p 214ss. Seu único quarteto de cordas é construído de uma forma diferente daqueles do mestre alemão; da mesma forma, suas sonatas se afastam do modelo vienense, e tentam retomar o espírito das sonatas de Rameau e Couperin, os mestres franceses que Debussy deplora terem sido esquecidos, primeiro pela influência de Gluck, e depois pela de Wagner. Ele escreve:

A música francesa é clareza, elegância, declamação simples e natural: a música francesa pretende, antes de mais nada, agradar. Couperin, Rameau, esses são verdadeiros franceses! Aquele animal do Gluck estragou tudo! Será que ele não foi enfadonho o bastante? Pedante o bastante? Empolado o bastante? Seu sucesso me parece inconcebível. E tomaram-no como modelo, quiseram imitá-lo. Que aberração. Nunca é amável, esse homem. Só conheço um outro músico tão insuportável quanto ele, é Wagner. Sim, aquele Wagner que nos infligiu Wotan, o majestoso, o vazio, o insípido Wotan. (Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 241).

Os motivos estéticos que Debussy expressa para condenar a música alemã e sua influência, ao tempo em que afirma a necessidade de resgatar a francesa como sua antípoda, nos fazem lembrar os muitos motivos que levaram Nietzsche, antes dele, a expor pontos de vista muito semelhantes. No parágrafo 254 de Além do bem e do malNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. , que integra aquela seção sobre povos e pátrias, Nietzsche afirma que a França é a matriz cultural mais refinada da Europa com sua elevada escola do gosto. Acrescenta ainda que três motivos fazem os franceses ser uma resistência à germanização e empobrecimento do gosto. Em primeiro lugar, cita a dedicação à forma, que faz cultivar uma música de câmara da literatura. A seguir, sua antiga e complexa cultura dos moralistas. Por fim, e mais importante, sua síntese entre o norte e o sul.

Ainda na França de hoje, de antemão se compreende e se acolhe esses homens mais raros, raramente satisfeitos, demasiado amplos para satisfazer-se com alguma patriotice, que sabem amar no Norte o Sul e no Sul o Norte - esses mediterrâneos natos, os “bons europeus” - foi para eles a música de Bizet, o último gênio a vislumbrar uma nova beleza e sedução - a descobrir um pedaço do Sul na música (JGB/BM 254, KSA 5.200, tradução de PCS).

Se Nietzsche considera Bizet possuidor desses atributos que elogia nos franceses, chama a atenção que ele havia dito no início do aforismo que esses franceses deveriam estar ocultos, e que seria preciso saber encontrá-los. No parágrafo seguinte, o 255, quando elenca os motivos dessa música do Sul, são temas que lembram em muito aqueles que emergem com força da música de Debussy, como uma libertação do norte e da influência germânica; que não se acanhe diante do mar azul e voluptuoso, que seja o prelúdio de uma música mais poderosa e que se afirme face aos fulvos pontes do deserto.

Todas essas características vamos encontrar na música de Debussy, que, além de buscar uma linguagem antigermânica, tem entre suas composições mais célebres o Prélude à l’après-midi d’um faune, baseado no poema de Mallarmé, La mer, Iberia, e todo um vasto repertório que expressa essa cultura francesa, ibérica, e do norte da África, que Nietzsche havia elogiado em Bizet. Mais uma vez, os aspectos que serão postos em evidência na ópera Carmen, tais como a malícia, o refinamento, o fatalismo, mas, sobretudo, sua condição de permanecer popular, podem ser encontrados também elogio que Debussy faz à música espanhola. Em 1913, após lamentar que na França só se lembra da música espanhola por causa da exposição de 1889, ele louva uma série de compositores da Espanha que são seus contemporâneos, como Isaac Albeniz e J. Turina, pertencentes à grande escola que remonta a Escobedo e Morales. Entre os aspectos que deles irá destacar, está igualmente o caráter popular de suas composições.

Como quer que seja, da parte de Debussy, umas das poucas referências diretas a Nietzsche se dá em torno do nome de Richard Strauss. Em 23 de janeiro de 1899, o escritor Pierre Louÿs, autor de As Canções de Bilitis, envia-lhe uma carta, dando notícias da programação de um concerto em Lamoureux, no qual seria apresentada pela primeira vez na França Assim falava Zaratustra, de Richard Strauss. Após questionar se Debussy estava presente naquele dia, faz um breve comentário sobre a obra:

Temos ali alguma coisa que faz lembrar uma fantasia de Indy sobre uma ópera de Mayerbeer, e pesa milhares de toneladas; o autor compôs nele um pequeno programa que eu lhe recomendo como literatura e filosofia. É Nietzsche interpretado por Charles Grandmougin” (Debussy, 2005DEBUSSY, Claude. Correspondance (1872-1918). Paris: Gallimard, 2005. , p. 451).

O comentário de Debussy sobre o Zaratustra de Strauss viria quatro anos mais tarde, em 1903, na segunda vez em que o compositor alemão se apresentou na França. Em linhas gerais, ele elogia os poemas sinfônicos, afirmando não haver mais ali a rigorosa arquitetura musical como em Bach ou Beethoven, mas identifica uma certa influência de Berlioz por meio de um desenvolvimento de cores rítmicas e uma superposição de tonalidades mais perdidamente afastadas. No fim, conclui acentuando os traços fisionômicos de Strauss:

Sua testa até que é a de um músico, mas os olhos e os gestos são de um “além do homem” (Sur-Homme), como dizia aquele que deve ser seu professor de energia: Nietzsche...Deve ter aprendido dele também o belo desdém pelos sentimentalismos tolos e os objetivos, que a música não continuasse sempiternamente a iluminar as noites, bem ou mal que substituísse o sol” (Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 122/23, tradução modificada).

Fiel a seu estilo sempre irônico e zombeteiro,20 20 O uso do termo zombeteiro (spöttisch) é proposital e ecoa o trecho de Zaratustra usado como epígrafe da terceira dissertação da Genealogia da moral. Em um outro trecho raro em que Debussy cita Nietzsche, é também um trecho do mesmo livro, e também como epígrafe de um artigo: “Todas as coisas boas riem” (Debussy, 1989, p. 209). Embora não exploramos neste texto, seria profícua uma análise comparativa entre os estilos de Nietzsche e Debussy, os quais, a nosso ver, também guardam muitas semelhanças. Ademais, parece bastante apropriada a caracterização que André Suarès faz do compositor como um cínico, porque praticou um “humor voluptuoso” e uma “forma mais refinada de dissimulação” (1936, p. 155-156). Por fim, Déirdre Donnelon afirma que os contemporâneos do compositor tinham a mesma reação em relação à sua música, ou seja, uns julgavam que tanto quanto os aspectos inovadores da composição, a linguagem de seus escritos só poderiam ser transgressores e combativos, razão pela qual quem não gostava de sua música se escandalizava com seus textos por seus aspectos incomuns (Déirdre Donnelon, 2003, p. 43-44). mas sem perder a beleza pictórica, Debussy parece, com essas poucas palavras, fazer justiça à visão de Nietzsche sobre a música, o que revela algum conhecimento da obra do filósofo21 21 Apesar da afirmação de Tekla Babyak de que há várias referências a Nietzsche nos escritos de Debussy, há apenas três em Monsieur Croche, que reúne sua atividade como crítico, além de várias entrevistas. Destas, a autora cita duas passagens. Contudo, mais importante é o fato de ela mencionar o livro de memórias de Rene Peter, o qual relata ter lido junto com Debussy, em 1892, O caso Wagner, e que essa leitura teria causado forte impressão no compositor francês (Tekla B. Babyak, 2014, p. 161). . Para nós que estamos ao Sul e para quem a música sempre foi um elemento importante de reconhecimento e afirmação, é interessante ver como Nietzsche e Debussy elaboraram uma concepção estética muito semelhante, que apontava para a necessidade de superação da tirania da escala tonal, pelo esgotamento da tradição alemã, e para a necessidade da criação de uma estética musical que, apelando às tradições das culturas do Sul, enriquecesse a própria estética musical. Em grande medida, é o que tem acontecido desde o fim do Século XIX, e certamente graças a eles temos encontrado nosso lugar ao sol.

Referências

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  • SUARÈS, André. Debussy Paris: Émile-Paul, 1936.
  • REINACH, Théodore. A música grega Trad. de Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2011.
  • 1
    “A arte grega da época clássica é um rio onde se misturam correntes de proveniências muito diversas: umas fornecidas pelas variadas raças de que se compunha a nação helênica; outras, ainda, pelos povos asiáticos que entraram na órbita de sua cultura. Em nenhum lugar esse caráter sintético da arte grega melhor se identifica do que no sistema dos modos musicais” (Théodore Reinach, 2011REINACH, Théodore. A música grega. Trad. de Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2011. , p. 50).
  • 2
    Baudelaire, 2013BAUDELAIRE, Charles. Richard Wagner e Tannhäuser em Paris. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. . Para a relação entre Wagner e a França, e sua posição revolucionária e nacionalista, desde os eventos de 1848, passando pela leitura que Baudelaire faz do compositor, assim como sua aceitação do projeto político wagneriano posto em ação em Bayreuth, ver Lacoue-Labarthe, 2013LACOUE-LABARTHE, Philippe. Musica Ficta (Figuras de Wagner). Trad. de Eduardo Jorge de Oliveira e Marcelo Jacques de Moraes. Belo Horizonte: Relicário, 2013. , p. 69 ss.
  • 3
    Cf. Vladimir Jankélévicth, 1947 e 2019JANKÉLÉVICTH, Vladimir. Debussy et le mystère de l'instant. Paris: Plon, 2019.; Julian Johnson, 2020JOHNSON, Julian. After Debussy. Music, languages, and the margins of philosophy. Nova Iorque. Oxford University Press, 2020. .
  • 4
    Em 1912, Raphael Cor (1912COR, Raphaël. Essais sur la sensibilite contemporaine: Nietzsche, de M. Bergson à M. Bazaillas, M. Claude Debussy. Paris: Lux Ardens, 1912. ) publicou um conjunto de ensaios intitulado Ensaios sobre sensibilidade contemporânea, entre os quais havia um sobre Nietzsche e outro sobre Debussy, mas sem traçar paralelos entre os dois; o compositor francês é aproximado a Bergson, numa comparação que tem sido frequente, a tal ponto que Jankélévicth questiona esse suposto aspecto bergsoniano da música de Debussy. A seu ver, esse título pode ser mais apropriadamente dado a Fauré (Jankélévicth, 2019JANKÉLÉVICTH, Vladimir. Debussy et le mystère de l'instant. Paris: Plon, 2019., p. 49). Na pesquisa que tenho desenvolvido, só recentemente encontrei um estudo que abordasse uma aproximação entre Nietzsche e Debussy, justamente a partir da relação com Wagner. Trata-se da tese de Tekla B. Babyak (2014BABYAK, Tekla B. Nietzsche, Debussy, and the Shadow of Wagner. A Dissertation Presented to the Faculty of the Graduate School of Cornell University in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of Doctor of Philosophy, 2014. ), na qual ela defende que três elementos da música de Debussy, nacionalismo, exotismo e anti-wagnerismo, buscaram em Nietzsche as ferramentas para sua execução.
  • 5
    Assim falava Zaratustra foi transformado em poema sinfônico por Richard Strauss, enquanto Mahler usou passagens do livro em sua terceira sinfonia; inspirado nessa mesma obra, o compositor inglês Delius compôs sua Mass of life. Na verdade, ele compôs inicialmente um ciclo chamado Mitternachts-Lied Zarathustra’s que depois foi incorporado à Missa. Béla Bartok era um leitor atento de Nietzsche e se disse influenciado por suas ideias (Cf. Lauro Machado Coelho, 2010, p. 72; D. Lille, 1968LILLE, D. “Bartók, lecteur de Nietzsche et de la Rochefoucauld”. In: Studia Musicologica Academiae Scientiarum Hungaricae. T. 10, Fasc. 3/4,1968., p. 209- 228). O compositor russo Shnittke apresentou peças musicais do filósofo em que atuou como regente, embora não tenha registros (Marco Aurélio Scarpinella Bueno, 2007, p. 223). O compositor dinamarquês Vagn Gylding Holmboe compôs um Requiem for Nietzsche para tenor, barítono, coro e orquestra. Recentemente, o compositor alemão Wolfgang Rihm compôs uma fantasia operística Dionysos - Cenas e ditirambos a partir de textos de Friedrich Nietzsche” para solistas, coro e orquestra (Cf. Ivanka Stoianova, 2015STOIANOVA, Ivanka. “Wolfgang RIHM - Dionysos: uma escrita dos espaços interiores”. In. ARJ. Brasil, V. 2, n. 1, p. 36 - 53. Jan-jun. 2015. ).
  • 6
    André Suarès considera Debussy o grande compositor da época simbolista, e essa era sua ligação artístico-cultural e intelectual: “Disseram-me que ele [Debussy] lia pouco. Ele, um dos menos incultos entre os músicos, cultivando apenas seu parque e suas flores musicais, nem a poesia de outros tempos, nem a filosofia, nem o pensamento religioso o ocupam (André Suarès, 1936SUARÈS, André. Debussy. Paris: Émile-Paul, 1936. , p. 156).
  • 7
    Edward Lockspeicer considera que Debussy foi precedido por alguns nomes no que toca a revolta contra o sistema tonal, como Liszt, Mussorgsky, Grieg etc. Todavia, o compositor francês foi primeiro a formular de modo consciente essa revolta. Nesse sentido, cita conversas entre Debussy e Guiraud, seu antigo professor, nas quais o este ouviu seu ex-aluno questionar vários elementos teóricos, como o fato de as enarmonias poderem ser usadas livremente, embora seja necessário distinguir entre o Sol bemol e o Fá sustenido; ou que as tonalidades relativas eram absurdas, pois a música não é maior nem menor, pois são ambas ao mesmo tempo. Apesar disso, Edward Lockspeicer conclui que Debussy foi um romântico tardio e o iniciador experimental de uma nova era, mas nunca um músico intelectual (Edward Lockspeiser, 1936LOCKSPEISER, Edward. Debussy: The Master Musicians. 1ª. Ed. Londres: J. M. Dent & Sons, 1936., p. 226-227). Ainda sobre a produção de Debussy como crítico, Cf. Eric Frederick Jensen, 2014JENSEN, Eric Frederick. Debussy. 1ª. Ed. Oxford. Oxford University Press, 2014., (cap. 15, pp. 242-253);
  • 8
    A esse respeito, para além de toda a discussão de O nascimento de tragédia, vale conferir dois textos importantes da fase intermediária e tardia da obra de Nietzsche. O parágrafo 171 de Opiniões e sentenças diversas (VM/OS 171, KSA 2.450) e os aforismos 254-256 de Além do bem e do malNIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. (JGB/BM 254, 256 KSA 5.198 e 5.201).
  • 9
    Nesse contexto da importância de Nietzsche para os compositores, como afirmamos antes, e sua ligação com povos e pátrias, vale mencionar o livro de Rebecca Mitchell, Nietzsche’s Orphans. Music, Metaphysics, and the Twilight of the Russian Empire. A autora analisa a recepção que músicos e filósofos russos fizeram da obra de Nietzsche, em especial o Nascimento da tragédia, uma relação marcada pela proximidade e afastamento, uma vez que concordavam com o argumento nietzschiano da decadência da música, embora discordassem de que a música de Wagner fosse a solução. Se o crepúsculo foi bem visto pelo filósofo, a aurora não poderia ser vislumbrada com a música alemã, mas com a russa (Cf. Rebecca Mitchell, 2015MITCHELL, Rebecca. Nietzsche’s Orphans. Nova Haven & Londres. Yale University Press, 2015. ).
  • 10
    Mesmo as mudanças por que passa a filosofia de Nietzsche, no caso específico de Wagner e da música, trazem a marca dessa perspectiva. Se o elogio inicial a Wagner se associava à metafísica alemã de Kant e Schopenhauer, as críticas que fará ao compositor dialogam com a psicologia francesa, justamente com a noção de decadência, tomada de empréstimo das análises que Paul Bourget fez de Baudelaire. Todo o contexto, portanto, remete à relação entre Alemanha e França, e dos nomes que orbitaram em torno de Wagner. Em Ecce homoNIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1999., ao expor sua perspicácia para as questões psicológicas, Nietzsche se volta para a França e para o caso Wagner: “Como artista não se tem outra pátria na Europa além de Paris: a délicatesse nos cinco sentidos artísticos que a arte de Wagner pressupõe, os dedos para as nuances, a morbidez psicológica, encontram-se somente em Paris (EH/EH, Por que sou tão inteligente 5, KSA, 6.288, tradução de Paulo César de Souza [PCS]). Para uma exposição da décadence, cf. também Müller-Lauter, 1999MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica. A propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner”. In: Cadernos Nietzsche 6. São Paulo, Discurso Editorial, 1999, p. 11-30..
  • 11
    Para uma discussão sobre os posicionamentos de Nietzsche e de Debussy sobre o tonalismo, Cf.: Márcio Lima, 2017LIMA, M.J. S. “Canção popular e música dionisíaca em Nietzsche”. In: Cadernos Nietzsche. Guarulhos/Porto Seguro, v. 38, Jan-Abril, 2017, p. 58-83. e 2018LIMA, M.J. S. “Nietzsche e Villa-Lobos: da música dionisíaca à canção folclórica”. In: Revista Discurso, São Paulo, v. 48, 2018, p. 155-175.; Boyd Pomeroy, 2003POMEROY, Boyd. “Debussy´s tonality: a formal perspective”. In: The Cambridge Companion to Debussy. 1ª. Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 156-178..
  • 12
    Para uma discussão sobre Nietzsche e Wagner, ver Marton, 2015MARTON, Scarlett. “Nietzsche contre Wagner, Nietzsche contre Nietzsche. Une analyse de deux antipodes”. In: Denat, Celine; Wotling, Patrick. (Org.). Nietzsche. Les textes sur Wagner. Reims: Épure, 2015, p. 35-50..
  • 13
    Em seu erudito estudo da música grega, Théodore Reinach mostra que o sistema de transposição utilizado pelos teóricos tardios se baseou em confusões e erros acerca dos modos gregos: “a ordem verdadeira dos modos gregos postos na escala natural é exatamente o inverso daquele dos modos eclesiásticos. Essa confusão, fonte de muitas outras, perpetuou-se na música da igreja até nossos dias e muito contribuiu para dar à teoria dos modos e dos tons gregos uma reputação de obscuridade que ela está longe de merecer (Théodore Reinach, 2011REINACH, Théodore. A música grega. Trad. de Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2011. , p.74-75).
  • 14
    Carlotta Santini nos lembra que os intérpretes de Nietzsche têm reconhecido a influência de Hanslick sobre o filósofo, inclusive nos pontos de discordância que desde os anos 1870 ele manifestava com Wagner. O ponto central seria a confusão entre música de efeitos e música de afetos. Aquela buscava atingir o público de acordo com a ocasião, como num simpósio, para glorificar um vencedor etc., ao passo que esta, incluindo Wagner, busca não um efeito ético, mas uma emoção, uma finalidade patética (Santini, 2016SANTINI, Carlotta. “Gegen eine Theorie der Musik als ‘Sprache des Gefühles’”. In. GEORG, Jutta & RESCHKE, Renate. Nietzsche und Wagner Perspektiven ihrer Auseinandersetzung. Berlin: De Gruyter, 2016, p. 278-288., p. 279 e s.).
  • 15
    Jean Barraqué afirma que mais do que a experiência com a música russa, especialmente os concertos dirigidos por Rimsky, foram as tradições do extremo-oriente que impressionaram Debussy. A seu ver, o compositor francês foi o primeiro músico moderno que se deixou seduzir pela magia do exotismo, sem jamais abandonar esse seu entusiasmo, a ponto de “ocidentalizar” as sonoridades ouvidas na Exposição, e de afirmar que a o contraponto da música javanesa faz os de Palestrina parecerem jogos infantis (Jean Barraqué, 1994BARRAQUÉ, Jean. Debussy. Paris: Seuil, 1994. , p. 94-96; Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 198).
  • 16
    Cf. Lauro Machado Coelho, 2010, p. 9.
  • 17
    A esse respeito, Otto Maria Carpeaux afirma que Debussy é um músico único, um criador cuja linguagem artística não tem qualquer paralelo antes e não terá nenhum continuador, um paradoxo, haja vista sua influência em várias partes, desde a Europa Oriental até as Américas (Carpeaux, 1968, p. 271). De certa forma, Julian Johnson oferece uma resposta diferente para as duas questões. Para tanto, lembra uma série de estudos que apontam as influências de outros compositores, o que indicaria que a linguagem musical de Debussy é “essencialmente tradicional”, no sentido de que não são os elementos em si que são inovadores, mas as maneiras como eles são combinados em uma nova sintaxe; por outro lado, se seus imitadores foram logo esquecidos, é difícil conceber grande parte da música dos últimos cem anos sem Debussy (Julian Johnson, 2020JOHNSON, Julian. After Debussy. Music, languages, and the margins of philosophy. Nova Iorque. Oxford University Press, 2020. , p. 9-11).
  • 18
    Pierre Boulez (1958BOULEZ, Pierre (1958). “Debussy”. In. Encyclopédie Fasquelle. Paris: Fasquelle, 1958, p. 629-641.) considera Prélude à l’après-midi d’un Faune a primeira obra da música moderna.
  • 19
    A esse propósito, ver François Lesure, 1992LESURE, François. Claude Debussy avant Pelléas ou les annéss symbolistes. Paris: Klincksieck, 1992. , p 214ss.
  • 20
    O uso do termo zombeteiro (spöttisch) é proposital e ecoa o trecho de Zaratustra usado como epígrafe da terceira dissertação da Genealogia da moral. Em um outro trecho raro em que Debussy cita Nietzsche, é também um trecho do mesmo livro, e também como epígrafe de um artigo: “Todas as coisas boas riem” (Debussy, 1989DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios. Trad. de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989 , p. 209). Embora não exploramos neste texto, seria profícua uma análise comparativa entre os estilos de Nietzsche e Debussy, os quais, a nosso ver, também guardam muitas semelhanças. Ademais, parece bastante apropriada a caracterização que André Suarès faz do compositor como um cínico, porque praticou um “humor voluptuoso” e uma “forma mais refinada de dissimulação” (1936LOCKSPEISER, Edward. Debussy: The Master Musicians. 1ª. Ed. Londres: J. M. Dent & Sons, 1936., p. 155-156). Por fim, Déirdre Donnelon afirma que os contemporâneos do compositor tinham a mesma reação em relação à sua música, ou seja, uns julgavam que tanto quanto os aspectos inovadores da composição, a linguagem de seus escritos só poderiam ser transgressores e combativos, razão pela qual quem não gostava de sua música se escandalizava com seus textos por seus aspectos incomuns (Déirdre Donnelon, 2003DONNELLON, Déirdre. “Debussy as music and critic”. In. TREZISE, Simon (ed). The Cambridge Companion to Debussy. 1ª. Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 43-44).
  • 21
    Apesar da afirmação de Tekla Babyak de que há várias referências a Nietzsche nos escritos de Debussy, há apenas três em Monsieur Croche, que reúne sua atividade como crítico, além de várias entrevistas. Destas, a autora cita duas passagens. Contudo, mais importante é o fato de ela mencionar o livro de memórias de Rene Peter, o qual relata ter lido junto com Debussy, em 1892, O caso Wagner, e que essa leitura teria causado forte impressão no compositor francês (Tekla B. Babyak, 2014BABYAK, Tekla B. Nietzsche, Debussy, and the Shadow of Wagner. A Dissertation Presented to the Faculty of the Graduate School of Cornell University in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of Doctor of Philosophy, 2014. , p. 161).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2020
  • Aceito
    12 Dez 2020
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