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RESENHAS

CONTRIBUIÇÃO À PESQUISA DE ENSINO TÉCNICO NO ESTADO DE SÃO PAULO: INVENTÁRIO DE FONTES DOCUMENTAIS (197 p.)

ESCOLAS PROFISSIONAIS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA HISTÓRIA EM IMAGENS (239 p.)

Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Júlia Falivene Alves (orgs.)

São Paulo: Centro Paula Souza, 2002

O projeto "Pesquisa sobre o ensino público profissional no Estado de São Paulo: memória institucional e transformações histórico-espaciais regionais" também denominado "Historiografia das escolas técnicas estaduais mais antigas do Estado de São Paulo," coordenado por Carmen Sylvia Vidigal Moraes do Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, já rendeu duas obras e uma terceira encontra-se em fase de finalização. O projeto contou ainda com Júlia Falivene Alves, do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, que atuou como subcoordenadora e com a consultoria técnica de Diana Gonçalves Vidal, também do Centro de Memória da Educação. O estudo iniciou-se em 1998, foi financiado pela Fapesp e tem apresentado resultados significativos para a historiografia brasileira.

Uma equipe diversificada de profissionais participou dos trabalhos: de professores e estudantes de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP a pesquisadores bolsistas das oito escolas técnicas estaduais – ETEs – do Centro Paula Souza (professores e servidores administrativos, assim como alunos voluntários), obtendo também a colaboração de diretores das escolas mencionadas.

Contribuição à pesquisa de ensino técnico no Estado de São Paulo: inventário de fontes documentais constitui excelente exposição da metodologia adotada. Apresenta, em detalhes, a formulação do projeto e a organização arquivística, o que oferece elementos consistentes para a reflexão sobre o significado e a relevância do trabalho historiográfico em fontes primárias obtidas dentro de escolas. Disponibiliza, ainda, a indicação de acesso aos acervos documentais de cada uma das oito escolas investigadas. A documentação está classificada em três grandes categorias: Acervo Textual, Acervo Fotográfico e Acervo Museológico com subdivisões em outras categorias, conforme a natureza dos documentos encontrados em cada escola. Trata-se de um trabalho em que a atuação dos vários elementos de um grupo se fez presente, pois não só foi relevante a participação de diversos pesquisadores, como os textos que compõem o livro têm diferentes autores: Heloísa Liberalli Belloto; Diana Gonçalves Vidal, Iomar Barbosa Zaia e Maria Cristina Vendrameto, além de textos das próprias organizadoras, Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Júlia Falivene Alves.

Esta característica, de participação e envolvimento de um grande número de pesquisadores numa mesma obra, de forma coesa e integrada, é bastante incomum em publicações do gênero. Uma publicação sobre fontes documentais de escolas de ensino técnico já teria em si validade indiscutível para a compreensão histórica dessa modalidade de ensino. Entretanto, o mais relevante é que além dessa qualidade técnica, que facilmente poderia derivar para um relatório frio e monótono, o livro tem grande valor historiográfico, ao incentivar a discussão de conceitos, indicadores e propostas para pesquisas congêneres. Os textos, da forma como foram redigidos, e também por trazerem uma farta ilustração iconográfica do trabalho, levam o leitor a participar da constituição da pesquisa de modo integrado. A exposição do resultado de pesquisa em fontes primárias – e a apresentação da metodologia desse trabalho contextualizado, acompanhada da discussão do momento sociopolítico em que se consolidou o ensino técnico no Estado de São Paulo nas primeiras décadas do século passado – fornece aos estudiosos da história da educação em geral, e não apenas aos que se debruçam sobre o tema do ensino técnico, um rico acervo de fontes para pesquisa. O livro oferece, ainda, uma oportunidade rara em publicações científicas do gênero, que é o estudo e a reflexão sobre a própria construção do processo de pesquisa, uma vez que sua configuração vai além da apresentação dos seus resultados. É uma obra coletiva que se abre também à participação do leitor, como um convite a novos projetos de investigação.

No segundo livro, Escolas profissionais públicas do Estado de São Paulo: uma história em imagens, houve mudança de formato e das características editoriais em relação ao primeiro, pois se trata de uma obra cujo peso maior está nas fotografias e os textos servem de legenda ou oferecem informações complementares, permanecendo a característica de participação coletiva na pesquisa. De cada escola técnica estadual surge uma documentação fotográfica variada e heteróclita, coligida sob a responsabilidade de grupos provenientes da instituição investigada, que contaram com a participação voluntária dos alunos para concretizar o trabalho. Indubitavelmente, o grande destaque do livro são as fotos, que falam por si das diferentes trajetórias das escolas de ensino técnico do Estado de São Paulo. Fotos que cobrem um período extenso: desde as grandiosas edificações das primeiras escolas técnicas construídas no início da República até as fachadas dos prédios nos dias de hoje, algumas bem modificadas, quando não deterioradas, o que leva a refletir sobre o significado dessa transformação.

Das inúmeras imagens do livro, destacam-se as do período inicial das escolas nas primeiras décadas do século XX. Podemos mediante elas conhecer um pouco da magnitude que teve o ensino técnico na educação pública em São Paulo. E, se o primeiro olhar para as fotografias é de nostalgia e até de idealização de um passado que prometia grandes conquistas sociais na integração da escola e da indústria, uma visão mais atenta torna-se um convite à reflexão em dois âmbitos: o primeiro é o de olhar para o passado e indagar sobre as razões da perda de vigor dessa modalidade de ensino no projeto socioeducacional do país, e o segundo, o de reviver aquela situação como presença, isto é, como representação de práticas que se configuraram efetivamente numa proposta educacional concreta para parte representativa da sociedade. É como se as imagens congelassem as aspirações da classe trabalhadora, a partir de uma proposta educacional concedida pelos mandatários da República em São Paulo. Elas oferecem importantíssimos subsídios sobre o ensino daquela época e de seu contexto sociopolítico e sua divisão em categorias e classes bem determinadas. Por privilegiar a memória com as imagens, o livro traz novos focos de atenção e pontos de inflexão para o debate em uma área já pródiga em relevantes estudos consagrados à historiografia no país, qual seja o dos movimentos educacionais das primeiras décadas do século passado.

Os dois livros revelam o que há de mais rico no campo da cultura material escolar, uma área de pesquisa que se apresenta hoje como tendência muito forte da história e historiografia da educação, aquela que olha os processos de escolarização do ponto de vista das ações empreendidas por seus próprios agentes, reconhecidos como sujeitos protagonistas da história, sem excluir, naturalmente, a repercussão dos movimentos educacionais de fora das escolas neste contexto. É um trabalho de muitas perspectivas, em que vertentes antropológicas e sociais aproximam-se do conjunto das investigações em história da educação, e que oferece a oportunidade de conhecer os movimentos de escolarização nos pontos nevrálgicos de suas tramas: – Quem são os sujeitos que aparecem nas fotografias? Qual o significado de terem sido guardadas tais imagens e perdidas outras? O material é verdadeiramente representativo da memória educacional do período?

Ao oferecer a perspectiva de estudar a história da educação utilizando-se da memória guardada nos documentos escolares, o livro favorece um movimento de inflexão. Talvez sejam dois os conceitos mais propícios para iniciar este movimento: o de construção e o de ressignificação. Aparentemente contraditórios, na verdade permitem uma visão da história que agrega algo novo ao passado na apropriação coletiva pelos pesquisadores da atualidade, dos esforços empreendidos por predecessores envolvidos nesta mesma história. Construção e ressignificação têm uma correspondência muito forte com o movimento conceitual que F. Guattari chama territorialização, desterritorialização e reterritorialização, qual seja o da ocupação de um espaço que se modifica conforme as ações que se fazem ao longo dessa ocupação, em que a própria compreensão desse espaço se modifica e outros significados são construídos nesse movimento. A historiografia tem-se destacado nas ciências sociais pela abertura de diálogo com outras áreas do conhecimento. Ao aceitar a complexidade de seu objeto de estudo, vários conceitos são construídos e ressiginificados, possibilitando a confirmação de uma tendência, apontada por Edgar Morin, da história como ciência da complexidade humana.

Lidar com fontes primárias das escolas é uma proposta audaciosa. O trabalho com esse material, praticamente relegado ao abandono, sob o risco de deteriorar ou perder-se, pode significar tristeza, frustração, desafio, conquista ou mesmo reencontro. As autoras desses livros aceitaram o desafio e no reencontro com os antigos documentos, estes novamente se mostraram valiosos, pois ofereceram a possibilidade de se conquistar um espaço importante para a história da educação no país. São livros que se impõem como referência obrigatória para os pesquisadores da área.

Laerthe de Moraes Abreu Junior

Centro de Documentação e Apoio à

Pesquisa em História da Educação e Programa

de Estudos Pós-Graduados em Educação da

Universidade São Francisco – Bragrança Paulista/SP

laerthe@saofrancisco.edu.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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