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Comentários sobre a Estratégia de Saúde da Família e o SUS, suscitados pelo texto de Sousa e Hamann

Comments on the Family Health Strategy and the Brazilian Unified Health System (SUS), promoted by Sousa and Hamann's text

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Comentários sobre a Estratégia de Saúde da Família e o SUS, suscitados pelo texto de Sousa e Hamann

Comments on the Family Health Strategy and the Brazilian Unified Health System (SUS), promoted by Sousa and Hamann's text

Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti

Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. mlourdestc@globo.com

Entre 1994 e 2001, Maria Fátima de Sousa foi gerente nacional do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e assessora do Ministério da Saúde no Programa Saúde da Família (PSF). Desse modo, a reconstituição da trajetória de implantação do PSF no país, apresentada no artigo "Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta?", exprime a visão de quem acompanhou de perto e participou efetivamente deste processo. Já os breves comentários aqui expostos são fruto da observação mais distanciada do processo de implantação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) (como médica sanitarista, professora e pesquisadora), mas nem por isso menos interessada no tema.

Vale explicitar a concordância, em linhas gerais, com as considerações de Sousa e Hamann acerca da evolução do PSF a partir da década de noventa, como uma estratégia de reorganização da atenção básica, e a pertinência das necessidades mais urgentes referentes à ESF, descritas no texto. Os autores abordam com competência os desafios relativos ao financiamento, à ausência de uma rede regionalizada de referência e contra-referência nos municípios de pequeno porte, bem como os obstáculos à extensão de cobertura da ESF nos grandes centros.

A reflexão sobre os desafios para a ESF remete a questões, algumas das quais enunciadas no artigo, como a resolutividade das ações; a qualidade da atenção; a integração e articulação com o sistema de saúde. Em relação aos recursos humanos, importa enfatizar a fragilidade dos vínculos empregatícios (a variedade de formas de contratação), a rotatividade dos profissionais (a dificuldade de fixação especialmente dos médicos), e, como apontado por Sousa e Hamann, a importância da formação voltada para a atuação dentro da concepção de saúde da família (a educação médica é fundamental neste aspecto). Por fim, a promoção da saúde, a prevenção dos agravos e a intersetorialidade são atividades centrais na ESF, mas ainda pouco desenvolvidas diante do almejado.

A denominação Estratégia de Saúde da Família ultrapassa a designação do PSF como um programa e aumenta as possibilidades de difusão da concepção de saúde da família no sistema de saúde. A ESF constitui uma modalidade de atenção primária à saúde e está inserida no SUS, faz parte do sistema de saúde. Seus objetivos são consonantes aos propósitos do SUS e sua concretização está vinculada à efetivação dos princípios e diretrizes do SUS, ao provimento de atenção à saúde, à melhoria da qualidade de vida e do bem-estar da população, de modo universal, igualitário e integral. Como refere Campos1, a atenção primária à saúde constitui um eixo organizador de sistemas de saúde universais: Uma das estratégias colocadas em prática pelos Sistemas Nacionais de Saúde, desde meados da década de 1980, foi a de fortalecer os subsistemas de Atenção Primária à Saúde (APS). O objetivo desta estratégia é aumentar a cobertura, alcançar maior equidade na distribuição dos serviços e racionalizar os custos. A alegação de que os países que adotaram esta via tem melhores indicadores sociais e sanitários é um forte argumento e é amplamente difundido na literatura, incluindo a OMS/OPAS e as agências de fomento ao desenvolvimento (Banco Mundial/BIRD). O modelo mais predominante busca vincular grupos de famílias à médicos e/ou equipes especializadas em APS; dá ênfase às ações de promoção e prevenção; organiza algum tipo de regulação quanto ao uso de especialistas e exames correspondentes e, mais recentemente, dá estímulos à maior produtividade/gestão da qualidade/gestão por resultados das equipes e serviços.

Em contraposição a este movimento estão os que defendem o livre acesso aos serviços de acordo com as necessidades dos indivíduos e comunidades. Para estes, a livre escolha de profissionais e a utilização de bens e serviços em saúde não podem ser restringidas e deve estar acessível a todos sem distinção. Para estes a liberdade de escolha como premissa é o que garante a qualidade e a redução dos custos por estimular a concorrência entre os prestadores. Nesta visão, a APS é um conjunto de ações limitadas, de baixo custo, oferecidas à populações excluídas do sistema social e econômico1.

As críticas à APS e à ESF remetem às visões sobre sistema de saúde e organização da atenção nos países capitalistas ocidentais. Nações cujo financiamento dos serviços de saúde tem como base o seguro social historicamente tiveram menor investimento na implantação de uma rede de serviços básicos a funcionar como porta de entrada no sistema. Em contrapartida, nos países que adotaram a conformação de sistemas nacionais de saúde financiados por impostos gerais, ocorreu maior preocupação com a estruturação do primeiro nível de atenção ou porta de entrada no sistema. Nos últimos anos, a necessidade de racionalização com redução dos custos e aumento da efetividade da atenção à saúde levou à disseminação de reformas nos sistemas de saúde de diversos países, nas quais de um modo ou de outro se buscou priorizar a atenção primária à saúde, independente da origem e do tipo de sistema de saúde existente.

Um aspecto acentuado por Sousa e Hamann diz respeito às estratégias de avaliação da saúde da família. A avaliação da qualidade das ações, serviços e sistemas de saúde constitui um campo de conhecimento de importância crescente. O Ministério da Saúde tem fomentado a institucionalização de uma cultura avaliativa nos serviços de saúde, financiando estudos avaliativos na esfera da atenção básica. A avaliação de desempenho é um desafio para pesquisadores, gestores e profissionais de saúde. Neste panorama, os estudos comparados de sistemas de saúde contribuem para a identificação de tendências e modos de organização da atenção à saúde mais satisfatórios e eficientes2.

Pesquisadores3-6 e a OPS/OMS7 relatam resultados de estudos que demonstram existir maior equidade e eficiência, melhor efetividade de custos e mais satisfação dos usuários nos sistemas de saúde universais com base na atenção primária à saúde. Em concordância com Campos1, este argumento justifica o investimento na consolidação da ESF, bem como o aprofundamento na universalidade do SUS.

De fato, o PSF, no Brasil, constitui uma agenda incompleta, nem tanto por não ter conseguido "ampliar as condições para a superação efetiva do modelo biomédico hegemônico nas políticas públicas do setor saúde", mas, principalmente, por não ter alcançado sua implantação plena. Nesse sentido, as dificuldades para a expansão e aperfeiçoamento da ESF são comuns aos atuais impedimentos e desafios enfrentados para a consolidação do SUS. Dentre estes, destacam-se o financiamento público insuficiente e as condições de trabalho adversas, que abrangem a precarização das relações de trabalho e os baixos níveis salariais. Estes fatores contribuem para o acúmulo de vínculos empregatícios pelos profissionais de saúde e a perpetuação da dicotomia entre o setor público e privado no sistema de saúde brasileiro. Contudo, a segmentação entre sistema público e privado (dos planos e seguros de saúde) constitui uma falsa oposição a encobrir a interdependência entre os dois subsistemas.

Além do mais, o setor saúde vivencia a deterioração das relações, o esvaziamento das corporações e das instituições políticas. A despolitização generalizada se expressa no distanciamento dos profissionais de saúde, especialmente os médicos, do sistema público de saúde. Os profissionais não percebem o SUS como um projeto coletivo da sociedade, do qual eles fazem parte e no qual desempenham uma função estrutural, um papel estratégico para que o sistema funcione, "dê certo". Parcialmente, esta descrença resulta da forma como o poder público vem lidando com estes profissionais, no encaminhamento dos processos e na administração da saúde pública brasileira. Por outro lado, o debate político nos espaços públicos como os conselhos de saúde se encontra cristalizado no modus operandi e nos discursos repetitivos, e a atuação das entidades de representação, seja dos profissionais ou da população, engessada por disputas de micropoderes e falsos embates ideológicos que encobrem a ausência de proposições e de autonomia para enfrentamento dos verdadeiros entraves. Estes dizem respeito a qual sistema de saúde a sociedade brasileira está disposta a bancar.

  • 1. Campos CEA. Exercícios de Administração e Planejamento em Saúde. Tema: Sistema Único de Saúde. Sub-tema: Atenção Primária à Saúde-Saúde da Família Disciplina de Administração e Planejamento em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, UFRJ; 2008. [Mimeo]
  • 2. Conill EM. Sistemas comparados de saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior RM, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. p. 563-614.
  • 3. Starfield B. Is Primary Care Essential. Lancet 1994; 344(8930):1129-1133.
  • 4. Andrade LOM, Bueno ICC, Bezerra RC. Atenção Primária à Saúde e Estratégia de Saúde da Família In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior RM, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. p. 783-832.
  • 5. Giovanella L. A atenção primária à saúde no países da União Européia. Configurações e reformas organizacionais na década de 1990. Cad Saude Publica 2006; (22)5: 951-963.
  • 6. Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(Supl. 1):S7-S27.
  • 7
    OPS/OMS. Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas Documento de posicionamento da Organização Pan-Americana de Saúde /OMS Washington, D.C.: OPS/OMS; 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
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