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Crescendo pessoas, relações e lugares: experiências cabo-verdianas sobre família e mobilidade* * Este trabalho foi realizado com apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e da UnB - Universidade de Brasília.

Growing People, Relations and Places: Cape Verdean Experiences about Family and Mobility

Resumo

O contexto cabo-verdiano (no passado e no presente) é caracterizado por uma forte relação entre família e mobilidade, sugerindo que as práticas e concepções locais sobre parentesco não se esgotam no sangue, nem na partilha de substância em situação de co-presença. Partindo da minha experiência etnográfica entre mulheres cabo-verdianas na cidade italiana de Nápoles, o objetivo deste texto é refletir sobre a maneira como mobilidade e parentesco se relacionam na prática, assim como sobre as repercussões que a análise do caso cabo-verdiano pode ter sobre os estudos de parentesco na antropologia.

Palavras-chave:
Cabo Verde; Itália; Parentesco; Migração; Gênero.

Abstract

In the past and present Cape Verdean context, there is a Strong connection between family and mobility. This fact suggests that the local practices and conceptions about kinship do not exhaust themselves neither in the blood ties, nor in the sharing of substances in situations of co-presence. Based on my ethnographic experience with Cape Verdean women who live in the Italian city of Naples, this paper aims to analyze the way how mobility and kinship interact in practice, as well as the impact that the Cape Verdean case can have on the anthropological studies about kinship.

Key Words:
Cape Verde; Italy; Kinship; Migration; Gender

Famílias e lugares cabo-verdianos

Inúmeros estudos identificam a mobilidade como um valor central da vida social cabo-verdiana, marcando diversas esferas da vida de homens, mulheres e crianças.1 Para maiores detalhes sobre essa bibliografia acerca da relação entre mobilidade e parentesco entre cabo-verdianos, conferir: Andall (1998), Carling (2001 e 2004); Carling e Batalha (2008); Carreira (1977 e 1983); Carter e Aulette (2009); Fikes (2009); Finan e Hendersen (1988);Meintel (1984); Trajano Filho (2009); Vasconcelos (2004) etc. No que tange especificamente ao parentesco, esses estudos2 2 Ver especialmente: Akesson (2004); Dias (2000); Drotbhom (2009); Lobo (2007). enfatizam que a solidariedade e o tratamento - ou seja, as formas cotidianas de estar perto 3 3 Os termos reportados em itálico correspondem a expressões nativas e/ou em língua estrangeira. - são os dois elementos fundamentais na definição de quem está próximo ou distante. Com efeito, o conceito de parente inclui o universo dos consanguíneos, dos afins e também dos vizinhos, dos compadres e dos amigos. Nesse contexto, assim como o parentesco não se limita à família nuclear, a mobilidade não se limita à migração.

Conforme descreve Lobo (2007Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007.) ao refletir sobre família e migração feminina em Cabo Verde4 4 O arquipélago de Cabo Verde está situado a 500 Km da costa do Senegal e esteve desabitado até o início da colonização portuguesa (que se estendeu de 1460 e 1975). Ele é formado por dez ilhas que diferem umas das outras, em termos de paisagem, clima, recursos naturais, língua e cultura. Uma das ilhas não é habitada (devido a suas condições climáticas desfavoráveis ao assentamento humano); as outras nove (Brava, Fogo, Santiago, Maio, Boa Vista, Sal, São Nicolau, São Vicente e Santo Antão) são um pouco menos inóspitas e algumas chegam a ser férteis, enquanto a maioria das outras não é favorável à agricultura por seu caráter arenoso ou rochoso. O português é a língua oficial, mas a língua franca é o crioulo - cuja sintaxe é africana e o vocabulário português - sendo falados vários crioulos nas diferentes ilhas. A religião mais difundida é o catolicismo, mas nas variadas ilhas estão presentes também religiões de matriz africana. , as crianças da ilha de Boa Vista circulam amplamente pela vizinhança fazendo mandados 5 5 Mandados é o termo comumente utilizado em diferentes ilhas de Cabo Verde para se referir às tarefas realizadas por pessoas de todas às idades (por exemplo, trabalhos temporários, venda de produtos confeccionados em casa ou responsabilidade nos afazeres domésticos); no caso das crianças, porém, osmandados englobam todas as suas atividades cotidianas que implicam em movimento, em manter-se ocupado (cf. Lobo, 2011; Vasconcelos, 2012). e sendo aguentadas 6 6 Aguentar uma criança é uma expressão utilizada em Cabo Verde que pode apresentar dois significados, a saber, cuidar ocasionalmente de uma criança ou tomar para si a responsabilidade por criá-la - assumindo o lugar da mãe dela e tratando-a como se ela fosse o próprio filho. Além disso, o termoaguentar apresenta um sentido mais amplo, vinculado às obrigações recíprocas entre parentes, sendo a expressão aguentar a família comumente utilizada para se referir à ajuda (especialmente econômica) entre familiares (cf. Lobo, 2007). por várias mulheres, que residem em diferentes casas. Por sua vez, o universo masculino é aquele da rua, sendo a rotina (diária e de vida) dos homens marcada pela não-fixação na esfera doméstica. Assim, é comum e relativamente aceitável que eles mantenham relações afetivas com mais de uma mulher ao mesmo tempo e que somente na maturidade se fixem com uma delas, casando-se formalmente.

Nesse contexto, as responsabilidades econômicas, emocionais e práticas das casas (especialmente os cuidados com as crianças) passam à margem da paternidade, sendo partilhadas e distribuídas entre as mulheres, naquela que a autora denomina de rede de solidariedade feminina. Efetivamente, faz parte da experiência feminina local passar por um período, durante a juventude (aproximadamente entre os dezesseis e os quarenta anos), no qual as mulheres (que muitas vezes já são mães nessa idade, mas não coabitam com seus cônjuges) estão às voltas com preocupações conjugais e econômicas que requerem mobilidade: por exemplo, sair de casa para se encontrar com seus companheiros, trabalhar fora de casa, migrar etc. É esperado que as mulheres se dediquem a essas esferas e compartilhem os cuidados domésticos com outras mulheres que fazem parte da rede de solidariedade feminina, e que, juntas, aguentama família. Essa rede é mediada pelos homens e engloba as vizinhas, as comadres e as amigas, além dos membros femininos da família afim e consanguínea. Em particular essa rede é mediada pela avó (geralmente a avó materna, mas pode ser também a avó paterna ou a companheira do avô materno), sendo geralmente ela a pessoa que aguenta as crianças.

Lobo (2011Lobo, Andréa. Making Families: Child mobility and familiar organization in Cape Verde. Vibrant, vol. 8, nº 2, Associação Brasileira de Antropologia, 2011, pp.197-219. [ [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1809-43412011000200009&script=sci_arttext - acesso em: 22 set 2015]
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S180...
) mostra que, durante a maturidade, as mulheres mais velhas (que geralmente já são avós) têm tempo para suprir as necessidades dos netos durante a infância, sendo a proximidade física e a fixação centrais para o desempenho do papel de avó - enquanto a distância física e a mobilidade são intrínsecas ao papel da mãe. No contexto cabo-verdiano, portanto, a maternidade é um ciclo que se inicia quando as mulheres dão luz aos filhos e se conclui quando elas ajudam a criar os netos: essa relação de parentesco exige que se realize uma soma entre duas gerações e envolve outras mulheres, além da mãe, no compartilhamento cotidiano de substâncias.

Em particular, quando a mulher migra e o filho é criado em Cabo Verde, a rede de solidariedade feminina adquire maior força e centralidade, pois a grande distância da mãe (em termos espaciais e temporais) aumenta a importância das outras pessoas que aguentam a criança. Por um lado, as crianças medeiam a relação entre as pessoas que as aguentam e as mães que trabalham no exterior, cimentando os laços sociais entre elas e fortalecendo a rede de solidariedade feminina. Por outro lado, essas pessoas realizam uma mediação essencial no que tange à relação entre as mães e os filhos: elas ajudam a alimentar no filho a memória da mãe, e assim, cultivam o amor entre eles, apesar da distância física que os separa, contribuindo para que não haja confusão entre os papeis da mãe e da pessoa que aguenta a criança. Nos casos de migração, portanto, dar e receber, depender mutuamente um do outro, trocar reciprocamente valores materiais e imateriais (como comida, dinheiro, conhecimento e sentimento) preenchem - por meio daqueles que Lobo (2007Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007.) denomina de signos de proximidade7 7 Lobo (2007) lança mão da noção de signos de proximidade de duas maneiras: para pensar as relações genealógicas enquanto forma primária de estabelecer conexões através de uma primeira troca de fluidos; para explorar as maneiras de criar proximidade à distância por meio das trocas (materiais, cognitivas e emocionais) que se instauram entre as pessoas que migram e aquelas que permanecem no arquipélago. - um espaço presente no domínio local de parentesco, que não se esgota no sangue, nem na troca de fluidos.

À luz desses estudos e do trabalho de campo de três meses que realizei entre cabo-verdianos residentes na cidade italiana de Nápoles, o objetivo deste texto é refletir sobre as maneiras como mobilidade e parentesco se relacionam na prática, analisando as maneiras como as relações familiares são, não apenas atualizadas, mas também fortalecidas, através da distância e apesar dela. Assim, procuro mostrar como os signos de proximidade (cf. Lobo, 2007Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007.) são centrais para o fortalecimento e a atualização das práticas que fazem família entre os cabo-verdianos que residem na Itália, assim como entre eles e seus parentes que residem em outros locais. Ao focar nos signos de proximidade o presente artigo se inspira na teorização sobre relatedness (Carsten, 1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997., 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.), ao mesmo tempo em que busca ir para além dela. De fato, ainda que essa teorização traga em si importantes ganhos analíticos, ela se baseia sobre uma vinculação implícita entre relatedness e imobilidade, a qual não se aplica a todos os contextos etnográficos.8 8 Os diferentes contextos caribenhos correspondem a outro caso em que essa vinculação entre relatedness e imobilidade não parece se aplicar, conforme discuti em outro trabalho (Bongianino, 2014) e retomarei brevemente adiante.

O termo relatedness foi proposto pela antropóloga inglesa JanetCarsten (1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997., 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.) enquanto uma alternativa às ideias pré-concebidas de parentesco e uma abertura para as formas locais de agir, de definir e de conceituar as relações entre as pessoas que se tratam como parentes. Carsten (1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997., 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.) propõe uma nova maneira de abordar as relações familiares, mostrando que as formas locais de relatedness podem ir para além do sangue, sendo construídas pelos atos cotidianos de viver junto fisicamente e pela partilha de substâncias em situações de co-presença (como a partilha do sêmen, do leite materno, da comida etc.). No entanto, ao sustentar que alguém se torna parente consumindo junto e convivendo no mesmo espaço, a antropóloga inglesa estabelece, implicitamente, a necessidade da proximidade física para que haja partilha de substâncias, para que haja atos cotidianos de viver junto e, consequentemente, para que haja construção do parentesco por meio das práticas derelatedness.

Essa vinculação entre relatedness e imobilidade é coerente com o contexto etnográfico de Carsten (1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997.), onde a mobilidade física parece ser disruptiva para as relações sociais e familiares. De fato, em sua monografia sobre a ilha de Langwaki, na Malásia, a autora mostra como a recorrência da mobilidade e da migração na história local é associada, negativamente, à diferença e à não incorporação. Ao longo da obra, a antropóloga inglesa evidencia não apenas que pessoas diferentes se tornam semelhantes por meio do parentesco, mas também que, no passado e no presente da ilha, pessoas semelhantes podem se tornar diferentes (ou seja, não parentes), ao mudar-se ou não manter seus vínculos. Assim, parece haver, em Langwaki, uma equivalência entre mudar-se e não manter seus vínculos, uma vez que ambos os atos resultariam na transformação em não parentes. Em outras palavras, o estudo de Carsten (1997)Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997. sugere que, em Langwaki, haveria uma vinculação entre ruptura dos vínculos e mobilidade, ao mesmo tempo em que haveria uma vinculação entre a manutenção dos vínculos, relatedness e imobilidade.

Essa vinculação se transforma em um pressuposto problemático quando a antropóloga britânica transpõe sua argumentação específica, sobre relatednessna ilha de Langwaki (cf. Carsten, 1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997.), para sua teorização geral sobre relatednessenquanto proposta teórico-metodológica para os estudos de parentesco em geral (cf. Carsten, 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.). Efetivamente, o pressuposto da necessidade da proximidade física para que haja partilha de substâncias (e, consequentemente, para que haja construção do parentesco por meio das práticas de relatedness) não se aplica, por exemplo, aos significados e às práticas de relatedness de contextos caracterizados por uma forte relação entre família e mobilidade - como no caso cabo-verdiano, que é tomado como objeto de estudo neste texto.

Buscando superar a limitação apontada acima, inspiro-me na noção derelatedness de maneira análoga à forma como a antropóloga dinamarquesa, Karen Fog Olwig (2007Olwig, Karen Fog. Caribbean journeys: an ethnography of migration and home in three family networks Durham, Duke University press Books, 2007.) se apropria dessa noção. Ao analisar três redes familiares cujas raízes estão ancoradas em diferentes contextos socioeconômicos no Caribe e cujos membros se encontram dispersos entre os Estados Unidos, a Inglaterra e vários países caribenhos, a autora se atém aos princípios metodológicos de relatedness, os quais permitem descrever a família enquanto um fenômeno construído processualmente, através de afirmativas e práticas concretas (cf. Carsten, 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.:24, apud Olwig, 2007:84).

Conforme argumentei em outro trabalho (Bongianino, 2014 Bongianino, Claudia Fioretti. Tornar-se afro-caribenho. Ensaio bibliográfico sobre família e mobilidade no Caribe. Revista Teoria e Culturavol. 9, UFJF, Juiz de Fora, 2014, pp.63-76.), atendo-se aos princípios metodológicos de relatedness, Olwig (2007Olwig, Karen Fog. Caribbean journeys: an ethnography of migration and home in three family networks Durham, Duke University press Books, 2007.) ignora, intencionalmente talvez, o pressuposto da proximidade física e da imobilidade que está presente na teorização de Carsten (2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.). Mais que isso, a antropóloga dinamarquesa desenvolve uma teorização que permite descrever os objetos analisados enquanto processos de tornar-se (processes of becoming), entre os quais é possível incluir os processos que proponho denominar de fazer família e fazer lugar.

Em diálogo com a argumentação acima, sustento que no contexto cabo-verdiano o processo de fazer família (ou seja, de construí-la processualmente através de afirmativas e práticas concretas) inclui as formas cotidianas de estar perto. De fato, no contexto cabo-verdiano, a expressão estar perto foca na proximidade relacional, mais do que na proximidade física, e inclui a possibilidade de manter uma proximidade à distância - como nos casos de migração ou simplesmente nos casos em que os familiares residem na mesma localidade geográfica, mas em diferentes casas. Antes de prosseguir e buscando reproduzir aqui um pouco de minha experiência etnográfica, peço licença ao leitor para contar uma história cabo-verdiana.

Experiências cabo-verdianas na Itália

O ano é 1982. Uma jovem sai de sua ilha natal levando consigo alguns de seus bens, entre os quais algumas roupas e muitas fotografias, além dos documentos necessários para realizar uma viagem internacional. Quase três décadas depois, ela comenta com uma amiga na cidade italiana de Nápoles: "Vim apenas com uma pequena mala na mão, mas ela estava cheia de saudade e de sonhos por uma vida melhor".

Ivone foi para Nápoles em busca de uma vida melhor para si e para o filho (Chico), então com 3 anos. Ela morava na ilha cabo-verdiana da Boa Vista desde os 12 anos de idade, quando saiu da ilha de São Vicente e foi morar junto com o pai e a companheira dele, Ana, após o falecimento da mãe em 1973. Aos 21 anos, ela foichamada (ou seja, contratada à distância) pela italiana Peppa, para trabalhar como empregada doméstica notte e giorno(literalmente, noite e dia)isto é, dormindo na casa dos patrões.

Peppa é amiga da patroa de Rosa - que, por sua vez, é irmã da nossa protagonista, Ivone. Rosa já estava em Nápoles havia alguns anos, trabalhando para Alba, a amiga de Peppa. Esta última, admirada pelo trabalho de Rosa, perguntou à Alba se sua funcionária doméstica podia lhe indicar alguém para trabalhar notte e gorno em sua casa. Assim, Rosa chamou Ivone, a qual entrou na rede de indicações, contato e apoio que, desde a década de 1960, coloca em movimento o fluxo entre a Itália e Cabo Verde. Com efeito, essa rede permite aos italianos contratar trabalhadores domésticos bons e de confiança dispostos a trabalhar notte e giorno - já que tendencialmente apenas os migrantes aceitam esse arranjo laboral, enquanto a maioria dos residentes realiza somente serviços domésticos na modalidade lungo ore (literalmente, por hora), isto é, sem dormir na casa dos patrões. Por outro lado, essa mesma rede de indicações, contato e apoio permitia aos cabo-verdianos, e especialmente às mulheres, concretizar o ideal local, expresso pela máxima de que para crescer é preciso sair. De fato, os patrões pagavam por todas as despesas de viagem da futura empregada doméstica; pela emissão dos documentos necessários para sair de Cabo Verde e permanecer regularmente na Itália; por todos os custos de alimentação e moradia da funcionária. Assim, eles lhe forneciam a segurança de um emprego estável, bem remunerado e legal, com a garantia de todos os benefícios sociais (entre os quais, férias e aposentadoria).

Antes de sair de Cabo Verde, Ivone trabalhava como cabeleireira, mas como o salário não era bom, ela optou por ir para a Itália - sendo o projeto migratório visto como uma via legítima para aguentar sua família e alcançar seu ideal devida boa familiar (i.e. ter uma renda fixa, construir uma casa, garantir um futuro melhor para si e para a família). Ela manteve o filho, Chico, em Cabo Verde, sob os cuidados de Ana, a companheira do pai dela. Periodicamente, Ivone passava suas férias no arquipélago, onde visitava os parentes e amigos, trazendo presentes para todos, especialmente para Chico. Ela conta:

Era difícil ficar longe do meu filho, [...] mas a distância não foi um problema. De qualquer forma eu telefonava, ele me escrevia e eu escrevia sempre. Então não era muito um problema. Quando eu ia passar férias em Cabo Verde, eu voltava para a Itália pensando que não precisava me preocupar, pois iria rever meu filho dali a um ano, dois no máximo. Por isso, não foi tão sofrido. [...] Meu filho nunca ficou com raiva de mim, até porque ninguém deixava que ele sentisse que eu nãoestava perto. Inclusive porque, se ele precisasse de alguma coisa, ele sempre me dizia ou dizia à companheira do meu pai, que cuidava dele; ela, então, me falava e eu sempre dava o que ele pedia. Ele dizia, eu quero isso, quero aquilo, quero aquilo outro e eu mandava na hora! Nunca deixei que ele sentisse falta de nada.

Após residir em Nápoles alguns anos, ela conheceu um italiano, com quem teve sua segunda filha, Kiara (hoje, 24 anos), que criou consigo na Itália. Quando o casal foi morar junto, Ivone levou seu primeiro filho, Chico (então com 11 anos, hoje, 31), para morar consigo. Entretanto, o relacionamento de Ivone com o companheiro italiano não deu certo e o casal se separou.

Atualmente ela reside em sua stanza (ou seja, uma casa, cuja estrutura é parecida com uma kitinete), situada em um bairro popular da região central de Nápoles, chamado Montesanto. Junto com Ivone, moram os filhos (Chico e Kiara) e as duas netas, Alessia (7 anos) e Kessy (5 anos) - filhas de Kiara com o companheiro cabo-verdiano que ela conheceu na Itália. Kiara sempre morou em sua cidade natal, onde conviveu (desde quando era criança) com italianos e com estrangeiros - entre os quais, inúmeros cabo-verdianos. Muitos destes fazem parte do círculo mais íntimo de convívio de Kiara, como Federica.

Tal qual Ivone, a mãe de Federica, Antônia, também é cabo-verdiana e foichamada para Nápoles, onde conheceu o pai de sua filha (no caso, um cabo-verdiano). Também Antônia teve sua filha em Nápoles e a criou consigo, após ter mantido o primeiro filho em Cabo Verde, sob os cuidados dos avós maternos. À diferença de Ivone, porém, Antônia não levou o primeiro filho para morar consigo na Itália. Ela narra:

Se você não pode estar perto fisicamente, de longe também é possível estar perto. Você se mantém pertoatravés do amor que você sente e transmite aos seus filhos. Ser mãe é uma alegria, é uma coisa bonita e para ser mãe é preciso coração. Quando você tem coração você faz tudo pelo seu filho. Isso independe de estar perto fisicamente. É importante não olhar para nada além do filho. Estar longe fisicamente não muda o amor.

Kiara e Federica são amigas de infância e, recentemente, tornaram-se madrinhas umas das filhas das outras. Essas crianças, como suas mães, são cabo-verdianas (no papel e no sentimento, como dizem). À diferença das mães, porém, Kiara e Federica são naturais de Nápoles. Mães e filhas aprenderam a falar napolitano, italiano e crioulo cabo-verdiano, circulando entre seus locais de moradia, trabalho e encontro - em Cabo Verde e na Itália.

A história de Ivone, Chico, Kiara, Antônia e Federica fornece uma visão panorâmica da vida de alguns cabo-verdianos que conheci em Nápoles e permite compreender um dos meus primeiros aprendizados durante o campo: o fato de que ser cabo-verdiano na Itália não significa ter a cidadania do Estado-Nação cabo-verdiano, tampouco nascer lá; acima de tudo, ser cabo-verdiano significa ter parentes cabo-verdianos. Por exemplo, Federica e Kiara, assim como outros filhos e netos de cabo-verdianos que nasceram e viveram na Itália, são definidas como cabo-verdianas (por si própria, por seus parentes, assim como pelas instituições cabo-verdianas e italianas).9 9 Nesse contexto, é interessante evidenciar que Federica e Kiara não têm cidadania cabo-verdiana, assim como a maioria dos filhos de cabo-verdianos nascidos na Itália. Kiara adquiriu automaticamente a cidadania italiana, pois seu pai é italiano. No entanto, Federica não têm cidadania italiana, sendo apátrida e estando, atualmente, em situação irregular na Itália. Sua situação traz à tona as dificuldades que meus interlocutores de pesquisa enfrentam na Itália, sendo discriminados ao serem reconhecidos e tratados como não italianos. Tal discriminação se expressa no regime de trabalho e na legislação (especialmente naquela relativa à concessão da cidadania italiana). Embora essa discriminação apareça sob o nome de racismo e apresente características que poderiam ser descritas em termos de xenofobia, nenhuma das denominações parece dar conta do meu contexto de análise. Efetivamente, a discriminação que os cabo-verdianos sofrem na Itália está relacionada a aspectos raciais, nacionais e socioeconômicos. Cabe ressaltar que essa discriminação coloca em risco aliberdade dos meus interlocutores de pesquisa em dois sentidos: enquanto mobilidade espacial (ou seja, a possibilidade de movimentar-se fisicamente) e enquanto mobilidade temporal (isto é, a possibilidade de crescer e de construir uma vida boa familiar). No entanto, as dificuldades vinculadas a essa discriminação são enfrentadas, manejadas e, em larga medida, contornadas por meio do estabelecimento de vínculos e da criação de relações laborais de amizade, que frequentemente utilizam o idioma do parentesco. Para uma discussão detalhada sobre essas dificuldades e tensões ver Bongianino (2012).

Nesse contexto, o adjetivo cabo-verdiano (presente nas locuções "ser cabo-verdiano" e "ter parentes cabo-verdianos") parece apresentar um sentido restrito e um sentido amplo. No sentido amplo, o adjetivo permite vincular coisas, ideias e pessoas a um espaço (territorial e relacional), assim como a um tempo (abarcado pelas experiências do presente, pela memória do passado e pelas expectativas do futuro). Esse uso amplo do adjetivo não se limita aquilo que pertence a Cabo Verde enquanto Estado-Nação - ou seja, somente às pessoas que detêm a cidadania cabo-verdiana ou que nascem no espaço físico do arquipélago (sentido restrito do adjetivo). Diferentemente, ele parece remeter às práticas que fazem os lugares, os quais são construídos nas interações sociais, fazendo com que sua espacialidade seja tanto territorial quanto relacional. Portanto, eles podem ser definidos como concepções coletivas dotadas de materialidade (cf. Henare et al., 2007), as quais dizem respeito à esfera do espaço enquanto categoria do entendimento e campo comunicativo (cf. Trajano Filho, 2010Trajano Filho, Wilson, Introdução. In: Trajano Filho, Wilson. (org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília, ABA publicações, 2010, pp.7-26.).

Em diálogo com essa argumentação, Cabo Verde pode ser definido como um espaço relacional, dotado de territorialidade física, o qual engloba as coisas, ideias e pessoas cabo-verdianas - independentemente delas estarem fisicamente próximas umas às outras ou não. Além disso, é possível sustentar que, apesar de perto e longe serem advérbios dotados de uma dimensão espacial, eles não têm ligação necessária com distância ou proximidade física. Trata-se de advérbios que denotam estados relacionais, cuja espacialidade não é desterritorializada, mas tampouco pode ser limitada à territorialidade.

Assim, é possível estar perto ao manter-se próximo fisicamente e/ou ao manter-se próximo à distância por meio dos signos de proximidade - conforme explicita a citação de Antônia, reportada acima. Com efeito, o significado local deestar perto não pressupõe a co-presença e a definição de quem está próximo ou distante é feita com base em aspectos mais relacionais do que físicos.

Rede de indicações, ajuda e apoio

De acordo com a bibliografia10 10 Ver especificamenre: Evora (2003); Grassi (2008); Monteiro (1984). e com as informações que eu obtive em campo, o fluxo cabo-verdiano para a Itália é composto majoritariamente por mulheres, as quais saem do arquipélago entre os 18 e os 30 anos, entram e permanecem na Itália em situação regular, aprendem a falar italiano fluentemente e trabalham principalmente como empregadas domésticas. Inicialmente, esse fluxo foi mediado por missionários capuchinhos que moravam em Cabo Verde, os quais agiam como mediadores para que jovens cabo-verdianas fossem para a Itália realizar trabalhos domésticos nas casas das famílias da pequena burguesia urbana, onde passavam a morar. Através de contato com outros padres católicos em diferentes cidades italianas, esses religiosos conseguiam emprego para que jovens mulheres saíssem de Cabo Verde munidas de documentos e de passagens pagas, de modo a ajudar os familiares que permaneciam no arquipélago. Rapidamente, a migração feminina de Cabo Verde para a Itália desvinculou-se das organizações católicas cabo-verdianas e italianas, mantendo-se autonomamente graças à rede de indicações, ajuda e apoio. Por meio dessa rede, as migrantes cabo-verdianas, uma vez estabelecidas na Itália, viabilizam contatos para que outras pessoas também saiam de Cabo Verde rumo à Itália - como no caso da rede que conectou as irmãs, Ivone e Rosa, às italianas que as chamaram para Nápoles.

Uma vez que o projeto migratório de Cabo Verde para a Itália é viabilizado por uma rede de contato, ajuda e apoio que é em larga medida familiar, ele apresenta um caráter tanto individual quanto coletivo, gerando um conjunto de obrigações familiares (sociais e econômicas) compartilhadas por quem fica e também por quem sai. O plano inicial é permanecer no exterior tempo suficiente para construir uma casa em Cabo Verde - de modo a instaurar ali um negócio - e retornar após a aposentadoria, para usufruir dos direitos acumulados durante os anos de trabalho no exterior. Espera-se que, uma vez estabelecidos na Itália e com emprego fixo, os migrantes ajudem os familiares que ficaram em Cabo Verde por meio de trocas de vários tipos: mandando e recebendo encomendas (roupas, sapatos, utensílios domésticos), enviando remessas em dinheiro e viabilizando contatos para que outras pessoas também migrem para a Itália. Além disso, os parentes que saem devem manter contato constante por telefone e através de outras tecnologias de comunicação, assim como visitar periodicamente o arquipélago no período das férias. Por sua vez, os parentes que ficam em Cabo Verde devem cuidar da casa e dos familiares daqueles que migraram, sobretudo seus pais e filhos.

Fazer família e fazer lugar

Embora a migração seja um elemento estrutural na formação social de Cabo Verde, sair do arquipélago africano implica em separar-se da própria terra e das pessoas que permanecem nela. Tal ato gera saudade e potencializa as tensões entre proximidade e distância, as quais são inerentes ao valor que os cabo-verdianos atribuem à família e à mobilidade. No entanto, o determinante para que as relações se mantenham parece ser o fato de que os membros cumpram suas obrigações e seus papeis recíprocos, por meio dos signos de proximidade - mantendo as relações preexistentes em Cabo Verde, levando algumas delas para a Itália e criando novas relações seja em Cabo Verde, seja na Itália.

Ao longo do meu trabalho de campo, pude etnografar as diferentes maneiras como operam os signos de proximidade, atualizando e fortalecendo as práticas que fazem família entre os cabo-verdianos na Itália, assim como entre eles e seus parentes que residem alhures. Primeiramente, esses signos operam por meio da distribuição de pessoas (por exemplo, homens e mulheres que migram e retornam periodicamente ou definitivamente; filhos que são aguentados na rede de solidariedade feminina - como no caso do filho de Ivone, cuja criação foi compartilhada pela mãe e por Ana, a companheira do avô materno da criança). Outra forma como os signos de proximidade atualizam as práticas de fazer família é por meio da partilha de bens (ou seja, o envio de remessas em dinheiro e de encomendas mandadas pelo correio, por navios ou nas malas). Enfim, os signos de proximidade atualizam as práticas que fazem família por meio da circulação de informações (isto é, de notícias sobre a viabilização de novas migrações, sobre os retornos, sobre a vida cotidiana). Através da operação dos signos de proximidade, o parentesco e o espaço cabo-verdiano são constantemente (re)constituídos através das relações mantidas, levadas e criadas seja em Cabo Verde, seja na Itália, passando a englobar (inclusive territorialmente) aquela que eu denomino de Itália Cabo-verdiana.

Utilizo as expressões Nápoles cabo-verdiana e Itália cabo-verdiana inspirada no uso que Nicolas De Genova (2005) faz da expressão Chicago mexicana [Mexican Chicago]. De modo análogo, eu denomino de Nápoles cabo-verdiana e de Itália cabo-verdiana a conjuntura de relações sociais que engloba as pessoas fisicamente presentes em inúmeros lugares (ilhas de Cabo Verde, cidades italianas, ilhas e cidades de outros locais do mundo). Trata-se de uma Nápoles e de uma Itália que correspondem socioespacialmente a Cabo Verde, mas que não podem ser reduzidas a nenhuma localização espacial delimitada territorialmente. Essa conjuntura de relações sociais produz um espaço (relacional e territorial) ancorado em diversos lugares, cuja territorialidade não é aprisionada pelas fronteiras dos Estados-Nações.

Efetivamente, à medida que eu frequentava a casa dos cabo-verdianos nos vários bairros populares de Nápoles, eu pude perceber que as pessoas que residiam ali eram mais que vizinhas. Com efeito, elas viviam junto e a proximidade entre elas era favorecida pela urbanização desses locais, caracterizados por uma sequência infinda de prédios, com os apartamentos amontoados uns nos outros. Tal urbanização atenuava os marcadores de separação entre as habitações e fazia com que as vidas dos residentes se misturassem automaticamente, atravessando a paisagem e o espaço sensorial das várias casas. Por meio das portas e janelas, os vizinhos inevitavelmente se viam, se ouviam e frequentemente conversavam, partilhavam sensações, trocavam coisa e favores.

De certa forma, portanto, é possível sugerir que os cabo-verdianos em Nápoles continuam vivendo junto, como vivem em Cabo Verde: lá, os membros da família vivem junto apesar de não morar necessariamente na mesma casa e os termos vizinhos, amigos e parentes se confundem conceitualmente, pois todos partilham substâncias, trocam refeições entre si, ajudam com os filhos uns dos outros etc. Analogamente, há inúmeras relações de parentesco vinculando as diferentes casas cabo-verdianas em Nápoles, fazendo com que os universos relacionais dos territórios da Itália e de Cabo Verde não sejam tão diferentes assim um do outro. Em ambos os lugares, os cabo-verdianos e as pessoas com quem eles compartilham vínculos (de parentesco, de amizade, de vizinhança, de apadrinhamento) falam-se sempre por celular, frequentam uns as casas dos outros e se veem periodicamente.

Nesse processo, os cabo-verdianos na Itália constroem a Nápoles cabo-verdiana e a Itália cabo-verdiana, as quais não correspondem a uma realidade cultural ou social delimitada coerentemente - por exemplo, um espaço transnacional dentro do qual esses migrantes estariam contidos. Diferentemente, a Nápoles cabo-verdiana e a Itália cabo-verdiana fazem parte de uma conjuntura de relações sociais que engloba inúmeros lugares. Em outras palavras, a Nápoles e a Itália construídas por esses migrantes correspondem ao espaço (territorial e relacional) cabo-verdiano. As relações sociais das quais a Nápoles cabo-verdiana e a Itália cabo-verdiana fazem parte são constantemente criadas, levadas e mantidas por meio da circulação e da partilha entre os cabo-verdianos que residem seja na Itália, seja em Cabo Verde. Os signos de proximidade veiculados através da circulação e da partilha permitem aos cabo-verdianos na Itália superar a distância física e relacional entre eles e os familiares em Cabo Verde, ou entre eles e os cabo-verdianos e italianos com quem compartilham suas práticas de fazer família em Nápoles (sejam eles parentes, amigos, vizinhos ou compadres).

De fato, os signos de proximidade veiculados pelas práticas que fazem família - i.e. a partilha de bens, de valores, de informações e também de pessoas - atuam como contextualizações materiais do afeto entre os membros da família que estão distantes fisicamente. Nesse sentido, é a quebra dessas formas de compartilhar e não a distância física que afrouxa os vínculos entre as pessoas - mesmo em situação de proximidade física.

Cabo Verde e os estudos sobre parentesco

Como foi visto ao longo do texto, as práticas cabo-verdiana de fazer família estão centradas sobre as formas cotidianas de estar perto, as quais não pressupõem a proximidade física e permitem a manutenção de uma proximidade à distância. Independentemente da migração, é por meio dos signos de proximidade que as práticas de fazer família são fortalecidas e reproduzidas; de fato, no contexto cabo-verdiano, circular é partilhar e viver junto tem um significado muito mais amplo do que manter-se próximo fisicamente. A análise desenvolvida neste texto pretendeu superar a limitação implícita na teorização de Janet Carsten (1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997., 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.) - a qual pressupõe uma vinculação entre relatedness e imobilidade, como foi explorado acima - seguindo uma abordagem análoga à de Karen Fog Olwig (2007Olwig, Karen Fog. Caribbean journeys: an ethnography of migration and home in three family networks Durham, Duke University press Books, 2007.) e atendo-se aos princípios metodológicos de relatedness. Por meio dessa abordagem (que permite analisar as práticas de fazer família enquanto um processo de tornar-se através de afirmativas e práticas concretas), foi possível incluir na investigação os signos de proximidade e pensar a mobilidade como variável interna ao estudo da família e do parentesco.

Embora o parentesco seja um tema clássico da disciplina antropológica, ele é alvo de um amplo debate, ainda em aberto.11 11 No que tange à literatura relativa ao debate sobre o parentesco, ver: Sahlins (2011); Carsten (2000); Schneider (1972), Needham (1971), Leach (1974) etc. Após as críticas feitas à vertente clássica de análise do parentesco, que parte de pressupostos biologizantes, atualmente, a maioria dos autores parece concordar que as relações de procriação, de descendência e de filiação não se esgotam no sangue, mas são construídas socialmente - assim como as relações de aliança, de adoção e de amizade. Contudo, essa abordagem construtivista do parentesco, fundada pela noção de relatedness de Janet Carsten (1997Carsten, Janet. The heat of the hearth. The process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Claredon Press, 1997., 2000Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.), pressupõe implicitamente a necessidade da proximidade física para a criação e o fortalecimento dos vínculos familiares, implicando no fato de que a mobilidade seria disruptiva para o parentesco, pois dificultaria ou impossibilitaria que ele fosse construído através da partilha de substância. Mesmo os estudos sobre famílias transnacionais (que voltam a atenção para a forma como as relações de parentesco são mantidas à distância) pensam a existência de famílias espalhadas como uma consequência da migração e da impossibilidade (ou dificuldade) de reunificação familiar.12 12 Com relação aos estudos sobre famílias transnacionais conferir: Bryceson e Vuorela (2002); Chamberlain (2002); Levitt (2001); Levitt & Waters (2002) etc.

Diferentemente, no caso cabo-verdiano, as famílias estão espalhadas independentemente da migração, a qual não parece implicar em novos arranjos nas formas de criação dos filhos, tampouco em um rearranjo nas obrigações dentro das unidades domésticas. Mais que isso, as práticas que fazem família entre os cabo-verdianos incluem os signos de proximidade que constroem uma proximidade à distância entre os parentes que vivem em diferentes casas, vilas, ilhas e países. Portanto, o contexto cabo-verdiano coloca em xeque ambas as abordagens, clássica e construtivista, sobre o parentesco, pois evidencia a existência de uma noção de família que é sim construída (e não dada por pressupostos biológicos), mas que não pressupõe a imobilidade e a co-presença física. Com efeito, a família cabo-verdiana não é construída apenas pelos atos cotidianos de viver junto fisicamente ou pela partilha de substâncias em situações de co-presença, mas também pelos signos de proximidade que operam à distância - inclusive nos contextos de migração. Dessa maneira, o caso cabo-verdiano exige que a abordagem construtivista do parentesco seja repensada de modo a eliminar o pressuposto da imobilidade e incluir a mobilidade como variável interna à análise. A mesma exigência é posta por outros casos caracterizados por uma forte relação entre família e mobilidade - como no caso das três redes familiares caribenhas marcadas pela migração, que foram estudadas por Olwig (2007Olwig, Karen Fog. Caribbean journeys: an ethnography of migration and home in three family networks Durham, Duke University press Books, 2007.).

Ao repensar a abordagem construtivista do parentesco, a argumentação desenvolvida neste texto sugere que as práticas que fazem família não são necessariamente alteradas pela mobilidade (seja no caso da migração, seja no caso das pequenas mobilidades cotidianas que independem da migração). No caso cabo-verdiano, especificamente, o que parece mudar com a mobilidade são apenas as pessoas que em cada momento do tempo estão, ou não, dentro das unidades domésticas. Certamente, tais pessoas variam em função de seus membros migrarem ou retornarem (definitivamente ou nas férias). Entretanto, elas variam também em função de os membros das unidades domésticas saírem para visitar parentes, amigos, vizinhos e padrinhos, ou de serem visitados por eles. Além disso, as pessoas que estão ou não dentro das unidades domésticas variam em função de aguentaremcrianças de outras casas ou cederem crianças para fazer mandados e ser aguentadas por outras pessoas em outras unidades domésticas.

A mobilidade não altera os signos de proximidade por meio dos quais os membros das famílias cabo-verdianas mantêm, levam e criam suas relações. Efetivamente, é ao circular que se pode partilhar. E é partilhando bens, valores, informações e também pessoas que as práticas locais de fazer família são fortalecidas e atualizadas - apesar e através da mobilidade, inclusive da migração. Por meio desse processo, o parentesco e o espaço cabo-verdiano são constantemente (re)constituídos, permitindo que os cabo-verdianos continuem fazendo família e fazendo lugar, independentemente de onde residam. Efetivamente, a máxima cabo-verdiana segundo a qual, paracrescer é preciso sair (de casa ou de Cabo Verde), permite perceber que a mobilidade (espacial) é inerente ao valor que os cabo-verdianos atribuem ao crescimento (ou seja, à mobilidade temporal). Efetivamente, a mobilidade das pessoas (migrantes ou não) parece ser um meio para um fim: crescer a própria pessoa (no sentido de amadurecer),crescer os filhos e a família (no sentido deaguentá-los, isto é, criá-los e ajudá-los acrescer), por fim, crescer os lugares. Portanto, a mobilidade permite aos cabo-verdianos fazer família e fazer lugar, crescendo pessoas, relações e lugares, sendo estes últimos entendidos enquanto espaços relacionais e territoriais não delimitados pelas fronteiras dos Estados-Nações.

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  • *
    Este trabalho foi realizado com apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e da UnB - Universidade de Brasília.
  • Para maiores detalhes sobre essa bibliografia acerca da relação entre mobilidade e parentesco entre cabo-verdianos, conferir: Andall (1998), Carling (2001Carling, Jorgen. Aspiration and ability in international migration: Cape Verdean experiences of mobility and immobility. Tese de Doutorado, Ciências Políticas, Universidade de Oslo, 2001. e 2004Carling, Jorgen. Emigration, return and development in Cape Verde: the impact of closing borders. Population, Space and Place (10), Centro de Estudos Populacionais, Universidade de Michigan, 2004, pp.113-132.); Carling e Batalha (2008)Carling, Jorgen e Batalha, Luís (Orgs.). Transnational Archipelago. Perspectives on Cape Verdean Migration and Diaspora. Amsterdam, Amsterdam University Press, 2008.; Carreira (1977Carreira, Antonio. Cabo Verde. Classes sociais, estrutura familiar, migrações Lisboa, Ulmeiro, 1977. e 1983Carreira, Antonio. Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Praia, Instituto Cabo-Verdiano do Livro, 1983.); Carter e Aulette (2009)Carter, Katherine e Aulette, Judy . Cape Verdean women and globalization. The politics of gender, culture and resistance. Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2009.; Fikes (2009); Finan e Hendersen (1988);Meintel (1984)Meintel, Deirdre. Emigração em Cabo Verde: solução ou problema. Revista Internacional de Estudos Africanos, nº 2, Fundação Portugal-Africa, Universidade de Aveiro, junho-dezembro, 1984, pp.93-120.; Trajano Filho (2009)Trajano Filho, Wilson. The Conservative Aspects of a Centripetal Diaspora: the case of the Cape Verdean Tabancas. Africa, vol. 79, nº 4, Instituto Africano Internacional, Universidade de Cambridge, 2009, pp.520-542.; Vasconcelos (2004)Vasconcelos, João. Espíritos lusófonos numa ilha crioula: língua, poder e identidade em São Vicente de Cabo Verde. In: Carvalho, Clara e Pina Cabral, João de (orgs.). A Persistência da História: passado e contemporaneidade em África, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais 2004, pp.149-190. etc.
  • 2
    Ver especialmente: Akesson (2004)Akesson, Lisa. Making a Life: Meanings of Migration in Cape Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Gotemburgo, 2004.; Dias (2000)Dias, Juliana. Entre Partidas e Regressos: tecendo relações familiares em Cabo Verde. Dissertação de mestrado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2000.; Drotbhom (2009); Lobo (2007)Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007..
  • 3
    Os termos reportados em itálico correspondem a expressões nativas e/ou em língua estrangeira.
  • 4
    O arquipélago de Cabo Verde está situado a 500 Km da costa do Senegal e esteve desabitado até o início da colonização portuguesa (que se estendeu de 1460 e 1975). Ele é formado por dez ilhas que diferem umas das outras, em termos de paisagem, clima, recursos naturais, língua e cultura. Uma das ilhas não é habitada (devido a suas condições climáticas desfavoráveis ao assentamento humano); as outras nove (Brava, Fogo, Santiago, Maio, Boa Vista, Sal, São Nicolau, São Vicente e Santo Antão) são um pouco menos inóspitas e algumas chegam a ser férteis, enquanto a maioria das outras não é favorável à agricultura por seu caráter arenoso ou rochoso. O português é a língua oficial, mas a língua franca é o crioulo - cuja sintaxe é africana e o vocabulário português - sendo falados vários crioulos nas diferentes ilhas. A religião mais difundida é o catolicismo, mas nas variadas ilhas estão presentes também religiões de matriz africana.
  • 5
    Mandados é o termo comumente utilizado em diferentes ilhas de Cabo Verde para se referir às tarefas realizadas por pessoas de todas às idades (por exemplo, trabalhos temporários, venda de produtos confeccionados em casa ou responsabilidade nos afazeres domésticos); no caso das crianças, porém, osmandados englobam todas as suas atividades cotidianas que implicam em movimento, em manter-se ocupado (cf. Lobo, 2011Lobo, Andréa. Making Families: Child mobility and familiar organization in Cape Verde. Vibrant, vol. 8, nº 2, Associação Brasileira de Antropologia, 2011, pp.197-219. [ [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1809-43412011000200009&script=sci_arttext - acesso em: 22 set 2015]
    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S180...
    ; Vasconcelos, 2012).
  • 6
    Aguentar uma criança é uma expressão utilizada em Cabo Verde que pode apresentar dois significados, a saber, cuidar ocasionalmente de uma criança ou tomar para si a responsabilidade por criá-la - assumindo o lugar da mãe dela e tratando-a como se ela fosse o próprio filho. Além disso, o termoaguentar apresenta um sentido mais amplo, vinculado às obrigações recíprocas entre parentes, sendo a expressão aguentar a família comumente utilizada para se referir à ajuda (especialmente econômica) entre familiares (cf. Lobo, 2007Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007.).
  • 7
    Lobo (2007)Lobo, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: organização familiar e emigração feminina na Ilha da Boa Vista - Cabo Verde. Tese de doutorado, Antropologia Social, Universidade de Brasília, 2007. lança mão da noção de signos de proximidade de duas maneiras: para pensar as relações genealógicas enquanto forma primária de estabelecer conexões através de uma primeira troca de fluidos; para explorar as maneiras de criar proximidade à distância por meio das trocas (materiais, cognitivas e emocionais) que se instauram entre as pessoas que migram e aquelas que permanecem no arquipélago.
  • 8
    Os diferentes contextos caribenhos correspondem a outro caso em que essa vinculação entre relatedness e imobilidade não parece se aplicar, conforme discuti em outro trabalho (Bongianino, 2014 Bongianino, Claudia Fioretti. Tornar-se afro-caribenho. Ensaio bibliográfico sobre família e mobilidade no Caribe. Revista Teoria e Culturavol. 9, UFJF, Juiz de Fora, 2014, pp.63-76.) e retomarei brevemente adiante.
  • 9
    Nesse contexto, é interessante evidenciar que Federica e Kiara não têm cidadania cabo-verdiana, assim como a maioria dos filhos de cabo-verdianos nascidos na Itália. Kiara adquiriu automaticamente a cidadania italiana, pois seu pai é italiano. No entanto, Federica não têm cidadania italiana, sendo apátrida e estando, atualmente, em situação irregular na Itália. Sua situação traz à tona as dificuldades que meus interlocutores de pesquisa enfrentam na Itália, sendo discriminados ao serem reconhecidos e tratados como não italianos. Tal discriminação se expressa no regime de trabalho e na legislação (especialmente naquela relativa à concessão da cidadania italiana). Embora essa discriminação apareça sob o nome de racismo e apresente características que poderiam ser descritas em termos de xenofobia, nenhuma das denominações parece dar conta do meu contexto de análise. Efetivamente, a discriminação que os cabo-verdianos sofrem na Itália está relacionada a aspectos raciais, nacionais e socioeconômicos. Cabe ressaltar que essa discriminação coloca em risco aliberdade dos meus interlocutores de pesquisa em dois sentidos: enquanto mobilidade espacial (ou seja, a possibilidade de movimentar-se fisicamente) e enquanto mobilidade temporal (isto é, a possibilidade de crescer e de construir uma vida boa familiar). No entanto, as dificuldades vinculadas a essa discriminação são enfrentadas, manejadas e, em larga medida, contornadas por meio do estabelecimento de vínculos e da criação de relações laborais de amizade, que frequentemente utilizam o idioma do parentesco. Para uma discussão detalhada sobre essas dificuldades e tensões ver Bongianino (2012).
  • 10
    Ver especificamenre: Evora (2003); Grassi (2008); Monteiro (1984)Monteiro, César Augusto. Comunidade Imigrada. Visão sociológica: o caso da Itália São Vicente, Gráfica do Mindelo, Lda, 1997..
  • 11
    No que tange à literatura relativa ao debate sobre o parentesco, ver: Sahlins (2011)Sahlins, Marchall. What kinship is (part one). Journal of the Royal Anthropological Institute (17), Royal Anthropological Institute, Londres, 2011, pp.2-19.; Carsten (2000)Carsten, Janet. Introduction. In: Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Edinburgo, CambridgeUniversity Press, 2000, pp.01-36.; Schneider (1972)Schneider, D. A. What is kinship about. Kinship Studies in the Morgan Centennial, 1972., Needham (1971)Needham, Rodney. Rethinking Kinship and Marriage. London, Tavistock, 1971., Leach (1974)Leach, Edmund. Repensando a Antropologia. São Paulo, Perspectiva, 1974. etc.
  • 12
    Com relação aos estudos sobre famílias transnacionais conferir: Bryceson e Vuorela (2002)Bryceson, Deborah e Vuorela, Ulla (orgs.). The transnational Family: New European Frontiers and Global Networks. Oxford, New York, Berg, 2002; Chamberlain (2002)Chamberlain, Mary. Family Love in the diaspora. Migration and the Anglo-Caribbean Experience Memory and narrative series. New Brunswick e Londres, Transaction Publishers, 2006.; Levitt (2001)Levitt, Peggy. The Transnational Villagers. Berkeley, University of California Press, 2001.; Levitt & Waters (2002)Levitt, Peggy e Waters, Mary C. (orgs.). The Changing Face of Home: The Transnational Lives of the Second Generation. Nova Iorque, Russell Sage Foundation, 2002. etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2015
  • Aceito
    24 Ago 2015
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