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Bissexualidade e ambiguidade: relações metafóricas e processos metonímicos em produções discursivas sobre a bissexualidade* * Este artigo foi elaborado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Resumo

A ausência de pesquisas sobre a bissexualidade no século XX somada às preocupações em torno da epidemia da AIDS possibilitou a construção de narrativas especulativas sobre a população bissexual, sendo comumente descrita como uma categoria ambígua. Mediante uma análise antropológica, propõe-se refletir sobre os complexos simbólicos que produzem a bissexualidade como uma categoria ambígua, relacionando-a com a produção discursiva sobre as ficções de contágios, essencialmente metonímicas.

Bissexualidade; Aids; Ambiguidade; Contágio; Metonímia

Abstract

The absence of research on bisexuality in the twentieth century and concerns regarding the AIDS epidemic enabled the construction of speculative narratives on the bisexual population, which is commonly described as an ambiguous category. Analyzing bisexuality through an anthropological lens, this article examines the symbolic complexes that produce bisexuality as an ambiguous category, relating it to the discursive production of fictions of contagion, which are essentially metonymic.

Bisexuality; AIDS; Ambiguity; Contagion; Metonymy

Introdução

A origem etimológica da palavra ambiguidade, descrita por Victor Turner, comporta em si dois significados subjacentes e complementares: "mover-se de um lado para o outro" e "de natureza duvidosa" (Turner, 2015:145). Essa definição dicotômica e inicial serve como chave de leitura para um conjunto de produções discursivas sobre a bissexualidade no que tange à literatura médica e midiática sobre as práticas sexuais de risco no século XX. A bissexualidade passa a ser retratada como uma categoria problemática no momento em que a preocupação sobre a propagação da AIDS para diferentes grupos sociais ganhava novos contornos, passando a ser reputada como um "vetor" e uma "ponte" de transmissão entre distintas populações. A ausência de pesquisas sobre a bissexualidade somada às preocupações em torno da epidemia da AIDS possibilitou a construção de narrativas especulativas sobre a população bissexual, sendo comumente descrita como uma categoria ambígua e de difícil localização. Essa forma de conceber a bissexualidade possui raízes históricas, remontando-se a campos diversos, como a embriologia, a anatomia, a psicanálise e a sexologia, cuja análise genealógica possibilita compreendê-la mediante um conjunto de relações entre pares de opostos, seja no âmbito do sexo, do gênero ou do desejo. A partir de uma análise antropológica sobre o papel da ambiguidade, mediante modelos de classificações culturais, este trabalho propõe refletir sobre os complexos simbólicos que produzem a bissexualidade como uma categoria ambígua, o que favoreceria tanto à construção de ficções de contágio essencialmente metonímicas quanto de fricções identitárias que, seguindo uma lógica das semelhanças e das diferenças, concentrar-se-iam sobre o polo metafórico.

O trabalho possui sete seções e uma conclusão que busca recapitular o argumento desenvolvido ao longo do texto. Na primeira e na segunda seção, expõe-se uma breve documentação sobre a simbolização da bissexualidade no imaginário social do Ocidente. Trata-se de um compilado de relatos, de matérias jornalísticas e de observações teóricas que tomaram a bissexualidade como objeto de debate em um cenário de crescente preocupação epidemiológica. O discurso ocidental passa a encarar a bissexualidade mediante metáforas espaciais e vetoriais, percebendo-a como um possível caminho para a transmissão do HIV entre distintas populações. A terceira seção propõe pensar as metáforas que foram acionadas para classificar a bissexualidade a partir da década de oitenta nos Estados Unidos e possui como objetivo refletir sobre o espaço social ambíguo ocupado pela bissexualidade nos relatos e discursos apresentados nas seções anteriores. A seção dialoga com a abordagem linguística de Roman Jakobson referente aos processos metafóricos e metonímicos que compõe a dualidade fundamental da linguagem. Propõe apontar como a concepção de linguagem do linguista russo pode indicar diretrizes investigativas para compreensão das causas que incidem na manutenção do apagamento social e da estigmatização da bissexualidade - em especial, por compartilhar uma atenção particular ao princípio da contiguidade. Na quarta seção, apresenta-se uma breve genealogia sobre a construção discursiva da bissexualidade no Ocidente e demonstra a dificuldade exposta por diferentes teóricos de integrar a bissexualidade em seus respectivos projetos científicos. A seção também demonstra que as formas de construção discursiva da bissexualidade possuíam, como matriz epistemológica, um modelo de classificação dualista do tipo pares de opostos. Nas seções seguintes, o trabalho propõe organizar o material apresentado nas seções anteriores sobre a bissexualidade, mas correlacionando-o a uma literatura antropológica sobre a ambiguidade.

O homem bissexual

Algumas das principais formas de representação da bissexualidade no final do século passado estão vinculadas a associações estabelecidas entre a problemática da AIDS e as práticas sexuais de risco envolvendo os homens bissexuais. Em 3 de abril de 1987, o New York Times apresentou uma matéria escrita por Jon Nordheimer e que abordou a temática sobre a bissexualidade e a propagação do HIV. O título da matéria foi: "O espectro da aids para mulheres: o homem bissexual"1 1 No original: "Aids Specter for women: the bisexual man" (Nordheimer, 1987). . O texto, em tom dramático, discorria sobre os perigos que rondavam as mulheres por não saberem se os seus respectivos companheiros eram bissexuais. Eles seriam os responsáveis pela disseminação da AIDS, uma "ponte" que interligaria os fantasmas e os estigmas construídos em torno da população homossexual às mulheres e esposas heterossexuais. Os homens bissexuais seriam "misteriosos" e "complexos", o que dificultaria as possibilidades de reconhecimento por parte das mulheres, favorecendo, assim, a extensão da contaminação. Para endossar essa perspectiva, a matéria apresenta a opinião da Dra. Theresa Crenshaw2 2 Na época, presidenta do American Association of Sex Educators, Counselors and Therapists. "Os homossexuais estão fora do 'armário' há muito tempo, mas os bissexuais não"; e, em seguida: "Mulheres heterossexuais vão descobrir algumas notícias muito desagradáveis sobre alguns homens que conheceram". Um cenário é conjecturado mediante um imaginário social em ascensão, os atores são dispostos em itinerários confusos e complexos no interior de um drama não menos angustiante do "medo do contágio", como aponta Balandier (2019BALANDIER, Georges. Pensar a AIDS. In: BALANDIER, Georges. O social em tempos de incerteza. São Paulo, Edições SESC, 2019, pp.324-326. Tradução: André Telles.:324).

As mulheres, continua a matéria, são deixadas por conta própria para saber a verdadeira identidade sexual dos parceiros afetivos e o medo dos homens bissexuais se acentua com a expansão da crise da AIDS pelos veículos de comunicação. "Se o cara não me disser, eu só posso adivinhar", comentou uma secretária de Miami entrevistada, e conclui: "Mesmo assim, o cara poderia ser um bom mentiroso". Outra mulher entrevistada em Miami acredita em seu potencial investigativo: "Eu não me importo com o quanto eles querem encobrir isso, seus pequenos modos afeminados alertam você". No entanto, alerta o jornalista, essa visão é totalmente contestável, pois os homens bissexuais podem parecer masculinos para as suas parceiras sexuais, "as mulheres que eles atraem". Garber chama atenção de como "o espectro do transmissor bissexual da AIDS" se tornou um dos vilões no final dos anos 80 nos Estados Unidos (Garber, 1995:104). Recolhendo alguns relatos de periódicos e revistas da época, como a Atlantic Monthly: "o papel potencial dos bissexuais na transmissão heterossexual da AIDS tem sido muito subestimado" (Garber, 1995:104), e a Newsweek que foi categórica sobre os bissexuais serem "párias definitivos da crise da AIDS" (Garber, 1995:104), Garber percebeu que a representação da bissexualidade, que possuía o homem bissexual como o principal personagem das narrativas que circundavam em certas reportagens sobre a sexualidade e as práticas de risco, caracterizava-o como o "emblema de uma duplicidade perigosa e imoral" (Garber, 1995:105), responsável pela "transmissão da AIDS para uma população inocente e confiante" (Garber, 1995:105). A Cosmopolitan, por sua vez, alertou seus leitores para o "Negócio arriscado do amor bissexual", fornecendo dicas e instruções para ajudar a detectar os homens bissexuais. Dentre alguns exemplos destacados por Garber (1995:105), têm-se: "Se os olhos do homem seguem outro homem, tenham muito cuidado"; "Suspeite se ele parecer muito interessado no modo como outros homens se vestem" ou "Se ele olhar nos olhos de outro homem por até mesmo um microssegundo a mais do que o necessário para um contato visual socialmente aceitável, cuidado". Todo um arcabouço de signos gestuais acaba por adentrar as narrativas sobre o comportamento e as competências desse homem que se disfarça e se camufla em meio às atitudes convencionais de padrões de gênero socialmente compartilháveis. O homem bissexual, segundo Garber, desempenhava a figura do "agente secreto duplo" na cobertura midiática acerca da AIDS nos anos 80. Na cultura popular, a figura do "vampiro" passava a dominar o imaginário literário como expoente de uma "atração erótica dominadora", na qual "em vez de morrer, o vampiro bissexual traz a morte - deliciosamente mascarada de prazer" (Garber, 1995:109).

Seffner (2016)SEFFNER, Fernando. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual. Jundiaí, SP, Paco editorial, 2016., em sua pesquisa sobre as formas de sociabilidade de homens bissexuais no Brasil, evidenciou que, ao iniciar a revisão bibliográfica sobre o tema em questão, um volume muito grande dos trabalhos foi direcionado para a investigação sobre a disseminação da AIDS e para as práticas sexuais de risco. Segundo o autor, o conhecimento produzido sobre a bissexualidade masculina está intimamente vinculado ao volume de pesquisas interessadas na potencialidade de transmissão do HIV do homem para a mulher e, por outro lado, na associação entre bissexualidade e homossexualidade em pesquisas médicas e epidemiológicas. O autor adverte que:

A reconstrução experimentada pelo tema da bissexualidade passa pela discussão da identidade bissexual, da subjetividade bissexual, e da existência ou não de uma cultura da bissexualidade no Brasil. A bissexualidade masculina foi vinculada à epidemia de AIDS, e isso estabeleceu novos modos de lidar com o tema, incluindo a culpabilidade dos homens bissexuais pela disseminação da epidemia (Seffner, 2016SEFFNER, Fernando. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual. Jundiaí, SP, Paco editorial, 2016.:89).

O autor é categórico ao enfatizar o tipo de sofrimento psíquico que assola os homens bissexuais na medida em que são culpabilizados pela disseminação do HIV, o que acarretaria um maior isolamento e intensificação do estigma social. As representações científicas e midiáticas estabeleceram o solo conceitual para o reconhecimento da bissexualidade enquanto uma categoria social a partir do momento em que a epidemia da AIDS ganhava novos contornos com o passar do tempo. O homem bissexual passou a ser concebido por um campo lexical pertinente às pesquisas epidemiológicas e, posteriormente, traduzido pelas diversas plataformas midiáticas até chegar à cultura popular e literária.

A mulher bissexual

Na seção anterior, pôde-se demarcar duas formas de representação da bissexualidade que se consolidou no imaginário social da década de 80, acompanhando as propagações de notícias acerca da Aids. As ideias acerca de uma propagação do vírus HIV para a comunidade de heterossexuais possuíram, como o principal personagem responsável, o homem bissexual. A falta de informações acerca dos indivíduos que mantinham relações sexuais com homens e mulheres propiciou a circulação de matérias em veículos de comunicação que pretendiam alertar sobre as especificidades do comportamento de homens bissexuais. No que tange à construção de narrativas sobre a mulher bissexual, o tema sobre a possibilidade de contaminação de mulheres lésbicas ganha força. No entanto, as pesquisas iniciadas a partir desse período focaram, principalmente, na perspectiva de transmissão proveniente de homens bissexuais, ocasionando uma defasagem sobre a perspectiva feminina. Segundo Storr (1999STORR, M. Editor's introduction. In: STORR, M. (org.). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999, pp.1-12.:7), esse cenário centrado na figura do homem ocorreu pois os pesquisadores não concebiam as mulheres como transmissores potenciais de HIV. Em contrapartida, a essa visão inicial, novos debates sobre sexo seguro foram fomentados na década de 90 nos Estados Unidos e Inglaterra por coletivos de mulheres feministas, lésbicas e bissexuais, gerando a controvérsia sobre a possibilidade de propagação entre as próprias mulheres. Nesse ambiente de intenso debate, uma das formas de representação da mulher bissexual a vinculava à fonte de perigo para as mulheres lésbicas, à medida em que as primeiras se relacionavam também com homens. Segundo Storr, as mulheres bissexuais passaram a ser retratadas como "portadoras de HIV" (Storr, 1999:7).

Essa maneira de conceber a bissexualidade está presente também em pesquisas nacionais sobre as gramáticas morais presentes na sociabilidade afetiva de mulheres bissexuais. A antropóloga Regina Facchini acentua uma zona de tensão proveniente das formas de produção da diferença e categorização de identidades relacionadas às mulheres que se relacionam com outras mulheres em seu artigo "Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo" (Facchini, 2009). Dentre o material recolhido e apresentado, um conjunto de entrevistas com mulheres de São Paulo, a autora privilegiou a análise das categorias e das convenções sociais acionadas pelas entrevistadas e que exerciam uma função de diferenciação e enunciação de identidades sociais, dentre as quais, destaca-se a bissexualidade. Diante de uma escala de distinção hierarquizante presente nas entrevistas, Facchini destaca três graus de variação: a) as mulheres que nunca tiveram relações afetivo-sentimentais com homens; as mulheres que tiveram relações com homens, mas deixaram de ter e, por fim, as mulheres que continuam mantendo relações com homens. Segundo a autora, a terceira categoria era concebida como indesejável, pois as respectivas mulheres figurariam como indivíduos "possuidores de um comportamento que ultrapassa, para a maioria das entrevistadas, o limite do aceitável e do legítimo" (Facchini, 2009:319). A terceira categoria de diferenciação do desejo entre as mulheres era representada pela identidade bissexual, cuja acusação e estigmatização era derivada de "raciocínios em que o homem é visto como promíscuo e sujo", e, por conseguinte, a mulher dessa classe seria "contaminada pela desqualificação moral que a eles se aplicam" (Facchini, 2009FACCHINI, Regina. “Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo”. In: DIAS-BENÍTEZ, Maria Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (ed.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, 2009, pp.309-341.:319). A mulher que também mantém relações com homens é percebida como indesejável, pois seria "fonte de riscos emocionais e de saúde". A categoria "saúde" designaria, aqui, tanto os aspectos da vida emocional como relativo às possibilidades de doenças sexualmente transmissíveis, como mostra uma das respostas dadas à antropóloga:

Sara: É. Eu acho que ganha. Eu fiquei traumatizada pelo fato da Nicinha ter optado pelos caras novamente. Ela ficou comigo, aí ela voltou. [...] Eu procuro assim uma pessoa na mesma idade, ou mais velha que eu e pelo menos não tenha tanto atrativo com meninos. Por causa dessa coisa da sexualidade e da DST também. É mais fácil. É mais fácil você se contaminar com os caras do que com as mulheres, eu acho, porque eles são mais promíscuos (Facchini, 2009FACCHINI, Regina. “Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo”. In: DIAS-BENÍTEZ, Maria Elvira; FIGARI, Carlos Eduardo (ed.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, 2009, pp.309-341.:320).

A autora também ressalta a o surgimento de tensões entre as categorias "bi" e "bissexual" dispostas pelas contradições de estratos sociais distintos. Segundo a autora, a adesão à "bissexualidade", como identidade legítima, é concentrada entre os mais jovens das camadas médias e médias altas, ou por mulheres mais velhas, pela proximidade com discursos advindos do campo da psicologia e da psiquiatria.

A forma de conceber as mulheres bissexuais como sendo potencialmente perigosas também pode ser verificada no artigo "Bissexualidade e gramáticas emocionais em relatos de jovens universitários do Rio de Janeiro"3 3 Esse artigo representou um recorte teórico da dissertação titulada "'Personalidade foscas'": sexualidade e roteiro em jovens universitários no Rio de Janeiro" (Calmon, 2019). A pesquisa que deu origem à dissertação foi realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na ocasião da pesquisa, foram entrevistados cinco jovens universitários, dois homens e três mulheres, que cursavam graduação em campos disciplinares que versavam entre as Ciências Humanas e as artes cênicas. (Calmon, 2019CALMON, Diego. Bissexualidade e gramáticas emocionais em relatos de jovens universitários no Rio de Janeiro. Cadernos de campo, v. 28, n.2, São Paulo, 2019, pp.282-305 [https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/164129 - acesso em: 24 mar. 2021].
https://www.revistas.usp.br/cadernosdeca...
). A partir de um conjunto de entrevistas com jovens universitários, o autor analisou algumas formas de configuração dos complexos emocionais associados ao "armário" de jovens bissexuais. No artigo, constatou-se o receio de mulheres bissexuais de informar a identidade sexual para as suas respectivas parceiras afetivas. Em um dos relatos, uma jovem expôs um modo de qualificação pejorativa que possui como alvo as mulheres bissexuais:

Entrevistada 2: E uma coisa que eu acho ruim é de muita mulher lésbica que não gosta de ficar com mulher bissexual. E nessa situação eu acho que foi por isso que a pessoa sumiu. Não sei. Porque eu conheci a pessoa no Tinder. A garota por quem eu me apaixonei, a última. A gente conversava bastante e tal. Eu tinha falado com ela que eu terminei e que eu namorava um homem. Só que ela não lembrava. A gente se encontrou pessoalmente. Aí o assunto surgiu e ela ficou me olhando assim, tipo: "Você namorou homem?" Eu me senti meio mal. Eu falei: "namorei". Eu não ia mentir. Ela começou a falar que acha estranha a bissexualidade e falou que acha mais estranho ainda em homem, tipo, homens bissexuais. Por que eu falei que me sinto mais confortável ficando com homem bissexual, por que é uma coisa que raramente acontece comigo assim. Eu só arrumo hétero. Ela falou que eu deveria achar ao contrário, por que normalmente o homem bi só quer ficar com a mulher como se fosse uma forma de ser aceito, sabe? Ser aceito na família e na rua. Ela falou que, na verdade, homens bissexuais são gays e que ficam com mulher pra ser aceito. Aí eu fiquei meio mal com isso. E ela falou que com mulher, nossa isso muitas mulheres falam, lésbicas falam que é "depósito de porra". Eu fiquei... que merda. Eu acho isso bem escroto. Muitas mulheres falam isso, inclusive muitas mulheres que eu fiquei falam isso. Eu falei: "Então, nossa, por que você ficou comigo?" Fiquei pensando assim. Foi isso.

Nesse último relato, destacam-se duas categorias de deslegitimação da identidade bissexual. A primeira qualifica o homem bissexual como uma farsa ou como um mentiroso, pois seriam "gays que ficam com mulher pra ser aceito"; por conseguinte, a segunda categoria é a expressão depreciativa "depósito de porra" para valorar negativamente a mulher bissexual que mantêm relações sexuais com homens. Nos dois casos, os termos podem ser encarados como "categorias de acusação", como propõe Gilberto Velho (1997). Para o antropólogo, as categorias de acusação seriam processos estratégicos de construção de fronteiras, de organização de sentimentos e de mapeamento das distinções sociais na vida cotidiana. O autor sugere que as categorias de acusação possuam, atreladas a si, a ideia de que as pessoas estigmatizadas detêm um alto poder de contaminação, e, consequentemente, qualquer contato com elas deve ser evitado. Essa pista parece propor um novo enfoque sobre as formas de projeção da bissexualidade e será delineada nas seções seguintes.

Entre metáforas e metonímias, o cotidiano e a linguagem

Diante do conjunto de relatos que tomam por base a bissexualidade, algumas formas de categorização emergem em modelos de distinções sociais específicas, nos quais o recurso metafórico parece ser acionado para dar conta de um conjunto amplo de condutas e identificações. As metáforas surgem como modelos reflexivos que, de alguma forma, propõem organizar não apenas o pensamento, mas a própria experiência humana. Lakoff e Johnson, em sua famosa obra Metáforas de la vida cotidiana (2004), argumentam que a metáfora estrutura os sistemas conceituais convencionais da cultura e que se expressa na própria linguagem cotidiana. De forma bem simples, a função da metáfora seria compreender e experimentar um tipo de coisa em termo de outra coisa distinta, o que influenciaria a forma como as pessoas organizam as próprias experiências pessoais e coletivas.

Por outro lado, há metáforas imaginativas e criativas, cujo processo de significação possui como efeito a reverberação através de uma rede de implicações e, por isso, destacam-se de uma mera convencionalidade (Lakoff; Johnson, 2004LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas de la vida cotidiana. Madrid, Catedra, 2004.). Pode-se, por exemplo, englobar enunciados do tipo: "os homens bissexuais são vampiros" ou "agentes secretos", como forma de destacar a imagem de um homem "complexo" e "misterioso", ao mesmo tempo que enfatiza uma forma de conduta "imoral", que age escondido e que pode vitimizar outras pessoas. O recurso metafórico serviu, nesse modelo, para organizar aspectos sociais que caracterizariam a representação do homem bissexual no imaginário social e midiático. Por outro lado, enfatiza-se também o espaço ambíguo ocupado pelas pessoas bissexuais dentre as categorias que balizam nosso vocabulário sexual.

As expressões judicativas que orientam a projeção da bissexualidade a partir de categorias de acusação, tais como "ponte" e "vetor" de contágio ou "depósito de porra", como vistos anteriormente, apresentam-se como processos de significação que extrapolam o uso coloquial e criativo proposto por Lakoff e Johnson, alcançando processos simbólicos, subjetivos e sociais que aludem ao próprio funcionamento da linguagem. Segundo Jakobson, dando prosseguimento às análises de Saussure acerca das coordenações do signo por relações sintagmáticas e associativas, em todo ato comunicativo estão implicados dois modos de arranjo dos signos: a seleção e a combinação. No primeiro caso, pressupõe-se a escolha de termos alternativos dentre um repertório de entidades linguísticas, cuja relação é estabilidade por laços de similaridade sinonímica ou pela antonímia contrastante. A segunda operação é regida pela contiguidade, pressupondo a combinação de entidades linguísticas em um dado contexto comunicativo. Na operação seletiva, orientada por relações de similaridade, há o predomínio do polo metafórico; nas operações orientadas por relações de contiguidade, predomina-se o polo metonímico.

Jakobson estende a sua análise dos polos metafóricos e metonímicos para além das manifestações comunicativas verbais4 4 Há um aspecto central no percurso teórico de Jakobson que lhe permite estender a composição dos polos metafóricos e metonímicos para além de atos linguísticos e que pode ser esclarecido pela correlação entre a ordem semiótica e a ordem semântica, como bem exalta Ricoeur (2015). De acordo com as novas aproximações, pode-se sobrepor o par sintaxe-semântica aos pares combinação-seleção, contiguidade-similaridade e, por fim, os polos metonímicos e metafóricos. Ademais, como presente nas investigações de Jakobson sobre as perturbações afásicas, o polo metafórico se estende para além de seu uso verbal, possibilitando fornecer um equivalente linguístico ao gesto. Ricoeur afirma que essa dupla aproximação enriqueceria o conceito de processo metafórico em operações que requerem a "definição, denominação, sinonímia, circunlocução, paráfrase", possibilitando a equivalência de termos entre códigos linguísticos (Ricoeur, 2015:273). . A polaridade pode ser encontrada, também, nos processos simbólicos inconscientes de elaboração onírica investigados por Freud. Os processos de "condensação" e "transferência" dos materiais do sonho estão ancorados em relações que tomam por base a contiguidade (metonímia); já os processos de "identificação" e "simbolismo" estariam caracterizados por relações de similaridade (metáfora). O mesmo esquema pode ser usado para compreender os ritos mágicos estudados por Frazer em O ramo de Ouro (1982), em que os ritos "homeopáticos" estariam determinados por relações de similaridade, enquanto que a "magia por contágio" estaria baseada em associações por contiguidade"5 5 O autor também exprime a amplitude de sua análise para o campo da literatura, em que a escola romântica estaria vinculada preponderantemente à metáfora, e o realismo, à metonímia. Na poesia, na qual há atenção ao paralelismo métrico dos versos e aos aspectos fônicos das rimas, tem-se a preponderância das relações por similitude ou contraste na escolha dos signos. Na "prosa pragmática", a atenção é sobre o referente, onde predomina o acionamento de imagens escolhidas por contiguidade, tal como ocorre na literatura realista (Jakobson; Pomorska, 1993). Na arte, o cubismo se caracteriza por uma série de sinédoques; em contrapartida, o surrealismo adotou uma perspectiva visualmente metafórica (Jakobson, 2007). (Jakobson, 2007JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo, SP, Cultrix, 2007.:61). Faz-se necessário enfatizar, em primeiro lugar, que a linguagem para Jakobson não se limita a atos verbais ou expressões linguísticas. Todo modelo comunicativo pressupõe, a priori, um sistema de signos que abarca tanto mensagens verbais quanto as gestuais. Por conseguinte, há diversas formas de construção sígnica cuja tradução entre distintos códigos permite a conversão entre modelos comunicativos. A seleção pode fluir, por exemplo, em acionamentos propriamente não verbais, como é o caso de um signo pictórico. Permanecendo no código verbal, adota-se o método "intralingual"; na relação entre diferentes sistemas de signos, adota-se o método intersemiótico (Jakobson, 2007).

O que exatamente Frazer caracterizou como "magia por contágio"? Para o antropólogo, a magia simpática frequentemente encontrada entre povos primitivos é composta por dois princípios elementares: a) o primeiro deles se baseia em uma relação por similitude, em que o semelhante produz o semelhante, o efeito se assemelha a causa. A lei da similaridade permitirá ao mago produzir o efeito desejado simplesmente imitando-o; b) o segundo princípio é o da contiguidade, em que "as coisas que estiveram em contato continuam a agir umas sobre as outras, mesmo a distância, depois de cortado o contato físico" (Frazer, 1982:34). Ora, nesse segundo caso, todo ato implicado sobre um objeto afetará as pessoas que tiveram contato com o mesmo. As duas leis, a da similaridade e a da contiguidade, comporiam, segundo Frazer, o pensamento primitivo no que tange as práticas mágicas. No entanto, tal como aponta Douglas, a importância e atualidade de suas observações sobre o pensamento primitivo possui reverberações que ultrapassam o campo da antropologia britânica e incidem tanto na psicologia quanto na filosofia moderna da associação mental, em que o encadeamento de ideias é concebido como "uma energia espontânea, incontrolada, da mente individual, uma energia que é gradualmente dominada e ensinada pelo raciocino analítico" (Douglas, 1982:12). O que torna esse exemplo interessante para a abordagem de Jakobson sobre a fundamentação bipolar da linguagem é justamente a elaboração de modelos comunicativos que abarcam tanto os atos de fala, o pensamento, os componentes pantomímicos dos rituais e outros sistemas de signos pertencentes a distintos códigos6 6 Uma interessante proposta de análise antropológica e que se baseou na distinção entre a lei da similaridade e da contiguidade pode ser encontrada no artigo titulado "Porcos espinhos na pandemia ou a angústia do contágio" (Coelho, 2020). Nesse ensaio, a autora argumenta que as ideias estabelecidas e midiatizadas por relações de contiguidade entre pessoas e objetos "contaminados", principalmente na experiência dramática de uma pandemia, são capazes de produzir uma profunda "angústia do contágio" entre a população. Os indivíduos que "consumiam" as notícias e divulgações crescentes, e muitas vezes contraditórias, dos conhecimentos científicos e que buscam solucionar e conter a transmissão do novo coronavírus denominado SARS-CoV-2, acabaram por apreender tais informações de forma "mágica", por falta de um amplo conhecimento científico no começo da pandemia. .

Para o estudo das formas de sociabilidade bissexual, essa concepção de linguagem parece essencial para a compreensão das causas que incidem na manutenção de seu apagamento e estigmatização social, em especial, por compartilhar uma especial atenção ao princípio da contiguidade7 7 Não se intentou comparar o rito mágico, em si mesmo, com a construção discursiva e simbólica da bissexualidade no Ocidente. Mas, sim, o empenho do modelo reflexivo da comunicação que apreendeu as práticas mágicas pela dualidade entre similitude e contiguidade, entre arranjos metafóricos e metonímicos. . Percebe-se nos exemplos anteriores a forma como a bissexualidade foi representada no final do século XX, tomando como exemplos chaves as distintas plataformas midiáticas e a problematização nos centros de pesquisas epidemiológicas sobre práticas sexuais de risco. Uma análise conjectural pode ser esboçada. Em relação à bissexualidade masculina, o conjunto de narrativas constrói um encadeamento contíguo de possibilidades de contágio que teria como ponto de partida a população homossexual; no segundo estágio, o encadeamento alcançaria a população bissexual masculina; por conseguinte, as mulheres heterossexuais completariam o primeiro circuito de transmissão presente nas narrativas. Esse primeiro cenário que se inicia com a população homossexual masculina e termina na população feminina e heterossexual, possui o homem bissexual como o principal "vetor", "transmissor" e "ponte" entre os dois conjuntos de populações distintos. O homem bissexual estaria mediando a possibilidade da contaminação das mulheres como retratou a edição do New York Times, em 1987 e outras comunicações midiáticas.

Um segundo modelo de circuito foi elaborado na seção sobre a bissexualidade feminina, em que a mulher bissexual desempenharia o papel de "transmissor" entre os dois grupos separados de indivíduos. Nesse caso, a mulher bissexual, ao manter contato físico com os homens, concebidos como sendo "promíscuos", serviria como a "ponte" entre a população masculina e a população de mulheres lésbicas. O "vetor" e a "ponte", no segundo exemplo, seriam as próprias mulheres bissexuais, tal como o homem bissexual no primeiro. Embora a categoria "homem promíscuo" no artigo de Facchini surja indiferente à identidade sexual, por inferência lógica, pode-se registrar a soma entre os dois circuitos contíguos, o que resultaria na conjunção entre homem bissexuais e mulheres bissexuais em uma categoria ampla. Tem-se articulado os três circuitos contíguos8 8 As formas de propagação do HIV são diversas e esse mapeamento não pressupõe a veracidade dos fatos mencionados e que ocasionaram, em certa medida, a promoção do estigma sobre a comunidade bissexual e gay ao longo das últimas décadas. :

  1. Homem gay - homem bissexual - mulher heterossexual

  2. Homem (indefinido) - mulher bissexual - mulher lésbica

  3. Homem gay - homem bissexual - mulher bissexual - lésbica

O que torna esse mapeamento necessário é compreender o espaço ambíguo e fronteiriço ocupado pela categoria bissexualidade, espaço esse que possibilita a construção desse modelo de propagação. A representação da bissexualidade como um elo de ligação e mediação, ou seja, como uma categoria intermediária, pode ultrapassar o domínio do discurso médico, abarcando também as esferas morais e simbólicas das relações interpessoais que compõem a vida social. Mas em que consiste este espaço? Como investiga-lo?

A cerca e o ambíguo

O grupo bissexual introduz incerteza e dúvida.

Havelock Ellis (1927).

A metáfora da cerca é comumente acionada para se referir à bissexualidade. Esse objeto fronteiriço que postula a posição atribuída aos bissexuais, comenta Pramaggiore (1999)PRAMAGGIORE, Maria. Extracts from epistemology of the fence. In: STORR, M. (org). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999, pp.144-149., marcou a paisagem cultural do último século. A cerca seria o local preciso da indecisão e da mediação. Podem ser permeáveis e estruturadas a partir de dois lados que se opõem numa estrutura binária, delimitando, dessa forma, os limites expansivos de cada proporção lateral. Levando a cabo essa metáfora da cerca, que se apresenta comumente na vida cotidiana ou, como nesse caso, em programas disciplinares específicos como presente no trabalho a "Epistemologia da cerca" (Pramaggiare, 1999), o que exatamente significa estar numa posição mediadora? E mais, o que exatamente a bissexualidade separa? Essa posição complexa também está presente no itinerário discursivo de projetos científicos que se propuseram a pensar a bissexualidade?

A genealogia da bissexualidade pode ser delimitada por três etapas específicas9 9 A evolução conceptual e terminológica da bissexualidade não se deu de forma linear e contínua, mas de maneira fragmentada e ramificada por uma amálgama de dispositivos sexuais que versavam por diferentes caminhos institucionais e políticos sobre a sexualidade humana. Para uma abordagem crítica da história da bissexualidade, ver Angelides (2001). . Em um primeiro momento, a vizinhança terminológica da bissexualidade (como bissexuado) se referiu tanto ao modelo de reprodução bissexual, envolvendo um organismo macho e outro fêmea, quanto, como aponta Macdowall (2009)MACDOWALL, Lachlan. Historicising contemporary bisexuality. Journal of bisexuality, 9 (1), Haworth Press, Inc., 2009, pp.3-15 [http://hdl.handle.net/11343/34739 - acesso em: 24 mar. 2021].
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, para classificar certas formas de vida indiferenciadas ou que apresentavam características de ambos os sexos10 10 Segundo Angelides (2001), a bissexualidade e o hermafroditismo possuíam uma relação de sinonímia nos estudos sobre o desenvolvimento embrionário e, em alguns momentos, foram utilizados de forma intercambiável. . Essa forma de encarar a bissexualidade se deu, principalmente, entre os fisiologistas, os anatomistas e os botânicos do século XIX. Essa herança etimológica foi o argumento utilizado por Alfred C. Kinsey, proeminente biólogo e sexólogo norte americano do século XX, para lamentar o uso da palavra bissexual com o objetivo de classificar indivíduos envolvidos em atividades homossexuais e heterossexuais na escala Kinsey11 11 A Escala Kinsey é o resultado de um conjunto de pesquisas coordenado por Alfred C. Kinsey, a partir de 1930, e que objetivava compreender os padrões de comportamento sexual de homens e mulheres norte-americanos dessa época. Segundo o autor, pode-se traçar um continuum de variações do comportamento sexual humano que varia de seu limite inicial 0, relativo às pessoas que mantiveram relações exclusivamente heterossexuais, até o número 6, relativo às pessoas que mantiveram relações exclusivamente homossexuais (Kinsey, 1999). Kinsey também ressalta a dificuldade de classificação da bissexualidade em sua escala: a bissexualidade seria representada pelo número 3 ou pelo intervalo que abrange os números 1 ao 5? Interessante notar, também, que a própria especificação da bissexualidade é tributária a uma abordagem dualista, na qual a carga semântica estabelece uma relação entre a heterossexualidade e a homossexualidade, mas sem, no entanto, definir-se integralmente por uma ou outra. . A sua crítica reside no fato de o termo ser ainda utilizado no campo da biologia para especificar estruturas ou grupos de indivíduos que possuem a anatomia, ou as funções, relativas a ambos os sexos, permitindo classificar seres humanos, plantas e animais. Em suas palavras:

(...) é lamentável que a palavra bissexual tenha sido escolhida para descrever esse grupo intermediário. O termo é usado como substantivo, designando indivíduos - pessoas; e o significado da raiz da palavra e a maneira como é geralmente usada implicam que essas pessoas têm qualidades masculinas e femininas em seus corpos individuais (Kinsey, 1999KINSEY, Alfred C. et al. Sexual behavior in the human male. In: STORR, M. (org.). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999.:37, tradução minha)12 12 No original: "(...) it is rather unfortunate that the word bisexual should have been chosen to describe this intermediate group. The term is used as a substantive, designating individuals-persons; and the root meaning of the word and the way in which it is usually used imply that these persons have both masculine qualities and feminine qualities within their single bodies" (Kinsey, 1948, apudStorr, 1999:37). .

Na aurora do século XX, a bissexualidade adquire novos contornos semânticos, passando de um registro físico e corporal para o registro psicológico e mental. Nessa etapa, pode-se utilizar como exemplo a noção de "bissexualidade psíquica" de Sigmund Freud para determinar o desenvolvimento do psiquismo humano. De acordo com Roudinesco (1998), a ideia inicial era compartilhada por Wilhelm Fliess, para quem "a bissexualidade biológica prolongava-se, no ser humano, numa bissexualidade psíquica" (Roudinesco, 1998:72), ou seja, uma correlação entre o biológico e o psíquico. Freud romperia com essa perspectiva em sua famosa obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, ao tratar a bissexualidade em termos de uma dualidade entre o masculino e o feminino e atrelando-as às expressões que designariam as oposições entre a "atividade" e a "passividade"13 13 O próprio Freud parecia ciente das dificuldades desse modelo de organização psíquica que associava a masculinidade à "atividade", e a feminilidade à "passividade, como constata em textos posteriores como, por exemplo, em "Compêndio de psicanálise", de 1938. no desenvolvimento psicossexual do indivíduo14 14 Nas palavras de Freud (2016:55), ao tratar sobre a dualidade entre o sadismo e masoquismo: "Nós [os psicanalistas] nos inclinaríamos antes a relacionar esses opostos simultaneamente com a posição masculino e feminino, reunida na bissexualidade - que frequentemente deve ser substituída, na psicanálise, por aquela entre ativo e passivo". (Storr, 1999STORR, M. Editor's introduction. In: STORR, M. (org.). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999, pp.1-12.). Mais tarde, Freud salienta a insustentabilidade dessa hipótese e, em alguns de seus últimos escritos, pôde-se perceber que a sua descrição da bissexualidade é mediada pela conceitualização sobre o desejo e a distribuição da libido expressada de modo manifesto ou latente, mas permanecendo atrelada à dualidade heterossexualidade e homossexualidade15 15 Ver "Análise terminável e interminável" (Freud, 2020), em que Freud assinala a existência da bissexualidade mediante a sua universalidade psíquica, mas orientada pelo objeto de desejo. Se a bissexualidade é uma manifestação da libido sexual por pessoas do próprio sexo e do sexo oposto, neste caso, "aprendemos que todos os indivíduos são bissexuais (...), distribuem sua libido por objetos de ambos os sexos, de modo manifesto ou latente (Freud, 2002:313)". Tal como presente na descrição de Kinsey, a definição da bissexualidade é tributária ao dualismo ou posições polares de heterossexualidade/homossexualidade, o que não significa dizer que haja uma aproximação evidente entre os estudos de Kinsey e a teoria psicanalítica. Como veremos adiante, os estudos sobre a bissexualidade parecem estabelecer um conjunto de possíveis relações entre termos opostos. .

Por fim, a bissexualidade tal como é concebida nos dias atuais, ou seja, como uma relação complexa entre a homossexualidade e a heterossexualidade, foi desenvolvida a partir de 1970 pelo surgimento do ativismo gay nos Estados Unidos e, estendendo-se nas décadas seguintes, pela intensificação de pesquisas que buscavam esclarecer o advento e propagação do HIV/ AIDS na população americana. Segundo Gagnon (2006)GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro, Garamond, 2006., as atividades sexuais de pessoas bissexuais adquiriram enlevo substantivo em pesquisas científicas no momento em que uma atenção maior foi direcionada ao controle e à disseminação da doença entre a população heterossexual, tornando-se um momento chave para a formulação discursiva de um conjunto de imagens e representações sociais sobre a bissexualidade a partir de um paradigma médico e epidemiológico. Um segundo ponto a ser destacado está relacionado aos critérios de classificação que circunscrevem a bissexualidade: trata-se de uma categoria orientada pelo comportamento ou de uma identidade autodeclarada pela pessoa que se identifica como bissexual? Segundo Gagnon, muitos trabalhos etnográficos e entrevistas com "grupos de conveniência" apontaram para uma ampla variedade de pessoas que mantinham, ou mantiveram em algum momento da vida, relações sexuais com homens e mulheres, mas que não se identificavam como bissexuais. Seria o caso, por exemplo, de jovens que trabalham no universo da prostituição ou de pessoas inseridas em prisões e que mantiveram relações com pessoas do mesmo gênero (Gagnon, 2006). Tais situações levantam questões éticas importantes para o desenvolvimento de pesquisas e na projeção de políticas públicas que englobam as especificidades inerentes a diferentes grupos sociais. Uma tentativa de amenizar tais dificuldades classificatórias sem escorregar em modelos estigmatizantes como a categoria "grupo de risco", pode ser encontrada na consolidação da sigla HSH (homens que fazem sexo com homens) por diferentes órgãos multilaterais como o Programa Global de Aids (PGA), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS). No entanto, como aponta Calazans e Facchini (2022)CALAZANS, Gabriela; FACCHINI, Regina. “Mas a categoria de exposição também tem que respeitar a identidade”: HSH, classificações e disputas na política de Aids. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 10, 2022, pp.3913-3922 [ https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.08142022 - acesso em: 24 dez. 2022].
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, a adoção dessa categoria na esfera das políticas de HIV/AIDS acabaria por homogeneizar diferentes segmentos sociais, o que acarretaria na violação das "expectativas normativas de reconhecimento no cuidado público em saúde" (Calazans; Facchini, 2022CALAZANS, Gabriela; FACCHINI, Regina. “Mas a categoria de exposição também tem que respeitar a identidade”: HSH, classificações e disputas na política de Aids. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 10, 2022, pp.3913-3922 [ https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.08142022 - acesso em: 24 dez. 2022].
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:3919).

No âmbito da história dos movimentos sociais, a bissexualidade passa a ser concebida como uma identidade legítima por aqueles que lutaram pelo seu reconhecimento social. O contraste e a busca por visibilidade de pessoas que se autodeclaravam bissexuais se acentuaram à medida que os próprios coletivos reagiram a falta de aceitabilidade da identidade bissexual. Em alguns momentos, as tensões são percebidas na desconfiança de coletivos de gays e de lésbicas que lutavam por visibilidade e equidade de direitos políticos na sociedade civil. A bissexualidade parecia dissolver as fronteiras entre as identidades que buscavam lutar por visibilidade e por representatividade política na cena pública e, por conseguinte, a sua inserção na agenda e na pauta política de outros movimentos sociais se deu de maneira conflituosa e desconfiada. Garber cita um evento particularmente interessante ocorrido em janeiro de 1990, em Northampton, Massachusetts: a votação idealizada pelos organizadores da Marcha do Orgulho Gay e Lésbico de Northampton para retirar do título a palavra bissexual (Garber, 1995). Os argumentos apresentados para a retirada da palavra manifestavam o receio de que a identidade bissexual pudesse, de alguma maneira, dissolver as fronteiras identitárias presentes no grupo: "tudo se mistura e de repente nos tornamos 'gente gay'" (Garber, 1995:89).

Em relação às pesquisas produzidas no Brasil, Helena Monaco demonstra como distintos trabalhos sobre a bissexualidade realizados por pesquisadoras no Brasil também exploraram a inserção conflituosa da identidade bissexual em diferentes coletivos sociais (Monaco, 2020). Dentre os trabalhos citados por Monaco, destacam-se a pesquisa de Regina Facchini sobre o grupo CORSA (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor), na qual são evidenciados os constrangimentos vividos por pessoas bissexuais e por pessoas que mencionaram práticas sexuais com diferentes gêneros16 16 Atualmente, coletivos e estudiosos têm questionado as abordagens que concebem a bissexualidade mediante uma lógica binária e excludente. Argumenta-se que que o desejo afetivo-sexual de pessoas bissexuais vai além da dicotomia homem-mulher ao abranger outras identidades de gênero. Essa ressignificação incluiria também as pessoas transsexuais e não-binárias que também integram coletivos bissexuais. , e o trabalho de Camila Dias Cavalcanti, realizado junto ao Núcleo Bis, de Brasília, em que se relatou que as pessoas que se autodeclaravam bissexuais eram alvos de piadas maldosas e possuíam um espaço limitado no dia a dia do grupo17 17 Os trabalhos citados por Monaco são: "Sopa de Letrinhas'? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo" (Fachinni, 2002) e "Visíveis e invisíveis: práticas e identidade bissexual" (Cavalcanti, 2007). O trabalho de Monaco mobiliza muitas autoras e autores que se debruçaram sobre o tema da construção da identidade bissexual no Brasil e possui uma interessante cronologia da história de movimentos bissexuais. Monaco também realizou seu trabalho de campo em um coletivo monodissidente, o coletivo B, na cidade de São Paulo. A autora aponta para diferentes rótulos pejorativos relatados por pessoas que se identificam como bissexuais e ressalta a precarização da saúde mental de pessoas bi. .

Ao se traçar esse mapeamento de construção terminológica da bissexualidade, mediante três cenários culturais e histórico específicos, tem-se a elaboração de três registros de pares de opostos: macho/fêmea; masculino/feminino e heterossexual/homossexual, nos quais o respectivo lócus discursivo da bissexualidade se inicia no corpo ou no organismo, segue para o psiquismo humano e, por fim, concentra-se no registro do desejo. Como será examinado a seguir, nos três modelos, a condição ambígua se consolida pelos critérios dualistas de avaliação epistemológica sobre a sexualidade e pela sua marginalização nas teorias modernas sobre a sexualidade18 18 É necessário destacar a crítica de Judith Butler sobre a equivalência pressuposta em muitos projetos teóricos que tendem a perceber o gênero como uma inscrição cultural e o sexo como dado biológico neutro. Para a autora, o sexo não deve ser alocado no registro da natureza em oposição a um gênero culturalmente constituído e elaborado, mas seria o efeito de práticas discursivas que, mediante uma lógica binária, atuaria "como fundação naturalizada da distinção natureza/cultura e das estratégias de dominação por ela sustentada" (Butler, 2015:74). A crítica de Butler se estende também aos projetos teóricos, em especial à psicanálise, que abordam a bissexualidade como uma predisposição inata e anterior à entrada do sujeito na culturaAo contrário, a bissexualidade associada à fundação psíquica a ser recalcada em um dado momento do desenvolvimento psicossexual do indivíduo seria também uma produção discursiva orientada por uma lógica da "heterossexualidade normativa" (Butler, 2015:102). Por essa perspectiva, os registros de pares de opostos analisados anteriormente devem ser encarados como efeitos de produções discursivas e não como dados de uma natureza neutra. (Macdowall, 2009MACDOWALL, Lachlan. Historicising contemporary bisexuality. Journal of bisexuality, 9 (1), Haworth Press, Inc., 2009, pp.3-15 [http://hdl.handle.net/11343/34739 - acesso em: 24 mar. 2021].
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).

A metáfora da "cerca" parece sugerir uma compreensão da bissexualidade como sendo o termo mediador de registros dualistas. Os termos para a sua determinação conceitual advêm da própria estrutura binária de classificação dos corpos, do psiquismo e do desejo. O dito sobre a bissexualidade mobiliza os termos que se compreendem separados por uma relação de antítese elementar sem, no entanto, converter-se em uma totalidade clara de simples operação somatória. A própria ideia de "bissexualidade universal", segundo Mircea Eliade, é tributária da crença religiosa que proclama a bissexualidade divina, a perfeita união dos opostos que consolidaria uma unidade-totalidade, na qual "tudo o que é por excelência deve ser total, comportando a coincidentia oppositorum em todos os níveis e em todos os contextos" (Eliade, 1999ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. In: Eliade, Mircea. Mefistófeles e o andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus. São Paulo, Martins Fontes, 1999, pp.77-130.:111). Ora, uma análise antropológica que esteja interessada em investigar as motivações culturais sobre a estigmatização e o apagamento social da bissexualidade deve então seguir uma outra trajetória analítica. De que maneira pode-se localizar conceitualmente a bissexualidade, tendo em vista a trajetória de sua construção discursiva no seio de perspectivas dualistas sobre a sexualidade? Um percurso sobre as teorias antropológicas da ambiguidade permitirá consolidar uma outra visão sobre as relações possíveis entre pares de opostos, sem que, com isso, torne-se necessário ceder ao argumento que versam sobre a sua universalização. Neste sentido, discursos que propõem pensar a bissexualidade mediante metáforas espaciais como uma cerca, um muro ou uma ponte, possuem a conveniente vantagem de adentrarem o imaginário social e o conjunto das representações sociais da bissexualidade, propiciando uma análise que privilegie pensar a bissexualidade como um objeto legítimo da antropologia.

Ambiguidade e tabu

Em primeiro lugar, a lógica que mobiliza tais metáforas, a referencialidade a um ponto mediador dentre elementos polares, pode ser alinhada à maneira pela qual Edmund Leach descreve a ambiguidade a partir de sua correspondência elementar com os tabus sociais. A lógica que subjaz o seu raciocínio permite pensar a ambiguidade enquanto condição elementar de categorias que são anômalas àquelas que estão em oposição mútua. Em suas palavras: "Se A e B são duas categorias verbais de tal modo que B é definido como "aquilo que A não é" e vice-versa, e se existe uma terceira categoria C, que faz a mediação desta distinção, com C compartilhando os atributos de A e B, então C será tabu" (Leach, 1983:181).

Esse pequeno princípio que compõe a teoria geral sobre o tabu de Leach permite identificar as categorias que implicam uma dificuldade classificatória como potencialmente perigosas para uma estrutural social ampla. Os sistemas de classificação culturais, entendidos como uma "grade discriminatória" que opera por meio da separação, determinação e ordenação de categorias sociais provenientes da linguagem, acabam por organizar a própria visão de mundo e a realidade cultural em que o indivíduo se encontra inserido. Nas fissuras desses modelos classificatórios, encontram-se os elementos ambíguos que possuem a terrível qualidade de encarnar ambos os lados de uma relação do tipo pares de opostos, sem serem compreendidos como uma simples soma geral dos termos19 19 Certas substâncias, como as fezes, a urina e o sêmen, são consideradas ambíguas, pois são, ao mesmo tempo, parte do eu e do não-eu. Elas são associadas a um grupo de elementos que são alvos de uma intensa aversão pública derivada do tabu social que compartilham. Em diversas partes do mundo, são essas substâncias que compõem os "remédios" mágicos e, sendo assim, não podem ser consideradas apenas sujas, mas também, poderosas (Leach, 1983). . Para Leach, esse é o caso de certos personagens mitológicos que parecem mediar a relação entre os homens e os deuses. Se a imagem de Deus for construída como uma antítese binária de sua relação com o homem, pois, diferentemente do primeiro, o humano se encontra em sua dimensão terrestre e não celestial, a mediação dessa relação (mundo dos vivos/ mundo dos deuses) é efetuada por um conjunto de "seres sobrenaturais de natureza altamente ambígua", dentre os quais pode-se destacar: "deidades encarnadas, mães virgens, monstros sobrenaturais que são metade homem/ metade animal" (Leach, 1983:181).

A figura mitológica do trickster parece corresponder a essa análise de Leach. O trickster pode ser encontrado em um conjunto amplo de mitologias nativas ao redor do mundo e é comumente concebido como um ser ambíguo, ambivalente e multiforme; pode mudar de sexo a depender de seu interesse momentâneo e está rodeado por toda sorte de confusão ocasionada pelas traquinagens que lhe são características. Segundo Lévi-Strauss, é comumente associado ao coiote e ao corvo na mitologia ameríndia (embora seja esboçado como um animal antropomórfico, ou seja, meio homem e meio animal), posto que esses animais ocupam o lugar privilegiado como mediadores entre termos polares. Compreendidos como "comedores de carniça", os coiotes e os corvos estão mediando a oposição entre os herbívoros e os predadores-caçadores, na medida em que se alimenta de carne animal, sem, entretanto, matar o que comem (Lévi-Strauss, 2017).

Esse pequeno princípio antropológico permite situar as formas sociais de apreensão da bissexualidade pela linguagem metafórica como um possível efeito da relação cultural ambígua estabelecida por elementos que estão situados na interface de relações polares. Nesse caso, também, são as categorias ambíguas que possuem a capacidade de despertar grande interesse da humanidade, além de provocar sentimentos intensos de tabu. Dessa inerente contradição, tais categorias podem operar como elementos que simbolizam o perigo e a desordem para a ordem social, e, neste caso, deve-se buscar as fontes desse poder embaraçador.

Ambiguidade e o perigo do interstício

A ideia de que indivíduos que possuem status social ambíguo concentram em si o potencial da desordem não é nova. Em sua obra Pureza e perigo20 20 A obra de Mary Douglas busca promover extensos diálogos com questões antropológicas de sua época e que versavam sobre o sagrado e o profano, a religião e a magia, desordem e estrutura social. Não cabe no corpo deste artigo o resgate de toda a discursão de Douglas dentro desses respectivos debates. No entanto, seu posicionamento acerca da ambiguidade e da desordem social merece destaque. (2017), Mary Douglas defende que noções gerais sobre a higiene e rituais de purificação tendem a buscar o controle ou, ao menos, minar a potencialidade de desordem causada pela sujeira, pela ambiguidade ou pela anomalia. As ideias de poluição e higiene, por sua vez, estariam relacionadas a sistemas simbólicos que buscam promover a ordem das coisas, através de modelos classificatórios e da instauração da ordem social ampla. Elementos que não possuem lugar específico ou que se encontram fora do lugar acabam por embaraçar princípios organizatórios que edificam a estrutura social, daí que "ideias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões têm como sua função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada" (Douglas, 2017:15).

As crenças na proliferação da poluição e do contágio possuem terreno fértil para a exploração da organização sexual e sua carga simbólica para a vida social. As crenças de poluições são empregadas como analogias que expressam a ordem social. Seus exemplos são categóricos para a discussão: "há crenças de que cada sexo é perigoso para o outro através do contato com fluidos sexuais. De acordo com outras crenças somente um dos sexos é posto em perigo pelo contato com o outro, geralmente masculino, mas algumas vezes o inverso" (Douglas, 2017DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 2017.:14). No entanto, tais padrões de perigo sexual ou de poluição corporal não estão inscritas na relação dos sexos em si mesma, mas antes expressam simbolicamente a relação entre as partes na sociedade, atuando "como reflexos de projetos de simetria ou hierarquia que se aplica ao sistema social mais amplo" (Douglas, 2017DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 2017.:14). Torna-se interessante observar que tais elementos possuem correspondência simbólica com as substâncias ambíguas expostas por Leach, aquelas que estão circunscritas por regras de evitação e intenso tabu, além de grande interesse e importância na prática mágica. As relações de contato, contágio e as substâncias implicadas nos rituais ou nas regras de evitação e de purificação dependem, em grande parte, do cenário cultural e cosmológico em que estão inseridos, e são tributários do sistema social que organiza e estabelece as relações sociais possíveis entre os seus membros.

O potencial de desordem está intrinsicamente implicado nas margens, nos interstícios dos princípios de classificação, nas zonas ambíguas e anômalas que ameaçam embaraçar as fronteiras21 21 É o caso das mulheres Kahsin, em que, conforme Douglas (2017:126), "unindo dois grupos poderosos o do marido e o do irmão, ela detém um papel interestrutural e acredita-se que ela seja agente de bruxaria inconsciente involuntária. Algo parecido ocorre com a figura do pai entre a cultura matrilinear dos trobriandeses e Ashants, ou com a figura do irmão da mãe na cultura patrilinear dos Tikopias e Tallensis. Em ambos os casos, tanto o pai quanto o irmão da mãe nos cenários culturais específicos são considerados fontes de perigo". e, por conseguinte, apresentam-se como uma preocupante fonte de poder e perigo. Os indivíduos que de alguma forma permanecem nessa zona opaca carregam em si o peso da carga simbólica dos efeitos da transgressão e são comumente acusados de cometer atos de bruxaria ou culpabilizados pelas tragédias e infortúnios da comunidade. São intrusos no subsistema comunitário, e a sua posição social ambígua é encarada como uma ameaça à ordem social. Nesse ponto de sua argumentação, interessa a Douglas compreender a bruxaria não apenas como uma presumida força psíquica, mas lhe assegurar uma explicação que leve em conta a própria estrutural social como condição de seu exercício e produção de crenças sobre os seus efeitos simbólicos. São os espaços intersticiais que atraem medo e aversão e, a esses espaços sociais ambíguos, é creditada uma espécie de poder inarticulado, capaz de irromper com a ordem estipulada pelo poder advindo do sistema social articulado.

Victor Turner apresenta uma abordagem semelhante sobre a natureza ambígua dos jovens neófitos da cultura Ndembu. Ao adentrarem o período liminar dos ritos de passagem, os jovens são destituídos de sua posição social, tornando-se invisíveis e potencialmente contaminantes para os demais indivíduos. Nessa fase de transição, a sua "condição é de ambiguidade e paradoxo, uma confusão de todas as categorias costumeiras" (Turner, 2005:141). A "persona liminar" se encontra "aquém e além" de toda estabilidade classificatória, inclusive em relação ao seu sexo, e são consideradas contaminadoras para as pessoas que não foram "vacinadas" contra eles. Nesse exemplo, Victor Turner propôs uma perspectiva dinâmica das crenças sobre a impureza e a poluição, pois seu objetivo foi compreender o estado social ambíguo de jovens Ndembu que ingressaram nos processos simbólicos que caracterizam os ritos de passagem. O que é importante salientar nesse caso é a relação estabelecida entre a ambiguidade e o potencial de desordem e de contaminação que se estabelece nas zonas liminares da estrutural social.

Bissexualidade e ambiguidade

O espaço ocupado pela bissexualidade é estabelecido e disposto pelo conjunto dos termos que a constituem e que lhe imprimem um modelo de relações ambíguas. A bissexualidade não se assenta facilmente nos modelos dualistas de registro da sexualidade historicamente elaborados (macho/fêmea; masculino/feminino; heterossexual/homossexual) e, como referenciada na metáfora da "cerca" ou do "muro", ela parece tocar os elementos que compõem os termos polares, mas sem se conformar em nenhum dos lados; manifesta-se como um "sinal da certeza da ambiguidade, da estabilidade da instabilidade" (Garber, 1996GARBER, Marjorie. Vice Versa: bissexualidade e o erotismo na vida cotidiano. Rio de Janeiro, Record, 1996.:77).

Mediante a proposta de teorização antropológica da ambiguidade por Leach e Douglas, a bissexualidade se constitui no interstício de modelos de classificação que organizam as noções basilares de uma ordem social ampla22 22 Um desafio adicional deve ser levado em consideração em novas pesquisas sociológicas acerca da bissexualidade. Deve-se levar em conta a disputa por legitimidade pública e pela adesão a discursos sobre a identidade bissexual historicamente estabelecidos no Ocidente. Nem todas as formas de classificação possuem o mesmo grau de absorção e validade social, da mesma forma que nem todas as elaborações populares são contempladas pela doxa. e que diz respeito à sexualidade humana. Essa condição ambígua e liminar está presente na vida social de seus agentes de diferentes maneiras. Torna-se mais perceptível quando orientada por uma manifesta renúncia ou transladação identitária, instituída tanto a nível linguístico quanto performático: "Por que vocês não podem ser gays por um dia?" (Garber, 1995:89). Essa possibilidade de negociação e deslizamento da identidade sexual se encontra intimamente vinculada à invisibilidade da identidade bissexual, na qual a falta de uma "forma" axiomática pode ser traduzida para o debate sobre a bissexualidade, a partir de seu caráter marginal e pela falta de elementos identificatórios socialmente compartilháveis23 23 Esse é um importante argumento para a discussão sobre o apagamento social da bissexualidade. Encontra-se presente, também, no trabalho de Regina Ferro do Lago, intitulado: "Bissexualidade masculina: uma identidade negociada?" (1999). . Nesse sentido, pode-se encontrar relatos que busquem um referencial dualista para dar conta de experiências envolvendo indivíduos bissexuais e que não necessariamente se encontram relacionados aos critérios de silenciamento quanto ao armário de pessoas LGBTQI+, embora possuam ampla afinidade com as reservas e ressalvas relacionadas ao sigilo e à exposição de si. Em ambos os casos, seja o trânsito da identidade uma opção pessoal ou uma necessidade imediata, um jogo de diferenciações e similaridades entra em cena mediante o conjunto de símbolos acionados para se determinar as fronteiras que diferenciam as identidades sociais, tais como: as vestimentas, os trejeitos, as entonações, as performances, as narrativas pessoais e as confissões referentes ao armário ou direcionadas às possibilidades de sua dissolução. No campo simbólico da vida social, as fronteiras do corpo ultrapassam o seu limite físico e se encontram entrelaçadas com os valores sociais culturalmente estruturados. O corpo, segundo Mary Douglas, é encarado como um "símbolo da sociedade", ou seja, os poderes e os perigos concernentes à estrutura social são reproduzidos no próprio corpo. A metáfora que alude às mulheres bissexuais pode ser, agora, melhor compreendida. A lógica que organiza as diferenciações sociais e que busca a concretude de sua inteligibilidade e visibilidade cultural se conjuga às respectivas regras de evitação que a acompanham e consolidam uma amplitude moral coercitiva. A ideia que correlaciona semanticamente o corpo a um depósito, uma espécie de receptáculo, encarna a dinâmica relacional das margens identitárias, em que o elemento masculino substitui, operacionalizado como sinédoque24 24 Segundo Jakobson (2015), a sinédoque seria uma espécie de metonímia que estabelece uma relação pars pro toto (parte pelo todo). , uma forma de relação a ser evitada - o relacionamento com os homens. As constelações metafóricas repousam sobre uma base simbólica de orientação preponderantemente metonímica.

O conjunto de discursos midiáticos e médicos no século XX sobre o homem bissexual, tal como apresentado no início desta comunicação, parece engendrar a dupla problemática que envolve, por um lado, a descrição sobre a possibilidade dos homens bissexuais se "camuflarem" entre homens heterossexuais e, por outro, a forma como são concebidos e designados como "vetores" para a contaminação de distintas populações. Tem-se equacionado um conjunto de concepções sobre as semelhanças e as diferenças que agem no nível do comportamento e das atitudes interpessoais e que ganham forma mediante a organização dualista do gênero e da sexualidade. As relações de contágio, tal como apresentadas anteriormente de forma um tanto fantástica, estão implicadas nas próprias crenças de poluição e sortilégios que são atribuídas às zonas fronteiriças, de difícil definição, opacas a modelos vigentes de classificação. É nesse sentido que a metáfora do vampiro alude a uma forma de realidade social que combina a dupla competência semântica da ambiguidade, seja no que tange à sua "natureza duvidosa" ou a sua "falta de forma", seja nas crenças sobre a poluição e na construção de circuitos de contágio entre distintas populações. Ela representa, com significativa força expositiva, o que Balandier determinou ser a relação entre o "medo do contágio" e as "relações de evitação" em um cenário em que as relações sociais são corrompidas pela angústia da contaminação e pela alteridade compreendida como uma fonte incessante de suspeita e de incertezas (Balandier, 2019).

Conclusão

Ao longo deste artigo, argumentou-se que o polo metonímico, predominante nos rituais de contágio e determinado pela lei da contiguidade, serviria como uma chave de leitura para a promoção de associações de circuitos de contágios em cenários culturais em que a bissexualidade é concebida como um "meio-termo" em modelos dualistas de determinações do gênero e da sexualidade. No plano simbólico da vida social, essas zonas ambíguas e intersticiais estão associadas às ideias de poluição e de grande perigo de contágio para os interlocutores desprotegidos, ou seja, não "imunizados". O polo metonímico parece fincar-se nesse plano do encadeamento factual e imaginário como um vetor de significação que contribuiu para a construção social e discursiva da bissexualidade no Ocidente. O potencial de desordem associado à bissexualidade se manifesta, então, como um trânsito constante entre dois mundos, cujos rastros permaneceriam em estado latente, na iminência de uma alteridade indesejável e conflitante, e atuaria como um foco de periculosidade para as identidades interlocutoras. A construção social da bissexualidade, histórica e culturalmente tecidas no Ocidente, institui uma dupla problemática que se manifesta tanto a nível das diferenciações e das similitudes - nos riscos de assimilação e de silenciamento, problemática relacionada à invisibilidade social da identidade bissexual - como também em narrativas de contágio que, articulando-se a ideias de contaminação moral e de transgressões dos distanciamentos e das fronteiras identitárias, contribui diretamente para a sua estigmatização.

A atenção direcionada à ambiguidade possibilitou ratificar a importância multivocal de seu alcance investigativo que, longe de ser concebida como um embrolho analítico, permite elucidar e adentrar um conjunto de processos simbólicos, linguísticos, sociais e subjetivos que podem compor a experiência da bissexualidade no cenário cultural do Ocidente. Esse esquema interpretativo que busca diretrizes antropológicas para as formas sociais ambíguas acaba por fortalecer e jogar luz sobre uma proposta de leitura sociocultural da bissexualidade, além de refletir sobre o seu apagamento social e sobre a extensão de sua estigmatização. No entanto, a ambiguidade não é uma especificidade idiossincrática da bissexualidade; ao contrário, ela depende de um contexto mais amplo que abarque tanto aspectos linguísticos quanto culturais e políticos. A ambiguidade é relacional, ela depende da disposição dos termos que estão implicados na análise e, consequentemente, do contexto sociocultural em que estão inseridos.

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  • 1
    No original: "Aids Specter for women: the bisexual man" (Nordheimer, 1987NORDHEIMER, Jon. Aids specter for women: the bisexual man. The New York Times, 04/03/1987 [https://www.nytimes.com/1987/04/03/us/aids-specter-for-women-the-bisexual-man.html - acesso em: 24 mar.2021].
    https://www.nytimes.com/1987/04/03/us/ai...
    ).
  • 2
    Na época, presidenta do American Association of Sex Educators, Counselors and Therapists.
  • 3
    Esse artigo representou um recorte teórico da dissertação titulada "'Personalidade foscas'": sexualidade e roteiro em jovens universitários no Rio de Janeiro" (Calmon, 2019CALMON, Diego. Bissexualidade e gramáticas emocionais em relatos de jovens universitários no Rio de Janeiro. Cadernos de campo, v. 28, n.2, São Paulo, 2019, pp.282-305 [https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/164129 - acesso em: 24 mar. 2021].
    https://www.revistas.usp.br/cadernosdeca...
    ). A pesquisa que deu origem à dissertação foi realizada com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na ocasião da pesquisa, foram entrevistados cinco jovens universitários, dois homens e três mulheres, que cursavam graduação em campos disciplinares que versavam entre as Ciências Humanas e as artes cênicas.
  • 4
    Há um aspecto central no percurso teórico de Jakobson que lhe permite estender a composição dos polos metafóricos e metonímicos para além de atos linguísticos e que pode ser esclarecido pela correlação entre a ordem semiótica e a ordem semântica, como bem exalta Ricoeur (2015). De acordo com as novas aproximações, pode-se sobrepor o par sintaxe-semântica aos pares combinação-seleção, contiguidade-similaridade e, por fim, os polos metonímicos e metafóricos. Ademais, como presente nas investigações de Jakobson sobre as perturbações afásicas, o polo metafórico se estende para além de seu uso verbal, possibilitando fornecer um equivalente linguístico ao gesto. Ricoeur afirma que essa dupla aproximação enriqueceria o conceito de processo metafórico em operações que requerem a "definição, denominação, sinonímia, circunlocução, paráfrase", possibilitando a equivalência de termos entre códigos linguísticos (Ricoeur, 2015:273).
  • 5
    O autor também exprime a amplitude de sua análise para o campo da literatura, em que a escola romântica estaria vinculada preponderantemente à metáfora, e o realismo, à metonímia. Na poesia, na qual há atenção ao paralelismo métrico dos versos e aos aspectos fônicos das rimas, tem-se a preponderância das relações por similitude ou contraste na escolha dos signos. Na "prosa pragmática", a atenção é sobre o referente, onde predomina o acionamento de imagens escolhidas por contiguidade, tal como ocorre na literatura realista (Jakobson; Pomorska, 1993JAKOBSON, Roman; POMORSKA, K. Diálogos. São Paulo, Cultrix, 1993.). Na arte, o cubismo se caracteriza por uma série de sinédoques; em contrapartida, o surrealismo adotou uma perspectiva visualmente metafórica (Jakobson, 2007JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo, SP, Cultrix, 2007.).
  • 6
    Uma interessante proposta de análise antropológica e que se baseou na distinção entre a lei da similaridade e da contiguidade pode ser encontrada no artigo titulado "Porcos espinhos na pandemia ou a angústia do contágio" (Coelho, 2020COELHO, Maria Claudia. Porcos-espinhos na pandemia ou a angustia do contágio. DILEMA: Revista de estudo de conflitos e controle social. Reflexões na pandemia, Rio de Janeiro, 2020, pp.1-10. [ https://www.reflexpandemia.org/texto-3 - acesso em: 24 mar. 2021].
    https://www.reflexpandemia.org/texto-3...
    ). Nesse ensaio, a autora argumenta que as ideias estabelecidas e midiatizadas por relações de contiguidade entre pessoas e objetos "contaminados", principalmente na experiência dramática de uma pandemia, são capazes de produzir uma profunda "angústia do contágio" entre a população. Os indivíduos que "consumiam" as notícias e divulgações crescentes, e muitas vezes contraditórias, dos conhecimentos científicos e que buscam solucionar e conter a transmissão do novo coronavírus denominado SARS-CoV-2, acabaram por apreender tais informações de forma "mágica", por falta de um amplo conhecimento científico no começo da pandemia.
  • 7
    Não se intentou comparar o rito mágico, em si mesmo, com a construção discursiva e simbólica da bissexualidade no Ocidente. Mas, sim, o empenho do modelo reflexivo da comunicação que apreendeu as práticas mágicas pela dualidade entre similitude e contiguidade, entre arranjos metafóricos e metonímicos.
  • 8
    As formas de propagação do HIV são diversas e esse mapeamento não pressupõe a veracidade dos fatos mencionados e que ocasionaram, em certa medida, a promoção do estigma sobre a comunidade bissexual e gay ao longo das últimas décadas.
  • 9
    A evolução conceptual e terminológica da bissexualidade não se deu de forma linear e contínua, mas de maneira fragmentada e ramificada por uma amálgama de dispositivos sexuais que versavam por diferentes caminhos institucionais e políticos sobre a sexualidade humana. Para uma abordagem crítica da história da bissexualidade, ver Angelides (2001)ANGELIDES, Steven. A history of bisexuality. Chicago, University of Chicago Press, 2001..
  • 10
    Segundo Angelides (2001)ANGELIDES, Steven. A history of bisexuality. Chicago, University of Chicago Press, 2001., a bissexualidade e o hermafroditismo possuíam uma relação de sinonímia nos estudos sobre o desenvolvimento embrionário e, em alguns momentos, foram utilizados de forma intercambiável.
  • 11
    A Escala Kinsey é o resultado de um conjunto de pesquisas coordenado por Alfred C. Kinsey, a partir de 1930, e que objetivava compreender os padrões de comportamento sexual de homens e mulheres norte-americanos dessa época. Segundo o autor, pode-se traçar um continuum de variações do comportamento sexual humano que varia de seu limite inicial 0, relativo às pessoas que mantiveram relações exclusivamente heterossexuais, até o número 6, relativo às pessoas que mantiveram relações exclusivamente homossexuais (Kinsey, 1999KINSEY, Alfred C. et al. Sexual behavior in the human male. In: STORR, M. (org.). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999.). Kinsey também ressalta a dificuldade de classificação da bissexualidade em sua escala: a bissexualidade seria representada pelo número 3 ou pelo intervalo que abrange os números 1 ao 5? Interessante notar, também, que a própria especificação da bissexualidade é tributária a uma abordagem dualista, na qual a carga semântica estabelece uma relação entre a heterossexualidade e a homossexualidade, mas sem, no entanto, definir-se integralmente por uma ou outra.
  • 12
    No original: "(...) it is rather unfortunate that the word bisexual should have been chosen to describe this intermediate group. The term is used as a substantive, designating individuals-persons; and the root meaning of the word and the way in which it is usually used imply that these persons have both masculine qualities and feminine qualities within their single bodies" (Kinsey, 1948, apudStorr, 1999STORR, M. Editor's introduction. In: STORR, M. (org.). Bisexuality: a critical reader. New York, Routledge, 1999, pp.1-12.:37).
  • 13
    O próprio Freud parecia ciente das dificuldades desse modelo de organização psíquica que associava a masculinidade à "atividade", e a feminilidade à "passividade, como constata em textos posteriores como, por exemplo, em "Compêndio de psicanálise", de 1938.
  • 14
    Nas palavras de Freud (2016:55), ao tratar sobre a dualidade entre o sadismo e masoquismo: "Nós [os psicanalistas] nos inclinaríamos antes a relacionar esses opostos simultaneamente com a posição masculino e feminino, reunida na bissexualidade - que frequentemente deve ser substituída, na psicanálise, por aquela entre ativo e passivo".
  • 15
    Ver "Análise terminável e interminável" (Freud, 2020), em que Freud assinala a existência da bissexualidade mediante a sua universalidade psíquica, mas orientada pelo objeto de desejo. Se a bissexualidade é uma manifestação da libido sexual por pessoas do próprio sexo e do sexo oposto, neste caso, "aprendemos que todos os indivíduos são bissexuais (...), distribuem sua libido por objetos de ambos os sexos, de modo manifesto ou latente (Freud, 2002:313)". Tal como presente na descrição de Kinsey, a definição da bissexualidade é tributária ao dualismo ou posições polares de heterossexualidade/homossexualidade, o que não significa dizer que haja uma aproximação evidente entre os estudos de Kinsey e a teoria psicanalítica. Como veremos adiante, os estudos sobre a bissexualidade parecem estabelecer um conjunto de possíveis relações entre termos opostos.
  • 16
    Atualmente, coletivos e estudiosos têm questionado as abordagens que concebem a bissexualidade mediante uma lógica binária e excludente. Argumenta-se que que o desejo afetivo-sexual de pessoas bissexuais vai além da dicotomia homem-mulher ao abranger outras identidades de gênero. Essa ressignificação incluiria também as pessoas transsexuais e não-binárias que também integram coletivos bissexuais.
  • 17
    Os trabalhos citados por Monaco são: "Sopa de Letrinhas'? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo" (Fachinni, 2002) e "Visíveis e invisíveis: práticas e identidade bissexual" (Cavalcanti, 2007CAVALCANTI, Camila Dias. Visíveis e invisíveis: Práticas e identidade bissexual. 2007. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Centro de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2007.). O trabalho de Monaco mobiliza muitas autoras e autores que se debruçaram sobre o tema da construção da identidade bissexual no Brasil e possui uma interessante cronologia da história de movimentos bissexuais. Monaco também realizou seu trabalho de campo em um coletivo monodissidente, o coletivo B, na cidade de São Paulo. A autora aponta para diferentes rótulos pejorativos relatados por pessoas que se identificam como bissexuais e ressalta a precarização da saúde mental de pessoas bi.
  • 18
    É necessário destacar a crítica de Judith Butler sobre a equivalência pressuposta em muitos projetos teóricos que tendem a perceber o gênero como uma inscrição cultural e o sexo como dado biológico neutro. Para a autora, o sexo não deve ser alocado no registro da natureza em oposição a um gênero culturalmente constituído e elaborado, mas seria o efeito de práticas discursivas que, mediante uma lógica binária, atuaria "como fundação naturalizada da distinção natureza/cultura e das estratégias de dominação por ela sustentada" (Butler, 2015:74). A crítica de Butler se estende também aos projetos teóricos, em especial à psicanálise, que abordam a bissexualidade como uma predisposição inata e anterior à entrada do sujeito na culturaAo contrário, a bissexualidade associada à fundação psíquica a ser recalcada em um dado momento do desenvolvimento psicossexual do indivíduo seria também uma produção discursiva orientada por uma lógica da "heterossexualidade normativa" (Butler, 2015:102). Por essa perspectiva, os registros de pares de opostos analisados anteriormente devem ser encarados como efeitos de produções discursivas e não como dados de uma natureza neutra.
  • 19
    Certas substâncias, como as fezes, a urina e o sêmen, são consideradas ambíguas, pois são, ao mesmo tempo, parte do eu e do não-eu. Elas são associadas a um grupo de elementos que são alvos de uma intensa aversão pública derivada do tabu social que compartilham. Em diversas partes do mundo, são essas substâncias que compõem os "remédios" mágicos e, sendo assim, não podem ser consideradas apenas sujas, mas também, poderosas (Leach, 1983).
  • 20
    A obra de Mary Douglas busca promover extensos diálogos com questões antropológicas de sua época e que versavam sobre o sagrado e o profano, a religião e a magia, desordem e estrutura social. Não cabe no corpo deste artigo o resgate de toda a discursão de Douglas dentro desses respectivos debates. No entanto, seu posicionamento acerca da ambiguidade e da desordem social merece destaque.
  • 21
    É o caso das mulheres Kahsin, em que, conforme Douglas (2017DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 2017.:126), "unindo dois grupos poderosos o do marido e o do irmão, ela detém um papel interestrutural e acredita-se que ela seja agente de bruxaria inconsciente involuntária. Algo parecido ocorre com a figura do pai entre a cultura matrilinear dos trobriandeses e Ashants, ou com a figura do irmão da mãe na cultura patrilinear dos Tikopias e Tallensis. Em ambos os casos, tanto o pai quanto o irmão da mãe nos cenários culturais específicos são considerados fontes de perigo".
  • 22
    Um desafio adicional deve ser levado em consideração em novas pesquisas sociológicas acerca da bissexualidade. Deve-se levar em conta a disputa por legitimidade pública e pela adesão a discursos sobre a identidade bissexual historicamente estabelecidos no Ocidente. Nem todas as formas de classificação possuem o mesmo grau de absorção e validade social, da mesma forma que nem todas as elaborações populares são contempladas pela doxa.
  • 23
    Esse é um importante argumento para a discussão sobre o apagamento social da bissexualidade. Encontra-se presente, também, no trabalho de Regina Ferro do Lago, intitulado: "Bissexualidade masculina: uma identidade negociada?" (1999).
  • 24
    Segundo Jakobson (2015)JAKOBSON, Roman. Decadência do cinema? In: Jakobson, Roman. Linguística. Poética. Cinema. São Paulo, Perspectiva, 2015, pp.153-161., a sinédoque seria uma espécie de metonímia que estabelece uma relação pars pro toto (parte pelo todo).
  • *
    Este artigo foi elaborado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2022
  • Aceito
    06 Fev 2023
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