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Cultura e economia em Nietzsche* * Tradução de Davi Maranhão De Conti.

Culture and Economy in Nietzsche

Resumo

Discuto a possibilidade de superar a dominação por meio de uma diferenciação entre duas distintas abordagens econômicas da animalidade do ser humano, as quais correspondem aos modos contrastantes de politizar a vida na cultura e na civilização. Ao passo que a economia da civilização representa um tratamento exploratório da animalidade, cujo objetivo é a autopreservação do grupo ao preço de normalizar o indivíduo, a economia da cultura denota uma abordagem não exploratória da animalidade, dirigida para a pluralização de formas de vida inerentemente singulares. Uma análise dessas economias revela que a cultura não pode ser alcançada por meio de uma política de dominação e exploração.

Palavras-chave
cultura; civilização; política; economia; escravidão; animalidade

Abstract

I discuss the possibility of overcoming domination by differentiating between two different economical approaches to the animality of the human being which correspond to the contrasting ways of politicizing life in culture and in civilization. While the economy of cilization representes an exploitative approach to animality, whose aims is the self-preservation of the group at the cost of normalizing the individual, the economy of culture stands for a nonexploitative approach to animality directed towards the pluralization of inherently singular forms of life. An analysis of these economies shows that culture cannot be attained through a politics of domination and exploitation.

Keywords
culture; civilization; politics; economy; slavery; animality

Uma das narrativas de Nietzsche acerca do tornar-se sobre-humano toma a forma de uma antevisão de uma futura “aristocracia superior” (Nachlass/FP 10 [17], KSA 12.462; 9 [153], KSA 12.424). Essa antevisão foi frequentemente interpretada como se Nietzsche oferecesse um programa político que busca a implementação de uma “cultura superior” por meio de uma política autoritária de dominação e exploração1 1 Ansell-Pearson, por exemplo, identifica o aristocracismo de Nietzsche a um “programa político de uma nova legislação aristocrática”, em que “o objetivo é ganhar controle sobre as forças da história e produzir, por meio de uma conjunção de legislação filosófica e poder político (‘grande política’), uma nova humanidade” (Ansell-Pearson, 1994, pp. 42-43 e 148). . A opinião de que uma política de dominação e exploração é um meio para alcançar uma “cultura superior” pressupõe que a política, como um meio “inferior” de cultura, pode ser identificada com a cultura. A partir dessa perspectiva, ambas, política e cultura, perseguem o mesmo objetivo - uma elevação enobrecedora do ser humano - e ambas buscam alcançá-lo pelo mesmo meio: autoridade, hierarquia e escravidão; contudo, por identificar, de maneira falsa, cultura e política no pensamento de Nietzsche, essa interpretação falha em reconhecer a diferença crucial entre cultura e civilização que enfatizo ao longo da obra: nomeadamente, que a política é não apenas um meio “inferior” de cultura, como também não pode tratar adequadamente as questões culturais (Nachlass/FP:19 [11], KSA 13.546)2 2 Acerca da prioridade da cultura sobre a política, veja Tracy B. Strong,1975, pp. 94-95 e 201-202). .

Considero que em Nietzsche a distinção entre cultura e civilização é mais fundamental que a distinção entre cultura e política. A distinção entre cultura e civilização revela que há dois modos diferentes, antagônicos em que a vida animal humana pode ser politizada. Por um lado, há a política da civilização, por outro, a política da cultura3 3 Conway delineia uma útil distinção entre o que ele denomina “macropolítico (ou institucional) e micropolítico (ou infra-institucional) - encarnações de seu [Nietzsche] perfeccionismo” CONWAY, 1997, p.48. Deixando a questão do perfeccionismo de Nietzsche de lado, pode-se dizer que a política de civilização, como uso o termo, é sempre, primariamente, uma forma de “macropolítica” interessada na instituição de formas sociais e políticas, enquanto a política da cultura, como uso o termo, é, primariamente, uma forma de “micropolítica” que opera fora, abaixo e, mais importante, contra o quadro institucional da civilização. A única desvantagem que percebo no termo “micropolítica” ´é que ele não captura o entendimento nietzschiano da política da cultura como uma “grande política”. “Grande política” é micropolítica no sentido de que busca efetuar uma transformação de instituições. . Enquanto a política da civilização institui formas de organização social e política que requerem a disciplinação e domesticação da animalidade do ser humano, a política da cultura proporciona uma reconceituação da relação entre vida e política que emancipa a vida de ser o objeto de dominação política. O objetivo da política da civilização é produzir uma sociedade normalizada por meio da prática de dominação e exploração. Em contraste, o objetivo da política da cultura é cultivar uma sociedade aristocrática mediante o reavivamento de uma concepção antagonística de ação pública (inspirada pela cidade-estado grega e a cidade-estado da Renascença) que promove a responsabilidade sobre si4 4 Para uma discussão da perspectiva de Nietzsche de uma futura sociedade aristocrática, veja meu artigo 2008. . Essas duas maneiras de politizar a vida pressupõem o que se pode denominar duas diferentes economias de vida. Neste texto, argumento que a economia da civilização requer uma relação exploratória com a animalidade, em que o objetivo é extrair máxima utilidade do animal humano. A economia da civilização visa preservar o grupo mediante uma acumulação de recursos, a despeito do fato de que o custo é a escravização do indivíduo. Em contraste, a economia da cultura busca superar essa forma de escravização. A economia da cultura requer um gasto da comunidade para o bem da pluralidade individual. Os gastos da cultura são direcionados para o estabelecimento de formas de vida social e política que são baseadas em uma relação livre com o outro, para além de todo cálculo.

Meu argumento baseia-se em uma investigação da controversa afirmação de Nietzsche de que a realização de uma cultura superior “necessita da escravidão em algum sentido” (JGB/BM 257, KSA 5.205). De modo a entender a relação entre cultura e escravidão, começarei por distinguir os vários usos do termo “escravidão” que são encontrados na obra de Nietzsche. Nietzsche utiliza o termo, em primeiro lugar, para definir uma condição da vida humana. A vida humana é escravizadora, na medida em que não é autossuficiente, mas sujeita às necessidades da vida, como a autopreservação. Em um segundo sentido, o termo “escravidão” descreve o caráter da vida humana como ele se revela em sociedade. Como discuti em outro lugar5 5 Cf.Vanessa Lemm, 2009, cap. 2. , o animal humano não pôde manter a saúde do animal singular e esquecidiço e foi levado a buscar a companhia de outros de modo a sobreviver. A vida em sociedade é experienciada como escravizante precisamente porque é um lembrete da falta de autossuficiência do animal humano. Uma vez que o projeto da civilização busca resolver o problema da necessidade, a escravidão constitui um aspecto da civilização. A cultura, pelo contrário, toma o problema da escravidão na civilização com o objetivo de superá-lo e mover-se em direção a formas de sociabilidade que são experienciadas como livres, como um luxo, ao invés de como uma obrigação ou uma necessidade. Em seguida, forneço uma análise da noção nietzschiana de economia de vida por meio de uma leitura de exemplos de seus trabalhos inaugurais, intermediários e tardios. Esses exemplos sustentam o argumento de que o domínio da “cultura superior” é incompatível com uma política de dominação e exploração.

Escravidão em um sentido ou outro

Quando Nietzsche contempla “a necessidade de uma nova escravidão”, uma “nova espécie de escravidão” (FW/GC 377, KSA 3.564) para promover o cultivo do animal humano, insiste que esse cultivo diz respeito ao “inteiro bicho “homem”, a o homem” (JGB/BM 188, KSA 5.108)6 6 Em um texto anterior, Nietzsche já identifica “como uma verdade que soa cruel o fato de que a escravidão pertence à essência da cultura” (CV/CP, O estado grego, KSA 1.767). Na pólis grega, a relação entre escravidão e cultura toma a seguinte forma: “Cultura [Bildung], que é antes de mais nada uma verdadeira fome por arte, repousa sobre uma terrível premissa: mas isso se revela no nascente sentimento de vergonha. De modo a haver um amplo, profundo e fértil solo para o desenvolvimento da arte, a esmagadora maioria deve ser servilmente sujeitada às necessidades a serviço da minoria, para além da medida necessária para o indivíduo. Às suas expensas, por meio de seu trabalho extra, aquela classe privilegiada deve ser removida da luta pela sobrevivência, de maneira a produzir e satisfazer um novo mundo de necessidades” (CV/CP, O estado grego, KSA 1.766). O modelo grego de escravidão não é, contudo, um modelo para o “novo tipo de escravização” a que Nietzsche se refere quando explica sua noção de “aristocracia superior” do futuro (FW/GC 377, KSA 3.564). . Essa “nova espécie de escravidão”, que conduz ao devir de uma “cultura superior”, não deve ser confundida com a escravização de uma maioria para o bem de uma minoria. Nietzsche não sugere que alguns devam ser sujeitados à dominação e à exploração para o benefício de outros. Ao invés disso, conclui que o que é necessário para a elevação do animal humano é que o “inteiro bicho ‘homem’” seja sujeitado à disciplina moral da civilização. A disciplina moral da civilização consiste, aqui, em uma “escravização do indivíduo”, mas essa escravização é benéfica à preservação do indivíduo, na medida em que ela é um “meio para assegurar a duração de algo para além do indivíduo” (Nachlass/FP 2 [182], KSA 12.157). Nietzsche insiste que um tipo superior de ser humano é possível “somente pela submissão do inferior” (Nachlass/FP 2 [76], KSA 12.96). Sugiro que, nessa citação, “superior” e “inferior” referem-se a diferentes estágios no desenvolvimento da vida humana. Ao passo que “inferior” designa o processo de civilização, “superior” designa o processo de cultivo. A questão é se o “inferior” (civilização) pode tornar-se um meio para a elevação do “superior” (cultura). Em outras palavras, a questão da cultura é “como se pode sacrificar o desenvolvimento [Entwicklung] da espécie humana para ajudar a trazer à existência uma espécie superior [Art] a ela?” (Nachlass/FP 7 [6], KSA 12.273) ou como a longa história de “desenvolvimento moral” do ser humano pode tornar-se um meio de cultivar um tipo mais elevado, mais livre de animal humano? A resposta de Nietzsche a essa questão é clara: apenas na medida em que invoca um contramovimento que leva a sua própria superação, a civilização (disciplina moral) torna-se significativa para a cultura, isto é, para o cultivo de um tipo mais elevado de ser humano (Nachlass/FP 5 [98], KSA 12.225).

Antes que a cultura tomasse para si essa questão, a escravidão já era uma realidade que definia de modo inerente o processo de civilização e socialização humana. Nietzsche entende esse processo como de crescente escravização, na medida em que os laços da sociedade (e do estado) são experienciados por um animal que é esquecidiço e solitário como restrições a sua liberdade7 7 “A tremenda máquina do estado subjuga o indivíduo... tudo que um ser humano faz a serviço do estado é contrário a sua natureza” (Nachlass/FP 11 [407], KSA 13.187). . Contanto que vivam em sociedades civilizadas, os seres humanos são sujeitados a algum tipo de escravidão, porque a escravidão define a vida em sociedade independentemente de ter tal sociedade orientação política liberal, socialista ou nacionalista. Nietzsche é particularmente crítico da hipocrisia de socialistas que prometem o impossível: uma “sociedade livre” (FW/GC 356, KSA 3.595), uma sociedade livre da escravidão. Ele também se distancia de sua fé em “uma comunidade como redentora” (JGB/BM 202, KSA 5.124). Em oposição aos socialistas (e cristãos), Nietzsche afirma que, em virtude de havermos nos tornado humanos na e por meio da socialização, não há mais a opção de vivermos em uma sociedade que não seja escravizadora8 8 Nietzsche é pessimista em relação ao problema da escravidão porque ele acredita que a exigência de providenciar as necessidades da vida não pode ser abolida (GT/NT 18, KSA 1.115). Ele, portanto, rejeita a ideia de uma emancipação final da necessidade em um futuro estado (comunista). Nesse sentido, Nietzsche antecipa a crítica arendtiana da concepção de Marx de liberdade como uma liberdade da necessidade. Como Nietzsche, Arendt questiona a possibilidade de uma emancipação final da necessidade e, ao invés disso, considera que liberdade genuína deve refletir uma superação da dominação. Veja Hannah Arendt, The Human Condition, 1958, pp.79-135. . Contudo, se a escravidão é inerente à vida em sociedade, a questão torna-se: em que sentido a “cultura superior” necessita da “escravidão em algum sentido”? (JGB/BM 257, KSA 5.205)

Para além da forma de escravidão inerente à civilização e à socialização, Nietzsche afirma que a escravidão define a vida humana em um nível existencial ainda mais profundo. A vida humana não é autossuficiente mas se mantém em necessidade de proteção e preservação. Essa necessidade é particularmente aguda quando a vida é ameaçada por “condições desfavoráveis”, ou, para usar termos econômicos, quando a vontade de potência possui poucas reservas (JGB/BM 262, KSA 5.214). O problema da necessidade é o problema da civilização par excellence, uma vez que a civilização luta continuamente contra a ameaça sempre latente de um estado de necessidade [Notzustand]:“ali [na comunidade] se acham, coexistindo e dependendo de si mesmos, homens que querem impor sua espécie, em geral porque têm de impor-se, ou correr o pavoroso risco de serem exterminados” (JGB/BM 262, KSA 5.214). O projeto da civilização enfrenta esse problema por meio de deliberações econômicas: “A vontade de acumular poder é especial para o fenômeno da vida, para a alimentação, para a procriação e para a herança” e pertence inerentemente à “sociedade, ao estado, ao costume e à autoridade” (Nachlass/FP 214 [121], KSA 13.300). Todavia, uma vez que, para Nietzsche, “todo ser vivo faz tudo que pode não apenas para preservar-se, mas para elevar-se” (Nachlass/FP 214 [121], KSA 13.300), quando o animal humano é sujeitado à necessidade de autopreservação, ele experimenta essa necessidade como uma restrição à sua vontade de potência. De uma perspectiva da vida como vontade de potência, a necessidade de autopreservação é escravizadora9 9 Pode-se perguntar se, em um nível ainda mais profundo, a escravidão não é uma expressão do fato de que a vida “é apenas um meio para algo, é a expressão de formas de crescimento de poder” (Nachlass/FP 9 [13], KSA 12.344). Se a vida como vontade de potência reflete uma lógica radical de meios e não fins, isto é, se tudo é um meio (significativo) para um outro meio e assim por diante, se tudo vive de todo restante, então, a escravidão, em um sentido extra-moral, como vontade de potência, pode ser interpretada como aquilo que vincula todas as formas de vida reciprocamente. . Viver buscando apenas autopreservação ou, em termos econômicos, buscando apenas sair do vermelho, é a mais degradante forma de vida, porque é a mais servil, a forma de vida menos livre. Nietzsche lamenta que isso “seja, contudo, o que todos nós fazemos na maior parte de nossas vidas” ( SE/Co. Ext. III, 5, KSA 1.375). Apesar de a vida humana ser, “em grande parte”, definida pela escravidão, pelo trabalho com vistas a compensar um déficit, a questão permanece se a vida como escravidão (como dívida) pode ser superada - não indefinidamente, porque isso é impossível, mas ao menos temporariamente. Os momentos históricos em que a cultura predomina sugerem que uma tal superação da escravidão (dívida) é possível. Quando a cultura atinge seu auge e se impõe, alcança-se a libertação da escravidão, se não indefinidamente, ao menos por um período limitado (JGB/BM 262, KSA 5.214).

Em Schopenhauer como Educador, Nietzsche afirma que uma “cultura superior” somente pode ser alcançada com base em uma transcendência da “luta pela existência”, isto é, da vida como autopreservação (SE/Co. Ext. III, 5, KSA 1.375). Ao longo do texto, ele associa a “luta pela existência” com a vida animal, e a consecução de uma cultura superior com uma vida “verdadeiramente humana” (SE/Co. Ext. III, 5, KSA 1.375). A conjunção de animalidade e autopreservação por um lado, e de verdadeira humanidade e cultura por outro levou muitos comentadores a assumirem que cultura em Nietzsche deve denotar uma superação da animalidade10 10 Para uma interpretação da cultura como uma transcendência da animalidade, veja Walter Kaufmann, 1974, p.152; e James Conant, 2001, pp. 224-25. . Argumento, pelo contrário, que essa referência à animalidade é uma referência específica à animalidade do ser humano civilizado, isto é, a um animal que é inerentemente definido pela sua luta pela autopreservação. Essa forma “bárbara” de animalidade, própria da civilização, deve ser superada de modo a alcançar a cultura, mas essa superação depende de um retorno da animalidade entendida como uma força plena de vida, que leva o ser humano para além de suas necessidades de autopreservação. Sob meu ponto de vista, a animalidade do ser humano civilizado, em Schopenhauer como Educador, tem importantes afinidades com o que Nietzsche posteriormente se refere como “demasiado humano”. Como discuto em outro texto11 11 Cf.Vanessa Lemm, 2009, cap. 1. , a cultura deve, portanto, ser entendida como uma superação do demasiado humano, ao invés de como uma superação do animal.

Ao longo de sua obra, Nietzsche usa imagens de fragmentação e completude para descrever as formações e transformações da vida animal humana em geral e do tipo superior (sobre-humano) em particular12 12 Em “Schopenhauer como Educador”, Nietzsche utiliza a metáfora de fragmentos de uma escultura que devem ser reunidos para que uma escultura completa do ser humano superior apareça (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 1.383). No Nachlass, ele utiliza a metáfora dos fragmentos de uma peça, de seres humanos como “prelúdios e ensaios” de um superior “sintético ser humano” (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520), assim como a metáfora dos fragmentos de uma imagem, possivelmente um quebra-cabeça, que precisa ser terminado, peça por peça, para que se torne visível a completa imagem do ser humano superior (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520). Finalmente, ele fala do ser humano como incompleto e fragmentário sob o domínio da civilização (sociedade) e como completo e inteiro sob o domínio da cultura (Nachlass/FP 27 [16], KSA 11.278; 10 [8], KSA 12.464). . Para mim, a imagem do ser humano como um fragmento relaciona-se com a questão de se a escravidão (incompletude), como algo que pertence inerentemente à vida humana, pode ser superada (completada). 13 13 Para uma ampla discussão da relação entre completude e economia em Nietzsche, veja Wolfgang Müller-Lauter, 1999, pp. 173-226. Em sua obra inicial, Nietzsche define cultura como a convicção de que:

em quase todos os lugares encontramos a natureza pressionando em direção ao ser humano e, repetidamente, falhando em alcançá-lo, obtendo sucesso, contudo, em produzir os mais maravilhosos começos, traços individuais e formas: de modo que os seres humanos entre os quais vivemos se assemelhem a um campo sobre o qual estão espalhados o mais preciosos fragmentos de escultura, onde tudo nos convida: venha, assista, complete, junte o que deve estar junto, nós temos um imensurável anseio por tornarmo-nos inteiros. (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 1.383).

A mesma ideia persiste em um texto de sua obra tardia:

A maior parte dos seres humanos representa pedaços e fragmentos [Einzelheiten] do ser humano: deve-se juntá-los para que apareça um ser humano completo. Épocas e pessoas, em sua totalidade, podem ser fragmentárias [Bruchstückhaftes] nesse sentido. É, talvez, parte da economia do desenvolvimento humano [Entwicklung] que o ser humano deva desenvolver-se pedaço por pedaço. (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520)

De acordo com Nietzsche, a fragmentação e a incompletude que caracterizam a vida humana são completadas, tornam-se inteiras, mediante o aparecimento de naturezas superiores (sobre-humanas):

ensino que há seres humanos superiores e inferiores e que, sob certas circunstâncias, um único ser humano pode justificar a existência de todo um milênio - isto é, um ser humano completo, pleno, valioso e grandioso em relação a incontáveis, incompletos e fragmentados seres humanos. (Nachlass/FP 27 [16], KSA 11.278).

Esses animais humanos excepcionais são miraculosos [Wundertiere] (JGB/BM, 269, KSA 5.222) porque, por meio deles, pode-se ver o quanto a vida humana se desenvolveu: eles são “marcos que indicam quão longe a humanidade pode avançar” (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520).

Alguns comentadores argumentam que a incompletude em Nietzsche define a forma de vida da maioria; que a incompletude da maioria é o preço que deve ser pago pela completude dos poucos, seletos, nobres seres humanos. Considero que a incompletude pertence inerentemente à civilização, ao passo que a completude pertence à cultura. Sob o domínio da civilização, a plena realização da vida animal humana é impossível. Seu desenvolvimento deve permanecer fragmentário e incompleto de modo a assegurar não apenas a preservação da vida animal humana como tal, mas também a de qualquer forma social ou política dada. A incompletude deve, nesse sentido, ser entendida como o objetivo de toda sociedade:

uma divisão de trabalho entre os afetados da sociedade: assim, indivíduos e classes produzem uma alma incompleta, mas, por esse motivo, mais útil, de modo que certos afetos permaneceram quase rudimentares em todo tipo de sociedade. (Nachlass/FP 10 [8], KSA 12.464)

A incompletude, como a escravidão, define a sociedade em geral e não é uma característica específica de uma sociedade aristocrática. Pelo contrário, uma sociedade aristocrática, como Nietzsche a imagina, é o tipo de sociedade que deseja superar a incompletude produzida pela socialização e pela civilização e promover a grandeza concebida como “amplitude [Umfänglichkeit] e multiplicidade [Vielfältigkeit] na totalidade [Ganzheit] por meio da diversidade [Vielen] dos seres humanos” (JGB/BM 212, KSA 5.145).

No fim, contudo, essa aparência [Erscheinen] de totalidade e completude é somente uma ilusão [Schein]. Não conhece nem início nem fim o devir da vida animal humana em geral, e o devir do tipo mais elevado (sobre-humano) em particular. Não é a reunião teleológica de fragmentos incompletos direcionados a um ponto de chegada que é alcançado quando o todo parece estar completo. Ao contrário, o devir de um tipo mais elevado (sobre-humano), como o devir da vida animal humana, é uma reunião sem limites de fragmentos que não podem ser completados, que não podem devir um todo14 14 Nietzsche distingue sua noção de elevação, avanço e devir animal humano da moderna ideia de progresso: “A humanidade não representa um desenvolvimento para melhor ou mais forte ou mais elevado, do modo como hoje se acredita. O ‘progresso’ é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia errada. O europeu de hoje permanece, em seu valor, muito abaixo do europeu da Renascença; mais desenvolvimento não significa absolutamente, por alguma necessidade, elevação, aumento, fortalecimento” (AC/AC 4, KSA 6.171). Acerca da diferença entre devir e evolução, veja também Alan Schrift, 2001, pp. 47-62. . Da perspectiva da vida e do devir, a cultura nunca é um verdadeiro devir um todo, mas, sempre, somente um “imensurável anseio de tornar-se inteiro” (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 3.183). A cultura vê, nesse anseio pela completude, um desejo que não deve ser consumado, pois ele estimula a autossuperação do humano. Consequentemente, parece que, no fim, a vida animal humana, quer sob o domínio da civilização, quer sob domínio da cultura, não pode completar-se ou tornar-se um todo. Ao invés disso, ela deve permanecer sempre fragmentária e incompleta. Resta, entretanto, uma significativa diferença entre a incompletude da cultura e aquela da civilização. Enquanto a civilização percebe, na incompletude do ser humano, reduções e rebaixamentos de valor instrumental para a preservação do grupo, a cultura percebe, na incompletude do ser humano, a produção dos “mais maravilhosos começos” e dos “mais preciosos fragmentos”, os quais são sinais de sua pluralidade inerente [Vielartig] (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 1.383).

A Economia da Vida

Exemplos de diferentes fases de Nietzsche como autor revelam que ele formula em termos econômicos a questão de como superar a escravidão. Em Schopenhauer como Educador, essa questão toma a forma de uma narrativa sobre a economia da natureza15 15 Sob minha perspectiva, Nietzsche não inventa uma grande narrativa da economia da vida/natureza para justificar, legitimar e santificar uma concepção de “cultura superior” ou a política autoritária de dominação necessária para alcançá-la. Sua narrativa acerca da cultura como um problema econômico persiste ao longo de sua obra e continuamente reaparece em diferentes formas. Isso indica que sua concepção da economia da vida não deve ser pensada como algo exterior a sua concepção de cultura e política, como algo acrescentado para justificar uma suposta política de dominação, mas, antes, como uma parte constitutiva de sua concepção de cultura e de política. . Nietzsche afirma que a natureza não é econômica e calculadora, mas inerentemente pródiga e extravagante: “A Natureza é uma péssima economista: seu gasto é muito maior que o rendimento que ela busca; a despeito de toda sua riqueza, ela está fadada a arruinar-se mais cedo ou mais tarde” (SE/ Co. Ext. III, 7, KSA 1.404). O problema da natureza é que ela gostaria de ser generosa e caridosa, uma vez que “a natureza quer sempre ser de utilidade geral” (SE/ Co. Ext. III, 7, KSA 1.404), mas ela não sabe como empregar suas forças de maneira econômica, de modo a produzir os melhores e mais adequados meios e instrumentos para o bem-estar de todos e de tudo16 16 Veja, em comparação, “Economia da bondade. - A bondade e o amor, as ervas e forças mais salutares no trato com seres humanos, são achados tão precioso que bem desejaríamos que se procedesse o mais economicamente possível na aplicação desses meios balsâmicos: mas isto é impossível. A economia da bondade é o sonho dos mais arrojados utopistas” (MA I/ HH I, 48, KSA 2.69). . Em outras palavras, a natureza gostaria de ser igualitária, mas ela não o é. Sua incapacidade de dar igualmente para todos é o que causa sua tristeza e melancolia (SE/ Co. Ext. III, 7, KSA 1.404). Nietzsche acredita que a única maneira de redimir a natureza e de compensar sua “fraqueza” é promover a pluralização da singularidade por meio da cultura.

A cultura almeja o cultivo do gênio e, portanto, privilegia o indivíduo singular em relação ao grupo. O que caracteriza o gênio da cultura, como discutido anteriormente, é que se gasta e se desperdiça a si mesmo. Distribui-se a todos, quando a natureza falha em ser generosa e caridosa com todos. A meta geral da cultura é: “adquirir poder [Macht] de modo a ajudar a evolução da physis e ser, por um momento, o corretor de suas tolices [Thorheiten] e inépcias [Ungeschicklichkeiten]. Primeiramente, apenas para si, para ter certeza; mas, por meio de si, para todos, no final”. (SE/Co. Ext. III, 3, KSA 1.350)

Nietzsche detecta essa estratégia na própria natureza, em particular na vida das plantas e dos animais. A natureza, de acordo com essa perspectiva, é indiferente ao indivíduo e sempre se esforça apenas pela saúde, pela vida e pelo futuro do todo. A natureza produz seus exemplos mais elevados para redimir-se de sua incapacidade de dar igualmente a todos. A geração de seus exemplos mais elevados é um meio de superar sua própria limitação econômica e poder levar toda a natureza para além de si mesma (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 1.383). Nietzsche sugere adotar essa estratégia e investir no cultivo da singularidade como um meio de superar a desigualdade encontrada na natureza.

Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche desenvolve esse problema econômico por meio da distinção entre uma economia da civilização, orientada para a conservação, e uma economia da cultura, orientada para o gasto irrestrito17 17 A distinção de Nietzsche entre economia da civilização e economia da cultura claramente influenciou a distinção de Bataille entre as atividades produtivas e improdutivas dos seres humanos. Bataille argumenta que “a atividade humana não é inteiramente redutível a processos de produção e conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira parte redutível é representada pelo uso do mínimo necessário para a conservação da vida e a continuação da atividade produtiva dos indivíduos em uma dada sociedade; é, portanto, uma questão simplesmente da condição fundamental da atividade produtiva. A segunda parte é representada pelos assim denominados gastos improdutivos: luxo, luto, guerra, cultos, construção de monumentos suntuosos, jogos, espetáculos, artes, atividades sexuais perversas (i.e., apartadas de finalidade genital) - tudo isso representa atividades que, ao menos em circunstâncias primitivas, não têm fim para além de si mesmas.” Bataille, 1985, p.116-29. . De acordo com essa distinção, a civilização é um meio usado pela natureza para impor uma economia mais rígida sobre si. A civilização reduz os gastos, estreita as perspectivas e limita os horizontes:

considere-se toda moralidade sob esse aspecto: a “natureza” nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas - que ensina o estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento. (JGB/BM 188, KSA 5.108)

Nietzsche vê, nesse estreitamento autoimposto, um aspecto valioso da economia da civilização e deseja redimir essa estupidez como uma forma de inteligência animal necessária ao aprimoramento da vida18 18 O tema da redenção da estupidez é típico do século dezenove (como, por exemplo, em O Idiota de Dostoievski). Ele reflete uma crítica ao ideal iluminista apresentado no ensaio de Kant O que é o Esclarecimento?, que favorece o uso público da razão em relação ao uso privado (i.e., estúpido). Veja “O que é o Esclarecimento?” em Kant, 1996. Acerca da redenção da estupidez em Nietzsche, ver também FW/GC 3, KSA 3.374. . A estupidez da civilização revela que ela ainda é parte da vida animal. Ela reflete a necessidade do que Nietzsche denomina, em Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida, um horizonte. Apenas no interior de um horizonte, pode o animal humano concentrar-se em uma meta, uma direção e uma crença. A economia da civilização, portanto, representa não apenas um momento de criatividade reduzida e de pluralização limitada de formas de vida, mas também um momento de acumulação de forças vitais, que são a precondição para os livres gastos da cultura.

Em sua obra póstuma, o devir sobre-humano identifica-se com o gasto irrestrito da cultura, o qual se apoia na e vive da civilização. Esta é entendida como “a transformação do ser humano em uma máquina”:

à medida que o consumo do ser humano e dos seres humanos se torna cada vez mais econômico, e o “maquinário” de interesses e serviços é integrado de modo sempre mais intricado, um contramovimento é inevitável: denomino isso como a secreção de um excedente de luxo do ser humano: isso visa trazer à luz uma espécie mais forte, um tipo superior que surge e se preserva sob condições diferentes daquelas do ser humano ordinário. Meu conceito, minha metáfora para esse tipo é, como se sabe, a palavra “sobre-humano”. (Nachlass/FP 10 [17], KSA 12462)

Nietzsche aceita a exploração do animal humano pela economia da civilização somente na condição de que esta seja contraposta pela cultura, isto é, pelo objetivo de superar a exploração em direção ao gasto irrestrito. Ele é crítico, contudo, de ideologias políticas de massa, quer socialistas, liberais ou nacionalistas, porque essas ideologias parecem instituir uma exploração que não busca nada para além de si mesmas (Nachlass/FP 10 [17], KSA 12.462)19 19 Para um exemplo desse tipo de exploração, veja a noção foucaultiana de poder disciplinar. Michel Foucault,1995, pp. 170-228. . Falta às ideologias políticas de massa o discernimento de que o aprimoramento ulterior da vida depende inerentemente da cultura: “a sociedade de hoje apenas representa a cultura, falta-lhe, contudo, o ser humano culto” (Nachlass/FP 9 [119], KSA 12.404). A falta de uma (política da) cultura e de otimismo econômico são sintomas da vida decadente característica das modernas ideologias políticas de massa20 20 Esses sintomas são particularmente dominantes no ideal liberal: “sabe-se, de fato, o que eles provocam: eles enfraquecem a vontade de potência, eles são o nivelamento de montanha e vale exaltado a um princípio moral, eles fazem pequeno, covarde e presunçoso - é o animal de rebanho que sempre triunfa com eles”. Liberalismo: de forma clara, redução ao animal de rebanho [Heerden-Verthierung]...” (GD/CI “Incursões de um extemporâneo” 38, KSA 6.139). . Estas exemplificam o risco de que a economia da civilização possa levar ao crescente gasto de todos, ocasionando uma “perda coletiva”21 21 Esses aspectos da crítica nietzschiana à economia moderna e às ideologias políticas foram buscados extensamente na obra de Bataille, The Accursed Share: An Essay on General Economy, trad. Robert Hurley, vols. 2 e 3 (Nova Iorque: Zone Books, 1991). No original, Georges Bataille, “Le sens de l’économie générale”. In : La Part Maudit (Paris: Les éditions de Minuit, 1970), pp. 57-80. . A despeito de suas perspectivas otimistas e de suas promessas de trazer “a maior felicidade para o maior número”, ideologias igualitárias de massa tornam o indivíduo humano fraco, doente e inepto para a liberdade. As técnicas repressivas e restritivas da civilização são significativas e louváveis apenas na medida em que a economia da autopreservação não seja compreendida como um fim em si mesma, mas, sempre, apenas como um meio de alcançar aquilo que Bataille denomina “a função insubordinada do gasto irrestrito”22 22 Bataille, 1985, p.129. . Em contraste, o que distingue a economia da cultura é que ela permite um relacionamento livre com o outro, relacionamento que não é dominado por considerações utilitárias. Como argumentei, no capítulo anterior, essa liberdade é essencialmente caracterizada como uma liberdade para perder. Ela reflete a instituição de uma propriedade positiva da perda, da qual pode surgir nobreza, honra e hierarquia em uma ordem que dá valor e sentido ao gasto além da utilidade. Nietzsche refere-se a esta ordem como aquela da “aristocracia superior” do futuro (Nachlass/FP 10 [17], KSA 12.462).

Talvez surpreendente para alguns leitores, Nietzsche afirma que o movimento democrático do século XIX fornece um solo adequado para uma tal futura “aristocracia superior”.23 23 Acerca da tentativa de vincular os aspectos aristocrático e democrático do pensamento político de Nietzsche, veja Wendy Brown, 2000. Hatab distingue “o encontro entre democracia e aristocracia na esfera cultural” do “encontro entre democracia e aristocracia na política” (Lawrence Hatab, 2002). Enquanto o primeiro encontro pertence às “questões de criatividade e normalidade, excelência e mediocridade”, o último pertence “à formação de instituições, às verdadeiras práticas políticas, à justificação da coerção e à dimensão da soberania” (ibid., p. 141). Hatab sustenta que “o aristocracismo de Nietzsche é defensável relativamente ao primeiro encontro, mas não no que diz respeito ao segundo encontro” e questiona se se pode talvez “argumentar em favor de uma coexistência entre uma elite cultural nietzschiana e uma política democrática igualitária” (ibid., p. 141). Sob minha perspectiva, essa coexistência pode ser concebida como uma relação agonística que, por um lado, democratiza a cultura e, por outro, cultiva a democracia. Ele acredita que o movimento democrático levará, a despeito de si24 24 “Se se tivesse feito o surgimento dos grandes e raros homens dependente da aprovação de muitos ... - bem, nunca teria havido um único homem significativo!” (Nachlass/FP 11 [283], KSA 13.109). , a um tipo mais elevado e nobre de animal humano: “enquanto a democratização da Europa resulta, portanto, na criação [Erzeugung] de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso singular e de exceção, terá de ser mais forte e mais rico do que possivelmente jamais foi...” (JGB/BM 242, KSA 5.182)

A democratização e a homogeneização da Europa não devem ser obstruídas, mas apressadas (Nachlass/FP 9 [153], KSA 12.424), precisamente porque fornecem as melhores condições para a enobrecedora pluralização de singularidades25 25 Um tipo nobre de pessoa (uma personalidade solitária) “pode manter-se e desenvolver-se mais facilmente em uma sociedade democrática, isto é, quando os meios mais brutos de defesa não são mais necessários e hábitos de ordem, honestidade, justiça e confiança são partes das condições usuais” (Nachlass/FP 10 [61], KSA 12. 493). . A razão para isto é que Nietzsche percebe, no movimento democrático, não uma superação, em última instância, da escravidão, uma vez que um evento político não pode resolver um “problema existencial” (SE/ Co. Ext. III, 4, KSA 1.363), mas um “novo e sublime desenvolvimento da escravidão” (Nachlass/FP 2 [13], KSA 12.71).

Nietzsche percebe, além do mais, no movimento democrático, o “herdeiro do movimento cristão”, quer dizer, a continuação da civilização, moralização e humanização por meio da dominação e da exploração (JGB/BM 202, KSA 5.124). Suas percepções acerca do movimento democrático ecoam seu elogio e sua crítica ao projeto de civilização. O movimento democrático é um movimento de civilização e, em algum sentido, revela todas as características de sua política de crueldade. Ainda que os meios da civilização, na era da democratização, hajam se tornado mais refinados e sutis, isso não significa que as técnicas gerais da civilização se tornaram menos cruéis nessa era. Pelo contrário, escravidão, na era da democratização, é um “fragmento de barbárie” em comparação, por exemplo, com a escravidão na pólis grega (Nachlass/FP 7 [167], KSA 10.296). A única coisa que foi refinada, afinal, é a sutileza com que as modernas sociedades de massa (baseadas em uma moralidade utilitária) extraem máxima utilidade da vida animal humana. Ideologias políticas de massa e suas políticas econômicas transformam o animal humano em uma máquina (Nachlass/FP 10 [17], KSA 12.462: uniformidade, regularidade e eficiência com vistas à máxima exploração (KSA 12:10 [11]; GD/CI, Incursões de um extemporâneo 37, KSA 6.136). A Nietzsche concerne, primordialmente, se o desenvolvimento de uma economia do máximo uso nas sociedades de massa pode gerar tensão suficiente para provocar um contramovimento que ultrapassará esse “novo tipo de escravidão” e levará ao cultivo de um tipo mais elevado e livre de animal humano. Sugiro que o aforismo 262, em Além de Bem e de Mal, fornece uma resposta a esta questão.

O domínio (Herrschaft) da Cultura Superior

No aforismo 262 de Além de Bem e de Mal, Nietzsche afirma que o domínio da “cultura superior” ocorre quando as circunstâncias são favoráveis ou, em termos econômicos, quando não há qualquer deficiência de poder. Quando a economia da civilização acumulou riqueza suficiente, a necessidade de autopreservação cessa de dominar as formas de produção e sociabilidade; então, “de um golpe se rompem o laço e a coação [Zwang] da antiga disciplina [Zucht]: ela não mais se sente como indispensável, como determinante da existência - se quisesse continuar, só poderia fazê-lo como uma forma de luxo, de gosto arcaizante”. (JGB/BM 262, KSA 5.214)

Quando a “velha disciplina” não é mais necessária para preservar a vida, quando a vida superou a necessidade, deixa, então, de ser experienciada como escravidão e dívida, e passa a ser, como excesso, luxo e transbordamento [Überfluss].

O excedente de poder e riqueza que aprimora o desenvolvimento da cultura afeta diretamente o modo em que a vida está sendo politizada. Sob o domínio da civilização, a “educação” é essencialmente concebida como “o meio de arruinar as exceções para o bem da regra”, e a “educação superior” é essencialmente concebida como “o meio de direcionar o gosto contra exceções para o bem do medíocre” (Nachlass/FP 9 [139], KSA 12. 414). Contudo, sob o domínio da cultura, a educação torna-se “a estufa do luxuoso cultivo da exceção, do experimento, do perigo, da nuance” (Nachlass/FP 9 [139], KSA 12. 414). O luxuoso cultivo da cultura não pode mais ser contido pelos “laços e restrições [Zwang] da velha disciplina [Zucht]” e excede-os como a infinita pluralização e variação da vida animal humana. Que a “cultura superior” viva para além da moralidade explica por que Nietzsche acredita que “os grandes momentos da cultura hajam sempre sido, moralmente falando, tempos de corrupção” (Nachlass/FP 16 [10], KSA 13.485).

O luxuoso cultivo da cultura, além disso, manifesta-se como a abertura de um espaço público [Schauplatz] no qual o indivíduo humano pode atrever-se a tornar-se visível como animal e como esquecidiço, como singular e como único: “a variação, seja como desvio (rumo ao mais sutil, mais raro e elevado), seja como degeneração e monstruosidade, aparece no palco de maneira súbita e magnífica, o indivíduo se atreve a ser indivíduo e se coloca em evidência”. (JGB/BM, 262, KSA 5.214)

Esse espaço público da cultura é modelado a partir da ágora, o mercado da pólis grega, onde as pessoas se encontram para competir e desafiar um ao outro para somar maior virtude26 26 A visão arendtiana de ação pública é, nesse sentido, comparável à visão nietzschiana de vida pública sob domínio da cultura. Para uma comparação entre Nietzsche e Arendt que ressalte a afinidade entre os dois autores, veja o texto de Herman W. Siemens, 2006. . A política da cultura abre um espaço público que não está ao alcance do Estado. É por isso que Nietzsche afirma que “todos os grandes períodos da cultura foram períodos politicamente empobrecidos” (Nachlass/FP 19[11], KSA 13.546; veja também GD/CI, VIII, 4, KSA 6.106).

A ênfase na inesperada e imprevisível mudança de sorte associada ao domínio da cultura indica que o domínio da civilização não deve ser mal-entendido como um consciente e calculado poupar de reservas em preparação para um futuro melhor. Ao invés disso, a cultura existe para além do domínio e do controle, a despeito do fato de que Nietzsche, algumas vezes, parece requerer exatamente o oposto, qual seja, uma provocação e manipulação consciente de circunstâncias favoráveis27 27 Em uma passagem em sua obra póstuma, Nietzsche levanta a “perversa e sedutora” questão de se é ou não tempo “de fazer o experimento de criação fundamental, artificial e cônscia do tipo oposto [superior] e de suas virtudes” (Nachlass/FP 2 [13], KSA 12.71]). Tal proposta contrasta rigorosamente com o entendimento de que o cultivo de um tipo mais elevado de ser humano não é previsível, controlável e cônscio. Sugiro, portanto, que o “experimento de um fundamental, artificial e cônscio cultivo” de um tipo sobre-humano mais elevado pode possivelmente ser abarcado por uma futura civilização e moralidade, mas não por uma futura sociedade e cultura aristocráticas, pois, quando a cultura alcança predomínio, ela o faz não por cônscio planejamento social, mas por um golpe de sorte. . O devir da cultura é uma questão de sorte e “muita coisa incalculável” [Glücksfalle] (JGB/BM 274, KSA 5.227), ainda que se tenha “quinhentas mãos” para “agarrar o acaso” (JGB/BM 274, KSA 5.227).

Nietzsche descreve o domínio da cultura como um perigoso e inquietante “ponto de inflexão da história” [Wendepunkt der Geschichte]:

nessas viradas da história se mostram um ao lado do outro, e com frequência um no outro emaranhado e entrelaçado, um esplêndido, silvestre, multiforme incremento e extensão para o alto, uma espécie de ritmo tropical no afã do crescimento, e um tremendo perecer e se arruinar, mediante egoísmos que se opõem selvagemente e como que explode, que disputam entre si por “sol e luz” e já não sabem extrair, da moral até então vigente, nem limite, nem freio, nem consideração. Foi essa própria moral que fez acumular a força a tal ponto, que fez retesar o arco de modo tão ameaçador - agora ela é, ela está “ultrapassada” [überlebt]. Atingiu-se o ponto inquietante e perigoso em que a vida maior, mais múltipla e mais abrangente vive além da velha moral; o “indivíduo” está aí, obrigado [genöthigt] a uma legislação própria, a artes e astúcias próprias de autopreservação, auto-elevação, auto-redenção. (JGB/BM, 262, KSA 5.214)

O que distingue o domínio da cultura é o perigoso e inquietante emaranhamento do que, de outro modo, parece separado e incompatível, nomeadamente, a união de crescimento e ruína, vida e morte, sublimidade e monstruosidade, ganho e perda, excedente e déficit. Todas essas distinções são temporariamente obscurecidas, e tudo se torna seu oposto, ou, antes, tudo se metamorfoseia em alguma outra coisa. No ponto de inflexão da história, a vida não pode preservar-se e, ainda que pudesse, não poderia fazê-lo por muito tempo. Ela já está sempre voltada para sua morte. A liberdade alcançada por meio da cultura manifesta-se como ganho e excedente, mas, porque ela também se manifesta como gasto irrestrito, todo ganho ou excedente é sempre desperdiçado ou gasto. É uma liberdade sempre muito frágil para manter-se. A liberdade da cultura é inquietante e perigosa porque a liberação que ela alcança é evidente por todos os lados, todavia, ela é tão fugaz que esvaece antes que possa estabilizar-se em uma forma de vida.

O ponto alto da cultura, como consequência, só pode ser um ponto de inflexão e deve ter vida curta por razões econômicas28 28 Veja, em comparação, KSA 13:14 [182]. . O declínio da cultura é inevitável: ele é tão repentino quanto a ascensão da cultura, mas não tão imprevisível. Uma vez que o excedente de poder e de riqueza da cultura é exaurido, é necessária uma “nova moralidade” e disciplina, uma nova economia de autopreservação. Quando a “velha moralidade” tiver sido ultrapassada, quando o indivíduo singular e esquecidiço é “obrigado [genöthigt] a uma legislação própria, a artes e astúcias próprias de autopreservação, auto-elevação, autorredenção” (JGB/BM 262, KSA 5.214), isto não pode manter-se por muito tempo, não mais que o período de uma vida, pois tudo para além do período da vida de um indivíduo requer civilização, socialização e humanização (Nachlass/FP 2 [182], KSA 12. 157). Uma vez que o indivíduo singular e esquecidiço tenha gasto seu excedente de vida e poder, confronta-se com um novo estado de necessidade e precisa de uma nova economia calculadora e de autopreservação.

Em última instância, entretanto, o domínio da cultura certamente terá curta duração, porque a cultura, como a civilização, não é autossuficiente. Cultura e civilização dependem uma da outra para sua preservação e elevação. A cultura não se mantém por conta própria, apoia-se na “velha moralidade”: “foi essa própria moral que fez acumular a força a tal ponto, que fez retesar o arco de modo tão ameaçador” (JGB/BM 262, KSA 5.214). Uma vez que os laços da “velha moralidade” sejam quebrados, uma vez que a cultura se mantenha por si própria, os gastos da liberdade e da criatividade do animal logo exaurirão. Necessita-se, então, de um novo começo, um novo armazenamento de força e poder. Todavia, esse novo domínio da civilização porvir extrai sua vitalidade do domínio da cultura que o precedeu29 29 A interdependência de cultura e civilização, isto é, de liberdade e moralidade [Zwang], repousa sobre sua relação antagonística. Conforme Siemens e Gerhardt, o que é crucial nesse antagonismo é que ele produz leis éticas (Herman W. Siemens, 2002; Volker Gerhardt, 1983). Para ambos os autores, o papel do genius é fornecer leis éticas à comunidade, o que é possível sob a condição de que a relação antagonística entre o genius e a comunidade seja medida e esteja em equilíbrio. Sobre a importância de medida, veja Paul Von Tongeren, 2002. Concordo com ambos não apenas que, considerado da perspectiva da civilização, o genius é a inspiração de “novas moralidades”, como também que o objetivo do agon é alcançar “um equilíbrio de forças tirânicas” como uma condição de possibilidade para a aplicação de “novas moralidades” (Herman W Siemens, 2002, p.106). Do ponto de vista da cultura, contudo, o genius é não apenas uma fonte de leis éticas, mas, primordialmente, uma fonte de liberdade. O genius é um libertador que rompe leis éticas, que afeta “o equilíbrio de leis tirânicas” em vista de um novo, mais justo equilíbrio de forças por vir. . Em outras palavras, assim como a cultura depende de - e alicerça-se em - uma disciplinação e exploração anterior do animal por meio da civilização, a civilização depende de - e alicerça-se em - uma liberação e elevação anterior do animal por meio da cultura. A despeito de a cultura e de a civilização dependerem mutuamente da relação agonística que mantêm entre si, Nietzsche atribui prioridade à cultura sobre a civilização. A cultura é a fonte do sentido e da significância da civilização: a cultura fornece um objetivo para a economia da civilização. Apenas a cultura tem o poder de romper o ciclo econômico da civilização: a cultura supera uma forma de produção definida pela exploração e pela dominação

Referências

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  • TONGEREN, Paul Von. “ Nietzsche’s Greek Measure ”. In: Journal of Nietzsche Studies 24, 2002, pp. 5-24.
  • 1
    Ansell-Pearson, por exemplo, identifica o aristocracismo de Nietzsche a um “programa político de uma nova legislação aristocrática”, em que “o objetivo é ganhar controle sobre as forças da história e produzir, por meio de uma conjunção de legislação filosófica e poder político (‘grande política’), uma nova humanidade” (Ansell-Pearson, 1994ANSELL-PEARSON, K. An Introduction to Nietzsche as Political Thinker. Cambridge: Cambridge University Press, 1994., pp. 42-43 e 148).
  • 2
    Acerca da prioridade da cultura sobre a política, veja Tracy B. Strong,1975STRONG, T. Friedrich Nietzsche and the Politics of Transfiguration. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1975., pp. 94-95 e 201-202).
  • 3
    Conway delineia uma útil distinção entre o que ele denomina “macropolítico (ou institucional) e micropolítico (ou infra-institucional) - encarnações de seu [Nietzsche] perfeccionismo” CONWAY, 1997CONWAY, D., Nietzsche and the Political. Florence, Kentucky: Routledge, 1997., p.48. Deixando a questão do perfeccionismo de Nietzsche de lado, pode-se dizer que a política de civilização, como uso o termo, é sempre, primariamente, uma forma de “macropolítica” interessada na instituição de formas sociais e políticas, enquanto a política da cultura, como uso o termo, é, primariamente, uma forma de “micropolítica” que opera fora, abaixo e, mais importante, contra o quadro institucional da civilização. A única desvantagem que percebo no termo “micropolítica” ´é que ele não captura o entendimento nietzschiano da política da cultura como uma “grande política”. “Grande política” é micropolítica no sentido de que busca efetuar uma transformação de instituições.
  • 4
    Para uma discussão da perspectiva de Nietzsche de uma futura sociedade aristocrática, veja meu artigo 2008.
  • 5
    Cf.Vanessa Lemm, 2009LEMM, Vanessa. Nietzsche’s Animal Philosophy. Nova Iorque: Fordham University Press, 2009., cap. 2.
  • 6
    Em um texto anterior, Nietzsche já identifica “como uma verdade que soa cruel o fato de que a escravidão pertence à essência da cultura” (CV/CP, O estado grego, KSA 1.767). Na pólis grega, a relação entre escravidão e cultura toma a seguinte forma: “Cultura [Bildung], que é antes de mais nada uma verdadeira fome por arte, repousa sobre uma terrível premissa: mas isso se revela no nascente sentimento de vergonha. De modo a haver um amplo, profundo e fértil solo para o desenvolvimento da arte, a esmagadora maioria deve ser servilmente sujeitada às necessidades a serviço da minoria, para além da medida necessária para o indivíduo. Às suas expensas, por meio de seu trabalho extra, aquela classe privilegiada deve ser removida da luta pela sobrevivência, de maneira a produzir e satisfazer um novo mundo de necessidades” (CV/CP, O estado grego, KSA 1.766). O modelo grego de escravidão não é, contudo, um modelo para o “novo tipo de escravização” a que Nietzsche se refere quando explica sua noção de “aristocracia superior” do futuro (FW/GC 377, KSA 3.564).
  • 7
    “A tremenda máquina do estado subjuga o indivíduo... tudo que um ser humano faz a serviço do estado é contrário a sua natureza” (Nachlass/FP 11 [407], KSA 13.187).
  • 8
    Nietzsche é pessimista em relação ao problema da escravidão porque ele acredita que a exigência de providenciar as necessidades da vida não pode ser abolida (GT/NT 18, KSA 1.115). Ele, portanto, rejeita a ideia de uma emancipação final da necessidade em um futuro estado (comunista). Nesse sentido, Nietzsche antecipa a crítica arendtiana da concepção de Marx de liberdade como uma liberdade da necessidade. Como Nietzsche, Arendt questiona a possibilidade de uma emancipação final da necessidade e, ao invés disso, considera que liberdade genuína deve refletir uma superação da dominação. Veja Hannah Arendt, The Human Condition, 1958ARENDT, Arendt, The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958., pp.79-135.
  • 9
    Pode-se perguntar se, em um nível ainda mais profundo, a escravidão não é uma expressão do fato de que a vida “é apenas um meio para algo, é a expressão de formas de crescimento de poder” (Nachlass/FP 9 [13], KSA 12.344). Se a vida como vontade de potência reflete uma lógica radical de meios e não fins, isto é, se tudo é um meio (significativo) para um outro meio e assim por diante, se tudo vive de todo restante, então, a escravidão, em um sentido extra-moral, como vontade de potência, pode ser interpretada como aquilo que vincula todas as formas de vida reciprocamente.
  • 10
    Para uma interpretação da cultura como uma transcendência da animalidade, veja Walter Kaufmann, 1974KAUFMANN, Walter. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton: N.J.: Princeton University Press, 1974. , p.152; e James Conant, 2001CONANT, James. “ Nietzsche’s Perfectionism ”. In: SCAHCHT, Richard (Ed.) Nietzsche’s Postmoralism: Essays on Nietzsche’s Prelude ro Philosophy’s Future. Cambridge: Cambridge University Press , 2001., pp. 224-25.
  • 11
    Cf.Vanessa Lemm, 2009LEMM, Vanessa. Nietzsche’s Animal Philosophy. Nova Iorque: Fordham University Press, 2009., cap. 1.
  • 12
    Em “Schopenhauer como Educador”, Nietzsche utiliza a metáfora de fragmentos de uma escultura que devem ser reunidos para que uma escultura completa do ser humano superior apareça (SE/ Co. Ext. III, 6, KSA 1.383). No Nachlass, ele utiliza a metáfora dos fragmentos de uma peça, de seres humanos como “prelúdios e ensaios” de um superior “sintético ser humano” (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520), assim como a metáfora dos fragmentos de uma imagem, possivelmente um quebra-cabeça, que precisa ser terminado, peça por peça, para que se torne visível a completa imagem do ser humano superior (Nachlass/FP 10 [111], KSA 12. 520). Finalmente, ele fala do ser humano como incompleto e fragmentário sob o domínio da civilização (sociedade) e como completo e inteiro sob o domínio da cultura (Nachlass/FP 27 [16], KSA 11.278; 10 [8], KSA 12.464).
  • 13
    Para uma ampla discussão da relação entre completude e economia em Nietzsche, veja Wolfgang Müller-Lauter, 1999MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Über Freiheit und Chaos: Nietzsche-interpretationen II. Berlin: De Gruyter, 1999., pp. 173-226.
  • 14
    Nietzsche distingue sua noção de elevação, avanço e devir animal humano da moderna ideia de progresso: “A humanidade não representa um desenvolvimento para melhor ou mais forte ou mais elevado, do modo como hoje se acredita. O ‘progresso’ é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia errada. O europeu de hoje permanece, em seu valor, muito abaixo do europeu da Renascença; mais desenvolvimento não significa absolutamente, por alguma necessidade, elevação, aumento, fortalecimento” (AC/AC 4, KSA 6.171). Acerca da diferença entre devir e evolução, veja também Alan Schrift, 2001SCHRIFT, Alan. “ Rethinking the Subject: Or How One Becomes-Other Than What One Is ”. In. SCHACHT, Richard. Nietzsche’s Postmoralism Essays on Nietzsche’s Prelude to Philosophy’s Future. Cambridge: Cambridge University Press , 2001. , pp. 47-62.
  • 15
    Sob minha perspectiva, Nietzsche não inventa uma grande narrativa da economia da vida/natureza para justificar, legitimar e santificar uma concepção de “cultura superior” ou a política autoritária de dominação necessária para alcançá-la. Sua narrativa acerca da cultura como um problema econômico persiste ao longo de sua obra e continuamente reaparece em diferentes formas. Isso indica que sua concepção da economia da vida não deve ser pensada como algo exterior a sua concepção de cultura e política, como algo acrescentado para justificar uma suposta política de dominação, mas, antes, como uma parte constitutiva de sua concepção de cultura e de política.
  • 16
    Veja, em comparação, “Economia da bondade. - A bondade e o amor, as ervas e forças mais salutares no trato com seres humanos, são achados tão precioso que bem desejaríamos que se procedesse o mais economicamente possível na aplicação desses meios balsâmicos: mas isto é impossível. A economia da bondade é o sonho dos mais arrojados utopistas” (MA I/ HH I, 48, KSA 2.69).
  • 17
    A distinção de Nietzsche entre economia da civilização e economia da cultura claramente influenciou a distinção de Bataille entre as atividades produtivas e improdutivas dos seres humanos. Bataille argumenta que “a atividade humana não é inteiramente redutível a processos de produção e conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira parte redutível é representada pelo uso do mínimo necessário para a conservação da vida e a continuação da atividade produtiva dos indivíduos em uma dada sociedade; é, portanto, uma questão simplesmente da condição fundamental da atividade produtiva. A segunda parte é representada pelos assim denominados gastos improdutivos: luxo, luto, guerra, cultos, construção de monumentos suntuosos, jogos, espetáculos, artes, atividades sexuais perversas (i.e., apartadas de finalidade genital) - tudo isso representa atividades que, ao menos em circunstâncias primitivas, não têm fim para além de si mesmas.” Bataille, 1985BATAILLE, G. “The Notion of Expenditure” e, Visions of Excess: Selected Writings 1927-1939. Ed. Allan Stoekl, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985., p.116-29.
  • 18
    O tema da redenção da estupidez é típico do século dezenove (como, por exemplo, em O Idiota de Dostoievski). Ele reflete uma crítica ao ideal iluminista apresentado no ensaio de Kant O que é o Esclarecimento?, que favorece o uso público da razão em relação ao uso privado (i.e., estúpido). Veja “O que é o Esclarecimento?” em Kant, 1996. Acerca da redenção da estupidez em Nietzsche, ver também FW/GC 3, KSA 3.374.
  • 19
    Para um exemplo desse tipo de exploração, veja a noção foucaultiana de poder disciplinar. Michel Foucault,1995FOUCAULT, Michel, Discipline and Punish. Nova Iorque: Vintage Books, 1995. , pp. 170-228.
  • 20
    Esses sintomas são particularmente dominantes no ideal liberal: “sabe-se, de fato, o que eles provocam: eles enfraquecem a vontade de potência, eles são o nivelamento de montanha e vale exaltado a um princípio moral, eles fazem pequeno, covarde e presunçoso - é o animal de rebanho que sempre triunfa com eles”. Liberalismo: de forma clara, redução ao animal de rebanho [Heerden-Verthierung]...” (GD/CI “Incursões de um extemporâneo” 38, KSA 6.139).
  • 21
    Esses aspectos da crítica nietzschiana à economia moderna e às ideologias políticas foram buscados extensamente na obra de Bataille, The Accursed Share: An Essay on General Economy, trad. Robert Hurley, vols. 2 e 3 (Nova Iorque: Zone Books, 1991BATAILLE, G. The Accursed Share: An Essay on General Economy, trad. Robert Hurley, vols. 2 e 3. Nova Iorque: Zone Books, 1991. ). No original, Georges Bataille, “Le sens de l’économie générale”. In : La Part Maudit (Paris: Les éditions de Minuit, 1970), pp. 57-80.
  • 22
    Bataille, 1985BATAILLE, G. “The Notion of Expenditure” e, Visions of Excess: Selected Writings 1927-1939. Ed. Allan Stoekl, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985., p.129.
  • 23
    Acerca da tentativa de vincular os aspectos aristocrático e democrático do pensamento político de Nietzsche, veja Wendy Brown, 2000. Hatab distingue “o encontro entre democracia e aristocracia na esfera cultural” do “encontro entre democracia e aristocracia na política” (Lawrence Hatab, 2002HATAB, Lawrence. “Prospects for a Democratic Agon: Why We Can Still Be Nietzscheans”, Journal of Nietzsche Studies, n.24, 2002, p.132-47.). Enquanto o primeiro encontro pertence às “questões de criatividade e normalidade, excelência e mediocridade”, o último pertence “à formação de instituições, às verdadeiras práticas políticas, à justificação da coerção e à dimensão da soberania” (ibid., p. 141). Hatab sustenta que “o aristocracismo de Nietzsche é defensável relativamente ao primeiro encontro, mas não no que diz respeito ao segundo encontro” e questiona se se pode talvez “argumentar em favor de uma coexistência entre uma elite cultural nietzschiana e uma política democrática igualitária” (ibid., p. 141). Sob minha perspectiva, essa coexistência pode ser concebida como uma relação agonística que, por um lado, democratiza a cultura e, por outro, cultiva a democracia.
  • 24
    “Se se tivesse feito o surgimento dos grandes e raros homens dependente da aprovação de muitos ... - bem, nunca teria havido um único homem significativo!” (Nachlass/FP 11 [283], KSA 13.109).
  • 25
    Um tipo nobre de pessoa (uma personalidade solitária) “pode manter-se e desenvolver-se mais facilmente em uma sociedade democrática, isto é, quando os meios mais brutos de defesa não são mais necessários e hábitos de ordem, honestidade, justiça e confiança são partes das condições usuais” (Nachlass/FP 10 [61], KSA 12. 493).
  • 26
    A visão arendtiana de ação pública é, nesse sentido, comparável à visão nietzschiana de vida pública sob domínio da cultura. Para uma comparação entre Nietzsche e Arendt que ressalte a afinidade entre os dois autores, veja o texto de Herman W. Siemens, 2006SIEMENS, H. “ Action, Performance and Freedom in Hanna Arendt and Friedrich Nietzsche ”. In: International Studies in Philosophy 37, n. 3, 2006, pp. 107-26.
  • 27
    Em uma passagem em sua obra póstuma, Nietzsche levanta a “perversa e sedutora” questão de se é ou não tempo “de fazer o experimento de criação fundamental, artificial e cônscia do tipo oposto [superior] e de suas virtudes” (Nachlass/FP 2 [13], KSA 12.71]). Tal proposta contrasta rigorosamente com o entendimento de que o cultivo de um tipo mais elevado de ser humano não é previsível, controlável e cônscio. Sugiro, portanto, que o “experimento de um fundamental, artificial e cônscio cultivo” de um tipo sobre-humano mais elevado pode possivelmente ser abarcado por uma futura civilização e moralidade, mas não por uma futura sociedade e cultura aristocráticas, pois, quando a cultura alcança predomínio, ela o faz não por cônscio planejamento social, mas por um golpe de sorte.
  • 28
    Veja, em comparação, KSA 13:14 [182].
  • 29
    A interdependência de cultura e civilização, isto é, de liberdade e moralidade [Zwang], repousa sobre sua relação antagonística. Conforme Siemens e Gerhardt, o que é crucial nesse antagonismo é que ele produz leis éticas (Herman W. Siemens, 2002SIEMENS, H. Agonal Communities of Taste: Law and Community in Nietzsche’s Philosophy of Transvaluation, Journal of Nietzsche Studies , n. 24, p.106, 2002.; Volker Gerhardt, 1983GERHARDT, Volker. “ Prinzip des Gleichgewichts ”. In: Nietzsche-Studien 12, 1983, pp.111-33). Para ambos os autores, o papel do genius é fornecer leis éticas à comunidade, o que é possível sob a condição de que a relação antagonística entre o genius e a comunidade seja medida e esteja em equilíbrio. Sobre a importância de medida, veja Paul Von Tongeren, 2002. Concordo com ambos não apenas que, considerado da perspectiva da civilização, o genius é a inspiração de “novas moralidades”, como também que o objetivo do agon é alcançar “um equilíbrio de forças tirânicas” como uma condição de possibilidade para a aplicação de “novas moralidades” (Herman W Siemens, 2002SIEMENS, H. Agonal Communities of Taste: Law and Community in Nietzsche’s Philosophy of Transvaluation, Journal of Nietzsche Studies , n. 24, p.106, 2002., p.106). Do ponto de vista da cultura, contudo, o genius é não apenas uma fonte de leis éticas, mas, primordialmente, uma fonte de liberdade. O genius é um libertador que rompe leis éticas, que afeta “o equilíbrio de leis tirânicas” em vista de um novo, mais justo equilíbrio de forças por vir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2018
  • Aceito
    15 Out 2018
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