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Institucionalizando a prática de avaliação em saúde: significado e limites

Institutionalizing the practice of evaluation in health: meanings and limits

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Institucionalizando a prática de avaliação em saúde: significado e limites

Institutionalizing the practice of evaluation in health: meanings and limits

Carmen Fontes Teixeira

Universidade Federal da Bahia. carment@ufba.br

O artigo de Eronildo Felisberto pontua o debate sobre a institucionalização das práticas de avaliação no âmbito do Sistema Único de Saúde, tema extremamente relevante em um contexto no qual se enfatiza o aperfeiçoamento da gestão do sistema, objeto de recente negociação ampla entre os gestores dos diversos níveis de governo. De fato, o autor convida a uma reflexão sobre o significado (estratégico?) dos esforços desenvolvidos pelo gestor federal (Ministério da Saúde) para a incorporação de práticas de avaliação no cotidiano das instituições de saúde, ancorando-se, especificamente, nas iniciativas do Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério de Saúde, órgão que tem se configurado como um "núcleo modernizante" da organização e gestão dos serviços públicos de saúde, por conta, principalmente, da adoção do Programa de Saúde da Família como estratégia de reorganização desse nível de atenção.

Coerente com esse propósito, o artigo recupera debates anteriores, ocorridos em 1999 e 2002, a partir da publicação de dois artigos de pesquisadores da área1, 2, ambos defensores da institucionalização da avaliação, entendida como "fator qualificador do processo de gestão", relembrando os principais questionamentos apresentados pelos debatedores de então. Um deles, feito por Contrandiopoulos3 ao texto de Zulmira Hartz, aponta, cautelosamente, possíveis limites da avaliação, na medida em que enfatiza uma "abordagem técnico-científica em decisões coletivas", comentando a existência de outras "lógicas" (profissional, econômica e democrática) que também permeiam o processo de gestão.

Ainda que partindo de um outro referencial teórico, podemos constatar que a redução da avaliação aos aspectos técnicos das intervenções sanitárias, sejam relativos a processos e/ou a resultados obtidos com a prestação de ações e serviços de saúde, é também a preocupação subjacente ao texto de Regina Bodstein2, ressaltando os desafios de ordem metodológica a serem enfrentados para a delimitação do objeto da avaliação, proposto pela autora como sendo o "desempenho institucional" como visto por Putnam4.

Ao participar de debate proposto pelo artigo de Regina, enfatizei a importância de se diversificar os objetos e níveis de avaliação do processo de implementação de políticas, a exemplo da política de descentralização da gestão do SUS, tomando como exemplo a possibilidade de se recortar "planos de profundidade"5 das mudanças induzidas por essa política, os quais podem ser referidos à gestão do sistema de saúde, a organização das ações e serviços, a infra-estrutura de recursos, ao perfil de oferta de ações e serviços, aos resultados clínico-epidemiológicos e aos efeitos sobre a percepção e as representações da população acerca da saúde e dos serviços de saúde6.

Como se pode perceber, compartilho com esses autores a crença (porque disso se trata, obviamente) de que a incorporação da avaliação como uma dimensão da gestão dos sistemas e serviços pode contribuir para o aperfeiçoamento do processo de tomada de decisões, planejamento, programação e organização dos serviços, na medida em que estes venham a tomar como referência resultados de pesquisas avaliativas que apontem fragilidades políticas, debilidades organizacionais e lacunas no conhecimento acerca dos problemas que se apresentam em vários níveis e planos da realidade do SUS.

Refletindo sobre a minha experiência na área de planejamento e tendo em conta estudos recentes de pesquisadores da área, gostaria de sublinhar, entretanto, a preocupação com o risco tecnocrático implícita no processo de incorporação da avaliação nas instituições e serviços de saúde. Ou seja, com a possibilidade de as práticas avaliativas se transformarem em um mero ritual, como acontece, em larga medida, com o processo de planejamento e programação das ações de saúde nas várias instâncias de gestão do SUS.

Nesse sentido, já apontava, em 2002, a importância de se levar em conta os sujeitos desses processos, quer os dirigentes e a burocracia governamental, quer os profissionais e trabalhadores de saúde, quer a população, vista não apenas enquanto usuários, consumidores dos serviços produzidos, senão enquanto sujeitos, cujo protagonismo, na tomada de decisão e no controle e avaliação da gestão do sistema, vem sendo, inclusive, estimulado no processo de construção do SUS6.

De fato, pesquisas como a realizada por Márcia Lotufo, sobre a gestão estadual do SUS, a partir de um estudo do caso da Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso7, ou o estudo recente de Ana Luisa Vilasboas, sobre o processo de planejamento em uma Secretaria Municipal de Saúde da Bahia8, revelam que o elemento diferenciador da qualidade da gestão, mais do que a perícia técnica é o compromisso ético e político dos sujeitos que compõem a equipe dirigente.

Esses achados corroboram as inquietações e propostas presentes na produção madura de autores da área de planejamento em saúde, notadamente Carlos Matus9, 10 e Mário Testa11, 12. O primeiro enfatiza que a crise atual é uma crise do "estilo de fazer política" e sua causa principal é a "ausência de formação moral e intelectual dos líderes políticos". O segundo indica a necessidade de constituição de sujeitos epistêmicos (capazes de produzir conhecimentos) avaliadores (capazes de avaliar políticas e práticas) e públicos (imbuídos da responsabilidade por exercer uma militância política em prol da transformação social, respaldada por valores éticos que enfatizem a valorização da vida e da dignidade humana).

No caso brasileiro, talvez a "ausência de formação intelectual e moral dos dirigentes" não seja o principal problema, ou melhor, o principal determinante dos problemas da gestão do sistema público de saúde, mas, sem dúvida, a escassez de quadros qualificados para o exercício da gestão, do governo do sistema, é uma das principais limitações, o que tem gerado, inclusive, a elaboração de propostas de formação e capacitação de gestores, através de cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, nos últimos anos.

O aprendizado de conceitos, métodos e técnicas de avaliação em saúde, sem dúvida, deve ser incorporado ao programa desses cursos, fazendo parte dos conteúdos que, uma vez apreendidos e exercitados, podem contribuir para o fortalecimento da chamada racionalidade técnico-instrumental no âmbito do processo de gestão. Pelo exposto anteriormente, entretanto, fica claro que comungo das idéias daqueles que valorizam o fortalecimento da racionalidade política, fundada numa ética da responsabilidade, que leve em conta a multiplicidade cultural que permeia não só a sociedade brasileira em sua totalidade complexa, senão que também as instituições de saúde.

O reconhecimento dessa complexidade e o esforço de construção de consensos em torno a modos de gerir e organizar o processo de trabalho podem ser, a meu ver, o ponto de partida para a transformação cultural no âmbito dos serviços de saúde, de modo que, ao lado da incorporação de métodos, técnicas e instrumentos que confiram "cientificidade" às práticas de saúde, se leve em conta a intuição, a criatividade, a invenção do novo, para além das normas e dos modelos.

Referências

1. Hartz ZMA. Institutionalizing the evaluation of health programs and policies in France: cuisine internationale over fast food and sur mesure over ready-made. Cad Saúde Pública 1999; 15(2):229-45.

2. Bodstein R. Atenção Básica na agenda da saúde. Rev C S Col 2002; 7(3):401-12.

3. Contandriopoulos AP. Is the institutionalization of evaluation sufficient to guarantee its practice? Cad Saúde Pública 1999; 15(2):253-6.

4 Putnam R. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2000.

5. Almeida MJ. Educação médica e saúde: limites e possibilidades das propostas de mudança [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 1997.

6. Teixeira CF. Descentralização do SUS: múltiplos efeitos, múltiplos olhares.Rev C S Col 2002; 7(3):423-6.

7. Lotufo M. Gestão pública em saúde: análise da capacidade de governo da alta direção da SES-MT em 2001 [tese]. Salvador: ISC/UFBA; 2003.

8. Vilasboas AL. Práticas de planejamento e implementação de políticas de saúde no âmbito municipal [tese]. Salvador: ISC/UFBA; 2006.

9. Matus C. Los tres cinturones del gobierno. Caracas: Fondo Editorial Altadir, 1997.

10. Matus C. O líder sem Estado-maior. São Paulo: Fundap; 2000.

11. Testa M. Análisis de instituciones hipercomplejas. In: Merhry E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde? Um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; Buenos Aires: Lugar Editorial; 1997. p. 17-70.

12. Testa M. Pensar en salud. 3ª ed. Buenos Aires: Lugar Editorial, 240 p. 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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