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Avaliar, uma responsabilidade

Evaluation, a responsability

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Avaliar, uma responsabilidade

Evaluation, a responsability

Silvia TakedaI; Yves TalbotII

IServiço de Saúde Comunitária do Grupo Conceição e Department of Family and Community Medicine, University of Toronto. tsilvia@terra.com.br; silvia.takeda@utoronto.ca

IIDepartment of Family and Community Medicine; and Health Policy Management and Evaluation, University of Toronto. y.talbot@utoronto.ca

O Brasil encontra-se em franco aprimoramento do seu sistema de saúde e como parte deste processo busca-se conhecer suas fortalezas e debilidades, os fatores que as determinam, e assim configurar o sistema. Mas incorporar a avaliação no cotidiano do setor saúde tem apresentado desafios que vão desde a falta de tradição em avaliar até a pouca compreensão, por parte de muitos atores, do que é o Sistema Único de Saúde (SUS)1, 2.

Os brasileiros optaram por um sistema de saúde que tem como valores a universalidade, a eqüidade, a integralidade e a participação comunitária, e cuja base é a Atenção Primária (APS). Mas existe desconhecimento sobre em que mesmo se constitui e quais elementos da APS podem levar à concretização destes valores3, 4.

Avaliar é uma responsabilidade e as instituições não podem se furtar de exercê-la. Institucionalizar a avaliação significa incorporá-la ao sistema, possibilitando monitorar a capacidade dos serviços em responder às necessidades em saúde; acompanhar os efeitos das intervenções; identificar e corrigir problemas5; enfim, retroalimentar equipes de saúde, gestores, políticos e comunidades. Não avaliar pode ser comparado a pilotar um avião sem instrumentos de navegação aérea, sem indicadores das condições de vôo e do motor. É voar sem bússola, altímetro, velocímetro, indicadores de nível de combustível, óleo e temperatura da água.

A preocupação com os riscos de institucionalizar a avaliação e em especial o problema da aculturação, entendida como a introdução de "jeitos" de avaliar estranhos, importados, em vez do desenvolvimento do "nosso" jeito, deve ser contraposta aos valores e princípios do SUS, claros orientadores das políticas, dos modos de fazer e dos resultados a serem buscados.

Avaliar é uma forma de participação, participação da construção e aperfeiçoamento do SUS. É uma oportunidade dos diferentes atores (provedores de serviços em saúde, políticos, gestores, população, universidades e demais instituições de aprendizagem) participarem da configuração que se quer dar ao SUS, sendo ao mesmo tempo um processo de aprendizagem e de controle social. Mas, de onde vem a posição defensiva sobre avaliar? Profissionais que experienciaram um sistema fortemente hierárquico e não participativo, com o enfoque no que saiu "errado" necessitam vivenciar uma nova realidade6.

Segundo Giandomenico Majone, 1988: O verdadeiro desafio em avaliação é o desenvolvimento de um processo que enfatiza aprendizado e mudanças, em vez de um sintético julgamento de valor, bom ou mau.

Gostaríamos de destacar alguns aspectos com vistas a contribuir para a institucionalização da avaliação da APS.

1) Acerca da clara definição dos objetivos da avaliação ­ trata-se de avaliar a Atenção Primária, ou seja, esta porção que compõe o sistema de serviços de saúde, a porta de entrada para o sistema. O espaço onde são organizadas as respostas às necessidades de saúde das populações, seja resolvendo (cerca de 85% das situações) ­ de acordo com a freqüência com que as situações ocorrem enão com o seu grau de complexidade ­, ou seja referindo aos demais "níveis" de atenção. Ao avaliar a APS conhecemos as necessidades em saúde (prevenção ou tratamento de doenças, recuperação ou promoção da saúde), o que é básico para analisar o sistema e a situação de saúde da população (que envolve, ainda, estudar os cuidados secundários, terciários, demais recursos da rede de serviços e demais determinantes da saúde).

Avaliar a APS significa avaliar, dentre os elementos que a constituem, aquelas características únicas, particulares da APS: em que medida o primeiro contato, a integralidade, a longitude e a coordenação estão sendo alcançados? Já se acumulam evidências da forte relação entre o cumprimento destes elementos-chave da APS e os melhores resultados em saúde em termos de efetividade dos cuidados7, da satisfação da população e dos provedores dos serviços8, da maior eqüidade em saúde mesmo em condições de desigualdade social9, e menores custos6, 10. Este tema leva ao próximo.

2) Conhecimento do que é APS e o reconhecimento da forte ligação entre APS e eqüidade em saúde. Estamos falando do componente do sistema de saúde que é responsável por cerca de 85% das necessidades em saúde da população11, e se este sistema falha, a atenção secundária (especialistas em doenças) terá de lidar com problemas próprios da atenção primária e isto significa menor qualidade e maiores custos12. Um exemplo é o fato de 62% de as hospitalizações em pequenos hospitais brasileiros serem devidas a condições sensíveis à APS10.

Políticos, gestores, provedores dos serviços e população devem conhecer claramente os elementos operacionais da APS, seus significados, indicadores de avaliação, vantagens e limitações de cada um em termos do alcance dos princípios do SUS e de melhores resultados em saúde.

3) É preciso criar uma "inteligência" em APS ­ inteligência entendida como a disponibilidade de informação essencial para a tomada de decisões13, 14. Informação sobre o sistema, seus processos e resultados, sobre a coleção das evidências provenientes das experiências locais, regionais, nacional, as evidências encontradas na literatura. Tomadores de decisões ­ sejam políticos, gestores, clínicos (entendidos como qualquer integrante da equipe de saúde: médicos, enfermeiros, psicólogos, dentistas, etc.), agentes comunitários de saúde, ou a população ­ devem ter a seu dispor a melhor informação.

Contribuem para esta finalidade:

a) A revisão das bases de dados nacionais criadas antes do Programa Saúde da Família (PSF), sua integração e incorporação do Sistema de Informações da Atenção Básica (Siab), permitindo que sejam refletidas todas as dimensões da APS e do SUS.

b) Não há muito que inventar em termos da escolha dos indicadores para se avaliar a qualidade da APS e seus resultados. Evidências demonstram que a análise de algumas condições sensíveis às ações em APS são excelentes indicadores para se conhecer em que medida os serviços de APS estão sendo efetivos15, 16, 17. São indicadores que têm como foco as pessoas e não as doenças, e alguns já estão expressos no Pacto da Atenção Básica18. A análise destes indicadores e dos processos implicados nos resultados alcançados (incluindo-se os indicadores das características-chave da APS) permite entender as particularidades locais e fornece informações consistentes para apoiar a tomada de decisões.

c) A necessidade de capacitações é enorme, seja de equipes técnicas para aquisição de competências avaliativas, seja dos demais atores (gestores, provedores de serviços de APS, comunidades, mídia). Capacitações no entendimento do que são a APS e o SUS, na identificação das necessidades em saúde, na interpretação dos indicadores e no aprimoramento das formas de conhecer-se a complexa realidade. Capacitações que reforcem o uso dos recursos já disponíveis (exemplo: bibliotecárias são valiosos recursos na busca de evidências em literatura, rotineiramente subutilizadas).

O Brasil está fazendo grandes mudanças e muitos desafios vêm sendo enfrentados ao mesmo tempo. Avaliar em que medida estas mudanças significam as melhorias perseguidas é uma empreitada que não prescinde da institucionalização da avaliação.

Referências

1. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Relatório Final do 1º Seminário do CONASS para Construção de Consensos: preocupações e prioridades dos secretários estaduais de Saúde quanto a organização, gestão e financiamento do SUS. Brasília: CONASS; 2003.

2. Salazar A, Rodrigues KG, Silver L, Scheffer M, organizadores. O SUS pode ser seu melhor plano de saúde. São Paulo; 2003. Disponível em: www.idec.org.br

3. Organização Pan-Americana de Saúde, Organização Mundial de Saúde. Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas. Documento de Posicionamento da Organização Pan-Americana de Saúde. Washington: PAHO 46º Conselho Diretivo; Agosto de 2005.

4. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Notas de Avaliação do 1º Curso em Aperfeiçoamento de Gestão em Atenção Primária da Saúde. Brasília: CONASS/ Universidade de Toronto, 2006. [Não publicado].

5. Contandriopoulos AP, Champagne F, Denis JL, Pineault R. A avaliação na área de saúde: conceitos e métodos. In: Hartz Z. Avaliação em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1997. p. 29-47.

6. Raupp B, Dierks M, Pekelman R, Fajardo A. A vigilância, o planejamento e a educação em saúde no SSC: uma aproximação possível. In: Eymar VM, editor. A saúde nas palavras e nos gestos. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 207-17.

7. Starfield B. Atenção Primária. Equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 2ª ed. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2004.

8. Wyke S, Campbell G, MacIver S. Provision of, and patient satisfaction with, primary care services in a relatively affluent area and a relatively deprived area of Glasgow. Br J Gen Pract 1992; 42(360):271-5.

9. Almeida SDM, Barros MBA. Eqüidade e atenção a saúde das gestantes em Campinas (SP), Brasil. Rev Pan-Americana de Saúde Pública 2005; 17(1):15-25.

10. Mendes VE. Atenção Primária à Saúde no SUS. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará; 2002.

11. Starfield B. Is primary-care essential? Lancet 1994; 344(8930):1129-33.

12. Bowling A, Bond M. A national evaluation of specialists' clinics in primary care settings. Br J Gen Pract 2001; 51(465):264-9.

13. Baker R. Managing quality in primary health care: the need for valid information about performance. Qual Health Care 2000; 9(2):83-.

14. Sandiford P, Annett H, Cibulskis R. What can information-systems do for Primary Health Care ­ an international perspective. Soc Sci Med 1992; 34(10): 1077-87.

15. Bradley J, Igras S. Improving the quality of child health services: participatory action by providers. Int J Qual Health Care 2005;17(5):391-9.

16. Cunha A, Santos SR, Martines J. Integrated care of childhood disease in Brazil: Mothers' response to the recommendations of health workers. Acta Paediatrica 2005; 94(8):1116-21.

17. Shi L, Macinko J, Starfield B, Xu J, Politzer R. Primary care, income inequality, and stroke mortality in the United States: a longitudinal analysis, 1985-1995. Stroke 2003; 34(8):1958-64.

18. Ministério da Saúde. Portaria nº 21 de 5 de janeiro de 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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