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RESENHAS

Cadernos Abong

ONGs: Identidade e Desafios Atuais

Campinas: Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, Autores Associados, n. 27, maio de 2000, 106 p.

Esta coletânea trata do papel das ONGs na sociedade brasileira atual, as suas perspectivas e os desafios para o futuro próximo. Conforme explica Sérgio Haddad — atual presidente da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais — Abong — na "Apresentação", as ONGs surgiram no Brasil no período do regime militar, cresceram nos anos 80 e tornaram-se visíveis para o grande público na década de 90. Como conseqüência, elas puderam ter seu modo de atuação, bem como o papel social e político assumido junto à sociedade brasileira mais bem observado e analisado e, por isso mesmo, polemizado.

Se há os que as consideram uma organização inovadora nos campos em que atuam, ágeis, desburocratizadas, potencialmente capazes de otimizar as intervenções de caráter social, político ou assistencial, outros as vêem como corolários das políticas neoliberais e de enxugamento do aparelho estatal, na medida em que passam a desempenhar funções desenvolvidas anteriormente pelo Estado, em geral utilizando-se de verbas públicas.

O universo das ONGs brasileiras — sobre o qual há pouco conhecimento sistematizado — parece caracterizar-se pela heterogeneidade: entre as cerca de 150 mil entidades sem fins lucrativos, há diferenças em termos de suas finalidades de intervenção e/ou serviços, quanto ao modo de atuação, formas de gestão etc., o que torna incorreto colocá-las lado a lado.

Os quatro artigos desta coletânea discutem temas atuais referentes às ONGs, seu papel e seus desafios.

Silvio Caccia Bava — sociólogo, fundador e pesquisador do Instituto Pólis e diretor da Abong —, traz um artigo escrito por solicitação da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo para subsidiar o debate sobre o tema Terceiro Setor no Âmbito do Fórum São Paulo: Século XXI, "O Terceiro Setor e os Desafios do Estado de São Paulo para o Século XXI". O texto está recheado de informações preciosas que resgatam, historicamente, o surgimento das ONGs e do chamado terceiro setor, contextualizando sua origem, no mundo e no Brasil. As ONGs e o terceiro setor surgem e se consolidam no bojo dos processos sociais e econômicos que nos últimos 30 anos, têm transformado a face da maioria das sociedades ocidentais e de parcela importante das orientais. Entre eles encontram-se a globalização da economia mundial; a proeminência do desenvolvimento do setor de serviços, particularmente no segmento financeiro, com a conseqüente diminuição da importância do setor industrial na geração de riquezas; o desmanche do Estado fomentador de políticas reguladoras e compensatórias de cunho social oriundas do período de orientação keynesiana, em favor de um aparelho estatal mínimo, que, entretanto, atua fortemente na defesa dos interesses de mercado, mantendo-se "mínimo" apenas no que diz respeito à defesa dos interesses coletivos; a desregulamentação de direitos dos trabalhadores construídos durante os chamados "trinta gloriosos"; a adoção do modelo de desenvolvimento de inspiração neoliberal; o grande desenvolvimento tecnológico, sua aplicação nas bases produtivas e seus efeitos desastrosos sobre o nível de emprego etc. Essa reorientação econômica e política mundial tem feito aumentar a desigualdade, ampliando o fosso entre países ricos e pobres, norte e sul, centro e periferia, incluídos e excluídos bem como, internamente, nos países de capitalismo avançado.

É nesse contexto que surge, nos EUA, a teoria do terceiro setor, que "assume como axioma as leis do mercado, a incapacidade do Estado em atuar como regulador do pacto social e a necessidade de uma ação social eficaz, capaz de enfrentar os crescentes problemas sociais nos setores da sociedade mais penalizados por esse novo modelo de concentração acelerada do capital e da renda... vai transferir a responsabilidade pela garantia da coesão social para as empresas e as entidades sem fins lucrativos...", a maioria das quais, entretanto, depende umbilicalmente de verbas públicas para colocar em prática suas ações. O autor discute longamente essa questão, enriquecendo-a com dados e contrapondo diferentes opiniões dos estudiosos do assunto. Mostra, entretanto, o terceiro setor como espaço que se encontra ainda indefinido, no qual se dá uma crescente disputa de significados, confrontam-se projetos pouco delineados de organização social no qual se agrupa uma grande variedade de instituições da sociedade civil.

No seguimento do artigo, passa a identificar e analisar detalhadamente exemplos de ações sociais geradas pelo terceiro setor no Brasil. Vai se referir à campanha contra a fome, promovida por Betinho e pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas — Ibase —, a "Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria, pela Vida", considerada como a ação cívica mais importante gerada no Brasil pelo terceiro setor; refere-se também aos Conselhos de Gestão e Cidadania, à Associação Viva o Centro, organizada por entidades e empresas sediadas ou vinculadas ao centro da cidade de São Paulo. Discute, ainda, a construção de parcerias entre entidades sem fins lucrativos e empresas: seus problemas e as relações do Estado com a sociedade civil no Brasil; faz ainda um elenco bastante informativo das iniciativas mais importantes. Em suma, trata-se de artigo de grande importância, não só para a identificação e a discussão das questões que estão implicadas na temática das ONGs e do terceiro setor, mas também para o conhecimento das principais iniciativas que este tem engendrado no cenário brasileiro e paulista.

Paulo Eduardo Arantes, professor do Departamento de Filosofia da USP, em "Esquerda e direita no espelho das ONGS", começa ironizando um léxico "dos direitos da cidadania" que tem sido bastante utilizado atualmente por autoridades governamentais vinculadas à área social e por empresas. O autor o considera um sistema de simulacros, uma vez que enseja a mistura dos papéis e camufla os reais interesses dos segmentos sociais envolvidos, num jogo de "coisas trocadas", para usar a expressão do autor. Exemplos do linguajar, oriundo, mormente, de ONGs, são as expressões "sociedade civil", "espaços sociais", "compromisso" e "envolvimento" entre os "atores", conduzindo a uma "participação cidadã". Da órbita empresarial, provêm "vivência empresarial", "cumplicidade", "envolvimento com o seu entorno", "parceiros" e "interlocutores no mercado", "empresa cidadã". Esse léxico integra o corpo das políticas compensatórias recomendadas pelos patrocinadores da reestruturação econômica e social em curso, tendo o Banco Mundial à frente. Nesse arcabouço de mudanças, está incluída uma nova concepção do papel do Estado, com enxugamento de parcela específica de suas funções, principalmente aquela de executor das políticas sociais, engendradas sob a égide do keynesianismo. A concretização dessas políticas passa a ser delegada a "parceiros da sociedade civil", entidades sem fins lucrativos, ONGs, contando com repasses de verbas públicas.

O autor descreve como vê e entende esse processo: "Ocorre que só um Estado gerencialmente reformado pode se tornar um eficiente parceiro — facilitador da acumulação privada... e assim sendo se envolverá prioritariamente na seleção e hierarquização dos agentes não governamentais que, por subcontratação política, adquirem concessões do poder estatal e se lançam na conquista do espaço público, desertado, por sua vez, por um Estado cuja capacidade de regulação social parece ter enfim se esgotado, mas não o poder organizacional, ou, mais propriamente, o poder estratégico gerencial... de promover a concorrência entre os serviços públicos... descentralizados por contratos de gestão." (p. 8-9) Tais serviços, tornam-se mais preocupados com objetivos e resultados, e em obter recursos e não em despendê-los. Quanto aos usuários, serão tratados como clientes se forem solventes. Advoga-se o lugar de um Terceiro Setor gerencialmente enxuto. Um Estado parceiro-facilitador deve "estrategicamente" se retirar assim que as organizações não governamentais "demonstrarem" a superioridade de suas vantagens comparativas, uma vitória sem muito esforço, já que não havia mais em campo com quem competir, salvo a sucata preparada para tal efeito demonstrativo.

Quanto às empresas, o autor identifica presentemente a existência de "um surto esquizofrênico, pois agem, mas sobretudo falam, dando a entender que no fundo são organizações sociais sem fins lucrativos", sem, de fato, perderem a veia comercial que lhes é intrínseca. As empresas capitalizam o trabalho "voluntário" que induzem seus empregados a fazer junto às "comunidades", transformando-o em vantagem competitiva, mediante a agregação da imagem de "empresa cidadã" aos produtos e/ou serviços que colocam no mercado.

No texto, o autor resgata ainda as origens históricas e políticas das ONGs no Brasil — em seu início se constituíram num valioso canal alternativo político para as forças democráticas de esquerda em épocas de regime de exceção —, sua evolução e a transformação nos tempos atuais. Além disso, dedica-se a analisar o fenômeno da utilização distorcida das palavras que denomina, utilizando expressão de Vera da Silva Telles, "espantoso deslizamento semântico", contextualizando-o e denunciando sua intenção de colocar o mundo "de ponta-cabeça", de enevoar a consciência, de confundir. Esse léxico cumpre, portanto, as funções da ideologia, procurando encobrir a desigualdade na distribuição da riqueza e do poder no interior da sociedade capitalista.

Francisco de Oliveira — professor do Departamento de Sociologia da USP e presidente do Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania — escreveu "Brasil, da pobreza da inflação para a inflação da pobreza", artigo no qual analisa a perspectiva política assumida pelo atual governo no tocante ao combate à pobreza. Nas suas palavras, "a macropolítica de combate à pobreza, que pode ser creditada ao controle dos preços, vê-se contrastada pelo enorme desemprego que provoca. Além disso, a estabilidade dos preços, que foi seguida imediatamente por uma melhoria relativa dos salários... já desapareceu, mesmo no que diz respeito aos salários de trabalhadores e empregados do setor privado. Algumas estimativas chegaram a medir um ligeiro recuo da 'linha da pobreza' depois do Plano Real. Hoje, as mais recentes apontam para o estancamento da curva de crescimento dos salários e agora para uma nítida queda, outra vez com o 'avanço da linha de pobreza'". Dessa forma, alerta para o fato de que "não convém associar, ingenuamente, baixa inflação com positividade das políticas antipobreza, quer pelo lado da preservação do poder de compra dos salários, quer pelo lado do aumento da eficácia das políticas sociais". As baixas taxas de inflação registradas desde 1994, com o Plano Real, por exemplo, estancaram a sangria do poder aquisitivo dos salários, mas não ensejaram uma política redistributiva no país.

Apesar da convicção do bloco do poder, de que a melhor maneira de redistribuir renda e acabar com a pobreza é por intermédio do mercado, idealizou-se um atendimento temporário, para certas parcelas da população, por mecanismos extra-mercado, como é o caso do programa Comunidade Solidária. O autor se mostra bastante crítico em relação ao alcance desse programa e aos resultados obtidos, particularmente quando se observa a situação em que se encontra o chamado atendimento da área social — e, dentro desta, o chamado combate à pobreza. A saúde dos brasileiros, por exemplo, regrediu; muitas doenças endêmicas, antes razoavelmente controladas, voltaram a eclodir em razão dos cortes nos gastos e nos investimentos programados. Discute ainda certo segmento das ONGs e sua inserção no marco de uma "filantropização da pobreza", que estaria sendo levada a cabo por grupos, associações de empresários e várias fundações empresariais na tentativa de privatizar e filantropizar o que antes era objeto de políticas públicas realizadas pelo Estado. "Privatizam e filantropizam porque tais ações — que não se pode chamar de políticas — exatamente negam a pólis, negam a universalidade, posto que se dirigem a grupos especiais e, privatizam o público, posto que se realizam, sempre a expensas do imposto de renda, do qual são abatidos os gastos 'filantrópicos'". Considera também que, devido à pequena possibilidade de as esferas governamentais assumirem proximamente, outra vez para si, a tarefa de desenvolver uma política social e programas destinados ao combate à pobreza, esse espaço continuará aberto ao trabalho político e social das ONGs ainda por um bom tempo.

Finalmente, em "Levantamentos de fundos no Brasil: principais implicações para as organizações da sociedade civil e ONGs internacionais", Michael Bailey — representante da Oxfam no Brasil entre 1992 e 1998 — enfoca as oportunidades de crescimento e diversificação de recursos para as organizações da sociedade civil — OSCs — não lucrativas, tecendo considerações sobre os desafios e os riscos daí decorrentes. O autor pondera que diante da diminuição dos recursos internacionais, a partir da metade da década de 90, desenhou-se um cenário preocupante para a sobrevivência das OSCs brasileiras. Entretanto, nos últimos anos, proliferaram iniciativas para arrecadação de fundos, como, por exemplo, a arrecadação de fundos de simpatizantes e do público em geral mediante técnicas de marketing sofisticadas, o crescimento da filantropia empresarial, o desenvolvimento de atividades comerciais, o maior acesso a recursos governamentais, o financiamento proveniente de organizações de cooperação internacional. O artigo analisará cada uma dessas alternativas de fundraising, discutindo suas possibilidades e apontando exemplos de sua utilização bem-sucedida no Brasil.

A seguir, destaca a importância dada pelos financiadores a algumas condições internas que têm se mostrado decisivas na escolha das OSCs, às quais doarão seus fundos: ter identidade e papéis claramente definidos; fomentar o desenvolvimento organizacional, quer dizer, uma OSC deve demonstrar que é efetiva e eficiente no uso do tempo e do dinheiro dos seus membros, do público ou das instituições e deve melhorar a qualidade dos serviços prestados, estimular a qualificação dos membros; demonstrar a transparência na demonstração contábil das suas atividades; desenvolver uma política de comunicação e marketing efetiva, pois suas atividades precisam ser conhecidas para poder ser financiadas.

Naturalmente, o fundraising não é uma atividade isenta de riscos para as OSCs. E este gira, segundo o autor, basicamente, em torno das conseqüências dos compromissos assumidos com as entidades financiadoras, o que poderá levar à perda da identidade das OSCs, perante um financiador de peso, assumindo as proposições deste e esquecendo-se das suas, ou à perda da independência política, quando o financiador é o governo ou a iniciativa privada, ou, ainda, à perda de algumas de suas características mais valorizadas, como a flexibilidade e a inovação, na medida em que implementam as mudanças organizacionais e culturais internas atualmente requeridas para o sucesso do fundraising.

Em suma, a coletânea traz textos elucidativos, escritos partindo perspectivas diversas. Cumpre o propósito de contribuir para a sistematização de conhecimento sobre a temática das ONGs e do terceiro setor e o faz de maneira qualificada. De um lado, traz ao leitor informações detalhadas que permitem resgatar a origem histórica dessas organizações no Brasil, identificar as ONGs brasileiras e paulistas que têm se evidenciado em razão de suas propostas e/ou da efetividade de suas ações, bem como as mais importantes experiências nacionais, no tocante a parcerias voltadas para o desenvolvimento de projetos na área social. Por outro lado, apresenta reflexões e análises teóricas a respeito do papel que essas organizações vêm assumindo nas nossas sociedades, partindo do ponto de vista crítico. Em três dos quatro artigos, os autores contribuem para o esclarecimento e para o entendimento da temática, fornecendo ao leitor informações que contextualizam os cenários econômico, político e social — mundial e nacional — em que se dá o surgimento e a consolidação das ONGs e do conceito de terceiro setor. Assim procedendo, contribuem para dissipar a confusão que um certo discurso ideológico tem procurado instaurar a respeito do papel social e político dessas organizações na sociedade atual, discurso esse dedicado a encobrir a desigualdade na distribuição da riqueza e do poder no interior da sociedade capitalista.

Maria Rosa Lombardi

Faculdade de Educação da Unicamp

Fundação Carlos Chagas

Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos

Simone de Castro Tavares Coelho

São Paulo: Senac, 2000, 223p.

Já se tornou quase um lugar-comum nas ciências sociais a constatação de que as últimas décadas do século XX conheceram a entrada na cena política de novos atores sociais, agrupados considerando-se demandas e valores também inovadores em referência aos padrões de representação política vigentes na primeira metade do século. Esses novos sujeitos coletivos, difíceis de ser equacionados pelas teorias críticas de base classista, por serem refratários às conceituações tradicionais, mobilizaram um significativo esforço teórico da sociologia contemporânea para identificá-los e para dar conta de seu dinamismo. Conceitos como "movimentos sociais" e "organizações não governamentais", entre outros, foram elaborados para caracterizar esses agentes e instituições da vida social, os quais se referem a um âmbito de atuação pública não pertencente ao Estado nem ao mercado. Todavia, muito resta a esclarecer nesse campo.

Na verdade, no caso brasileiro, pode-se avaliar que a discussão voltada à temática centrou-se mais nos efeitos políticos do surgimento dos novos atores, do que em sua caracterização empírica. Poucos estudos sistemáticos voltaram-se para o deslindamento do perfil desse universo inovador de atuação política no país, sua composição social, suas práticas e discursos, seu financiamento, suas relações com o Estado e com os agentes do interesse privado. Por isso, a publicação, pela Editora do Senac do trabalho de Simone de Castro Tavares Coelho é extremamente oportuna. Originário tese de doutorado da autora na Universidade de São Paulo, o texto apresenta uma densa revisão bibliográfica sobre o tema e os resultados de uma pesquisa realizada em São Paulo e em Pittsburgh, abordando entidades civis que atuam na área de educação infantil.

Um ponto alto do livro está na busca de um esclarecimento conceitual construído pela adição cumulativa de características que identificam o terceiro setor: "conjunto de organizações sociais sem fins lucrativos", que realiza "atividades não coercitivas", buscando atender "necessidades coletivas e públicas", enfim "organizações privadas, sem fins lucrativos, e que visam à produção de um bem coletivo". Tal definição circunscreve o âmbito empírico do conceito, diferenciando-o dos "movimentos sociais" (pela perenidade institucional de seus membros), e sobrepondo-se ao conceito de "organização não governamental", que constitui parte de seu universo de abrangência. Na conceituação adotada, a diversidade do terceiro setor sobressai e abriga tanto grupos de cidadãos que se associam voluntariamente, visando a um objetivo comum, quanto entidades de defesa de direitos difusos, e ainda instituições que prestam serviços públicos. Fazem parte de seu âmbito tanto associações assistenciais quanto fundações de diversos tipos, e mais o diversificado universo das organizações não governamentais — diferenciadas por uma estrutura organizacional mais moderna que os outros tipos de instituições mencionadas. Só o universo das ONGs já recobre, num rol não exaustivo, organizações caritativas, desenvolvimentistas, cidadãs e ambientalistas.

De posse de uma delimitação clara do objeto, a autora parte para a análise comparativa da legislação que regulamenta o funcionamento do terceiro setor nos EUA e no Brasil, dando destaque aos mecanismos de financiamento e fiscalização existentes nos dois países. No caso brasileiro, constata que "o controle exercido sobre as verbas... é incipiente e realizado de forma indireta e sem aplicação de sanções adequadas", o que, em parte, se explica pela vigência de legislações antiquadas e abrangentes, que normatizam para instituições e atividades muito diferenciadas. Já, nos Estados Unidos, onde as relações entre o Estado e o terceiro setor são intensas, o controle e a avaliação das ações aparecem como o ponto chave das parcerias, fato que se expressa no intraduzível conceito de accountability, que se refere à transparência e à responsabilização pela atividade desenvolvida. Entretanto, não são só diferenciações que emergem da análise comparativa, traços comuns — como o caráter urbano das ONGs e sua maior facilidade de diálogo com os governos locais — também ficam evidentes na caracterização efetuada do terceiro setor nos dois países.

Fechando o volume, Simone Tavares Coelho aborda o tema da relação do terceiro setor com o Estado, colocando-se contrária à postura teórica que só concebe conflitos e antagonismos entre eles, e constatando que no Brasil tal relacionamento "tem ocorrido sem que haja uma orientação política ou a definição de metas e parâmetros específicos, ou seja, uma intenção consciente e premeditada para o estabelecimento de uma relação". Situação que, segundo a autora, começa a mudar na atualidade num "processo rico de troca e interação" entre atores estatais e do terceiro setor. O livro termina com um responsável alerta quanto à importância ímpar da ação do Estado no Brasil, para responder às necessidades de inclusão social, evitando "o equívoco de fazer uma apologia desmesurada do terceiro setor e despolitizar as questões sociais".

Antonio Carlos Robert Moraes

Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Avaliação, impasses e desafios da educação básica

José Roberto Rus Perez

Campinas: Unicamp, 2000, 241p.

O livro retrata 23 anos de história da rede pública estadual paulista, realizando uma criteriosa análise sob a perspectiva de avaliação de políticas, mas sem abrir mão de "uma avaliação política da política" (p. 22).

O estudo busca desenvolver uma distinção entre as fases da policy: a constituição da agenda; sua formulação, implementação e avaliação, enfatizando tanto o momento em que as propostas conquistam forma e estatuto de política ao serem definidas as metas, os objetivos e os recursos, quanto à sua implementação, isto é, quando a política se transforma em programa de governo. Ao contemplar a política educacional numa perspectiva histórica enfatizando seus principais programas, tipos de processo decisório, estrutura organizacional, mecanismos de captação e critérios para destinação de recursos financeiros, o estudo se insere num conjunto restrito de análises realizadas sobre a política educacional estadual paulista, com ênfase na avaliação de políticas.

Ao lançar mão de diferentes fontes — dados censitários; indicadores sociais; dados primários obtidos por meio de pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e em Políticas Públicas — NEPP — em um número significativo de escolas da rede pública; documentos oficiais e legislação — Rus Perez realiza amplo diagnóstico de uma instituição que, ao que tudo indica, vem apresentando dificuldade de aprendizagem.

Há diversas abordagens teóricas que analisam as políticas sociais e que sublinham a capacidade de aprendizagem institucional das organizações públicas e do quanto essa capacidade está relacionada ao modus operandi do Estado, refletindo, dessa forma, os níveis de centralização, burocratização e institucionalização do organismo estatal.

Pois é exatamente essa capacidade institucional da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo que o autor procura analisar. Ao discutir, no primeiro capítulo, as características estruturais e a dinâmica do sistema, manipula com maestria as fontes primárias e secundárias, para analisar a expansão maciça da rede de ensino pública entre 1960 e 1975, seguida de retração entre 1975 a 1985, e retomando o ritmo de atendimento até 1990.

No segundo capítulo, são avaliadas as propostas e medidas implementadas de 1967 a 1990, abrangendo os governos Abreu Sodré (1967-1971); Laudo Natel (1971-1975); Paulo Egydio Martins (1975-1979); Paulo Maluf (1977-1983); Franco Montoro (1983-1987); Orestes Quércia (1987-1991).

Cada gestão é analisada com base nas diretrizes políticas, nos programas principais, em recursos financeiros alocados, na política de recursos humanos e na avaliação de efetividade e eficácia, identificando o contexto em que as ações foram formuladas e implementadas, quais alternativas se colocavam nesse contexto e suas estratégias de implantação.

O capítulo três dedica-se a avaliar a concretização das medidas políticas da última gestão (1987-1991), em escolas da rede pública de ensino, com base em dados colhidos no ano de 1991, em 248 unidades. Os dados se referem às características de funcionamento dos serviços, à qualificação dos recursos humanos e às formas de gestão, considerando-se a seleção das variáveis de dependência administrativa, pedagógica e assistencial; equipamento pedagógico e de cozinha; mobiliário; material pedagógico; professor efetivo; funcionário no período noturno; condições de infra-estrutura e recursos financeiros.

Daí emerge toda a riqueza de análise, tendo em vista a confrontação da política como discurso, com a realidade da rede de escolas. Os dados indicam que não há possibilidade de homogeneizá-las, pois surge, no interior do sistema, uma diferenciação de unidades cuja singularidade só pode ser captada quando se olha para cada uma delas com sua dinâmica própria, suas possibilidades de ação, seus limites, sua cultura local. Nesse sentido, o autor refuta os discursos homogeneizadores que enfatizam apenas a má qualidade do ensino público, pois no universo pesquisado aparecem escolas com bom desempenho, embora em número inferior (13%), contra 64% que apresentam desempenho médio e 23% de escolas cujo desempenho é ruim.

Considerando essa singularidade, Rus Perez aponta possíveis fatores que interferem na diferenciação da rede escolar: o tempo de construção (as escolas mais novas possuem prédios cujas construções são mal-acabadas); a localização em regiões mais centrais ou menos centrais (esse fator interfere na infra-estrutura da escola tendo em vista as comunidades mais carentes ou menos carentes que as freqüentam e subsidiam pela Associação de Pais e Mestres — APM); quadro docente mais estável ou menos estável; escolas da região metropolitana e escolas do interior (invariavelmente, estas últimas podem contar com o apoio das prefeituras, mas possuem menos professores estáveis/efetivos do que as escolas da região metropolitana e das grandes cidades do interior).

No entanto, os dados apontam que a heterogeneidade das escolas possui um vetor que se sobrepõe aos demais: está intimamente associada à extração social dos alunos. A maioria das escolas ruins é freqüentada por alunos de origem social baixa. Isso não significa, no entanto, que as escolas das periferias sejam piores do que as escolas de regiões centrais, pois mesmo dentro dos bairros periféricos há uma discriminação — por parte dos moradores locais — entre escolas freqüentadas por aqueles que são pobres, daquelas que são freqüentadas por segmentos considerados muito mais pobres.

Esse mecanismo perverso distorce os objetivos universais das políticas educacionais e de seus programas, pois as escolas mais carentes, efetivamente, pouco se apropriam e se beneficiam das inovações propostas. Essa constatação corrobora análises realizadas sobre a dificuldade de se efetivar equalização das oportunidades educacionais. Nesse sentido, os dados revelam que os ideais universais não se confirmam na realidade e no cotidiano das escolas, pois a política educacional vem consolidando, ao que tudo indica, escolas de "segunda categoria", sacralizando uma dualidade na rede de ensino. Segundo Rus Perez, "uma vez implantada, essa escola se transforma numa arena, onde se renovam continuamente os conflitos e as contradições decorrentes da macroorientação da política, acrescidos das microquestões surgidas no dia-a-dia da vida escolar" (p. 178).

O autor sublinha que essa heterogeneidade deixa de ser captada pelo discurso da política educacional que vem buscando, historicamente, formular programas de forma centralizada e sem a participação dos demais atores no processo. No entanto, o discurso que apela à racionalização, à modernização e à descentralização do sistema tem sido reiterado à exaustão no período analisado, particularmente dos anos 1980 em diante. De acordo com o autor, tudo indica que há uma "correlação entre a forte presença de tais propostas no discurso e o reduzido grau de sua concretização" (p. 219), pois a cultura institucional privilegia o "conservadorismo dinâmico": ao mesmo tempo que o discurso demonstra coerência em relação aos reclamos das bandeiras mais democráticas no âmbito das lutas pela educação, ele é depositado, na forma de programas e projetos, em fluxos burocráticos que entravam parte do processo de sua implementação.

Assim é que as inovações propostas esbarram nos limites da própria cultura da organização, pois não ocorreu, ao longo do período analisado, a necessária correlação entre estratégia e estrutura organizacional. As duas únicas reformas administrativas foram a de 1969 e a de 1975, ambas sob o regime militar. No período democrático, duas tentativas frustradas — em 1985 e 1990 — não permitiram a mudança de estrutura da organização, necessária para que as estratégias inovadoras fossem acolhidas em solo mais fértil.

Nesse sentido, o autor propõe a introdução de formas organizacionais de democracia participativa no desenho dos programas propostos visando equacionar o pluralismo pedagógico da rede de escolas, pois apenas a participação dos demais atores — técnicos, professores, alunos e pais — no processo de implementação das medidas governamentais pode diminuir o risco de se potencializar as diferenças entre as escolas. Trata-se, na realidade, de reorientar a própria ação do Estado, pela introdução de novos mecanismos de gestão que proporcionem maior agilidade institucional e flexibilidade, incorporando, sobretudo, as demandas oriundas de parcelas significativas da população alijadas, historicamente, de participação na formulação e implementação das políticas públicas.

Angela Maria Martins

Fundação Carlos Chagas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Mar 2001
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