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Sócrates e a autossupressão do socratismo em O nascimento da tragédia

Socrates and the Auto-supression of Socratism in The Birth of Tragedy

Resumo

O presente artigo discute o estatuto da figura de Sócrates em O nascimento da tragédia. Partindo da hipótese de que é insuficiente tratar de Sócrates apenas como antípoda de Nietzsche, como quer boa parte da fortuna crítica, desenvolvo a tese de que Sócrates é bem mais uma espécie de lente de aumento, a partir da qual o pensador analisa a origem e os desdobramentos modernos da cultura ocidental. Além disso, e principalmente, demonstro que a riqueza de antagonismos de que Nietzsche propositalmente lança mão em suas análises do filósofo grego indica uma de suas primeiras concepções do próprio criar filosófico.

Palavras-chave
Sócrates; socratismo; esclarecimento; daimon; Autossupressão

Abstract

The present paper discusses the statute of Socrates’ image in The birth of tragedy. From the hypothesis that it is unsatisfactory to treat Socrates only as Nietzsche’s antipode, as supported by a large number of interpreters, I develop the thesis according to which Socrates is a kind of magnifying glass, by means of which the philosopher analyses the beginning and the modern unfolding of western culture. Besides, and mainly, I demonstrate that the richness of antagonisms deliberately used by Nietzsche to analyze Socrates’ images indicates the one of his first conceptions of the philosophical creation itself.

Keywords
Socrates; Socratism; Enlightenment; Daimon; Self-suppression

O “ódio” de Nietzsche contra Sócrates

O nascimento da tragédia é, sem sombra de dúvidas, uma das obras mais enigmáticas e controversas da filosofia de Nietzsche, a começar pela sua recepção. Fruto das reflexões de um jovem professor de filologia que desde a adolescência se interessa pela antiguidade grega e latina, a obra foi uma das poucas a ter alguma repercussão - ainda que negativa - durante a vida lúcida do autor. Sabe-se, a esse respeito, que o mais caloroso debate ocorreu pouco após a sua publicação, em 1872, e envolve um dos mais notáveis filólogos da época, Ulrich von Wilamowitz-Möllendorf (cf.MACHADO, 2005MACHADO, R. (org). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2005.).

Não por acaso, boa parte da fortuna crítica dedicada à primeira publicação de Nietzsche se ocupa em analisá-la à luz das fontes com as quais dialoga, no intuito de medir sobretudo o alcance filológico de suas teses, e, a partir disso, pensar o seu significado filosófico. Esse é o caso do estudo clássico de Barbara von Reibnitz, que, ao adotar o “ponto de vista das ciências da antiguidade” [altertumswissenschaftlicher Gesichtspunkt], almeja retomar o contexto e as problemáticas pressupostas nas histórias da religião, literatura e cultura gregas, para, então, esclarecer sua correspondente elaboração e interpretação por Nietzsche. Nesse intuito, a autora analisa apenas os 12 primeiros capítulos da obra, no seu entender os mais relevantes histórico-filologicamente, pois é onde o filósofo desenvolve sua teoria da tragédia. Quanto aos capítulos 13 a 15, Reibnitz defende uma tese importante a respeito da análise nietzschiana de Sócrates:

A teoria da tragédia envolve em seus dois aspectos, enquanto teoria da origem e teoria da decadência da tragédia, as principais teses do escrito no que concerne à ciência da antiguidade. Em contrapartida, ainda que os capítulos 13-15 de GT, dedicados à análise do socratismo, realmente permaneçam no âmbito antigo, o seu argumento é menos concreto e limitado historicamente. Sócrates, socratismo, cultura alexandrina são relacionados - como paradigmas negativos - sobretudo ao contexto argumentativo geral do escrito, que se desenvolve nos capítulos 16-25 e que é denominado por Nietzsche retrospectivamente como a problematização “filosófico-existencial” [lebensphilosophische] da relação entre arte e ciência. Esse contexto intelectual é objeto da interpretação filosófica, não da explicação filológica detalhada (REIBNITZ, 1992REIBNITZ, B. v. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik” (Kapitel 1-12). Stuttgart: J. B. Meltzer, 1992., p. 5. Minha tradução).

Voluntaria ou involuntariamente, a opção metodológica de Reibnitz parece demarcar um modo de interpretar O nascimento da tragédia que, mesmo sem desconsiderar o seu conteúdo filosófico, acaba por relegá-lo muitas vezes a segundo plano - como se pode perceber na recusa da autora em analisar precisamente os capítulos da obra que ela considera filosoficamente mais relevantes.

A minha hipótese é a de que as dificuldades de leitura e interpretação da primeira obra de Nietzsche tornam-se ainda mais evidentes quando considerada a sua elaboração filosófica da figura de Sócrates. Exceção feita às obras de Walter Kaufmann (1974KAUFMANN, W. Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist. New Jersey: Princeton University, 1974. ) e James Porter (2000PORTER, J. I . The invention of Dionysus: an essay on The birth of tragedy. Standford/California: Standford University Press, 2000.), a grande maioria das interpretações que tratam da relação entre Nietzsche e Sócrates em sua primeira publicação tendem a insistir na oposição aparentemente absoluta que caracteriza o apogeu e o declínio da tragédia grega antiga, e que é personalizada nas figuras de Dioniso e Sócrates: em O nascimento da tragédia manifesta-se, segundo Werner Jaeger (1994JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes , 1994. , p. 495), “o ódio contra Sócrates, convertido pelo autor pura e simplesmente em símbolo de toda a ‘razão e ciência’”1 1 A menção ao texto clássico de Jaeger não é de modo algum fortuita. Discípulo de Wilamowitz, o autor alemão é um exemplo paradigmático de como a obra de Nietzsche foi recebida nos círculos histórico-filológicos nas primeiras décadas do século XX, exercendo forte influência no modo com que a própria filosofia interpreta posteriormente o seu pensamento. Já dentre as interpretações propriamente filosóficas da primeira obra de Nietzsche, percebe-se uma maior concentração das análises na sua metafísica de artistas e na concepção de estética dela decorrente, sobretudo em sua relação com os pensamentos de Schopenhauer e Wagner. Este é o caso, por exemplo, da interpretação clássica de Héctor López (2001), inteiramente dedicada ao tema da metafísica de artistas. Tendência semelhante é percebida em outros autores importantes, tais como Georges Goedert (1978 e 1991), Friedhelm Decher (1985), Volker Gerhardt (1984), Richard Rethy (1988), Julian Young (1992, cf. p. 25-57) e Aldo Venturelli (2003, cf. p. 15-48). No que diz respeito à recepção brasileira de O nascimento da tragédia, as importantes contribuições de Roberto Machado (esp. 1985 e 2006) demonstram uma forte tendência, que fez escola entre nós, a ler a obra a partir de sua concepção estética. .

No intuito de testar a hipótese acima aventada, enfatizarei o modo com que o autor trata da figura de Sócrates nos capítulos 13-15 de sua obra inaugural, à luz de seus desdobramentos nos quatro capítulos subsequentes. Desse modo, pretendo demonstrar que Nietzsche começa a desenvolver, já neste livro tão “temerário” e “impossível”, uma tese filosófica primordial de seu pensamento de maturidade: a de que os grandes movimentos culturais da humanidade tendem a se autossuprimir.

O fenômeno de Sócrates é apenas um “poder negativo dissolvente”?

Nietzsche se reconhece, em sua primeira obra publicada, como herdeiro da tradição inaugurada por Kant e Schopenhauer na filosofia, na medida em que eles revelaram o “otimismo oculto” na cultura lógico-filosófica ocidental (GT/NT 18. KSA 1.118). Nietzsche, pela alusão aos dois autores, concebe a cultura socrático-alexandrina como um modo de interpretação da existência e, principalmente, indica os seus limites:

(...) por meio de Kant e Schopenhauer, o espírito da filosofia alemã, manando de fontes idênticas, viu-se possibilitado a destruir o satisfeito prazer de existir do socratismo científico, pela demonstração de seus limites e como através dessa demonstração se introduziu um modo infinitamente mais profundo e sério de considerar as questões éticas e a arte, modo que podemos designar francamente como sabedoria dionisíaca expressa em conceitos (GT/NT 19. KSA 1.128).

Parece claro que Nietzsche se refere nesse contexto à importância do projeto crítico de Kant e da filosofia da vontade de Schopenhauer nas discussões que envolvem o alcance da concepção tradicional de metafísica e implicam em uma nova formulação de seu escopo, e até mesmo abrem espaço para o que mais tarde será reconhecido como o “fim da metafísica”. No caso da primeira obra do nosso autor, sabe-se que ela busca dar uma resposta ao problema acima com a formulação de uma “metafísica de artistas”, em que apenas o artista, especialmente o músico, é capaz de atribuir sentido à existência: desse modo, o jovem Nietzsche parece circunscrever o âmbito da metafísica a uma interpretação estética do problema colocado pelo pessimismo filosófico, qual seja, o da justificação da existência2 2 Pode-se dizer, em linhas gerais, que o sumo da “metafísica de artistas” nietzschiana já se encontra desenvolvido no inédito A visão dionisíaca do mundo, que antecede e forma uma das bases teóricas de O nascimento da tragédia. A metafísica de artistas funciona, na obra de juventude do filósofo alemão, como uma espécie de resposta à filosofia da resignação schopenhaueriana, em especial ao problema colocado pelo pessimismo filosófico, que se torna popular na recepção de seu pensamento: há um sentido para a existência? Enquanto para o filósofo de O mundo como vontade e representação esse sentido é apenas temporário e parcialmente alcançado por meio da obra de arte, razão pela qual o seu pensamento acaba desembocando, segundo Nietzsche, em um resignacionismo místico; para o autor de O nascimento da tragédia esse sentido teria sido plenamente alcançado pelos gregos da época da tragédia, daí as suas esperanças de um renascimento do espírito dionisíaco na Alemanha de sua época, pelas mãos de Richard Wagner. Sobre o tema da metafísica do belo schopenhaueriana, cf. Barboza (2001). Sobre o tema da metafísica de artistas nietzschiana, cf. o monumental estudo de López (2001), já mencionado na nota anterior. Dediquei a primeira parte de minha Dissertação de Mestrado precisamente à influência de Schopenhauer e Wagner na metafísica de artistas nietzschiana (cf. De Paula, 2009, capítulos I e II). .

Se, de fato, é inquestionável a influência da concepção musical de Richard Wagner, da estética de Schopenhauer e de vários autores do romantismo na interpretação nietzschiana da tragédia grega antiga, é a figura de Sócrates que, em contrapartida, ocupa o núcleo argumentativo de O nascimento da tragédia. Sabe-se que, para Nietzsche, é Sócrates quem fala pela boca de Eurípides, ao modo de um daimon. Sócrates concebe a existência como “problemática” e, por isso, deseja “corrigi-la”, ao hipervalorizar a concepção de mundo teórica - entendida, nesse contexto de sua obra, sob o amplo e difuso conceito de “ciência”3 3 Há uma genuína dificuldade entre os intérpretes em definir de modo preciso o significado da ciência em O nascimento da tragédia e no jovem Nietzsche, em geral. Pois, em primeiro lugar, o autor parece compreender nesta obra qualquer forma de conhecimento lógico e teórico como “ciência”, especialmente no sentido geral estabelecido pela filosofia do cogito de Descartes no início da modernidade, lida, sob esse viés, como desdobramento da filosofia platônica. Nesse sentido, o jovem Nietzsche estaria filiado à tradição kantiana (se nela for permitido incluir Schopenhauer e vários autores românticos, essenciais para o autor) de crítica da razão e de compreensão e extração das consequências últimas do fenômeno do esclarecimento moderno. Sob esse ponto de vista, Nietzsche se refere muitas vezes, e em sentido pejorativo, à própria filosofia como “ciência” - à parte, naturalmente, a função da crítica kantiana para a tradição filosófica. Em segundo lugar, porém, deve-se levar ainda em conta a oposição do autor à filologia acadêmica de sua época, ao modo “científico” com que ela se dirigia aos antigos. Nesse sentido, a filosofia seria um modo menos “estéril” e, portanto, mais “criativo” de interpretação da antiguidade. Sob esse viés, menos pejorativo para a filosofia e mais pejorativo para a filologia, a crítica de Nietzsche se dirige à filologia enquanto “ciência”. Por fim, em terceiro lugar, mas naturalmente sem a pretensão de esgotar o problema nesta breve nota, não se pode mitigar a importância das leituras que Nietzsche realiza desde a década de 1860, e que versam sobre ciências naturais e a interpretação do materialismo por Friedrich Albert Lange. Elas são fundamentais para compreender o modo com que o autor procura conciliar, ainda que muitas vezes apenas de modo privado, uma determinada concepção de ciência e o seu compromisso com a filosofia da vontade de Schopenhauer e o projeto estético-musical de Wagner. Esse seria um sentido menos pejorativo de “ciência” no jovem Nietzsche, do qual o autor parece não se valer extensivamente em sua primeira publicação. Ele será desenvolvido, contudo, em suas obras do período intermediário, sobretudo como aporte teórico de sua crítica à metafísica - ou, conforme defendi em outra ocasião (cf.De Paula, 2016), parece encontrar ecos já em obras imediatamente posteriores a 1872, como Schopenhauer como educador. . Nietzsche, entretanto, não restringe sua interpretação de Sócrates à figura do paladino da ciência, e nem mesmo concebe a ciência apenas em sentido pejorativo. Amparado nas discussões que versam sobre a interrelação entre “arte” e “ciência”, o autor trata do tema de Sócrates sob enfoques diversos, até mesmo antagônicos, o que justifica a relevância de uma análise mais cuidadosa das figuras socráticas. Há pelo menos três fortes indícios do tratamento diferenciado e multifacetado dedicado a Sócrates em sua obra de estreia.

A. O primeiro está na afirmação segundo a qual da influência de Sócrates derivaria do “fato de que a antiga, maratoniana e quadrada solidez do corpo e da alma seja vítima, cada vez mais, de um duvidoso esclarecimento [Aufklärung], em uma progressiva atrofia das virtudes tradicionais” (GT/NT 13. KSA 1.88. Tradução com alterações). Sócrates parece significar, nesse contexto, tanto o produtor quanto, especialmente, o produto de uma tendência, de um processo mais amplo, a que o autor se refere pelo termo Aufklärung, “esclarecimento”. Nesse sentido, o próprio Nietzsche parece não responsabilizar apenas o filósofo grego pelo declínio da consideração artística de mundo, dado que havia uma espécie de “tendência antidionisíaca atuante antes de Sócrates” (GT/NT 14. KSA 1.95), da qual ele teria sido apenas o ápice. A tentativa de reconstrução da tragédia por Eurípides nada mais é que o apogeu desse movimento de esclarecimento, que se dá por meio do socratismo: ou seja, ainda que Sócrates não tivesse existido, Nietzsche parece defender que essa “progressiva atrofia das virtudes tradicionais” seria algo inevitável - como se percebe, por exemplo, já nas tragédias de Sófocles, em que a valorização dos diálogos denota a forte presença do elemento racional (cf. GT/NT 9). Tal “desencantamento do mundo”, para usar uma expressão de Adorno e Horkheimer a qual me remeterei mais detidamente adiante, não pode ser atribuído unicamente à figura histórico-filosófica de Sócrates, mas, antes, ao modo com que ela é recebida pela tradição filosófica - na qual incide as críticas mais contundentes de Nietzsche. Sócrates e socratismo possuem, portanto, significados filosóficos distintos em O nascimento da tragédia. É a partir desta constatação que o autor se pergunta pelos fins da filosofia socrática e afirma que Sócrates não poderia ser apenas um “poder negativo dissolvente” (GT/NT 14. KSA 1.96).

B. A abordagem nietzschiana do daimon de Sócrates contribui decisivamente para demonstrar que a distinção entre a figura de Sócrates e a tendência socrática não é casual em seu pensamento. O autor descreve o daimon socrático como aquela imagem que lhe surge no momento em que sua consciência está a vacilar:

Uma chave para entender o caráter de Sócrates se nos oferece naquele maravilhoso fenômeno que é designado como ‘daimon de Sócrates’. Em situações especiais, quando sua descomunal inteligência estava a vacilar, conseguia ele um firme apoio, graças a uma voz divina que se manifestava em tais momentos. Essa voz, quando vem, sempre dissuade. A sabedoria instintiva mostra-se, nessa natureza tão inteiramente anormal, apenas para contrapor-se, aqui e ali, ao conhecer consciente, obstando-o (GT/NT 13. KSA 1.90).

O firme apoio fornecido a Sócrates pelo seu daimon era, aos olhos de Nietzsche, uma manifestação da sabedoria instintiva. Ora, se o percurso filosófico socrático denota precisamente o combate a tal sabedoria, sob o firme apoio do conhecer consciente, o que ocorre nessas situações-chave é uma espécie de reconhecimento do poder adversário: há espaço, na vida contemplativa de Sócrates, não apenas para o conhecimento [Erkenntnis], mas também para a sabedoria [Weisheit]. Dado que Nietzsche relaciona esta última à arte e o primeiro à ciência, cabe questionar, seguindo o argumento do próprio autor, a relação entre socratismo e arte: “e é tão certo que o efeito imediato do impulso socrático visava à destruição da tragédia dionisíaca que uma profunda experiência vital do próprio Sócrates nos obriga a perguntar se de fato existe necessariamente, entre o socratismo e a arte, apenas uma relação antipódica e se o nascimento de um ‘Sócrates artístico’ não é em si algo contraditório” (GT/NT 14. KSA 1.96). A figura do daimon desempenha, no argumento de Nietzsche, a importante função estratégica de demarcar o conflito de tendências atuantes em Sócrates e, a partir disso, tanto inserir o filósofo grego em seu contexto histórico-filosófico-cultural, quanto abrir a possibilidade de se pensar um “Sócrates musicante”.

C. Ora, se Sócrates é algo mais que um “poder negativo dissolvente”, dentre outras razões por ouvir a voz interior de seu daimon, cabe questionar a possibilidade de sua representação enquanto poder positivo edificante. Nietzsche desenvolve, a partir do problema colocado pela figura do “Sócrates musicante”, uma das mais complexas reflexões d’O nascimento da tragédia. Amparado em uma passagem do Fédon (60d-61c), o autor entende que sempre houve, para Sócrates, uma lacuna em relação à arte, como que um dever ainda a ser cumprido. O filósofo grego manteve-se, em princípio, firme na sua dialética e não deu espaço àquelas manifestações instintivas, que o propunham compor música. Entretanto, sob a influência de “algo parecido à voz admonitória do daimon”, e por medo de ofender a sua divindade por incompreensão, Sócrates não foi capaz de resistir até os seus últimos dias: “por fim, na prisão, para aliviar de todo a sua consciência, dispõe-se a praticar também aquela música por ele tão menosprezada. E nesse estado de espírito compõe um proêmio a Apolo e põe em versos algumas fábulas esópicas” (GT/NT 14. KSA 1.96).

A possibilidade de um Sócrates artístico aponta, em última instância, para os limites da ciência socrática: trata-se da percepção de que o conhecimento é ineficaz quando comparado à sabedoria. A interpretação de Nietzsche a esse respeito demonstra, entretanto, que Sócrates não apenas reconhece, mas, sobretudo, glorifica aquele “poder adversário”, a sabedoria. Levando ao extremo a ideia de palinódia, presente também em suas interpretações sobre Eurípides4 4 Ainda que a palinódia signifique, em sentido geral e figurado, uma mudança de opinião (e mais especialmente de opinião política), refiro-me, nesse contexto, ao uso nietzschiano do sentido específico do termo, que remete à retratação de um autor em um poema daquilo que foi dito em outro. Reibnitz insere Nietzsche entre os pensadores que tratam de uma “teoria da palinódia” no século XIX, dentre eles Schopenhauer e Wilamowitz. Segundo a autora, a retratação de Eurípides teria ocorrido, para Nietzsche, à força: do mesmo modo que ocorre com Penteu, que é enfeitiçado pelas bacantes, a produção de Eurípides se torna refém de tal conflito, ao reconhecer o poder do dionisíaco. O conflito das bacantes com Penteu é projetado por Nietzsche, desse modo, na psicologia de Eurípides. Trata-se, segundo a autora, de um segundo significado do “suicídio” da tragédia, ao qual Nietzsche já havia se referido anteriormente: se antes a tragédia de Ésquilo e Sófocles sucumbe em função de um conflito insolúvel, processo semelhante se passa em Eurípides, que narra retrospectivamente (isto é, quando a sua tendência já havia triunfado), o suicídio de sua própria produção. A retratação de Eurípides na primeira obra de Nietzsche é, em última instância, ainda segundo Reibnitz, bem mais do que uma “palinódia”: trata-se de uma espécie de narrativa da “tragédia da tragédia” (cf.Reibnitz, 1992, p. 318-9). Como se pode perceber, não há espaço suficiente no presente artigo para tratar extensivamente de um tema tão complexo como o da palinódia no jovem Nietzsche. Espero ter a oportunidade de voltar ao tema em textos futuros. Vale destacar, contudo, que a tese central acima levantada trará uma importante contribuição para o que será discutido adiante a respeito do “Sócrates musicante”. e sugerida em sua análise do personagem Fausto, de Goethe5 5 Creio que a ideia de retratação, mas de modo ainda mais significativo a de uma tragédia da tragédia, reapareça de modo significativo nas análises nietzschianas do Fausto. O filósofo toma o personagem goetheano no capítulo 18 de O nascimento da tragédia como o paradigma do homem moderno que, deparando-se com os limites humanos, e muito especialmente com os limites da razão, busca na magia uma escapatória. Tratei do tema em artigo recente (cf.De Paula, 2018). , Nietzsche extrai dela uma tese filosófica fundamental para o seu pensamento de juventude. Esse ponto de vista abre ao menos quatro hipóteses hermenêuticas:

Sócrates nunca teria sido, para o Nietzsche d’O nascimento da tragédia, um verdadeiro defensor do conhecimento consciente, dado que a sabedoria instintiva acaba por se manifestar em seu pensamento como um poder mais efetivo;

Sócrates, a despeito de ter reconhecido a força da sabedoria, prossegue em seu percurso filosófico priorizando o conhecimento, de tal modo que a sabedoria teria uma importância menor em sua forma de pensamento;

Sócrates não apenas reconhece a força da sabedoria, como também a toma como fundamento de combate ao conhecimento, a partir do momento em que a sabedoria se lhe manifesta;

Sócrates representa mais do que a figura de um filósofo, em que conhecimento e sabedoria se encontram em conflito: ao modo de uma personificação das contradições de sua época, ele é o paradigma de um movimento filosófico-cultural mais amplo, que só pode ser compreendido enquanto tal.

A primeira hipótese é um exagero. Ainda que Nietzsche queira demonstrar que a sabedoria se manifesta também em Sócrates, o que é de fato o caso, ela não anula o que foi dito anteriormente sobre a relação do filósofo grego com o conhecimento. O autor não sugere isso em nenhum momento de sua primeira obra. A segunda, se não desconsidera quase por completo, diminui consideravelmente a relevância filosófica do uso multifacetado que Nietzsche faz de Sócrates, o que a torna pouco plausível. A terceira, ainda que em relação à primeira reconheça o papel do conhecimento para Sócrates, seria uma inversão do argumento de O nascimento da tragédia: ao invés de afirmar que Sócrates é o paladino do conhecimento, tratar-se-ia de defender que ele é, no fim das contas, o paladino da sabedoria - hipótese que também parece equivocada, por priorizar apenas uma das forças em conflito. A quarta parece dar conta da amplitude do problema em questão: não apenas reconhece que há, em Sócrates, um conflito de forças característico da cultura grega de sua época, mas também resguarda o fato de que nele esse conflito encontra uma expressão lapidar, de tal modo que Nietzsche não desenvolve uma análise historiográfica de sua figura, mas principalmente dela extrai um movimento filosófico-cultural, a partir do qual ele caracteriza a tradição ocidental6 6 Talvez fosse possível, nesse contexto, um paralelo entre a representação da figura de Sócrates na primeira obra publicada de Nietzsche e o modo com que o autor discute as semelhanças e dissemelhanças entre o “homem racional” e o “homem intuitivo” no inédito Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, de 1873. Pois, ainda que o autor esteja estabelecendo uma oposição entre tais figuras, ele reconhece que ambas coincidem em um ponto central: ambas desejam o domínio da vida - trazendo a discussão, a meu ver, para o âmbito da força, das pulsões (para utilizar uma expressão fundamental de sua obra de estreia e, especialmente, da discussão sobre Sócrates) (cf.Nietzsche, 1978, p. 51-2). Tratar de modo mais aprofundado dessa relação extrapolaria, contudo, as pretensões do presente artigo. .

A fim de analisar os desdobramentos da última hipótese, serão desenvolvidos na sequência os três indícios acima mencionados, que apontam para o significado filosófico do uso multifacetado da figura de Sócrates por Nietzsche: o esclarecimento grego, o daimon socrático e o Sócrates músico.

“O Socratismo é mais antigo do que Sócrates”: o esclarecimento na Grécia de Sócrates

Parte das análises de Nietzsche acerca do movimento cultural mais amplo que caracteriza a Grécia do período clássico parecem encontrar respaldo mesmo entre os círculos histórico-filológicos. A própria obra de Jaeger sobre a “formação” (Formung) do homem grego é um claro exemplo disso. Nela o autor sinaliza para um “processo de racionalização progressiva”, pelo qual passava a Grécia de Sócrates:

Parafraseando o dito de Kant, poderíamos dizer que a intuição mítica, sem o elemento formador do Logos, ainda é “cega” e que a concepção lógica, sem o núcleo vivo da “intuição mítica” originária, permanece “vazia”. A partir deste ponto de vista devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos. Se o representarmos por uma série de círculos concêntricos, a partir da exterioridade da periferia para a interioridade do centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma de uma penetração progressiva que vai das esferas exteriores para as mais profundas e interiores, até chegar, com Sócrates e Platão, ao centro, quer dizer, à alma (JAEGER, 1994JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes , 1994. , p. 192).

Tal processo consiste, como se pode notar, em uma “formalização” filosófica do “conteúdo” intuitivo dos mitos, culminando na descoberta da alma por Sócrates e Platão. Essa nova forma de “interioridade” (Idem, cf. p. 476-481; 529-538), marca registrada da paideia grega, está intimamente relacionada com as concepções e a função da religião e da política daquela época. Nietzsche parece ser bastante sensível a esse conjunto de mudanças pelas quais passava a Grécia de Sócrates.

Enrico Müller afirma que, para o jovem Nietzsche, a autenticidade do filosofar em seus primórdios consistia na construção de uma forma de pensamento para além das possibilidades da atualização discursiva comum, com vistas a um pensamento individual e pessoal. É necessário, contudo, destacar que Nietzsche não desenvolve uma leitura “histórica” da origem da filosofia, como um “acontecimento resultante de necessidades intelectuais determinadas, ocorrido espontaneamente e desenvolvido autonomamente”, mas antes como uma “determinada forma de conhecer e de refletir”, que encontra solo fértil em uma determinada configuração histórica. As filosofias de Sócrates, Platão e Aristóteles seriam, na visão do pensador alemão, uma espécie de “correlato semântico de um mundo da vida [Lebenswelt]”, como a tentativa de unificação de uma constelação de forças, poderes e impulsos agonais (Müller, 2005, p. 165-166. Minha tradução). O sentido da democracia grega residiria, segundo Nietzsche, nas configurações de poder que, na tentativa de buscar uma “unificação” do ser grego, acabam por determinar o que é o indivíduo - que passa a ser definido, portanto, como, indivíduo político (Müller, 2005, p.174). A filosofia, no contexto da práxis política grega da onipresença e onipotência da palavra falada, entra em disputa com a retórica e a sofística pelo domínio do logos e pelo desejo de oferecer ao cidadão ateniense um novo modo de vida: cumprindo a função de uma “nova forma do esclarecimento”, a filosofia “irá representar, em meio a um conceito de razão voltado para a universalidade, ‘uma vida dedicada ao conhecimento e ao nil admirari’, e, com isso, abrir ao homem uma nova dimensão de sentido fundamental” (Müller, 2005, p. 179).

Se tais discussões em torno da constelação de forças que caracteriza o “espírito da época” em que surge a filosofia são mais claras em alguns dos textos que compõem o escrito não publicado Cinco prefácios para cinco livros não escritos (especialmente O Estado grego e A disputa de Homero), também de 1872, nos textos que servem de preparação a O nascimento da tragédia elas se manifestam nas discussões sobre os três principais tragediógrafos da Grécia antiga e Sócrates. Em Sócrates e a tragédia, por exemplo, Nietzsche trata do processo de desenvolvimento do “conflito dialético” em solo grego, que, seja no “diálogo” ou na “disputa com palavra e razão [Grund]” (ST/ST. KSA 1, p. 545), denota o que podemos compreender como o conflito de forças característico da nova forma de interioridade ou individualidade que surgia aos poucos entre os gregos. Não é mero acaso que Nietzsche se valha nesse contexto de termos como “conflito” [Streit] ou “disputa” [Wettkampf], pois o autor claramente busca demarcar o significado filosófico-cultural do momento em que a luta entre poderes passa a ocorrer não mais entre o ser humano e o destino, como era nítido na tragédia grega antiga, mas entre “razões” que se combatem a todo momento: “é como se todas essas figuras sucumbissem não no trágico, mas na superficialidade do lógico” (ST/ST. KSA 1, p. 546). Já em Introdução à tragédia de Sófocles, redigido pouco antes de sua primeira obra, Nietzsche concebe Sófocles como a “figura de transição” fundamental para caracterizar o fenômeno do esclarecimento grego, que atinge o seu ápice com Eurípides:

Com Eurípides há uma ruptura no desenvolvimento da tragédia - a mesma ruptura que, por essa época, se mostra em todas as formas de vida. Um poderoso processo de esclarecimento quer mudar o mundo de acordo com o pensamento; tudo o que existe sucumbe a uma crítica devastadora porque o pensamento ainda se desenvolve unilateralmente. (...) A tragédia de Eurípides é o termômetro do pensamento estético e ético-político de sua época (...)” (NIETZSCHE, 2006NIETZSCHE, F. Introdução à tragédia de Sófocles. Tradução de Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2006., p. 91).

A envergadura da tese filosófica de Nietzsche sobre o esclarecimento grego encontra seus ecos em autores fundamentais do século XX. Jürgen Habermas, por exemplo, talvez seja um dos filósofos que contemporaneamente reconheceram de modo mais marcante, e precisamente a partir de uma discussão sobre o conceito de esclarecimento, a importância d’O nascimento da tragédia para a compreensão do papel de Nietzsche na transição da modernidade para a pós-modernidade - discussão da qual me ocuparei adiante.

O daimon de Sócrates como força dissuasora - e edificante

O caráter dissuasivo do daimon socrático pode ser notado em importantes passagens dos textos de Platão e Xenofonte. Essa característica, estrategicamente ressaltada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, tem uma de suas principais formulações na Defesa de Sócrates, em que o filósofo grego fala da divindade que o dissuadia da tarefa política (cf. Platão, 1972, 31c-32a). A originalidade da interpretação nietzschiana do daimon socrático não reside, portanto, na simples percepção de que as aparições de tal figura divina têm por objetivo dissuadir Sócrates de alguma tarefa. A despeito de seu significado básico na tradição grega e que remete diretamente a Sócrates, enquanto “potência espiritual inferior a um deus, mas superior a um homem” (Lalande, 1999LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Sá Correia (et. al.). São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 238), muito se tem discutido sobre a função do daimon na construção da figura de Sócrates. Jean-Pierre Vernant remonta-nos à tradição do orfismo, a fim de localizar a importância dos daimons no contexto do misticismo grego e nas primeiras formulações da filosofia. As teogonias órficas operam uma inversão da tradição hesiódica, ao narrar que a origem, o Princípio, não é o caos, mas “exprime a unidade perfeita, a plenitude de uma unidade fechada”, de tal forma que o “Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desmancha para fazer aparecerem formas distintas, indivíduos separados” (Vernant, 2006, p. 82). Ao modo de uma “antropogonia” e de uma “soteriologia”, o impacto do orfismo na mentalidade religiosa dos gregos referiu-se especialmente a uma nova “orientação da vida espiritual”: os homens buscam cada vez mais se aproximar dos deuses, criando-se a figura dos “homens divinos”. É nesse âmbito que a figura do daimon ganha importância, pois ele seria uma espécie de “elemento sobrenatural”, “uma potência aparentada com o divino e impaciente por reencontrá-lo”, em última instância, uma “alma” (psykhé) presente nos humanos: “possuir o controle e o domínio dessa psykhé, isolá-la do corpo, concentrá-la em si mesma, purificá-la, libertá-la, alcançar através dela o lugar celeste do qual se conserva a nostalgia, tais poderiam ter sido, nessa linha, o objeto e o fim da experiência religiosa” (Vernant, 2006, p. 87-88). A ideia órfica do daimon enquanto potência que une os homens aos deuses é traduzida pela filosofia, segundo o autor, em termos de ascese, purificação e imortalidade da alma. O Sócrates de Platão teria sido, para Vernant, o pensador que não apenas associa o homem à divindade, como a traz, em determinado sentido, para o interior do próprio homem (Vernant, 2006, cf. p. 88).

Luc Brisson e Jean-François Pradeau atentam, nessa mesma direção, para o significado amplo da noção de divindade em Platão, que ultrapassa o sentido da imortalidade, típico da tradição grega, e abarca “não somente os deuses e daímons tradicionais, mas também a espécie intelectiva da alma, presente na alma humana”. Desse modo, os autores esclarecem que surge, com Platão, uma concepção de divino semelhante às realidades inteligíveis, em função de duas características fundamentais: sua bondade e sua imutabilidade. A “contemplação incessante do inteligível” é aquilo que “caracteriza os deuses e os daímons” (Brisson; Pradeau, 2010, p. 31). Os daímons seriam, sob essa óptica, entidades divinas que, ao lado dos deuses e da parte intelectiva da alma, permitem aos humanos a contemplação do inteligível. Tal “concepção abstrata” do divino, que o torna bom e imutável e o aproxima das realidades inteligíveis, é uma das características que aproximam Platão do orfismo e o afastam da mitologia tradicional: pois, se esta fundamenta o divino na noção de competição (agón) - tanto entre os próprios deuses do Olimpo quanto entre os próprios homens (Brisson; Pradeau, 2006, p. 32), com Sócrates e Platão nasce uma nova forma de “interioridade”, que rompe precisamente com tal noção de caos originário e defende uma espécie de unidade originária, acessível ao homem apenas por meio de sua psykhé - que é, em última instância, racional7 7 Sobre o modo com que a noção de daimon denota uma nova noção de divino, mais abstrata, a partir de Sócrates, e em como ela está relacionada com a sua condenação, cf.Mossé, 1987, p. 117-118. .

No contexto das implicações político-filosóficas da figura de Sócrates para a tradição ocidental, Jaeger considera o filósofo como um ponto de inflexão da cultura grega: ele teria sido ao mesmo tempo “um dos últimos cidadãos no sentido da antiga pólis grega” e “a encarnação de uma nova forma de individualidade moral e espiritual”. O autor, contudo, rechaça a tese de que o daimon seria a expressão dos “novos deuses” introduzidos pelo autor em Atenas, e uma das razões de sua condenação. Tratar-se-ia, antes de tudo, de uma nova forma de “interioridade”, que inclusive leva em conta os aspectos instintivos do humano. O daimon socrático “poderia quando muito”, para Jaeger, “demonstrar que Sócrates possuía ao mesmo tempo, além do dom do saber, pelo qual batalhou mais que outro qualquer, aquele dom instintivo cuja falta verificamos tão frequentemente no racionalismo” (Jaeger, 1994, p. 580).

É bastante difícil, como se pode perceber, determinar o significado do daimon socrático. Tratar-se-ia de uma forma de divindade que se diferencia em alguma medida dos deuses e da parte racional da alma? Neste caso, de que modo ele se manifestaria ao ser humano? Ou tratar-se-ia de uma parte constituinte fundamental do humano? E, sob este ponto de vista, ele seria uma parte racional ou irracional?

Nietzsche torna o controverso daimon socrático uma das principais figuras d’O nascimento da tragédia, e dele faz um uso polimórfico. Em sua primeira acepção, o filósofo dele se vale para descrever Sócrates como o “poder demoníaco” que atuava em Eurípides, caracterizando assim o novo antagonismo da antiguidade grega: “o dionisíaco e o socrático” (cf. GT/NT 12. KSA 1.83). Não é acaso que Nietzsche tenha utilizado a forma adjetivada “socrático” imediatamente após mencionar o nome de Sócrates pela primeira vez em sua obra: o seu objetivo é distinguir, de acordo com Reibnitz, o “tipo” Sócrates de sua influência histórica [Wirkungsgeschichte]. Sócrates seria, nesse caso, ele mesmo um daimon, cuja atuação deixa marcas em toda a tradição ocidental, que se torna “socrática”:

Ao negligenciar a questão do Sócrates “histórico” fica implícita a recusa ao historicismo contemporâneo, em relação ao qual O nascimento da tragédia deve ser lido como um projeto contrário. A fim de libertar Sócrates da hagiografia platônica (...), Nietzsche construiu um duplo acesso ao “problema” de Sócrates. Ele procura compreender Sócrates pessoal-psicologicamente e ao mesmo tempo, ou além disso, representativo-sintomatologicamente. A descrição de Sócrates em O nascimento da tragédia revela algo da atração e do desafio, por meio dos quais Sócrates é tornado “problema permanente” [Dauerproblem] até os seus últimos escritos. Nietzsche distingue, ainda mais explicitamente em O nascimento da tragédia do que nos escritos tardios, as suas invectivas, que soam muitas vezes bastante idiossincráticas, entre pessoa e influência histórica, Sócrates e “socratismo” (REIBNITZ, 1992REIBNITZ, B. v. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik” (Kapitel 1-12). Stuttgart: J. B. Meltzer, 1992., p. 322. Minha tradução).

A segunda acepção do daimon socrático na primeira obra de Nietzsche pode ser notada no modo com que o autor traz a noção do agón, típica da narrativa mitológica mitigada por boa parte da tradição filosófica, para o interior do próprio sujeito Sócrates. O antagonismo entre o dionisíaco e o daimon socrático - ou de Sócrates enquanto daimon - dá lugar ao antagonismo de forças interior a Sócrates: trata-se do combate entre a força da consciência, faculdade cuja capacidade de contemplar o inteligível é destacada pela tradição filosófica platônica, e a força do inconsciente, que por essa mesma tradição é relegada a segundo plano - quando não simplesmente ignorada. Desse modo, se para boa parte da interpretação da filosofia platônica o daimon é uma entidade que, ao lado dos deuses e da própria parte inteligível da alma, busca a contemplação das realidades inteligíveis, em Nietzsche ele ganha um novo status: trata-se de uma força em combate com a faculdade racional, que, ao demonstrar os limites do conhecimento por ela fornecido, não apenas dissuade Sócrates de sua tarefa, como também indica o caminho para uma nova forma de conhecimento - e, em última instância, para uma nova concepção da figura de Sócrates e do movimento por ele representado.

O próprio Sócrates enquanto daimon e o daimon enquanto elemento constitutivo fundamental de Sócrates são, portanto, considerando as duas acepções do termo em questão, figuras fundamentais para a compreensão não apenas da tese nietzschiana do esclarecimento grego, mas sobretudo dos germes de sua própria concepção de filosofia, conforme será discutido na análise do “Sócrates musicante”8 8 Hans Hödl defende posição semelhante no que diz respeito ao duplo sentido do daimon de Sócrates, porém não desenvolve a questão de modo exaustivo (cf. Hödl, 2014, p. 144-145). O verbete “Daimon” do Nietzsche-Wörterbuch (Dicionário Nietzsche) ressalta, no que diz respeito a Sócrates, a distinção entre o “poder demoníaco”, representado pela tendência socrática anti-dionisíaca, e o “demônio de Sócrates”, ao que parece corresponder um sentido cultural e psicológico do termo, respectivamente (cf.Tongeren, 2004, p. 5261-527; p. 536-537). .

Seria o daimon de Sócrates, para Nietzsche, uma força que apenas dissuade? Não parece ser esse o caso, pelo menos em O nascimento da tragédia. Partindo do “caráter incomparável” de Sócrates, razão pela qual Kierkegaard afirma ser ele o primeiro “indivíduo” do pensamento ocidental, Pierre Hadot (2012HADOT, P. Elogio de Sócrates. Tradução de Loraine Oliveira e Flávio Fontenelle Loque. São Paulo: Edições Loyola, 2012. ) discute os traços míticos de Eros presentes na construção filosófica de sua figura e, com isso, indica um possível caminho para a compreensão do que me parece ser a faceta edificante do daimon de Sócrates.

Aspecto fundamental na interpretação nietzschiana do filósofo grego, a ironia socrática do diálogo é também, segundo Hadot, a ironia do amor. A dialética é uma dentre as várias máscaras das quais Sócrates lança mão no seu modo de filosofar. Trata-se de uma espécie de dissimulação, em que o filósofo supostamente se inferioriza e se coloca no lugar do seu interlocutor, que com ele se sente identificado e lhe transfere as angústias de suas próprias dificuldades - confiança que só seria reencontrada pelo interlocutor na dialética, no próprio logos (Pierre Hadot, cf. p. 11-12). A maiêutica socrática desdobra-se, entretanto, precisamente no contrário. Partindo do pressuposto de “nada saber”, Sócrates acaba por demonstrar os limites da linguagem racional e concebe a filosofia não como um corpo doutrinário, mas uma forma de “exercício espiritual” (Pierre Hadot, cf. p. 20). Essa concepção de filosofia como exercício espiritual, presente na ironia dialética, encontra-se sobretudo no processo de busca incessante que caracteriza a “ironia amorosa”: trata-se, neste caso, não do desejo pelo saber, mas pela beleza corporal de seus interlocutores. Sócrates define o amor como “amante”, como uma espécie de “ser intermediário entre o divino e o humano”, portanto como um daimon (Pierre Hadot, p. 31). O daimon seria, desse modo, uma figura fundamental para se compreender o significado psicológico da busca socrática por plenitude:

Eros é um daimon, nos diz Diotima, isto é, um intermediário entre os deuses e os homens. A situação de intermediário, porém, é bem desconfortável. O demônio Eros, que nos descreve Diotima, é indefinível e inclassificável, como Sócrates, o atopos. Ele não é nem deus, nem homem; nem belo, nem feio; nem sábio, nem insensato; nem bom, nem mau. Contudo, ele é desejo, pois, como Sócrates, tem consciência de não ser belo e de não ser sábio. É porque ele é filósofo, amante da sabedoria, isto é, desejoso de atingir um nível de ser que seria aquele da perfeição divina. Na descrição que Diotima faz dele, Eros é assim desejo da própria perfeição, de seu verdadeiro eu. Ele sofre por ser privado da plenitude do ser e aspira atingi-la. Do mesmo modo, quando os outros homens amam Sócrates-Eros, quando amam o Amor, revelado por Sócrates, o que eles amam em Sócrates é a aspiração, é o amor dele pela Beleza e pela perfeição do ser. Eles encontram então em Sócrates o caminho em direção à perfeição (Pierre Hadot, p. 34).

Sócrates é, assim como Eros, um “chamado”, uma “possibilidade que se abre”, uma espécie de “apelo à existência”. Tal é a função capital do daimon em seu pensamento: demarcar a insatisfação da incompletude humana. Hadot é enfático ao afirmar que um dos grandes méritos de Platão foi, ao tratar do amor, ter introduzido na filosofia a dimensão do desejo e do irracional. Tratar a filosofia como forma de exercício espiritual significa, em última instância, compreendê-la para além da dialética do logos, possibilidade aberta pelo Eros socrático: o percurso de Sócrates e de seus interlocutores demonstra antes de qualquer coisa a dimensão educadora do daimon socrático, que nada mais é do que amor - tal como afirma Hadot, em referência precisamente a Nietzsche (cf. Hadot, p. 35-36).

Não é por acaso, portanto, que a figura do daimon de Sócrates desempenha um papel tão importante na primeira obra de Nietzsche. O autor percebe com argúcia a sua riqueza de significados e, principalmente, apropria-se de uma discussão fundamental na recepção da tradição filosófica socrática. Ao demarcar em Sócrates uma dimensão representativo-sintomatológica e uma pessoal-psicológica, Nietzsche, por um lado, atribui ao próprio Sócrates a atuação enquanto daimon, em processo sem precedentes na cultura grega, e cuja influência se tornará, por meio do “socratismo”, marca distintiva da tradição filosófico-cultural ocidental; e, por outro, determina a atuação de um daimon no próprio Sócrates, que, ao mesmo tempo em que lhe dissuade de suas tarefas, abre a possibilidade de criar novas formas de existência e, em última instância, desfrutar da vida em sua plenitude. Por ambas razões, Sócrates parece ser digno de atenção, senão de admiração, por Nietzsche - e isso já em O nascimento da tragédia9 9 É importante ressaltar que esse potencial dionisíaco não desaparece por completo nas análises nietzschianas de Sócrates posteriores à sua primeira publicação. O autor parece continuar se valendo abundantemente de visões antagônicas do filósofo grego em sua obra. Basta mencionar, apenas a título de indicação, a descrição de Sócrates como espírito livre no primeiro volume de Humano, demasiado humano (MA I/HH I 437), o modo apaixonado com que Nietzsche descreve sua vida e suas últimas palavras em A gaia ciência (FW/GC 340) e, ao mesmo tempo, suas críticas ao Sócrates “decadente” e “doente” (inclusive em nova referência ao daimon socrático) no capítulo a ele dedicado no Crepúsculo dos ídolos (GD/CI, O problema de Sócrates, KSA 6.67-73). .

O Sócrates musicante e a autossupressão do socratismo

Ao compor música, Sócrates leva a cabo uma tarefa aparentemente contrária àquela por ele mesmo estabelecida em princípios racionais. E, curiosamente, assim a realiza em função de um imperativo da razão: afinal, o seu temor reside precisamente em ofender o seu daimon por incompreensão. Esse fenômeno indica, para Nietzsche, os limites da ciência socrática: “será que não existe um reino da sabedoria, do qual a lógica está proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário e um complemento da ciência?” (GT/NT 14. KSA 1.96)

A figura do “Sócrates musicante” torna-se, a partir desse ponto de vista, fundamental para o argumento nietzschiano de que há uma profunda relação, que vai bem além da mera oposição, entre arte e ciência. Um forte indício dessa tese é a afirmação de que um fenômeno tal como o de Sócrates compele não à recriação da ciência, mas da própria arte: “(...) é preciso agora pronunciar-se acerca de como a influência de Sócrates (...) compeliu sempre à recriação da arte - e, na verdade, da arte no sentido mais profundo e lato, já metafísico - e, com a sua própria infinitude, também garantiu a infinitude desta” (GT/NT 15. KSA 1.97).

Esse processo de recriação da arte sob um novo paradigma não significa, para Nietzsche, apenas a reafirmação do caráter inigualável da arte, em especial da música, em promover uma interpretação e justificação da existência. Trata-se, sobretudo, da demonstração da tese segundo a qual a transformação da ciência em arte é um pressuposto da própria ciência:

Agora (...) ergue-se (...) uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates - aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa sublime ilusão metafísica é aditada como instinto à ciência, e a conduz sempre de novo a seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte, que é o objetivo propriamente visado por esse mecanismo (GT/NT 15. KSA 1.99).

Da percepção desse processo Nietzsche extrai a ideia de “conhecimento trágico”. Não se trata, nesse contexto, do “trágico” no sentido estético-musical da tragédia grega antiga, mas da concepção de que o próprio percurso da ciência socrática pode ser compreendido sob essa mesma alcunha:

Pois a periferia do círculo da ciência possui infinitos pontos e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma como se poderá alguma vez medir completamente o círculo, o homem nobre e dotado, ainda antes de chegar ao meio de sua existência, tropeça, e de modo inevitável, em tais pontos fronteiriços da periferia, onde fixa o olhar no inesclarecível. Quando divisa aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda - então irrompe a nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio. Se agora fitarmos, com olhos fortalecidos e nos gregos reconfortados, as mais altas esferas desse mundo que nos banha com suas ondas, veremos transmutar-se em resignação trágica e em necessidade de arte a avidez de insaciável conhecimento otimista que se apresenta em Sócrates sob a forma prototípica (...) (GT/NT 15. KSA 1.101-2).

Ao trazer um novo aspecto de “trágico” em sua obra de estreia, relacionado ao percurso “trágico” da razão em Sócrates, Nietzsche toma, em primeiro lugar, o filósofo grego como protótipo de um possível renascimento do espírito dionisíaco em sua época, sob a força da música wagneriana - afinal, a arte apenas poderia florescer no contexto do “cientificismo” de sua época a partir da percepção dos limites da ciência pela própria ciência, ao modo daquilo que ocorre com o personagem Fausto, de Goethe -; mas, em segundo, o autor principalmente questiona o alcance filosófico da tese acerca da transmutação da ciência em arte: “levará essa ‘transmutação’ [Umschlagen] a configurações sempre novas do gênio e precisamente do Sócrates musicante?” (GT/NT 15. KSA 1.102)10 10 Discutirei, em artigo a ser publicado em breve e muito possivelmente sob o título “O trágico como tragédia da filosofia, no jovem Nietzsche”, a noção de trágico no pensamento de juventude nietzschiano, especialmente em O nascimento da tragédia. Na ocasião, analisarei mais detidamente a passagem do texto de Nietzsche acima, bem como buscarei diferenciar os aspectos e as nuances que o conceito de “trágico” comporta em seu pensamento de juventude. Trata-se, portanto, de um artigo que dá sequência à discussão aqui iniciada sobre o papel de Sócrates em sua primeira obra publicada. .

A preocupação de Nietzsche em esclarecer a complexidade que caracteriza a relação entre o que ele concebe como “arte” e “ciência” demonstra, a meu ver, a sua primeira tentativa pública, ainda que em forma embrionária, de conceber em que consiste e como opera o criar filosófico11 11 Em uma importante anotação sobre esse assunto, Nietzsche demonstra preocupação com a relação entre arte e ciência, e considera “a lógica como uma predisposição artística (...)”. Nesse contexto, a relação de Sócrates com a arte ganha contornos ainda mais nítidos: “o homem trágico como o Sócrates musicante” (8[13], Inverno de 1870-71 - Outono de 1872. KSA 7, p. 224). É bastante emblemático, portanto, que Nietzsche se oponha explicitamente, no ensaio não publicado A filosofia na era trágica dos gregos, de 1873, a Platão, reservando a Sócrates um lugar entre os filósofos da “era trágica”. . A minha tese é a de que em Sócrates se autossuprime, segundo Nietzsche, o próprio socratismo. E o que é ainda mais importante: esse processo de transformação vivenciado por Sócrates denota, em última instância, uma das primeiras formulações nietzschianas do estatuto da própria filosofia.

Estou, nesse sentido, em grande parte de acordo com Claus Zittel (1995), que trata do problema da “autossupressão” [Selbstaufhebung] em Nietzsche como um dispositivo teórico fundamental para a compreensão do sentido “trágico” de sua filosofia. Se, por um lado, sua tese central é bastante controversa, pois amplia o escopo de um conceito-chave da Genealogia da moral para toda filosofia de Nietzsche, por outro, sua análise de O nascimento da tragédia é bastante frutífera, ao reconhecer nas suas principais “figuras” (dentre elas o dionisíaco, o apolíneo e o socratismo) a ideia de um processo fundamental de transformação, nos moldes do que venho discutindo a partir de Sócrates: conduzido ao seu esgotamento pelo desenvolvimento paroxístico da lógica interna de seus próprios valores, todo e qualquer fenômeno cultural transmuta-se em uma nova configuração de valores. No que diz respeito especialmente ao socratismo:

O socratismo cai em dificuldades precisamente devido ao seu ideal de conhecimento unilateral. Nietzsche o atesta em uma “profunda representação ilusória”: - “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (GT 15). Nisso entra em contradição. Por meio da lógica o “centro ilógico do mundo” deve ser reconhecido. (...) Acreditar ser capaz disso [de conhecer e corrigir a existência, W.P.], contudo, nisso consiste a inicialmente tão bem-sucedida “ilusão metafísica”, que conduz então o “espírito da ciência até os seus limites”, onde “a sua pretensão de validade universal é aniquilada pela comprovação de seus limites” (GT 17), e o otimismo oculto na lógica fracassa (GT 15). Aqui o homem socrático deve ver, “para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda” (Idem). (...) Já que se torna evidente que a ciência não diz respeito ao conhecimento objetivo, surge a questão “por que esse salto no insondável [Bodenlose]” (7.183), ocorrido realmente no curso de sua absolutização - sucede-se um auto-esclarecimento [Selbstaufklärung] sobre os próprios motivos e a própria conduta, que desemboca em um completo auto-repúdio [Selbst-Desavouierung] da concepção de conhecimento válida até então, inclusive sua autocrítica. Pois, para Nietzsche, o conhecimento do engano não suprime o engano. Uma crença que é entrevista como crença não se torna por isso conhecimento, mas permanece crença e destrói a credibilidade do conhecimento em geral. (...) Segue-se uma autossupressão em três níveis, em primeiro lugar a do conhecimento absoluto, então a do conhecimento em geral, por fim a da cultura fundada nessa concepção de conhecimento (ZITTEL, 1995, p. 32-3. Minha tradução).

Nietzsche certamente não lança mão do termo “autossupressão” para tratar do problema de Sócrates em sua primeira obra, porém parece se valer de um conteúdo semântico que lhe é muito semelhante para tratar do processo de (auto)problematização dos valores inerentes a um determinado movimento cultural, de onde creio que possamos inferir uma de suas primeiras formulações do estatuto da filosofia.

Habermas (2000HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. , cf. p. 124) percebe com argúcia o problema levantado por Nietzsche com O nascimento da tragédia. De modo diverso de boa parte da fortuna crítica, o autor atribui a esta obra um lugar especial no corpus filosófico nietzschiano, pois nela localiza uma discussão fundamental na transição da modernidade para a pós-modernidade: segundo Habermas, o modo argumentativo de Nietzsche, presente já em sua obra de estreia, altera o discurso filosófico da modernidade, ao optar pelo abandono completo do programa moderno de submissão da razão centrada no sujeito a uma crítica imanente. Ainda que o autor defenda (cf. p. 125-7), como desdobramento desse ponto de vista, que em Nietzsche há uma íntima relação entre a ideia de razão histórica, presente na segunda Consideração extemporânea, e a ideia de uma nova mitologia, presente em O nascimento da tragédia, não me parece, contudo, muito convincente o modo com que o autor trata do problema do esclarecimento e do dionisíaco na primeira obra de Nietzsche.

Adorno e Horkheimer já haviam tratado a seu modo do tema do esclarecimento, por meio do conceito de “desencantamento do mundo”. Parece-me que a Dialética do esclarecimento parte de um ponto de vista bastante semelhante ao de Nietzsche para interpretar o processo de esclarecimento da cultura ocidental. Ele seria fruto de um processo filosófico-cultural bastante amplo, que não pode ser circunscrito a nenhum momento histórico ou doutrina filosófica específica, e por meio do qual os humanos se afastaram cada vez mais, ao longo da história, das narrativas mitológicas acerca da existência, culminando no que atualmente concebemos como filosofia e ciência. Tal processo acaba por se desdobrar, conforme essa tese, em uma nova mitologização da ciência, cuja consequência necessária é a “autodestruição do esclarecimento”. Daí a célebre afirmação de que “(...) o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (cf. Adorno; Horkheimer; 1985, p. 13 e p. 15).

Habermas, por seu turno, insere Nietzsche no contexto de suas discussões sobre o esclarecimento moderno, como um ponto de inflexão para a entrada na pós-modernidade filosófica. Ao tentar desenvolver uma tese global acerca do pensamento do autor, e a partir dela inseri-lo entre os principais expoentes da entrada na pós-modernidade, Habermas parece insistir demasiadamente na vinculação de Nietzsche ao projeto romântico e wagneriano de retomada do dionisíaco, relegando apenas a autores posteriores, como Adorno e Horkheimer, a discussão sobre a relação entre mito e esclarecimento - ainda que reconheça a filiação desses autores a Nietzsche. Creio, contudo, que se levarmos em conta a complexidade e o alcance da tese nietzschiana acerca do processo de “autossupressão” do socratismo pelo próprio Sócrates em O nascimento da tragédia, teremos elementos suficientes para defender que o projeto filosófico de sua obra de estreia vai além de um uso da arte (i.e., da mitologia) como antídoto contra a ciência (i.e., o esclarecimento), no sentido de um abandono do programa moderno de autocrítica da razão. Nietzsche, pelo contrário, parece lançar mão, nesse momento de sua produção, tanto de aspectos essenciais da crítica da razão, típicos do esclarecimento, quanto de elementos de uma nova mitologia, típica do romantismo. O ponto central da presente reflexão reside na formulação bastante particular que Nietzsche faz do problema: ele busca demonstrar como uma crítica imanente da razão acaba por conduzir a uma revalorização do estatuto da arte na filosofia, num processo, é fundamental destacar, em que esclarecimento e mitologia estão intimamente vinculados.

O significado do “ódio amoroso” de Nietzsche por Sócrates

O tratamento multifacetado que Nietzsche dedica a Sócrates em O nascimento da tragédia demonstra, em primeiro lugar, que o filósofo grego não é apenas alvo de seu “ódio”. Muito pelo contrário: o autor apresenta fortes indícios de que Sócrates é figura central para compreender tanto o mundo grego quanto a cultura ocidental. Esta já seria uma razão suficiente para o filósofo lhe despertar atenção. Nietzsche analisa Sócrates dentro do contexto cultural em que estava inserido, o modo com que ele se relacionou com as principais tendências de sua época, para então discutir as implicações de seu pensamento na posteridade. Mas Nietzsche vai além: ele não apenas distingue o socratismo do próprio Sócrates, como também encontra na sua práxis filosófica pessoal o modelo de um processo filosófico-cultural que encontrará o seu ápice na modernidade. A análise da figura de Sócrates demonstra, desse modo, que o jovem Nietzsche não abandona por completo o projeto crítico do esclarecimento, mas dele faz um uso bastante particular. Percebe-se também, a partir disso, como o autor, já nesse período de seu pensamento, formula embrionariamente algumas teses que mais tarde figurarão como centrais na sua concepção madura de filosofia.

Sócrates é, desse modo, a principal máscara a partir da qual Nietzsche formula algumas de suas mais relevantes teses de juventude. E o autor está bastante consciente do uso que faz do filósofo grego: importa-lhe muito menos uma reconstrução histórico-filológica de sua figura, mas bem mais dela extrair a lógica interna de um movimento cultural, e a partir dele pensar a sua própria época. A formulação filosófica do problema de Sócrates denota, em última instância, uma das primeiras elaborações, por Nietzsche, do problema da própria filosofia. Ainda que carregado de um teor crítico, afinal é também por meio da figura de Sócrates que o autor dirige suas primeiras invectivas contra a tradição filosófica, não há razões suficientes para seguirmos defendendo o “ódio” de Nietzsche a Sócrates, mas deveríamos buscar compreender, no máximo, o significado de seu “ódio amoroso”, para usar uma expressão lapidar de Ernst Bertram (2009BERTRAM, E. Nietzsche: attempt at a mythology. Translated by Robert E. Norton. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2009. , p. 263).

Referências

  • ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
  • BERTRAM, E. Nietzsche: attempt at a mythology. Translated by Robert E. Norton. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2009.
  • BOLZANI FILHO, R. Imagens de Sócrates. In: Kléos: Revista de Filosofia Antiga, Rio de Janeiro, n. 18, p. 11-31, 2014.
  • BRISSON, L.; PRADEAU, J.-F. Vocabulário de Platão Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
  • DE PAULA, W. A. O(s) Sócrates de Nietzsche: uma leitura d’O nascimento da tragédia, de Friedrich Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009. Disponível em: <http://taurus.unicamp.br/handle/REPOSIP/279169>
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  • YOUNG, J. Nietzsche’s philosophy of art Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
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  • 1
    A menção ao texto clássico de Jaeger não é de modo algum fortuita. Discípulo de Wilamowitz, o autor alemão é um exemplo paradigmático de como a obra de Nietzsche foi recebida nos círculos histórico-filológicos nas primeiras décadas do século XX, exercendo forte influência no modo com que a própria filosofia interpreta posteriormente o seu pensamento. Já dentre as interpretações propriamente filosóficas da primeira obra de Nietzsche, percebe-se uma maior concentração das análises na sua metafísica de artistas e na concepção de estética dela decorrente, sobretudo em sua relação com os pensamentos de Schopenhauer e Wagner. Este é o caso, por exemplo, da interpretação clássica de Héctor López (2001LÓPEZ, H. J. P. Hacia el Nacimiento de la Tragedia: un ensayo sobre la metafísica del artista en el joven Nietzsche. Res Publica, 2001.), inteiramente dedicada ao tema da metafísica de artistas. Tendência semelhante é percebida em outros autores importantes, tais como Georges Goedert (1978GOEDERT, G. Nietzsche und Schopenhauer. In: Nietzsche-Studien 7 (1978), p. 1-15. e 1991GOEDERT, G. Nietzsches dionysische Theodizee. Höhepunkt seiner Abwendung von Schopenhauer. In: SCHIRMACHER, W. (Org.) Schopenhauer-Studien, 4. Viena: Passagen, 1991. P. 45-54.), Friedhelm Decher (1985DECHER, F. Nietzsches Metaphysik in der “Geburt der Tragödie” im Verhältnis zur Philosophie Schopenhauers. In: Nietzsche-Studien 14 (1985), p. 110-125. ), Volker Gerhardt (1984GERHARDT, V. Von der ästhetischen Metaphysik zur Physiologie der Kunst. In: Nietzsche-Studien 13 (1984), p. 374-93. ), Richard Rethy (1988RETHY, R. The tragic affirmation of the Birth of Tragedy. In: Nietzsche-Studien 17 (1988), p. 1-44.), Julian Young (1992YOUNG, J. Nietzsche’s philosophy of art. Cambridge: Cambridge University Press, 1992., cf. p. 25-57) e Aldo Venturelli (2003VENTURELLI, A. Kunst, Wissenschaft und Geschichte bei Nietzsche. Übersetzt aus dem Italienischen von Leonie Schröder. Berlin/New York: Walter de Gruyter , 2003. (Monographien und Texte zur Nietzsche-Forschung, Band 47), cf. p. 15-48). No que diz respeito à recepção brasileira de O nascimento da tragédia, as importantes contribuições de Roberto Machado (esp. 1985MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. e 2006MACHADO, R. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2006. ) demonstram uma forte tendência, que fez escola entre nós, a ler a obra a partir de sua concepção estética.
  • 2
    Pode-se dizer, em linhas gerais, que o sumo da “metafísica de artistas” nietzschiana já se encontra desenvolvido no inédito A visão dionisíaca do mundo, que antecede e forma uma das bases teóricas de O nascimento da tragédia. A metafísica de artistas funciona, na obra de juventude do filósofo alemão, como uma espécie de resposta à filosofia da resignação schopenhaueriana, em especial ao problema colocado pelo pessimismo filosófico, que se torna popular na recepção de seu pensamento: há um sentido para a existência? Enquanto para o filósofo de O mundo como vontade e representação esse sentido é apenas temporário e parcialmente alcançado por meio da obra de arte, razão pela qual o seu pensamento acaba desembocando, segundo Nietzsche, em um resignacionismo místico; para o autor de O nascimento da tragédia esse sentido teria sido plenamente alcançado pelos gregos da época da tragédia, daí as suas esperanças de um renascimento do espírito dionisíaco na Alemanha de sua época, pelas mãos de Richard Wagner. Sobre o tema da metafísica do belo schopenhaueriana, cf. Barboza (2001). Sobre o tema da metafísica de artistas nietzschiana, cf. o monumental estudo de López (2001), já mencionado na nota anterior. Dediquei a primeira parte de minha Dissertação de Mestrado precisamente à influência de Schopenhauer e Wagner na metafísica de artistas nietzschiana (cf. De Paula, 2009, capítulos I e II).
  • 3
    Há uma genuína dificuldade entre os intérpretes em definir de modo preciso o significado da ciência em O nascimento da tragédia e no jovem Nietzsche, em geral. Pois, em primeiro lugar, o autor parece compreender nesta obra qualquer forma de conhecimento lógico e teórico como “ciência”, especialmente no sentido geral estabelecido pela filosofia do cogito de Descartes no início da modernidade, lida, sob esse viés, como desdobramento da filosofia platônica. Nesse sentido, o jovem Nietzsche estaria filiado à tradição kantiana (se nela for permitido incluir Schopenhauer e vários autores românticos, essenciais para o autor) de crítica da razão e de compreensão e extração das consequências últimas do fenômeno do esclarecimento moderno. Sob esse ponto de vista, Nietzsche se refere muitas vezes, e em sentido pejorativo, à própria filosofia como “ciência” - à parte, naturalmente, a função da crítica kantiana para a tradição filosófica. Em segundo lugar, porém, deve-se levar ainda em conta a oposição do autor à filologia acadêmica de sua época, ao modo “científico” com que ela se dirigia aos antigos. Nesse sentido, a filosofia seria um modo menos “estéril” e, portanto, mais “criativo” de interpretação da antiguidade. Sob esse viés, menos pejorativo para a filosofia e mais pejorativo para a filologia, a crítica de Nietzsche se dirige à filologia enquanto “ciência”. Por fim, em terceiro lugar, mas naturalmente sem a pretensão de esgotar o problema nesta breve nota, não se pode mitigar a importância das leituras que Nietzsche realiza desde a década de 1860, e que versam sobre ciências naturais e a interpretação do materialismo por Friedrich Albert Lange. Elas são fundamentais para compreender o modo com que o autor procura conciliar, ainda que muitas vezes apenas de modo privado, uma determinada concepção de ciência e o seu compromisso com a filosofia da vontade de Schopenhauer e o projeto estético-musical de Wagner. Esse seria um sentido menos pejorativo de “ciência” no jovem Nietzsche, do qual o autor parece não se valer extensivamente em sua primeira publicação. Ele será desenvolvido, contudo, em suas obras do período intermediário, sobretudo como aporte teórico de sua crítica à metafísica - ou, conforme defendi em outra ocasião (cf.De Paula, 2016DE PAULA, W. A. Filosofia como “visão de mundo”: sobre a crítica à metafísica no jovem Nietzsche, à luz de sua relação com a filosofia schopenhaueriana. Philósophos, Goiânia, V. 21, N. 2, p. 315-352, Jul./Dez. 2016.), parece encontrar ecos já em obras imediatamente posteriores a 1872, como Schopenhauer como educador.
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    Ainda que a palinódia signifique, em sentido geral e figurado, uma mudança de opinião (e mais especialmente de opinião política), refiro-me, nesse contexto, ao uso nietzschiano do sentido específico do termo, que remete à retratação de um autor em um poema daquilo que foi dito em outro. Reibnitz insere Nietzsche entre os pensadores que tratam de uma “teoria da palinódia” no século XIX, dentre eles Schopenhauer e Wilamowitz. Segundo a autora, a retratação de Eurípides teria ocorrido, para Nietzsche, à força: do mesmo modo que ocorre com Penteu, que é enfeitiçado pelas bacantes, a produção de Eurípides se torna refém de tal conflito, ao reconhecer o poder do dionisíaco. O conflito das bacantes com Penteu é projetado por Nietzsche, desse modo, na psicologia de Eurípides. Trata-se, segundo a autora, de um segundo significado do “suicídio” da tragédia, ao qual Nietzsche já havia se referido anteriormente: se antes a tragédia de Ésquilo e Sófocles sucumbe em função de um conflito insolúvel, processo semelhante se passa em Eurípides, que narra retrospectivamente (isto é, quando a sua tendência já havia triunfado), o suicídio de sua própria produção. A retratação de Eurípides na primeira obra de Nietzsche é, em última instância, ainda segundo Reibnitz, bem mais do que uma “palinódia”: trata-se de uma espécie de narrativa da “tragédia da tragédia” (cf.Reibnitz, 1992REIBNITZ, B. v. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik” (Kapitel 1-12). Stuttgart: J. B. Meltzer, 1992., p. 318-9). Como se pode perceber, não há espaço suficiente no presente artigo para tratar extensivamente de um tema tão complexo como o da palinódia no jovem Nietzsche. Espero ter a oportunidade de voltar ao tema em textos futuros. Vale destacar, contudo, que a tese central acima levantada trará uma importante contribuição para o que será discutido adiante a respeito do “Sócrates musicante”.
  • 5
    Creio que a ideia de retratação, mas de modo ainda mais significativo a de uma tragédia da tragédia, reapareça de modo significativo nas análises nietzschianas do Fausto. O filósofo toma o personagem goetheano no capítulo 18 de O nascimento da tragédia como o paradigma do homem moderno que, deparando-se com os limites humanos, e muito especialmente com os limites da razão, busca na magia uma escapatória. Tratei do tema em artigo recente (cf.De Paula, 2018DE PAULA, W. A. Goethe à luz de Nietzsche: Fausto e a tragédia da razão. In: DAMIÃO, C. M.; ALMEIDA, F. F. de. Estética em preto e branco. Goiânia: Edições Ricochete, 2018, p. 196-217. ).
  • 6
    Talvez fosse possível, nesse contexto, um paralelo entre a representação da figura de Sócrates na primeira obra publicada de Nietzsche e o modo com que o autor discute as semelhanças e dissemelhanças entre o “homem racional” e o “homem intuitivo” no inédito Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, de 1873. Pois, ainda que o autor esteja estabelecendo uma oposição entre tais figuras, ele reconhece que ambas coincidem em um ponto central: ambas desejam o domínio da vida - trazendo a discussão, a meu ver, para o âmbito da força, das pulsões (para utilizar uma expressão fundamental de sua obra de estreia e, especialmente, da discussão sobre Sócrates) (cf.Nietzsche, 1978NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, In: Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978., p. 51-2). Tratar de modo mais aprofundado dessa relação extrapolaria, contudo, as pretensões do presente artigo.
  • 7
    Sobre o modo com que a noção de daimon denota uma nova noção de divino, mais abstrata, a partir de Sócrates, e em como ela está relacionada com a sua condenação, cf.Mossé, 1987MACHADO, R. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2006. , p. 117-118.
  • 8
    Hans Hödl defende posição semelhante no que diz respeito ao duplo sentido do daimon de Sócrates, porém não desenvolve a questão de modo exaustivo (cf. Hödl, 2014, p. 144-145). O verbete “Daimon” do Nietzsche-Wörterbuch (Dicionário Nietzsche) ressalta, no que diz respeito a Sócrates, a distinção entre o “poder demoníaco”, representado pela tendência socrática anti-dionisíaca, e o “demônio de Sócrates”, ao que parece corresponder um sentido cultural e psicológico do termo, respectivamente (cf.Tongeren, 2004TONGEREN, P. v. (et al.) (hrsg). Nietzsche Wörterbuch. Band 1: Abbreviatur-einfach. Berlin/New York: de Gruyter , 2004. , p. 5261-527; p. 536-537).
  • 9
    É importante ressaltar que esse potencial dionisíaco não desaparece por completo nas análises nietzschianas de Sócrates posteriores à sua primeira publicação. O autor parece continuar se valendo abundantemente de visões antagônicas do filósofo grego em sua obra. Basta mencionar, apenas a título de indicação, a descrição de Sócrates como espírito livre no primeiro volume de Humano, demasiado humano (MA I/HH I 437), o modo apaixonado com que Nietzsche descreve sua vida e suas últimas palavras em A gaia ciência (FW/GC 340) e, ao mesmo tempo, suas críticas ao Sócrates “decadente” e “doente” (inclusive em nova referência ao daimon socrático) no capítulo a ele dedicado no Crepúsculo dos ídolos (GD/CI, O problema de Sócrates, KSA 6.67-73).
  • 10
    Discutirei, em artigo a ser publicado em breve e muito possivelmente sob o título “O trágico como tragédia da filosofia, no jovem Nietzsche”, a noção de trágico no pensamento de juventude nietzschiano, especialmente em O nascimento da tragédia. Na ocasião, analisarei mais detidamente a passagem do texto de Nietzsche acima, bem como buscarei diferenciar os aspectos e as nuances que o conceito de “trágico” comporta em seu pensamento de juventude. Trata-se, portanto, de um artigo que dá sequência à discussão aqui iniciada sobre o papel de Sócrates em sua primeira obra publicada.
  • 11
    Em uma importante anotação sobre esse assunto, Nietzsche demonstra preocupação com a relação entre arte e ciência, e considera “a lógica como uma predisposição artística (...)”. Nesse contexto, a relação de Sócrates com a arte ganha contornos ainda mais nítidos: “o homem trágico como o Sócrates musicante” (8[13], Inverno de 1870-71 - Outono de 1872. KSA 7, p. 224). É bastante emblemático, portanto, que Nietzsche se oponha explicitamente, no ensaio não publicado A filosofia na era trágica dos gregos, de 1873, a Platão, reservando a Sócrates um lugar entre os filósofos da “era trágica”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2018
  • Aceito
    28 Fev 2019
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